EDITORIAL
O problema tem preocupado também as agências de fomento à pesquisa. Recentemente o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico-CNPq (http://www.cnpq.br/normas/lei_po_085_11.htm#relatorio) e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo-FAPESP (http://www.fapesp.br/6566) disponibilizaram reflexões e diretrizes para desestimular as práticas fraudulentas em pesquisa e incentivar a produção e divulgação do conhecimento dentro de princípios de integridade. Sugerimos a leitura. O documento da Comissão de Integridade de Pesquisa do CNPq reconhece como principais desvios de conduta acadêmica a fabricação ou invenção de dados, o plágio e o autoplágio. Além das consequências para o conhecimento, a agência entende que os desvios podem facilitar a obtenção indevida de auxílios financeiros.
O assunto tem motivado também as instituições acadêmicas a discutirem o assunto visando a engendrar ações educacionais sobre o tema. Nesse contexto, fiz parte de discussões na Câmara de Pesquisa da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), São Carlos, SP, Brasil, ocasião em que tive a oportunidade de redigir um texto (não publicado), do qual parte deste editorial foi extraída.
Buscando uma abordagem mais contextual do assunto, recorremos a um texto de Pimple3, no qual o autor entende que a conduta ética em pesquisa é norteada por três questões simples: 1) "É verdadeiro?": refere-se a aspectos relacionados à veracidade e validade dos resultados da pesquisa, à competência técnica básica (incluindo o planejamento experimental), à manipulação de dados, aos métodos estatísticos, ao viés não-intencional e à falsificação e fabricação de dados; 2) "É justo?": refere-se ao relacionamento entre pesquisadores, tais como autoria, compartilhamento de dados, plágio, revisão por pares, confidencialidade, imparcialidade. Há também aspectos do relacionamento entre pesquisadores e sujeitos da pesquisa (princípios éticos em pesquisa com humanos, acesso ao tratamento, informe consentido, aquiescência, confidencialidade e anonimato, engano, riscos e benefícios da pesquisa, dentre outros), bem-estar de animais (dor, sofrimento e "direitos" dos animais), relacionamento entre pesquisadores e suas instituições, agências de fomento e governo (conflito de interesse, atendimento a regulamentações, retenção de dados, apoio e demandas institucionais) e "É sábio?": refere-se a assuntos relacionados à responsabilidade social, tais como prioridades de pesquisa no sentido de melhor aplicação dos recursos disponíveis, responsabilidade fiscal, serviço público, impacto ambiental, dentre outros.
Esse escopo geral fornece uma estrutura que abrange os principais domínios éticos na pesquisa. No entanto, trata-se apenas de um enquadramento teórico, já que existe sobreposição entre esses domínios. Também existem variações nas definições disponíveis para os desvios da conduta acadêmica na literatura. Respeitando-se essas ressalvas e, sem naturalmente querer esgotar o assunto, descrevemos brevemente, a seguir, alguns problemas éticos mais comuns em pesquisa.
Desvio de conduta acadêmica: é a intenção de levar outras pessoas a pensarem que algo é verdadeiro quando não é. Assim sendo, envolve não apenas um ato ou uma omissão, mas também uma intenção deliberada do pesquisador, autor, editor ou editora1,2. Refere-se usualmente à fabricação, falsificação, plágio ou a outras práticas que se desviam seriamente daquelas que são aceitas pela comunidade científica como íntegras para a proposição, condução e relato de pesquisa4.
Fabricação de dados: é o relato de um conjunto, completo ou parcial, de dados que não existem, que foram inventados. Para isso, forja-se a forma de obtê-los, incluindo a descrição de experimentos que nunca foram realizados1,3.
Falsificação de dados: é a manipulação de materiais de pesquisa, equipamentos, processos ou a alteração ou omissão de resultados, de forma a não representar a pesquisa com precisão3. Exemplo disso é o "cooking", no qual apenas os resultados que apoiam a hipótese investigada são mantidos e analisados, ignorando-se os dados que possam enfraquecê-la. Também como uma ofensa menor, existe o "trimming", que envolve suavizar irregularidades dos dados de forma a torná-los mais convincentes para publicação1.
Plágio: é o uso de ideias, palavras ou qualquer outra propriedade intelectual pertencente a outras pessoas, publicadas ou não publicadas, sem o consentimento, permissão ou citação, apresentando-as como novas e originais, ao invés de decorrentes de uma fonte conhecida5. Plágio refere-se a uma ampla gama de desvios de conduta acadêmica que vai desde o uso não-referenciado de ideias de outros até projetos submetidos a agências de fomento, textos em livros, artigos científicos, resumos, figuras e tabelas1.
Autoplágio: refere-se à prática de um autor em usar partes prévias de seus próprios escritos sobre um mesmo assunto em outra publicação, sem citá-las ou cotá-las formalmente. Essa prática é relativamente comum e, muitas vezes, não-intencional. No entanto, de acordo com a World Association of Medical Editors (WAME)5, há várias formas de se dizer a mesma coisa para diferentes particularidades ao se redigir, por exemplo, a seção de método de um artigo, o que tornaria o autoplágio desnecessário. Outros exemplos de autoplágio envolvem o uso de uma mesma revisão de literatura na introdução ou discussão de múltiplos manuscritos6 ou em projetos maiores que dividem o mesmo planejamento, o uso de dados ou contextualização teórica, os quais resultam em vários artigos. Essa fragmentação do conjunto é uma prática conhecida como publicações redundantes ou fatiamento de salame1. Alguns casos de redundância seriam considerados legítimos, por exemplo, quando os relatos possuem objetivos claramente distintos, reproduzem resultados para diferentes audiências ou reapresentam dados em artigos de revisão, desde que a publicação original seja devidamente citada7.
Direito de autoria: não existem critérios universalmente consensuais para a definição de autorias em um trabalho acadêmico2,5. Essa lacuna tem promovido a proposição de parâmetros distintos por diferentes sociedades científicas. O Internacional Committee of Medical Journal Editors8, também conhecido como o Grupo de Vancouver, discutiu e efetuou várias revisões em seus critérios. Em uma revisão realizada mais recentemente (abril 2010), o comitê entende que o crédito de autoria deve ser baseado em três requisitos atendidos simultaneamente: 1) contribuição substancial para a concepção e planejamento, aquisição ou análise e interpretação dos dados; 2) redação do artigo ou sua revisão critica do conteúdo intelectual mais importante; 3) aprovação final da versão a ser publicada. Para evitar o problema de autorias indevidas, existem orientações e recomendações fornecidas por diferentes autores7,9,10 e associações2,5,8.
Conflito de interesse: geralmente são problemas que podem não ser muito aparentes e que influenciam o julgamento de autores, revisores e editores, podendo ser de caráter pessoal, comercial, político, acadêmico ou financeiro2,5. Esses conflitos podem introduzir diferentes níveis de viés na pesquisa ou em sua publicação. No caso da pesquisa, são exemplos do problema a escolha de protocolos, a coleta e análise dos dados e a escolha de métodos estatísticos7. No caso dos periódicos, a revisão cega por pares é usualmente utilizada para minimizá-los.
Sanções em desvio de conduta: têm sido mais descritas sobretudo para casos de plágio em periódicos científicos. Para isso, a agência americana de integridade em pesquisa (US Office of Research Integrity, http://ori.hhs.gov/policies/plagiarism.shtml) sugere sanções em ordem relativa de severidade, que podem ser adotadas pelo editor do periódico de forma separada ou combinada. O Committee on Publication Ethics (COPE)2 também oferece recomendações. Resumidamente, as sanções sugeridas por ambas as agências são: 1) uma carta aos autores indicando que houve uma inocente incompreensão de princípios; 2) uma carta de reprimenda informando as possíveis consequências sobre um desvio que parece não ser inocente; 3) uma carta formal a um responsável da instituição ou agência de fomento solicitando investigação; 4) publicação de uma nota sobre a publicação redundante ou plágio, dando detalhes sobre o desvio; 5) recusa em aceitar futuras submissões do indivíduo, de seu grupo ou de sua instituição por um período de tempo; 6) retirada formal do artigo da literatura científica.
Finalmente, parece-nos importante que o assunto possa ser mais divulgado, discutido e mais bem compreendido por todos nós. Essas iniciativas, assim como ações educativas engendradas por instituição de ensino, favorecerão que a pesquisa seja realizada com integridade, o que, por sua vez, irá fortalecer a sociedade como um todo, a comunidade acadêmica e clínica e o próprio pesquisador.
Helenice J. C. G. Coury
Departamento de Fisioterapia, Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), São Carlos, SP, Brasil
Referências bibliográficas
- 1. Jaffer U, Cameron AE. Deceit and fraud in medical research. Int J Surg. 2006;4(2):122-6.
- 2. Committee on Publication Ethics. Committee on Publication Ethics (COPE): Guidelines on good publication practice. Clin Oncol (R Coll Radiol). 2000;12(4):206-12.
- 3. Pimple KD. Six domains of research ethics. A heuristic framework for the responsible conduct of research. Sci Eng Ethics. 2002;8(2):191-205.
- 4 US Public Health Service. Responsibilities of awardee and applicant institutions for dealing with and reporting possible misconduct in science, final rule. Fed Regist. 1989;54(151):32446-51.
- 5. World Association of Medical Editors (WAME) Recommendations on Publication Ethics Policies for Medical Journals. Archives of Medical Research. 2004;35:361-7.
- 6. Lowe NK. Publication ethics: copyright and self-plagiarism. J Obstet Gynecol Neonatal Nurs. 2003;32(2):145-6.
- 7. Kempers RD. Ethical issues in biomedical publications. Fertil Steril. 2002;77(5):883-8.
- 8 International Committee of Medical Journal Editors. Uniform Requirements for Manuscripts Submitted to Biomedical Journals: Writing and Editing for Biomedical Publication. Updated April 2010. http//www.icmje.org
- 9. Erlen JA, Siminoff LA, Sereika SM, Sutton LB. Multiple authorship: issues and recommendations. J Prof Nurs. 1997;13(4):262-70.
- 10. Hagen NT. Deconstructing doctoral dissertations: how many papers does it take to make a PhD? Scientometrics. 2010;85(2):567-79.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
20 Mar 2012 -
Data do Fascículo
Fev 2012