Acessibilidade / Reportar erro

Ciência pra que te quero?!

Um bom início de ano para você, caro leitor, cara leitora da RBGG! Apresentamos o primeiro número de 2020 e, para este editorial, traremos um assunto bastante atual: o papel da ciência nas nossas vidas.

No mesmo ano em que acontecerá a publicação do nosso primeiro número temático (no N6, mas, como a RBGG conta com o sistema de publicação contínua, os primeiros artigos publicados até o presente momento já estão disponíveis), sobre políticas públicas relacionadas ao envelhecimento, queria propor aqui uma reflexão sobre o valor que é dado às informações científicas hoje em dia.

Recentemente, algumas “frases de efeito” na internet marcaram a voz de pesquisadores brasileiros, afirmando que “quem para uma pandemia é a ciência” e “quem vai nos defender do coronavírus são os institutos de pesquisa, as universidades, o SUS, a Anvisa e milhares de servidores públicos”. Por isso, vamos tomar como exemplo esse cenário atual da mais recente pandemia que enfrentamos.

Diante da Covid-19, que continua se alastrando pelo mundo neste início de 2020, a população tem uma oportunidade de visualizar mais concretamente a importância da ciência na sua vida cotidiana. Apesar de tanto acesso à informação que a internet permite, sabemos bem do volume de informações incorretas ou imprecisas que são dispersas. Em tempos “neomedievais”, parece que precisamos de um movimento “neoiluminista”. Combater as famosas fake news é uma obrigação de todos nós, mas o acesso à informação correta pode ser dificultado algumas vezes. Em contrapartida, diversas editoras de periódicos científicos, até mesmo as de grande porte e que visam lucro em função das suas altas taxas de publicação e acesso, disponibilizaram em acesso aberto temporariamente os artigos que apresentam estudos sobre a doença. Diante do enorme lucro dessas grandes editoras, fica muito clara a importância ética de se divulgar pesquisas de modo aberto. Mas não somente neste momento crítico para a humanidade.

Em nosso país, apesar de tanto que se fala negativamente - muitas vezes por desconhecimento - contamos com uma liderança importante na ciência mundial. A SciELO (Scientific Library Online - Biblioteca Científica Online) está na vanguarda do movimento da ciência aberta, sendo desde 2007 a maior coleção de periódicos de acesso aberto do mundo, segundo o relatório mais recente - de 2018 - da Science Metrix11 Science-Metrix. Analytical Support for bibliometrics Indicators. Open Access Availability of Scientific Publications: Final Report [Internet]. 2018 [acesso em 23 mar. 2019]. Disponível em: https://www.science-metrix.com/sites/default/files/science-metrix/publications/science-metrix_open_access_availability_scientific_publications_report.pdf
https://www.science-metrix.com/sites/def...
. Um meio de medir a importância da SciELO é ver como foi atacada em 2015 por um representante das mesmas grandes editoras comerciais22 Beall J. Is SciELO a Publication Favela? Scholarly Open Access [Internet]. 2015 [acesso em 23 mar. 2019]:1-1. Disponível em: http://scholarlyoa.com/2015/07/30/is-scielo-a-publication-favela/
http://scholarlyoa.com/2015/07/30/is-sci...
, em uma tentativa de diminuir o peso da brasileira, assim como da mexicana Redalyc (Red de Revistas Científicas de América Latina y el Caribe, España y Portugal - Rede de Revistas Científicas da América Latina e Caribe, Espanha e Portugal). A América Latina, assim como em questões político-econômicas, tem sua força na união de seus países e, especificamente no caso acadêmico, essa defesa conjunta que lidera no acesso aberto tem sido fundamental para permitir que nossos pesquisadores tenham como publicar e acompanhar o que está sendo estudado.

Aqui essas palavras parecem uma defesa de uma bandeira idealista da ciência aberta latino-americana. Não deixa de ser - até por todo o seu mérito nas adversidades - mas esse não é o nosso principal foco deste texto. Mais que isso, o objetivo é ilustrar quão importantes são essas iniciativas com o apoio do nosso dinheiro público para que o conhecimento produzido possa também se tornar o que é da sua natureza: público. A nossa bibliotecária responsável pela normatização das referências e palavras-chave da RBGG, Gisele de Fátima Nunes da Silva, costuma dizer uma frase que representa bem isso: “o conhecimento tem que circular, ser disseminado: não pode ficar parado em uma estante ou aprisionado a uma caríssima taxa de acesso”. Disponibilizar o conteúdo completo dos artigos para o amplo conhecimento dos pesquisadores e profissionais de atuação mais direta com a população é fundamental para aprimorarmos os saberes e as práticas.

O Portal de Periódicos da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) também tem sido há anos uma ferramenta fundamental para buscas e acesso a artigos por parte de pesquisadores de nosso país. A verba que o sustenta e garante o acesso a tantos periódicos também é pública. Fora da via institucional, acessando de casa, por exemplo, esses mesmos artigos são pagos (e muito bem pagos) para serem acessados. Arrisco dizer que sem o amplo acesso que o Portal de Periódicos da Capes permite, seria quase impossível fazer pesquisas atualmente, dado o volume de artigos publicados diariamente em cada área. Ao acessar textos de seu interesse em sua instituição, um pesquisador se mantém atualizado sobre a literatura na área, o que poucos poderiam conseguir se fosse necessário pagar pelos caríssimos acessos aos artigos. É mais um meio que relaciona nossa população e a ciência por ela financiada.

Além das publicações voltadas para os acadêmicos e profissionais, a divulgação científica, voltada para o público leigo, também é muito importante e, ao mesmo tempo, um dos maiores desafios. Desde o início da década de 2010, seleções para bolsas de pesquisa de agências de fomento estaduais (Faps - fundações de amparo à pesquisa) passaram a incluir como requisito ao menos uma atividade de divulgação científica anual em escolas públicas de seus estados. No caso da agência do estado do Rio de Janeiro, a Faperj, foi criada também uma feira para apresentar resultados dos estudos financiados para o grande público. A Plataforma Lattes, uma das poucas iniciativas no mundo que padroniza e permite encontrar o currículo de pesquisadores com sua produção, também passou a incluir em 2012 campos para marcar conteúdos que enfocam o público leigo. Mais do que parte das obrigações institucionais, a divulgação científica deve ser um compromisso do pesquisador com o seu financiador, o povo - já que a grande maioria do financiamento da pesquisa vem dos impostos da população.

Mesmo países em que o sistema público de ensino superior não é gratuito, como os EUA, a maior parte do financiamento da pesquisa é através de verba pública. Isto é algo que parece um tanto contraintuitivo para nós, que temos as palavras “público” e “gratuito” como sinônimo. No Brasil, até muito recentemente, a quase totalidade desse financiamento dava-se por recursos públicos também, através das agências de fomento federais (Capes e CNPq) e estaduais (as Faps). O Instituto Serrapilheira foi o pioneiro no apoio financeiro sistemático da iniciativa privada à pesquisa nacional. No entanto, apesar desse grande peso do financiamento público, muitas vezes há um abismo entre quem produz (pesquisadores) e quem financia (povo). Então, fica clara a necessidade de aproximar esses dois grupos.

É obrigação do pesquisador dar retorno à população por dois motivos: um ético, de compromisso de devolução pelos impostos que foram investidos na ciência; e outro de responsabilidade pela própria valorização das pesquisas como um todo por parte dos leigos. O compromisso ético entra na questão do porquê fazemos ciência. O montante arrecadado da população e, espera-se, bem administrado pelos nossos governantes, sendo distribuído no orçamento para a ciência e tecnologia, pode e deve ser o principal motor para o desenvolvimento da sociedade. Quanto à valorização, a lógica é simples: não se pode dar valor àquilo que não se conhece. É necessário ajudar a desenvolver a consciência científica. Uma sociedade que valoriza a ciência apoia mais as iniciativas de pesquisa, participa mais de estudos que exigem participação voluntária e, com essa interação maior, pode ampliar seu conhecimento (inclusive sendo terreno fértil para futuros cientistas). Não se trata de colocar o pesquisador no local do “detentor do saber”, em um pedestal para ser idolatrado. Muito pelo contrário! Valorizar o que a ciência diz é entender minimamente do que se trata a ciência e por que ela pode nos trazer soluções e respostas mais confiáveis para o nosso cotidiano do que opiniões não fundamentadas.

Mas como exigir de uma população que ainda tem baixa escolarização como a nossa que “entenda minimamente do que a ciência se trata”? Para isso, como passo inicial de quebra desse ciclo vicioso, o cientista precisa ter essa consciência que debatemos aqui, da importância da divulgação dos seus trabalhos. Assim, partimos para um ciclo virtuoso, do pesquisador que apresenta à sociedade seus resultados a uma sociedade que passa a escutar o que estudos sistemáticos e organizados podem nos dizer sobre os fenômenos e os valoriza e os apoia.

E qual o principal desafio neste sentido? Utilizar uma linguagem precisa e ao mesmo tempo acessível. Parte do abismo que há entre cientistas e o público leigo se dá exatamente pela comunicação, seja ela direta ou por meio de divulgadores como jornalistas científicos. Há dois erros extremos na divulgação científica: enfatizar aspectos que podem não ser o centro da informação dada pelo estudo (estudioso muitas vezes visando polemizar ou chamar a atenção de modo sensacionalista); ou usar termos técnicos, jargões ou conceitos demais e tornar a informação inacessível ao grande público. A divulgação científica infelizmente não faz parte da formação sistemática dos pesquisadores, pelo menos na grande maioria dos cursos de pós-graduação brasileiros. Por consequência, o segundo erro acaba sendo comum por parte dos pesquisadores. Por outro lado, muitas vezes na tentativa de facilitar entendimento, as informações são quebradas de tal modo que muito se perde, correndo o risco até de passar aspectos incorretos ou tão imprecisos que levam a conclusões incorretas também. É preciso ter um equilíbrio: termos técnicos, jargões e conceitos devem ser evitados, mas sempre que for necessário, é importante incluí-los, associados às suas definições, descrições, acompanhados de exemplos, metáforas etc. O pesquisador precisa desenvolver essa habilidade para cumprir os compromissos já citados neste texto. Saber comunicar seus achados para o meio acadêmico é tão importante quanto para a população que o financia.

A RBGG tem estimulado muito seus autores nesse sentido. Todos que têm seu artigo aprovado para publicação, recebem o convite para enviarem um vídeo-resumo do seu estudo, que segue para o canal no YouTube da revista. As instruções para o vídeo são para que os autores, em cerca de cinco minutos, possam apresentar de forma clara e objetiva os principais achados e direções do seu estudo, evitando jargões e termos técnicos. Temos observado o quanto os trabalhos que têm vídeos-resumo recebem maior atenção, especialmente porque é mais um material a ser divulgado em nossas redes sociais sobre o artigo. Fica a sugestão aqui para que nossos autores enfrentem o desafio de enviar seus vídeos-resumo; para que nossos leitores acessem e prestigiem os trabalhos dos colegas nessa outra abordagem visual; e também para outras revistas científicas, que possam utilizar essa ou outras ideias visando estimular a divulgação científica efetiva.

Esperamos que as reflexões aqui apresentadas possam ser sementes para pensarmos o papel do conhecimento científico em nossas vidas. Que nós pesquisadores, nos esforcemos para divulgar cada vez mais nossa ciência tanto no meio acadêmico quanto entre leigos. Que, como sociedade, possamos dar mais ouvidos às informações científicas e não a opiniões sem fundamentos. Que nossos governantes parem para dar o devido valor também à ciência, até pela nossa cobrança como sociedade. Não há dúvidas que a melhor alavanca para o desenvolvimento de um país é o investimento na educação, na ciência e na tecnologia. Parafraseando a expressão popular, que não seja somente em momentos de “pernas pra que te quero”, como o atual cenário desta pandemia, mas sim que pensemos no “ciência pra que te quero”. Que fiquemos bem nestes tempos, especialmente os nossos idosos, a quem a RBGG é dedicada!

REFERENCES

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Maio 2020
  • Data do Fascículo
    2020
Universidade do Estado do Rio Janeiro Rua São Francisco Xavier, 524 - Bloco F, 20559-900 Rio de Janeiro - RJ Brasil, Tel.: (55 21) 2334-0168 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revistabgg@gmail.com