Open-access “A vocação das grandes velocidades”: um modernismo na Paraíba dos anos 1920 através das crônicas e da novela de José Américo de Almeida

“The Vocation of High Speeds”: A Modernism in 1920s Paraíba through the Chronicles and Novel by José Américo de Almeida

RESUMO

Ao fundar a revista Era Nova, um grupo de jovens escritores prometia alargar horizontes ante os olhos de toda a gente. O objetivo desse texto é compreender os esforços pela elaboração do moderno e seus impactos na vida da população paraibana a partir das crônicas e de uma novela escritas por José Américo de Almeida. Eu argumento que havia um movimento modernista na Paraíba desde o início dos anos 1920, e que ele se construiu tendo por base referências estrangeiras, mas assentado em tradições, valores e rotinas locais, discutidas nos circuitos intelectuais do estado desde muito tempo.

Palavras-chave: José Américo de Almeida; Modernismo na Paraíba; anos 1920

ABSTRACT

By founding magazine Era Nova, a group of young writers promised to broaden horizons before everyone’s eyes. The purpose of this text is to understand the efforts to elaborate the modern and its impact on the life of the Paraíba population based on the chronicles and a novel written by José Américo de Almeida. I argue that there was a modernist movement in Paraíba since the early 1920s, and that it was built on foreign references, but based on local traditions, values and routines, discussed in the state’s intellectual circuits for a long time.

Keywords: José Américo de Almeida; Modernism in Paraíba; 1920’s

INTRODUÇÃO

“Foi encontrado, outro dia, às portas do Espírito Santo, um automóvel parado e, dentro, em atitude composta, apenas com a cabeça pendente, o chauffeur morto. Esvaíra-se-lhe a vida no ponto de parar o carro ou, por outra, como a morte o surpresasse, na carreira, praticara esse ato por um gesto automático do último alento [...]

À minha imaginação adulta, mas traquinas, acudiu uma visão macabra. [...] Faço de conta que o chauffeur se findou na vertigem da corrida, primeiro que pudesse deter o movimento. E o auto vai à matroca.

É um curso desabalado e sinuoso, ao longo da estrada areenta. Abeira-se dos precipícios. Afigura-se que descamba num boqueirão. Como causaria lástima o acidente!... Como se apiedaria a gente da vítima do triste sucesso!...

Antes está a pique de atropelar os transeuntes. Praguejam ameaças e maldições contra o imprudente que, pelos modos, pouco se dá da vida de seus semelhantes.”

(Almeida, 1921, p. 1).

A fronteira entre a vida e a morte seria “a vocação das grandes velocidades”. Começava a década de 1920 e a vida nas cidades tomava um novo ritmo. Os automóveis se multiplicavam nas ruas, em um mundo que reconstruía suas redes comerciais depois da Grande Guerra (1914-1918) e da pandemia que ficaria conhecida por Gripe Espanhola. As experiências com a velocidade nos meios de comunicação e transporte, cada vez mais presente na vida das pessoas comuns, espantava as gerações nascidas na virada do século. As máquinas transformavam a maneira como os sujeitos lidavam com as distâncias, se relacionavam com a natureza e contornavam as potências de seus corpos.

Na crônica “O morto-vivo”, publicada na revista Era Nova dia 1º de maio de 1921, José Américo de Almeida imaginava a saga do motorista que falecera enquanto conduzia um automóvel, antes que pudesse pará-lo. O carro teria continuado por um longo tempo, sem colidir com qualquer obstáculo ou despencar de um desfiladeiro, até o final das suas forças, por falta de combustível ou tração. Enquanto corria, a máquina deixava a sensação nos transeuntes de que o chauffeur estava mais vivo que nunca - no frisson da ligeireza. De acordo com Nicolau Sevcenko (1992), a velocidade se tornou tema comum entre os cronistas dos anos 1920, mas também um problema que convulsionava a sociedade - sobretudo devido à imprudência dos motoristas, quase uma caça aos pedestres.

Os enigmas do mundo moderno, porém, ultrapassavam as fronteiras dos motores. O tema dos mortos-vivos, por exemplo, também se fazia entrever nas telas do cinema, sempre que artistas falecidos apareciam. A imagem em movimento eternizava-se para além do tempo de vida, “por trás das negras cortinas da modernidade, tem ela [a morte] renegado essa arte que perpetuou [...] os requintes de sua vaidade terrena” (Era Nova, 1921a, p. 1). O esforço de entender e produzir os modos como os signos do moderno e a velocidade dos novos tempos tomavam o cotidiano das pessoas, embaralhando suas tradições, valores e rotinas e estendendo suas possibilidades, ocupou a agenda de muitos dos escritores e muitas das escritoras em atividade nesse momento.

Há uma narrativa canônica quanto à história do modernismo entre os intelectuais nordestinos que condiciona seu surgimento à viagem do pernambucano Joaquim Inojosa, no segundo semestre de 1922, às cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, quando esse teria conhecido o grupo de artistas que haviam construído a Semana de Arte Moderna, os quais e as quais pensavam e publicavam uma nova estética a partir da recém-criada revista Klaxon. Entusiasmado com tudo o que vira, o escritor se empenhou em divulgar essas ideias nos circuitos culturais do Recife, da Paraíba, de Natal. Neroaldo Pontes de Azevedo (1984) conta que foi em reação a esse processo que se constituiu, sobretudo a partir das relações de Gilberto Freyre, outro movimento, empenhado em valorizar as referências culturais tradicionais da região - o Regionalismo.

Eu entendo que as relações e o repertório produzidos a partir das referências do modernismo paulistano importadas por Joaquim Inojosa afetaram a trajetória intelectual de José Américo. Mas a renovação temática e estética que os novos tempos pulsavam estava presente em seus textos desde antes - como atesta a citada crônica “O morto-vivo”, impressa em maio de 1921. Deste modo, concordo com Angela de Castro Gomes (1993) que, apesar da importância simbólica da Semana de Arte Moderna - que “tocou o sino”, dando forma e dimensão nacional a um projeto de renovação cultural -, os modernismos, no plural, foram múltiplos e se estabeleceram de maneiras muito variadas nos circuitos culturais das cidades. Mais que isso, tomaram fôlego pelo menos desde os anos 1910.

Os intelectuais modernistas seriam, nas palavras de Carl Schorske (1988, p. 13), uma geração que “proclamou orgulhosamente sua independência em relação ao passado”. Peter Gay (2009), por sua vez, os define como artistas, cientistas e filósofos que, tomados pelo fascínio da heresia, tinham o compromisso de examinar a si mesmos para construir com uma linguagem nova o mundo que queriam diferente - make it new. Mas, antes de assumir essa chave como medida para entender a produção de um intelectual paraibano, é importante atentar para os sentidos mais específicos que os modernismos assumiram no cenário cultural da América Latina.

Tratamos, afinal de contas, de um movimento intelectual que, embora inserido em um cenário global de mudanças, se enraíza em uma localidade específica - a Paraíba. Portanto, é sobre as tradições locais que ele se investe e se inventa. A originalidade dessa construção, conforme Walter Mignolo (2020), está exatamente na mistura das referências tradicionais e modernas e na maneira como elas são agenciadas. Rafael Cardoso (2020, pp. 15-16), nesse sentido, aponta para os riscos de se limitar o entendimento do modernismo à definição muito estrita de ruptura radical com o passado, o que impediria a compreensão dos muitos hibridismos possíveis - jogados, dessa forma, para o “outro lado da divisa” - na construção desse discurso sobretudo estético que deseja e produz a modernização.

No início dos anos 1920, portanto, José Américo e outros escritores do circuito intelectual paraibano pensaram uma renovação cultural por meio dos temas e das formas de seus textos e do projeto gráfico de suas publicações. Fizeram isso tomados por referências estrangeiras, mas assentados em problemas e tradições que perfaziam a sociedade em que se encontravam - primeiro a capital e depois o estado da Paraíba. Acreditavam, com isso, abrir os horizontes daquela gente para um mundo novo, com discussões que tratavam do moderno e das questões sociais que o circundavam. Mas essa novidade, como muitos outros movimentos modernistas no mundo, tinha limites, encetados pela origem elitista da maioria dos artistas envolvidos nesses projetos e pelo financiamento do Estado.

O objetivo desse artigo é compreender os esforços pela elaboração do moderno e seus impactos na vida da população paraibana nos textos de José Américo dos anos 1920. Trata-se, mais especificamente, das crônicas que ele publicava em sua coluna da revista ilustrada Era Nova entre 1921 e 1923; dos artigos de opinião que saíram no jornal O Norte em meados de 1921; e da novela Reflexões de uma cabra, escrita e impressa em 1922. Nessa conta, é preciso levar em consideração a sua rede de sociabilidades - em particular dos intelectuais paraibanos que constituíram seu primeiro e mais constante grupo de interlocutores - e as suas referências de leitura do cenário nacional e internacional.

AS CRÔNICAS DA REVISTA ERA NOVA (1921-1923): REDES DE SOCIABILIDADES E ESPAÇO DE EXPERIMENTAÇÃO

José Américo de Almeida nasceu no dia 10 de janeiro de 1887, na cidade de Areia, interior da Paraíba, em uma família de senhores de engenho e comerciantes com larga tradição nas instituições políticas do estado. Ele se formou bacharel pela Faculdade de Direito do Recife em 1908 e, depois de uma curta experiência como promotor público na comarca de Sousa, se instalou, nos primeiros meses do ano de 1910, na Cidade da Paraíba. Nessa época, fez amigos literatos, como o poeta Augusto dos Anjos, e passou a escrever na imprensa. Seus poemas, de inspiração simbolista, compuseram a seção “Estrelário” do jornal A União - periódico de maior circulação no estado à época, mantido pelo poder público -, além de algumas crônicas (Burity, 2021).

Impossibilitado de se manter na capital, no entanto, o bacharel mudou-se para Guarabira, onde o seu irmão era vigário. Mas não ficou muito tempo. No ano seguinte, por influência do tio materno, monsenhor Walfredo Leal, chefe do partido situacionista, ele foi nomeado, aos 24 anos, para o prestigiado cargo de procurador geral do estado. Dessa maneira, voltou para a Cidade da Paraíba - exatamente no Hotel Luso Brasileiro, onde recebia amigos escritores:

José Américo recebia os amigos no quarto [...] para as tertúlias literárias que iam até tarde. Delas participavam: Leonardo Smith, Celso Mariz, Gervásio Gambarra, Alfeu Domingues e outros. A sessão só terminava quando a senhoria mandava o serviçal “Mané pé fino” prover os palestrantes com xícaras de café, acompanhadas de generosas fatias de bolo (Luna, 2003, p. 68).

Nos anos subsequentes, o procurador geral estendeu sua rede de relações entre os intelectuais e políticos do estado. Tornava-se figura conhecida na cidade e conquistou o respeito de muita gente, mesmo dos opositores do grupo político do seu tio. Apesar dos debates acalorados, construiu uma sólida amizade com Carlos Dias Fernandes, um escritor proeminente nomeado editor chefe do jornal A União. Também fortaleceu os laços com outros cinco intelectuais que constituíram a ala jovem da base de apoio da oposição, os chamados “jovens turcos”1 - Solon de Lucena, João Suassuna, Antônio Pessoa Filho, Celso Mariz e Demócrito de Almeida (Trigueiro, 1980).

Essa oposição - comandada por Epitácio Pessoa - tomou o poder do estado depois das eleições de 1915. Mas, apesar das muitas trocas de cargos que sucederam esse evento, José Américo permaneceu no posto de procurador geral. Ao que tudo indica, contara para isso a boa relação que ele tinha entre os intelectuais epitacistas. O fato é que ele era cada vez mais visto ao lado dos jovens turcos, tanto na imprensa quanto nos salões da capital. Era evidente que, embora não dissesse isso, partilhava das ideias políticas do grupo, sobretudo quanto aos temas mais gerais da política e da cultura nacional (Lewin, 1993).

No segundo semestre de 1919, em meio aos arranjos e desarranjos das oligarquias dos maiores estados, para a surpresa de todos, Epitácio Pessoa foi eleito presidente da República, o que empolgou aliados e opositores. Era uma oportunidade ímpar, tratava-se da primeira vez que um civil nortista - nesse caso, um paraibano - assumia o cargo político mais elevado da nação. Nessa mesma ocasião, Solon de Lucena foi escolhido presidente de estado. Era uma vitória dos jovens turcos sobre as gerações mais velhas dos “republicanos históricos”. Cientes da oportunidade que tinham em mãos, os intelectuais aproveitaram o momento para propor mudanças - principalmente no mundo da cultura - e criaram uma revista ilustrada, tomada pelo propósito de apresentar os novos tempos para a população paraibana:

Deverá sair na próxima semana o primeiro número da revista Era Nova. Dirigido por um grupo de jovens intelectuais, apresentando um programa na altura das possibilidades da moderna imprensa, o novel magazino está naturalmente destinado a alcançar todos os sucessos devidos aos periódicos sensatos, de ideias novas e aceitáveis (A União, 1921d, p. 1).

O número inaugural da revista ilustrada Era Nova chegou às mãos do público no dia 27 de março de 1921. Tratava-se de um periódico requintado, impresso com letras coloridas, em papel couché e repleto de fotografias. O propósito anunciado pelos seus editores era estimular o desenvolvimento literário com uma multidão de novas ideias fecundas, “o apanágio intelectual dos povos cultos”. Faria isso por meio de contos, poemas, reportagens, ensaios sociológicos, artigos de opinião. Eram textos em prosa e poesia que, diziam eles, interessariam toda a gente - “ao industrial e ao comerciante, ao leitor burguês e ao leitor letrado e incentivando ao mesmo passo o amor dos jogos desportivos com ilustrações e aplausos” (A União, 1921d, p. 1) -, ainda que o preço das assinaturas e dos números avulsos não fosse acessível a todos os bolsos2.

Figura 1
Capa da revista Era Nova

Figura 2
Coluna de José Américo

O projeto gráfico da revista tinha inspiração art nouveau, com traços ora sinuosos, ora retilíneos nas bordas, mas sempre apelando para a exuberância na representação. Rafael Cardoso (2022) explica que o art nouveau se popularizou no mundo depois da Exposição Universal de Paris em 1900, tendo se tornado, desde então, sinônimo de modernidade. Essa referência estética passou a ser amplamente usada nas revistas ilustradas do Rio de Janeiro nas primeiras décadas do século XX, quando ilustradores passaram a barganhar para a arte gráfica o mesmo status das belas artes.

Os colaboradores desse “novel magazino” prometiam, ao seu modo, lutar com “coragem e abnegação” por uma renovação do mundo que conheciam. Tratava-se, assim, de um periódico congênere às demais iniciativas modernistas que ocupavam a agenda das revistas ilustradas em diferentes partes do país e do mundo - com uma intenção declarada de mudar a ordem das coisas e uma preocupação em expressar essa transformação não apenas em palavras, mas também com uma revisão estética. O título, diga-se de passagem, não era em nada despropositado. Ao anunciar uma Era Nova, ficava implícito o desejo de abertura de novos tempos. Era preciso pensar esse futuro ainda desconhecido e para cuja construção aquele material deveria ser instrumento fundamental.

Mas as mudanças propostas tinham seus limites - inscritos nas experiências dos artistas e jornalistas envolvidos. A iniciativa partira do “um grupo de jovens intelectuais”, como se autointitularam. Além dos jovens turcos, faziam parte do seu corpo de editores e redatores figuras como o cônego Mathias Freire, o romancista Carlos Dias Fernandes, os agrônomos Diógenes Caldas e Lauro Montenegro, o médico Flávio Maroja3. Filhos de uma elite açucareira ou comercial, formados nas escolas de educação secundária e/ou superior e ocupando postos de poder no estado, esses homens pregavam uma reforma na ordem das coisas conforme as suas leituras da realidade social do país.

Essa marca elitista na formação social dos redatores e editores que estariam à frente desse modernismo na Paraíba, no entanto, não demove o propósito de inovação que contornou a sua proposta. O olhar para o futuro, o esforço em revisitar o passado a partir de uma nova direção e, sobretudo, a invenção da novidade através da definição de um marco - a criação da revista - têm sentidos e efeitos no mundo social e cultural paraibano. As maneiras como os modernismos se estabeleceram na América Latina, via de regra, de acordo com Néstor García Canclini (2000), seguiram mais ou menos essas características sociais. A questão prioritária, portanto, é de que maneira essa linha entre novidade e tradição se desenhava. Quais os seus limites? Quais as suas possibilidades?

De certa forma, as tentativas de desconstrução da estética canônica já haviam sido ensaiadas fazia algum tempo, pelo menos desde o auge do simbolismo. Mas a institucionalidade que o lançamento de um periódico estabelecia era imprescindível para que fosse possível falar da efetiva emergência de um movimento modernista na Paraíba. Nesse quesito, a revista se tornou um suporte privilegiado, embora não exclusivo, para a difusão desse movimento. Ainda que dispusessem de uma circulação menor e menos frequente que os jornais, seus autores e editores tinham maior autonomia para tratar dos temas que os interessavam e maior controle da construção estética do impresso.

Angela de Castro Gomes (1999, p. 58), ao estudar os movimentos modernistas no Rio de Janeiro, explica:

As revistas são classicamente lugares de sociabilidade intelectual. Lugares de articulação de pessoas e ideias que precisam de suportes materiais e simbólicos para fazer circular seus projetos, sem o que eles perdem significado. Os ganhos, portanto, são de ordem não instrumental, estando fora da lógica dos cálculos de custos e benefícios materiais, e inserindo-se no universo das paixões, crenças e vaidades intelectuais, como nos lembra Mário de Andrade.

O grupo contou com a subvenção estatal para viabilizar a circulação da revista. Tratava-se de um projeto caro, em razão do preço do papel e das tintas, também dos custos de impressão, e que não se sustentaria apenas com o arrecadado pelas vendas e pelos anúncios. Mediante esse intento, pudemos notar, por meses, a presença recorrente dos redatores em audiência com Solon de Lucena no Palácio do Governo. Celso Mariz, Carlos Dias Fernandes e Alcides Bezerra estiveram em quase todos os expedientes. Celso Mariz se ausentou durante a viagem ao Recife de 29 de janeiro a 3 de fevereiro (A União, 1921c, p. 1); Carlos Dias Fernandes compareceu até quando ficou resfriado e teve de faltar ao trabalho na redação de A União (A União, 1921f, p. 1). Também se alternavam Álvaro de Carvalho, Flávio Maroja, Manuel Tavares, Lauro Montenegro, José Américo. E menos vezes Diógenes Caldas, Sá e Benevides e monsenhor Pedro Anísio. Alguns faziam isso por causa de outras funções, mas o assunto decerto foi bastante discutido4.

A Era Nova seria impressa, portanto, com recursos públicos e na maquinaria da Imprensa Oficial. Alguns números do jornal A União, publicados no dia posterior à impressão da revista, a propósito, apareciam com as páginas manchadas de vermelho ou amarelo, a depender da cor utilizada na impressão da revista - ao menos é o que se pode ver nos números consultados no Arquivo Privado Maurílio de Almeida. Dessa maneira, a iniciativa também se incorporava ao programa de governo de Solon de Lucena. Era parte de um projeto de modernização que incluía o saneamento das cidades, a construção de prédios públicos (A União, 1921a, p. 3), e também se percebia na prefeitura, com administração de Guedes Pereira. Houve severa regulamentação para novas construções na urbe, proibindo que fossem erguidas casas ou palhoças fora dos padrões estéticos (A União, 1921b, p. 1). A revista passava a compor esse cenário de mudanças com seu propósito de disseminar ideias e hábitos novos.

A novidade dos tempos entrava, assim, entre os assuntos mais constantes nas páginas do impresso. Discutia-se a modernização das cidades, em particular da capital, a aceleração dos automóveis e navios, as mudança de comportamento, os problemas políticos do estado republicano. O momento, aliás, era apropriado para assuntos dessa natureza. Conforme Raymond Williams (2011, p. 22), é preciso pensar que “o fator cultural chave na mudança do modernismo está no caráter da metrópole”. Nesse caso, a cidade moderna e as experiências que ela proporcionava: a socialização nos espaços públicos, a tentação das vitrines, as notícias que chegavam de longe, a velocidade dos meios de transporte e comunicação (Sevcenko, 1992). Mas essa construção, no caso paraibano, ganhava novos contornos. A característica agrária da economia estadual e o problema social das estiagens colocou o mundo rural na agenda desses intelectuais.

Os editores e redatores da revista Era Nova ocuparam as suas páginas com propagandas das realizações dos governos estadual e federal, bem como da figura dos seus presidentes. Fotografias do presidente de estado Solon de Lucena e de outros políticos de relevo mobilizavam muitas de suas pautas. Essa era uma forma de manter a imagem desses homens na memória coletiva e, dessa forma, honrar os compromissos com a política profissional, posto o envolvimento daqueles intelectuais e do próprio impresso com a máquina pública - eles eram, em sua maioria, funcionários públicos, e o periódico era produzido com recursos estaduais nas prensas da tipografia oficial. Mas pensar essa dinâmica exclusivamente a partir dessa chave diminui o sentido maior do projeto de modernização no qual a revista estava imersa.

Uma figura de destaque em meio a essas homenagens era o então presidente da República - e chefe da oligarquia que ora comandava o estado - Epitácio Pessoa. Em 15 de janeiro de 1922, a revista Era Nova estampa na primeira página o retrato dele e o editorial intitulado Filho amado, no qual exalta o empenho do estadista, que não fechara os olhos para a “inclemência climática das secas periódicas e impiedosas”, pondo fim ao “assassinato calmo e frio e cínico de uma população” (Era Nova, 1922a). Era uma referência à ampliação de recursos para a política contra as secas em sua gestão no governo federal, a qual era entendida, para a Paraíba e o Nordeste, como um investimento na modernização econômica, social, política e cultural da região.

Figura 3
Homenagem a Epitácio Pessoa na edição do centenário da Independência

A política contra as secas, para além dos esforços mais diretos de interferência no fenômeno climático das estiagens, como as obras hidráulicas (em particular os açudes), implicava na edificação de uma infraestrutura de transporte e comunicação que tinha por propósito fortalecer e dinamizar as redes comerciais no sertão nordestino - construção e reforma de estradas de ferro, de rodagem e carroçáveis, portos, telégrafos, serviço dos correios etc. Era uma pauta antiga de suas elites regionais e que fora alvo da atenção de Nilo Peçanha e Delfim Moreira, mas Epitácio Pessoa teria sido, efetivamente, conforme Lucia Guerra Ferreira (1993, p. 96), o primeiro “a investir em larga escala e iniciar simultaneamente um grande número de obras na região”.

A determinação do governo federal de destinar parte do orçamento para as obras contra as secas, de acordo com a mesma autora, afetava os interesses de outras bancadas na Câmara - em particular os produtores de café, que reivindicavam subsídios cada vez maiores -, gerando disputas no plenário. Os recursos destinados ao Nordeste, diziam os deputados e a imprensa paulista, estariam sendo desviados pelas elites nordestinas - discussão, inclusive, que lhes renderia a pecha de “indústria da seca”. Esses embates no entorno do orçamento público traziam em seu ensejo disputas de narrativas da história nacional. Ao passo que intelectuais nordestinos apontavam a importância da região para a nacionalidade e suas potências sociais, os paulistas se acreditavam preparados para guiar o país no caminho da modernidade e da civilização (Schwarcz, 1993).

Não era por acaso, ou por mera propaganda eleitoreira, portanto, que um periódico modernista exaltava um projeto de modernização regional mantido pelo governo federal depois de muita disputa política na arena nacional - e que não seria possível sem a presença de um civil nordestino na presidência da República. Na edição comemorativa do Centenário da Independência, depois de muitas fotografias das obras em execução, publicava-se:

O advento do governo de Epitácio Pessoa trouxe para a região nordestina, esquecida e assolada pelos fenômenos climáticos, a certeza de que uma nova fase ia começar para a sorte dessa gente, sucumbida a esse martirológio de muitos anos.

Efetivamente, essa esperança se objetivou na mais consoladora das realidades, porque a redenção do Nordeste, com a extinção definitiva do flagelo aniquilador, é hoje um fato (Era Nova, 1922e, p. 213).

O periódico estava atento a essa proposta de modernização da região nordestina, conectada em âmbito nacional a partir de uma leitura das necessidades da população sertaneja e de suas potências. Era sobre ela que seus redatores e editores pensavam uma renovação cultural. Em outras palavras, o que quero propor com essa discussão é que tivemos na Paraíba, durante os anos 1920, um modernismo de Estado - financiado e pensado em diálogo com a máquina pública.

Nos dois primeiros anos de circulação, a revista Era Nova publicou, na primeira página, uma coluna assinada por José Américo. Tratava-se de uma posição de prestígio, que também implicava em certas responsabilidades, como a possibilidade de inscrever um viés político para uma revista, apesar das diferenças entre os autores. A sua função de procurador geral, com certa ideia do poder judiciário como um lugar para a mediação dos conflitos e a busca da verdade, aliada à sua postura diplomática e moral, devem ter pesado na escolha. Nosso escritor usou o espaço para abordar assuntos de política e cultura, mas sem esquecer as questões sociais. E foi construindo uma assinatura pessoal com base em suas experiências e no seu olhar para o campo político.

Quadro 1
Textos publicados na revista Era Nova

O seu primeiro artigo, publicado no segundo número, dia 15 de abril de 1921, era simbólico de como as experiências políticas e intelectuais entravam na conta de suas crônicas. Tratava-se de uma reportagem jornalística a qual denunciava as condições de vida da gente sertaneja que, fugindo da existência miserável em suas terras de origem, era atraída pelo eldorado da produção de borracha na Amazônia. Esquecida pelo poder público, partia em busca de fortuna e restava presa nos seringais. O título O tonel das danaides fazia alusão ao mito grego das filhas do rei Dánao, condenadas a encher de água um balde sem fundos pela eternidade. A crônica também tinha razão circunstancial. No último mês, a imprensa noticiara a pobreza das populações amazônicas e instituições fizeram campanhas por donativos (A União, 1921e).

Ao longo do texto, ele chamou a atenção para a figura do seringueiro, tratado no singular para qualificar um “tipo humano” - suas características raciais, seus hábitos e sua fisiologia moral, “pernóstico, fanfarrão, manirroto”. Leitor de Euclides da Cunha, nosso colunista estava preocupado com a influência das condições geográficas e raciais no destino desses novos habitantes da Amazônia. O tema, a propósito, o interessava havia algum tempo, tanto que fizera uma viagem anos antes para conhecer a realidade da região in loco. Era comum às gerações de ambos, no início do século, a referência ao darwinismo social e ao positivismo na observação dos fenômenos sociais5.

José Américo teve um espaço cativo nas primeiras páginas da revista Era Nova por quase dois anos, fazendo-se ausente em poucos momentos, geralmente em razão de questões cotidianas. Em todo caso, nesse tempo, os assuntos discutidos por ele variavam bastante. A modernização entrou para a agenda no segundo artigo, com O morto-vivo, momento em que retomou uma estética sombria, quase simbolista. Havia publicações que tratavam de questões literárias: Poetas doutores, Sonetos célebres e Fragmentos da poesia sertaneja. Também discutia as proximidades e as distâncias entre o saber popular e o conhecimento científico com Apologia do burro, Cabeça e estômago, Governo dos analfabetos e Jeca menino. As novidades da ciência apareciam em Psicologia do sonho. E abordava questões do dia. Às vésperas da Festa das Neves, publicou Tota Polchra; um concurso nacional de beleza promovido por um consórcio de periódicos foi o start para A mais bela. Em meio às comemorações natalinas, saiu o texto Pai e filha.

Assuntos linguísticos serviram para tratar de valores cidadãos. A desmoralização do nome começava com a crítica de Gilberto Amado à “desmoralização do adjetivo”, que se tornara uma moeda comum nos últimos tempos: usava-se “valoroso, venerado, talentoso, prestigioso” para qualquer pessoa. O colunista, no entanto, discordava que esse fosse um problema: “qualificativos que eram atributo dos senadores do império e de outros poucos magnatas não desmerecem, hoje em dia, em sua aplicação a todas as camadas sociais”. E concluía defendendo os valores que julgava indispensáveis no regime vigente - “A República não admite privilégios”. Não parava por aí. Efetivamente grave seria a “desmoralização do nome próprio”, civil ou de batismo, esse sim “símbolo de nossa personalidade”. E falava da importância do designador rígido para o exercício das responsabilidades civis e penais. Depois, fez um histórico do modo como os nomes eram escolhidos: o santo do dia, a era dos romances e dos estrangeirismos, quase uma metáfora da volubilidade das personalidades modernas (Era Nova, 1921c, p. 1).

Alguns temas da política partidária local e nacional não escaparam à sua caneta. A Corte Internacional de Justiça, por exemplo, foi uma homenagem ao “pontífice de nossa intelectualidade” - como nosso autor descrevia Rui Barbosa, recém-eleito membro da Suprema Corte Permanente de Justiça Internacional de Haia pela Liga das Nações. Havia outros motivos. Tratava-se de um republicano de primeira hora, articulador decisivo entre os constituintes e um dos reformadores do Código Civil de 1916, que apresentou mais de mil emendas ao texto de Clóvis Bevilaqua. O senador baiano também tinha na agenda a ampliação da cidadania e dos direitos sociais6. Esse repertório servira de inspiração ao cronista nas posturas de jurista e político.

Mas a admiração pelo pensamento político de Rui Barbosa, se não era unânime, era ao menos hegemônica entre os editores de Era Nova. Uma observação dos índices denunciava a predileção daquele grupo pelas ideias do baiano, tanto que o periódico divulgou sua renúncia ao mandato de senador e publicou, em várias partes, uma conferência na Faculdade de Direito de São Paulo, para além dos artigos de opinião e editoriais que o tinham por tema. É possível inferir que, de certa maneira, a sua figura pública também representava esses intelectuais: “Todos nós folgamos de ver o pontífice de nossa intelectualidade deslocado de uma asfixiante esfera de ação, em que os seus poderosos recursos se apoucavam, às vezes, na verbiagem das contendas estéreis, para as culminâncias de uma magistratura de jurisdição mundial” (Era Nova, 1921d, p. 1).

Ainda em meados do ano de 1921, o jornal O Norte noticiou a entrada de José Américo para seu quadro de colaboradores, por meio do “novo e valioso concurso [...] nessa nova fase” do periódico (1921b, p. 1). Ainda antes do anúncio, dois artigos assinados por ele saíram na folha. Em A poesia do Nordeste, na edição de 1º de junho de 1921, ele dizia, citando o autor italiano Giuseppe Borgese, que o nacionalismo brasileiro era antes um desejo dos políticos que uma realidade social, mas agradava-lhe a literatura nacionalista, especialmente o “folclore”. O outro artigo, A constituição do estado, só foi a público no final do mês seguinte, para destacar, mais uma vez, as mudanças que os homens de sua geração defendiam, o que ele fazia a partir do campo jurídico, espaço em que tinha mais autoridade até o momento. Na data aniversária da carta estadual, propunha reformas nesse texto de “estrutura tão imperfeita” (O Norte, 1921a, p. 1).

O texto seguinte demoraria mais alguns meses para sair - Dante profeta compôs o número de 14 de setembro. Depois não foram encontradas novas publicações com sua assinatura. Ao que parece, enfiara os pés pelas mãos com esse comprometimento. Não era a primeira vez que ele fazia isso. Decerto, as demandas de texto quinzenal para Era Nova e as atribuições do cargo de procurador geral tinham pesado na sua agenda. Foi nesse meio tempo que o presidente de estado o nomeou para a comissão de revisão do regimento de custos do poder judiciário (O Norte, 1921c, p. 1). Além disso, o pedido de habeas corpus preventivo sobre o processo criminal decorrente das irregularidades na declaração de falência da firma T. Barbosa Gouveia lhe deu especial dor de cabeça. Tendo ele emitido relatório a favor da negação do benefício, foi acusado pelo advogado solicitante, José Rodrigues de Carvalho, de não ter observado adequadamente os autos7.

José Américo construiu uma sólida rede de sociabilidades intelectuais ao longo dos anos 1910 e 1920, sobretudo na capital do estado da Paraíba, o que lhe rendeu não apenas profícuas discussões a respeito dos signos de moderno e seus efeitos sobre a vida das pessoas como também um terreno fértil para experimentar a discussão de novos temas a partir de uma nova estética. A coluna da revista Era Nova, confiada a ele nesse momento inaugural, era um espaço privilegiado para a inovação, dando, de certa maneira, a cara do que se queria - naquele grupo - como modernismo na Paraíba.

As discussões, nessas crônicas, se constituíram tendo como base três pontas de sua vida profissional: os interesses literários, filosóficos e sociológicos; a inserção na política estadual; o savoir-faire de jurista. As fronteiras entre esses mundos, que já não eram tão firmes, se tornaram cada vez mais fluidas, ao passo em que a escrita se fazia mais cotidiana e a habilidade para tratar com ela mais instintiva. Isso em um tempo no qual era preciso testar outras formas de expressão, novos suportes e linguagens. Mônica Velloso (2010, p. 20) observa que os modernismos foram responsáveis por uma conciliação entre as ciências e as artes, na medida em que o novo tempo carecia de intercâmbio entre esses conhecimentos. Era como se, dada a sua posição no mundo, de certa forma a coexistência deles fosse imprescindível para a construção da especificidade do nosso escritor.

A NOVELA REFLEXÕES DE UMA CABRA (1922): VALORES TRADICIONAIS, NOVIDADE DOS TEMPOS E RENOVAÇÃO ESTÉTICA

Em meados de 1922, José Américo foi convidado a escrever para uma coleção de novelas com a direção de Ademar Vidal e a coordenação do jovem Antenor Navarro. Tratava-se de um periódico de divulgação mensal, com a tiragem ousada de cinco mil exemplares. O primeiro número de A Novela saiu em maio, com o texto inédito O algoz de Branca Dias de Carlos Dias Fernandes. Depois da estória, havia os anúncios, notas políticas e literárias, uma breve biografia do autor e o epílogo “As letras na Paraíba: nomes feitos e novos”, no qual Alcides Bezerra mapeava o cenário intelectual do estado. Por fim, um resumo da novela do número seguinte. Nesse caso, Reflexões de uma cabra, de José Américo. A terceira edição seria Maria da Glória, escrita por Alcides Bezerra, e a quarta, Fome, por Ademar Vidal, a última do periódico. A proposta é que seguisse com textos enviados por escritores de todo o país, os quais receberiam direitos autorais em casos de publicação, mas isso não chegou a acontecer.

Figura 4
Revista A Novela, edição de José Américo

José Américo dizia que pretendia escrever uma novela histórica, mas não pôde terminá-la em razão da falta dos documentos para a reconstrução dos fatos. Prometeu para outra ocasião. No lugar, “improvisou um estudo dos nossos costumes sertanejos”. Havia se dedicado à escrita desse texto pouco mais de uma semana, em sua primeira experiência com uma narrativa de ficção com mais de duas páginas. Era a história de José Fernandes de Melo Azedo, único homem em uma família de dez filhas, ao qual fora designada a sina de ser padre. O enredo encostava, assim, na vida do escritor, que também estudara no seminário antes de se matricular na Faculdade de Direito do Recife.

Mas era, antes de tudo, uma sátira, “uma caricatura de novela”, como descreveria, e da vida dos meninos da hinterlândia. Nesse ponto, ele jogava com a forma, modificava a grafia de algumas palavras e inventava outras, com neologismos que aproximavam a sua escrita da oralidade. Também usou formas gráficas no texto, que influíam na condução da trama, como no capítulo IV, intitulado “Um borrão”, em que define o segundo ano que o protagonista passou no seminário com uma mancha de trinta preta no meio do papel. Em certas alturas, fez interferências metalinguísticas para explicar os desvios de sua narrativa - e da história que ela contava - das normas do gênero. Citou textos literários famosos e referenciou amigos intelectuais:

Mostrei a Celso Mariz uma fotografia antiga de Maria Anunciada. E ele, com aquele desdém que lhe reside na ponta dos dedos, e, às vezes lhe muda para a ponta da língua fez pouco: “Isto é lá tipo de novela...” (A Novela, 1922a, p. 18).

É curioso perceber que, em sua elaboração discursiva, essas desconstruções na estrutura dos gêneros literários interessavam não apenas porque isso o conectava com uma estética modernista, mas também porque essa seria a melhor maneira de representar os seus personagens e as questões que eles traziam para os leitores e as leitoras. Nesse quesito, era essa nova estética que estaria a favor da sensibilização com as trajetórias que não cabiam no padrão de uma novela tradicional.

O seminarista José Fernandes apaixonou-se por Maria Anunciada. O sentimento foi motivo para que enfrentasse o pai dela e a pedisse em casamento. A seca de 1903, porém, arruinou as terras do tio e ele migrou para o interior de São Paulo. Cinco anos depois estavam ambos casados, Maria Anunciada com um homem da região e ele com uma moça rica que “passava da idade de casar” - D. Irma. José Fernandes e D. Irma tiveram um filho, ao qual deram o nome de Amaril. Este pegou uma febre que só sarava com leite de cabra. Essa cabra virou, assim, um ente pelo qual a família tinha demasiada gratidão. Aconteceu, contudo, que, escolhido um ilustre amigo do sogro para padrinho do garoto, convidaram-no para jantar, cientes de que apreciava bastante a carne caprina. Porém, não a encontraram à venda em parte alguma e sacrificaram o filhote da cabra:

Não pretendo, como os antigos fabulistas, fazer um animal falar. Mas, isto de pensar, eles pensam. A sabedoria popular diz do cavalo que levanta a cabeça da manjedoura, despercebido da ração, contemplativo, que “está rezando”. E rezar é uma forma nobre de pensar.

A cabra não falou. Não direi tal. Mas baixou a cabeça. Refletia. Ora levantava as patas, ora se descompunha, num esgar; ora agitava a cauda curta. Sempre com a cabeça baixa. Refletia, naturalmente, e dizia de si consigo:

- “Como são maus os homens! São piores que as onças! As feras nos comem porque não têm outro remédio: nós somos o seu sustento. E não nos criam. Não nos veem nascer!... Esse Zé Fernandes veio ao mundo com os meus irmãos: cheira ainda a bode, tem budum, como lá diz a mulher. Eu criei seu menino, sou mãe de leite do seu primogênito, salvei-o; e ele, no batizado de seu filho, de meu filho, na festa de todos nós, em vez de levar-me à beira da mesa, para experimentar os restos do banquete, ele comeu meu filho! (...)” (A Novela, 1922b, p. 38).

Nesse post-scriptum, o narrador colocava sua imaginação em cena e interferia no relato para anunciar uma moral - transformado pela vida na cidade, pelos interesses da política, o protagonista abrira mão dos seus valores mais profundos. Como desfecho, o convidado rejeitou o pedaço de carne e o protagonista tomou-se de remorso.

Notas de leitura de Reflexões de uma cabra foram publicadas na Era Nova, que não poupavam aplausos ao “jurista sociólogo [que] vem de se estrear brilhantemente na literatura de ficção”, como dizia a resenha da escritora pernambucana Débora Monteiro (Era Nova, 1922d, p. 13). Também foram citados Pereira da Silva, Afrânio Peixoto, Monteiro Lobato, Gustavo Barroso, Mário Sette, Olívio Montenegro. Jorge d’Altavilla disse, no Jornal do Recife, que se tratava do “Monteiro Lobato do Norte”. Luís da Câmara Cascudo elogiava sua escrita: “Reflexões de uma cabra destoa da literatura convencional, ameninada e frívola anilha as livrarias. Daí o encanto que tive lendo-a” (Era Nova, 1922f, p. 12). A recepção era de fato notável. Joaquim Inojosa escreveu um artigo a seu respeito em A Província (1922, p. 3). José Lins do Rego dedicou ao tema um longo texto publicado na página de capa do Jornal do Recife (1922, p. 1). Houve investimento dos editores de A Novela para que a circulação tivesse resultado, sobretudo por meio do envio de exemplares para literatos reconhecidos.

Reflexões de uma cabra, primeiro texto de ficção com maior fôlego publicado por José Américo, teve uma importância fundante na construção de uma estética e de uma temática que marcariam sua obra a partir de então. Voltava-se para a população sertaneja, a calamidade que representavam as estiagens, como essa gente era obrigada a se deslocar para a cidade em busca de melhores condições de vida e, sobretudo, como os signos do moderno, que tomavam as metrópoles, corrompiam seus valores e suas tradições. A forma também tinha o seu papel, com intervenções na grafia das palavras, marcas de oralidade, representações imagéticas no texto. Nessa construção, a experiência de cronista na revista Era Nova fora fundamental, porque fora nela que ele pôde ensaiar possibilidades, colher críticas do que funcionava e do que não funcionava, trocar com os amigos escritores.

Em várias passagens da novela é possível ver assuntos abordados anteriormente nas crônicas - críticas ao sistema político da Primeira República; o drama da população sertaneja em tempos de estiagem; o fascínio da máquina e da vida urbana etc. As publicações periódicas na revista ilustrada, ao que tudo indica, também foram fundamentais para que ele fosse convidado a escrever em A Novela e, sobretudo, para que esse texto fosse disseminado, no estado e fora dele. A novela seria, portanto, uma forma mais bem acabada de todo esse caldo de ideias, escrita em um formato literário com duração mais longa no circuito literário. Ao contrário das revistas e dos jornais, que se inscreviam nas questões do dia a dia e, por isso, seriam superados mais rapidamente pela velocidade das novas notícias, a novela poderia render mais, acessando públicos em outros espaços e em outros tempos.

Em meados do ano de 1922, José Américo registrou a intenção de reunir suas melhores crônicas publicadas em A União, O Norte e Era Nova em um livro intitulado Sem me rir, sem chorar (Era Nova, 1922b, p. 4)8. A proposta era que fosse impresso em meio às comemorações do centenário da Independência do Brasil, constando como o primeiro número da coleção de títulos com a chancela Era Nova (1922c, p. 2). Mas o volume nunca saiu. Ele seguia publicando textos regularmente na revista até outubro de 1922. Nesse momento, um convite do presidente de estado o desviou dessa demanda por um projeto intelectual de outra monta - um relatório dos impactos das obras contra as secas do governo Epitácio Pessoa na vida da população paraibana, que mais tarde seria o livro A Paraíba e seus problemas (1923).

Ele só voltaria a escrever na revista Era Nova na ocasião da morte de Rui Barbosa, em março de 1923. Ainda assim, a estética modernista teria longa estrada em sua obra, compondo a discursividade presente em seus textos e compondo uma forma de pensar o Brasil e o Nordeste que teria vazão, anos depois, em sua trajetória política.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Criada em março de 1921, a revista ilustrada Era Nova se propunha a apresentar um novo mundo aos seus leitores e às suas leitoras - mundo esse tomado de referências estrangeiras, mas pensado sobretudo a partir do que os seus editores e redatores concebiam, ou construíam, como a novidade dos tempos. Fazia isso, portanto, antes da famigerada Semana de Arte Moderna de São Paulo, transcorrida em fevereiro de 1922, e, nessa esteira, também antes das notícias do modernismo paulistano disseminadas por Joaquim Inojosa depois de sua passagem pelo Rio de Janeiro e por São Paulo. Arrisco mais do que isso. Se o escritor pernambucano encontrou espaço aberto - sobretudo na Paraíba - para divulgar suas ideias, ele deve isso ao terreno fértil que os intelectuais paraibanos cultivaram com o lançamento da sua Era Nova. Mas os meandros dessa recepção, que ultrapassam os limites desse artigo, são objeto para outras pesquisas.

José Américo era um dos autores na ponta das discussões que contornavam o modernismo na Paraíba. Ele escrevia nas primeiras páginas da revista Era Nova, testava possibilidades temáticas e estéticas, trocava ideias com amigos intelectuais - de diferentes regiões do país, mas sobretudo do seu próprio estado. O escritor se valeu de seu repertório como sujeito que transitava entre os campos literário, jurídico e político para produzir reflexões sobre as letras, a sociedade paraibana e a República. Nessas ideias, montava-se uma maneira peculiar de relacionar o tradicional e o moderno, apropriada às questões que mobilizavam um território em específico - a Paraíba. A novela Reflexões de uma cabra era a forma mais bem-acabada dessa temática e estética que se propunham modernistas, ensaiadas nas crônicas da revista Era Nova, em toda a sua obra até então.

Ao apresentar um personagem sertanejo, movido pelos contrastes entre valores tradicionais e modernos, como protagonista de seu enredo, o autor ensaiou a discussão de um tema fundamental à apreensão dos novos tempos - e de como a população paraibana poderia viver essa modernidade. Mais do que isso, apresentava uma estética disforme, quando se toma por referência o panorama canônico dos gêneros literários. Os caminhos tradicionais, afinal de contas, não seriam capazes de exprimir a complexidade da vivência desse sujeito - sua proximidade afetiva com um caprino - e da própria maneira de lidar com a língua dos personagens em seus diálogos. Essa linguagem moderna ensaiada na Paraíba produzia seus frutos e seria uma referência para a elaboração de uma literatura modernista/regionalista no estado e em toda a região nordestina nos anos subsequentes.

REFERÊNCIAS

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  • VELLOSO, Mônica Pimenta. História & modernismo. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.
  • WILLIAMS, Raymond. Política do modernismo. Tradução de André Glaser. São Paulo: Unesp, 2011.
  • 1
    O nome “jovens turcos” fazia alusão a um grupo de militares que, na Capital Federal, pretendiam modernizar as forças armadas e entendiam que a ação dos militares na política deveria se dar não individualmente, mas enquanto corporação. Ver o verbete “Jovens Turcos”, de Cristina Monteiro de Arruda Luna (Abreu, 2010).
  • 2
    As assinaturas anuais custavam 14$000 (catorze mil réis) na capital e 18$000 (dezoito mil réis) no interior, as semestrais sairiam por 7$000 (sete mil réis) na capital e 10$000 (dez mil réis) no interior e o número avulso custava $600 (seiscentos réis) na capital e $700 (setecentos réis) no interior. Considerando-se como base o preço da diária de um camponês, que variava entre 1$000 e 2$000 (mil e dois mil réis), eram valores bastante altos para a aquisição pela população em geral. Apesar disso, sabe-se que o preço não era de todo um impedimento à leitura dos periódicos, na medida em que existiam outras maneiras de consultá-lo: adquirindo coletivamente, lendo o número comprado por outra pessoa, vendo-o em uma biblioteca ou qualquer outro lugar público.
  • 3
    A revista não contava com mulheres em seu corpo de redatores e editores na primeira edição. Esse cenário só se modificaria nos anos subsequentes.
  • 4
    De acordo com a divulgação do expediente do presidente na seção “O dia no palácio”, de A União.
  • 5
    José Américo era leitor de Euclides da Cunha. Em sua biblioteca foram encontradas uma edição de Os Sertões de 1911 e outra de O rio Purus de 1906. À Margem da História, publicado postumamente a partir dos artigos na imprensa em 1909, não constava no acervo, mas foi citado no texto em questão.
  • 6
    Conferir o verbete “Rui Barbosa”, de José Almino de Alencar (Abreu, 2010).
  • 7
    Trata-se do acórdão n. 250, de 22 de novembro de 1921 (Revista do Foro, 1924). Conferir também a nota publicada em A Notícia (1921, p. 1).
  • 8
    Não confundir com o livro Sem me rir, sem chorar, no qual foram publicadas as crônicas da coluna de O Cruzeiro dos anos 1950.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    06 Dez 2021
  • Aceito
    23 Abr 2022
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