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Ciências sociais e Guerra Fria: As fundações norte-americanas e a agenda racial no Brasil

Social Sciences and the Cold War: US Foundations and the Racial Agenda in Brazil

CANCELLI, Elizabeth; MESQUITA, Gustavo; CHAVES, Wanderson. . Foundations, US Foreign Policy and Anti-Racism in Brazil: Pushing Racial Democracy. London: Routledge, 2023.

Nos últimos anos, a historiografia brasileira sobre a Guerra Fria tem sido marcada por um engajamento cada vez mais intenso com os debates a respeito da “Cultural Cold War” e de seus efeitos no continente latino-americano. Essa agenda foi impulsionada pela publicação das obras de Pierre Grémion (1995GRÉMION, Pierre. Intelligence de l’anticommunisme: le congrès de la liberté de la culture à Paris 1950-1975. Paris: Fayard, 1995. ) e Frances S. Saunders (2000SAUNDERS, Frances Stonor. Who Paid the Piper?: The CIA and the Cultural Cold War. London: Granta Books, 2000.) sobre o papel do Congresso pela Liberdade da Cultura (CCF, 1950-1967, posteriormente renomeado como International Association for Cultural Freedom, IACF), na organização e no financiamento de uma vasta rede formada por revistas de prestígio (Enconteurs, Preuves, Cuadernos), intelectuais e escritores de renome, editoras, prêmios, bolsas e demais dispositivos que forjaram a cena cultural global entre as décadas de 1950 e 1970 por meio da promoção de obras e valores que expressariam valores “democráticos” e “anti-totalitários”.

No caso latino-americano, o debate sobre a Guerra Fria Cultural ganhou contornos peculiares, seja pela natureza dessa tensão geopolítica numa região marcada pelos efeitos da Revolução Cubana sobre a vida cultural e literária da região, seja pela hegemonia dos Estados Unidos no continente, fator que tornava complexa a tarefa do CCF de identificar o liberalismo norte-americano com a defesa de valores democráticos (Iber, 2015IBER, Patrick. Neither Peace nor Freedom: The Cultural Cold War in Latin America. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 2015.). Esse caldo político-cultural singular foi investigado em trabalhos hoje clássicos, como o livro de Maria Eugenia Mudrovcic (1997MUDROVCIC, María Eugenia. Mundo nuevo: cultura y guerra fría en la década del 60. Rosário: Beatriz Viterbo Editora, 1997.) sobre a revista Mundo Nuevo (1966-1971), uma das principais iniciativas do Congresso para desafiar o prestígio de Cuba junto à intelectualidade latino-americana. Um tema emergente nesse debate, e que interessa diretamente aos brasileiros, é a conexão entre o financiamento científico impulsionado pela agenda da Guerra Fria e a institucionalização das ciências sociais na região, tema explorado em trabalhos recentes de Marcelo Ridenti (2022RIDENTI, Marcelo. O segredo das senhoras americanas: intelectuais, internacionalização e financiamento na Guerra Fria Cultural. São Paulo: Editora Unesp, 2022.), Karina Janello (2018JANELLO, Karina. Sociología científica y Guerra Fria Cultural: Los proyectos editoriales del ILARI en la Argentina y el Uruguay. PRISMAS: Revista de Historia Intelectual, n. 22, pp. 191-197, 2018.), Vânia Markarian (2020MARKARIAN, Vania. Universidad, revolución y dólares. Dos estudios sobre la Guerra Fria Cultural en el Uruguay de los sesenta. Montevideo: Debate, 2020.), Morcillo Laiz (2022)MORCILLO LAIZ, Álvaro. The Cold War Origins of Global IR. The Rockefeller Foundation and Realism in Latin America. International Studies Review, v. 24, n. 1, pp. 1-26, 2022. e Pedro Blois (2023BLOIS, Juan Pedro. Controversias alrededor de la filantropía científica estadounidense entre los sociólogos argentinos (1950-1970). Estudios Sociológicos de El Colegio de México, v. 41 (Especial), pp. 195-224, 2023. ), embora esteja presente na historiografia das ciências sociais ao menos desde o trabalho clássico de Sérgio Miceli sobre a Fundação Ford (1995MICELI, Sérgio. A Fundação Ford e os cientistas sociais no Brasil, 1962-1992. In: MICELI, Sérgio (Org.). História das ciências sociais no Brasil. Vol. 2. São Paulo: Sumaré, 1995. pp. 341-395.) e a investigação seminal de Marco Chor Maio sobre os efeitos do Projeto Unesco nas ciências sociais brasileiras (Maio, 1999MAIO, Marco Chor. O Projeto Unesco e a agenda das ciências sociais no Brasil dos anos 40 e 50. Revista brasileira de ciências sociais, v. 14, n. 41, pp. 141-158, 1999.). Uma das questões fundamentais que organiza esse debate diz respeito ao impacto desses mecanismos de financiamento sobre as agendas científicas, as linhas de pesquisa e as instituições da região.

O livro coletivo escrito por Elizabeth Cancelli, Gustavo Mesquita e Wanderson Chaves, e publicado recentemente pela Routledge, junta-se a esse campo de investigações a partir de um tema comum aos três autores: o trabalho de agendamento intelectual da questão racial exercido por fundações norte-americanas, particularmente a Ford, e seus efeitos nos debates das ciências sociais brasileiras, com destaque para o caso do sociólogo paulista Florestan Fernandes. Trata-se do resultado de um longo e valoroso trabalho coletivo realizado pelo Grupo de Pesquisa em Guerra Fria da Universidade de São Paulo, coordenado pela professora Cancelli, e que tem gerado teses e dissertações ancoradas em notável trabalho de pesquisa documental, em especial com fontes e acervos localizados nos Estados Unidos.

ESTRUTURA DA OBRA

O livro é uma versão de obra já publicada em português em 2020 pela editora Alameda, com o título Guerra Fria e Brasil: para a agenda de integração do negro na sociedade de classes (Cancelli; Mesquita; Chaves, 2020CANCELLI, Elizabeth; MESQUITA, Gustavo; CHAVES, Wanderson. Guerra Fria e Brasil: para a agenda de integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: Alameda, 2020. ). Os cinco estudos que o compõem são precedidos por uma introdução escrita por Cancelli, em que a autora apresenta o argumento principal que unifica todos esses textos: a emergência de uma agenda antirracista no Brasil seria resultado de um processo de longo prazo marcado pela ação de fundações internacionais, que, por sua vez, respondiam aos desafios geopolíticos enfrentados pelo poder americano no mundo da Guerra Fria. Para contextualizar adequadamente essa hipótese, Cancelli explica como o Estado norte-americano teve que desenvolver novas estratégias de propaganda para lidar com o discurso soviético, que destacava a persistência da segregação racial nos Estados Unidos como elemento-chave para caracterizar negativamente o país.

O capítulo 1, também escrito por Cancelli, apresenta uma história sintética da questão racial nas ciências sociais brasileiras, tendo como marco as décadas de 1940 e 1950, marcadas pela produção e circulação das obras principais de Gilberto Freyre, pelo estímulo exercido pelo Projeto UNESCO aos estudos empíricos sobre desigualdades raciais e pela produção da chamada “escola paulista de sociologia” sobre o tema. O texto se equilibra entre uma contextualização necessária para o leitor estrangeiro, uma análise densa das principais ideias que organizavam o debate racial brasileiro (particularmente das de Freyre) e uma demonstração do nexo entre tais ideias e o trabalho de agendamento exercido por fundações internacionais na América Latina. O argumento principal da autora é de que as diferentes perspectivas sobre o tema, representadas de forma típica-ideal pelas perspectivas de Freyre e do grupo uspiano, respondiam às novas estratégias norte-americanas de combate ao racismo no pós-Segunda Guerra.

O capítulo 2, escrito por Gustavo Mesquita, analisa a formação intelectual de Florestan Fernandes ao longo da década de 1940 à luz de sua conexão com uma agenda americana das ciências sociais, representada por seu treinamento na Escola Livre de Sociologia e Política (ELSP) e pela sua relação com Donald Pierson, sociólogo de Chicago que teve papel central na disseminação de modernos métodos de treinamento científico na ELSP.

Essa não é uma hipótese totalmente nova, pois o clássico estudo de Werneck Vianna (1997)WERNECK VIANNA, Luiz. J. A Revolução Passiva: iberismo e americanismo no Brasil. Rio de Janeiro: REVAN, 1997. sobre as diferenças entre as sociologias paulista e carioca do período mobilizava a ideia de uma “americanização” das ciências sociais para caracterizar o modo como teria se gestado em São Paulo uma comunidade de especialistas orientada para o tema da reforma social - clara inspiração no paradigma de Chicago. Mas, se Werneck esmiuçava o tema em grande angular, Mesquita concentra-se num período específico da formação de Florestan, trabalhando a hipótese americana a partir das influências intelectuais e da agenda de pesquisa promovida por Florestan sobre as questões étnico-raciais. O autor argumenta que as posições do sociólogo ao final dessa década eram caracterizadas pela defesa da integração das populações negras numa moderna sociedade de classes, processo a ser desvendado pelo poder racionalizador da sociologia aplicada. A hipótese é desenvolvida por meio de uma análise de correspondências e escritos disponíveis no fundo de Donald Pierson depositado no AEL/Unicamp, e de programas e ementas de curso arquivadas na Escola Livre de Sociologia e Política.

No capítulo 3, também escrito por Mesquita, analisam-se os nexos entre a agenda antirracista promovida pela UNESCO e a produção da escola paulista de sociologia, com foco na circulação internacional de ideias sobre raça entre Estados Unidos e Brasil. O autor analisa tanto os clássicos textos de Roger Bastide e Florestan Fernandes sobre o tema como a produção de especialistas norte-americanos que se debruçaram sobre as peculiaridades das dinâmicas raciais no país, novamente destacando o impacto inicial do paradigma da Escola de Chicago. Além disso, Mesquita procura traçar a recepção, entre os círculos da sociologia uspiana, da clássica obra de Gunnar Myrdal sobre a questão racial nos Estados Unidos, publicada em 1944. O argumento de fundo diz respeito ao modo como teria havido uma progressiva convergência entre as teorizações uspianas sobre o racismo no Brasil e a agenda promovida pela UNESCO e por outras redes científicas na América do Norte. Nesse capítulo, Mesquita amplia o escopo das fontes consultadas, incorporando material oriundo dos arquivos de cientistas sociais norte-americanos, em especial os de Franklin Frazier e Marvin Harris.

O capítulo 4 é escrito por Wanderson Chaves e procura analisar a convergência entre a produção sociológica de Florestan na década de 1960, em especial sua tese de livre-docente sobre a integração do negro na sociedade de classes, e a agenda racial promovida pelos especialistas da Fundação Ford. Por meio de trabalho meticuloso nas fontes disponíveis no Rockfeller Archive Center (RAC) e na correspondência encontrada no Fundo de Florestan Fernandes abrigado na UFSCAR, Chaves demonstra a participação do sociólogo paulista em eventos promovidos pela Ford, que disseminavam uma nova concepção da questão racial, que valorizasse a integração democrática da população negra numa sociedade multicultural. A tese fundamental de Chaves nessa seção diz respeito à convergência entre a agenda de integração racial promovida pela FF e a produção intelectual de Florestan, que, a despeito de seu crescente radicalismo no final da década de 1960, não teria rompido com os enquadramentos funcionalistas característicos da teorização parsoniana.

O capítulo 5, também escrito por Chaves, desdobra questões tratadas no anterior e segue o itinerário de trocas intelectuais entre Florestan e a Ford, iniciando-se com a tradução de sua clássica obra de 1966 nos Estados Unidos, mediada por Charles Wagley. Em seguida, Chaves traça a participação do intelectual paulista no Projeto Marginalidades, também financiado pela Ford, e que naufragou após inúmeras controvérsias político-intelectuais que diziam respeito à própria legitimidade do financiamento das ciências sociais regionais por meio de fundações e agências norte-americanas. Finalmente, o autor esmiuça as ideias de Florestan sobre a questão racial na década de 1970, argumentando que haveria uma convergência entre o paradigma do multiculturalismo que a Ford iria passar a promover e as tese do sociólogo paulista sobre a necessidade de organização política dos movimentos negros para aprofundamento da democracia. Esse me parece ser o ponto mais controverso nos escritos de Chaves, e é trabalhado com mais densidade no livro que resultou de seu doutoramento (Chaves, 2018CHAVES, Wanderson. A Questão Negra: A Fundação Ford e a Guerra Fria (1950-1970). Curitiba: Appris, 2018.).

GANHOS ANALÍTICOS E PROBLEMAS

Entre os principais ganhos analíticos trazidos pelo livro, eu destacaria dois principais (embora não os únicos): a) uma abordagem “desprovincializada” das ciências sociais brasileiras, cuja história é narrada não a partir da construção de linhagens intelectuais internas, mas de processos transnacionais que conectavam a vida intelectual local a dinâmicas geopolíticas poderosas; b) uma análise inovadora de atores centrais para a constituição das ciências sociais brasileiras, particularmente Florestan Fernandes, com base em meticuloso trabalho com fontes primárias depositadas em arquivos norte-americanos.

A abordagem escolhida contribui para inserir a história das ciências sociais brasileiras num debate geopolítico global, evitando um tratamento excessivamente referido ao âmbito nacional e abrindo a possibilidade de pensar nossas tradições intelectuais de modo mais cosmopolita, debate que também vem sendo travado no campo do chamado pensamento social no Brasil (Maio; Lopes, 2015MAIO, Marcos Chor; LOPES, Thiago da Costa. “For the Establishment of the Social Disciplines as Sciences”: Donald Pierson e as Ciências Sociais no Rio de Janeiro (1942-1949). Sociologia & Antropologia , v. 5, n. 2, pp. 343-380, 2015.; Maia, 2017MAIA, João Marcelo Ehlert. História da sociologia como campo de pesquisa e algumas tendências recentes do pensamento social brasileiro. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, v. 24, n. 1, pp. 111-128, 2017.). A ênfase colocada no papel das fundações norte-americanas está alinhada ao debate contemporâneo no campo da história da sociologia sobre o peso exercido pelos doadores externos e as complexas tramas tecidas entre os interesses das fundações internacionais, as resistências encontradas e os efeitos não-intencionados dos mecanismos de financiamento (Turner, 2023TURNER, Stephen. Las fundaciones, la financiación extranjera y las ciencias sociales: lo que sabemos. Estudios Sociológicos de El Colegio de México , v. 41 (núm. especial), pp. 369-383, 2023.). No caso da análise sobre Florestan, deve-se destacar o modo como os autores seguem os passos do sociólogo paulista em eventos e atividades organizadas pela Fundação Ford, o que contribui para questionar a hipótese de que Florestan seria francamente refratário ao processo de internacionalização das ciências sociais orientado por organizações transnacionais (Maia, 2022MAIA, João Marcelo Ehlert. A sociologia latino-americana na Guerra Fria Cultural: Florestan Fernandes, Aldo Solari e o Ilari. História, Ciências, Saúde-Manguinhos , v. 29, n. 4, pp. 915-932, 2022.). Destaco também a análise sobre a tradução e a recepção nos Estados Unidos da obra clássica do sociólogo paulista sobre a integração do negro, que permite ao leitor entender a importância dos mediadores no processo e as dissonâncias produzidas pela dificuldade de traduzir o vocabulário sociológico de Florestan.

Há alguns poucos problemas que emergem do texto e que podem funcionar como pontos de partida para um aprimoramento do diálogo entre historiadores e cientistas sociais que vêm se dedicando a pesquisar a história de suas disciplinas no Brasil. Um primeiro problema é exatamente o peso excessivo conferido ao papel do agendamento internacional na constituição de agendas científicas no Brasil, o que por vezes termina deixando de lado importantes dinâmicas locais. Penso, em especial, no caso de Florestan Fernandes, cuja produção sobre a questão racial valeu-se enormemente de ativa interlocução com intelectuais do movimento negro de sua época no Brasil (Medeiros da Silva, 2018MEDEIROS DA SILVA, Mário Augusto. Órbitas sincrônicas: sociólogos e intelectuais negros em São Paulo, anos 1950-1970. Sociologia & Antropologia , v. 8, n. 1, pp. 109-131, 2018.).

A conexão norte-americana enfatizada por Mesquita e Chaves é real, mas um passo analítico importante seria estabelecer como tal nexo se efetivou na tessitura dos textos escritos por Florestan e demais intelectuais. A ideia de “convergência”, que por vezes é mobilizada pelos autores para explicar esse nexo, ajuda a identificar semelhanças conceituais e afinidades eletivas, mas eventualmente obscurece as singularidades de construções teóricas que, embora partilhem um campo discursivo relativamente comum, desdobram-se de modo diferenciado. Por exemplo, a questão do “parsonianismo” presente na produção intelectual de Florestan foi bem analisada por Antônio Brasil Jr. (2013)BRASIL JR., Antonio. Passagens para a teoria sociológica: Florestan Fernandes e Gino Germani. São Paulo: HUCITEC, 2013., que demonstrou que o sociólogo paulista empreendeu uma torção periférica no repertório conceitual da sociologia da modernização, incorporando uma dimensão histórica e dialética que desestabilizou a visão evolutiva e linear do sociólogo norte-americano. Embora Chaves faça referência a esse trabalho de Brasil Jr., não me parece que os autores do livro em questão incorporaram de forma decisiva a tese da “aclimatação” latino-americana da teoria da modernização realizada por Florestan. Já a hipótese da centralidade do livro de Gunnar Myrdal para os sociólogos paulistas poderia ser subsidiada com um estudo empírico da recepção dessa obra em resenhas, artigos e outros registros textuais substantivos desses intelectuais, etapa fundamental para demonstrar como tal recepção se traduziu na elaboração de conceitos e esquemas analíticos específicos.

O peso atribuído ao agendamento internacional produz outro efeito, que é o pouco destaque dado aos ativistas e intelectuais negros na construção da agenda antirracista analisada no livro. Como mostrou a historiadora Paulina Alberto (2017ALBERTO, Paulina L. Termos de Inclusão: Intelectuais negros brasileiros no século XX. Campinas: Editora da UNICAMP, 2017.), esses atores foram centrais para mudar os termos do debate sobre a questão racial no Brasil e suas imbricações com os ideais de nacionalidade. E, embora o livro de Cancelli, Mesquita e Chaves seja focado na produção das ciências sociais, é importante notar que diferentes escritores e pensadores negros interagiram ativamente com os sociólogos brancos que escreviam sobre raça no Brasil, questionando algumas de suas conclusões e oferecendo suas próprias e poderosas versões sobre o tema.

Um segundo problema se refere a uma tendência a obscurecer as diferenças entre os diversos sociólogos brasileiros analisados, ou de secundarizar rupturas e disputas político-intelectuais num campo intelectual complexo e multifacetado (Pulici, 2004PULICI, Carolina Martins. De como o sociólogo deve praticar o seu ofício: as cátedras de Sociologia da USP entre 1954 e 1969. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Faculdade de Filosofia, Ciências Humanas e Letras, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2004. ). Esse problema se revela especialmente nas análises sobre a chamada “escola paulista de sociologia”, que por vezes é tomada como uma coletividade excessivamente coerente no tempo. O nexo entre o paradigma de Chicago e a produção de Florestan, por exemplo, deixa de lado a conhecida crítica feita por muitos uspianos aos estudos de comunidade, em especial quando da publicação da clássica obra de Emilio Willems em 1948. Essas críticas revelavam um antagonismo crescente entre a ELSP e a FFLCH/USP ao longo da década de 1950 - um tema já bem trabalhado na história das ciências sociais (Jackson, 2009JACKSON, Luiz Carlos. Divergências teóricas, divergências políticas: a crítica da USP aos “estudos de comunidades”. Cadernos de Campo, São Paulo, n. 18, pp. 273-280, 2009.).

Esses problemas talvez derivem do engajamento desigual dos autores com a vasta bibliografia brasileira sobre os temas tratados na obra. Por exemplo, embora as obras clássicas de Mariza Peirano e Sylvia Garcia estejam presentes, não há um diálogo mais consistente com a sofisticada bibliografia a respeito de Florestan Fernandes (Bastos, 2020BASTOS, Elide Rugai. A história nunca se fecha. Sociologia & Antropologia, v. 10, n. 2, pp. 677-694, 2020.; Arruda, 2018ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. The Contemporary Relevance of Florestan Fernandes. Sociologia e Antropologia, v. 8, n. 1, pp. 47-68, 2018.; Blanco; Brasil Jr., 2018BLANCO, Alejandro; BRASIL JR., Antonio. A circulação internacional de Florestan Fernandes. Sociologia & Antropologia , v. 8, n. 1, pp. 69-107, 2018.; Rodrigues, 2006RODRIGUES, Lidiane Soares. Entre a academia e o partido: a obra de Florestan Fernandes (1969-1973). Dissertação (Mestrado em História Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2006., para ficar apenas em alguns casos mais recentes). Do mesmo modo, o debate sobre o poder de agendamento das fundações norte-americanas nos estudos raciais brasileiros tem uma história própria, e o livro ganharia muito caso se situasse em tal percurso intelectual. Penso, em particular, na conhecida controvérsia motivada pelo texto de Bourdieu e Wacquant (2002BOURDIEU, Pierre; WACQUANT, Loïc. Sobre as artimanhas da razão imperialista. Estudos afro-asiáticos, v. 24, n. 1, pp. 15-33, 2002.) sobre o imperialismo científico das fundações norte-americanas, que ativou intenso debate e várias réplicas, entre as quais podemos destacar uma resposta de John French (2002FRENCH, John. Passos em falso da razão antiimperialista: Bourdieu, Wacquant, e o Orfeu e o Poder de Hanchard. Estudos afro-asiáticos , v. 24, n. 1, pp. 97-140, 2002.).

É claro que esses problemas podem se explicar pela própria natureza da obra, produzida para uma audiência internacional que talvez pouco conheça dos meandros da vida intelectual brasileira, o que impede uma apresentação mais nuançada das controvérsias da sociologia brasileira do pós-Guerra. Mesmo reconhecendo tal fato, é inegável que a promissora agenda aberta por Cancelli, Mesquita e Chaves poderia se beneficiar muito de uma leitura mais atenta tanto da produção dos pesquisadores desse vasto campo conhecido como “pensamento social no Brasil”, como dos estudos sobre a vida intelectual negra no país. Do mesmo modo, os cientistas sociais que operam nesse campo têm muito a ganhar com a leitura de um livro que ousa ao situar a história disciplinar no coração das tensões geopolíticas da Guerra Fria. Esse é, sem dúvida, o maior mérito desse bem-sucedido e inovador trabalho coletivo.

REFERÊNCIAS

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  • WERNECK VIANNA, Luiz. J. A Revolução Passiva: iberismo e americanismo no Brasil. Rio de Janeiro: REVAN, 1997.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    14 Jun 2023
  • Aceito
    30 Abr 2024
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