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The Roads We Take - O percurso didático como proposta para construir aulas de inglês por caminhos crítico-decoloniais

The Roads We Take - The Pedagogic Route as a Proposal to Build English Classes Along Critical Decolonial Pathways

RESUMO

Em alternativa ao planejamento de aulas de inglês típico da abordagem comunicativa, conhecido como Presentation, Practice, Production (PPP), proponho o percurso didático. Argumento que praxiologias críticas e decoloniais carecem de uma proposta de construção de aula mais flexível, mais aberta ao debate e que considere o texto (em sua ampla acepção do termo) como ponto de partida para compreender as práticas sociais e os atravessamentos políticos, históricos e identitários que as compõem. Ao longo do artigo, descrevo quatro trieiros que sugiro para a construção de aulas, a saber: talking topic, expanding repertoires, thinking over e bringing to life. Aponto algumas ações que integram o percurso didático como o estudo da construção de sentidos por meio da leitura, de debates e da elaboração de propostas de vivências. Finalizo este texto convidando outras/os professoras/es a apreciar esses trieiros e a propor novos.

PALAVRAS-CHAVE:
educação linguística crítica; decolonialidade; percurso didático; construção de sentidos; planejamento

ABSTRACT

As an alternative to the popular planning for English classes derived from the communicative approach, known as Presentation, Practice, Production (PPP), I propose the pedagogic route. I argue that critical and decolonial praxiologies lack a proposal that could build up to a more flexible classroom, one more open to discussions. In this line of thought, I support the argument that the text (in a broad sense of the word) should be seen as a starting point for understanding social practices and political, historical, and identity intersections that compose them. Throughout the article, I describe four trails suggested for building classes, namely: talking topic, expanding repertoires, thinking over, and bringing to life. I point out some actions that are part of the pedagogic route, such as the study of the meaning making process through reading, discussions, and the formulation of proposals that bring language to life. I end this piece by inviting other teachers to appreciate these trails and to propose new ones.

KEYWORDS:
critical language education; decoloniality; pedagogic route; meaning making; planning

1 O início da caminhada - considerações iniciais “Two roads diverged in a wood and I -

“Two roads diverged in a wood and I -

I took the one less travelled by,

And that has made all the difference”.

The Road Not Taken,

by Robert Frost (1995FROST, R. Collected Poems, Prose & Plays. New York: The Library of America, 1995. 1036 p., p. 103)

Deixar-se tocar pelas palavras colocadas em poesia e perceber como elas nos atravessam é uma forma bela e sensível de celebrar nosso trabalho com a educação linguística. Lembro-me da primeira vez que li o poema epígrafe desta escrita - ainda na graduação - e como ele me afetou profundamente. Sigo desde então optando pelos caminhos menos trilhados, não por serem atalhos curtos, mas por me permitirem vislumbrar ideias e paisagens outras, tal como a que discuto neste texto.

Longe vai o tempo em que eu era iniciante como professora de inglês. A princípio, as regras pré-estabelecidas sobre como organizar uma aula me deixavam segura, ainda que presa a um formato fixo. Além disso, parecia adequado ao meu contexto de trabalho, uma franquia de escola de idiomas. Iniciei na docência em 1994 e, à época, o comunicativismo era implementado em diversas escolas de inglês e presente em livros didáticos tanto para cursos de línguas como para escolas regulares. Embora este método fosse mais flexível do que seus antecessores (gramática-tradução, método direto, audiolingualismo, por exemplo), como discutem Diane Larsen-Freeman (2000)LARSEN-FREEMAN, D. Techniques and Principles in Language Teaching. Oxford: Oxford University Press, 2000. 189 p. e Henry Douglas Brown (2004BROWN, H. D. Teaching by Principles: An Interactive Approach to Language Pedagogy. 2. ed. New York: Addison Wesley Longman, 2004. 480 p.), as aulas ainda eram organizadas em sequências fixas de atividades hierarquicamente organizadas. Elas previam uma etapa de instrução (Presentation), uma etapa para a fixação do conteúdo e o exercício das estruturas e/ou funções ensinadas, denominada prática (Practice), e a etapa final quando a aula culminava em uma produção (Production) - individual ou coletiva - das/os alunas/os mostrando um resultado da aprendizagem do dia. Este modelo de aulas se popularizou como PPP e era desenvolvido após uma atividade inicial para “quebrar o gelo” (warmer ou ice breaker), popularmente referida por professoras/es como dinâmica.

Mesmo que a estrutura linguística fosse ensinada de modo indutivo, a percepção de língua ainda era restrita a uma função comunicativa e o contexto continuava a ser um pretexto para ilustrar possíveis usos da língua. Nas palavras de Suresh Canagarajah (2018CANAGARAJAH, S. Translingual Practice as Spatial Repertoires: Expanding the Paradigm Beyond Structuralist Orientations. Applied Linguistics, v. 39, n. 1, p. 31-54, 2018., p. 2), “o contexto era tratado como um contêiner da língua”1 1 Minha tradução para “context was treated as a container of language”. , um recipiente que, embora fosse amplo, era delimitado, territorializado e passivo, ou seja, não exercia influência sobre como os sujeitos percebiam o idioma. Para o autor, atrelar a concepção de língua à estrutura é essencializá-la e outorgar sua posse a grupos de pessoas e/ou países. Nesse sentido, Canagarajah tem se dedicado a romper com essa concepção de língua e mostrar como ela é desterritorializada e, de certa forma, fluida, movente.

Com o passar do tempo, ao refletir sobre as vivências em sala de aula e as vivências acadêmicas, percebi que era preciso arriscar-me por caminhos menos percorridos, picadas2 2 Para o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, “picada” é um “atalho aberto com recurso a um instrumento de corte. Caminho estreito por entre o mato” (https://dicionario.priberam.org/picada. Consultado em: 03 nov. 2021). abertas por colegas da Linguística Aplicada Crítica em Goiás, parceiras/os do Grupo de Estudos Transição3 3 Grupo de estudos coordenado pelas professoras Dra. Rosane Rocha Pessoa (UFG) e Dra. Viviane Pires Viana Silvestre (UEG), que reúne pesquisadoras/es que trabalham com a Educação Linguística Crítica. Atualmente o grupo estuda a decolonialidade em sua relação com a educação linguística, sobretudo para pensar a sua repercussão em aulas de inglês e na formação de professoras/es de línguas. . Essas pessoas me instigaram a pensar a aula de inglês a partir de trieiros4 4 Segundo o Dicionário Informal, “trieiro” é sinônimo de “caminho estreito aberto por passagens sucessivas no meio mato” (https://www.dicionarioinformal.com.br/trieiro/. Consultado em: 03 nov. 2021). Inicialmente eu utilizei a palavra “trilha” para desenhar os caminhos do percurso que ora apresento. No entanto, em diálogo com as colegas Viviane Pires Viana Silvestre (UEG) e Valéria Rosa da Silva (UEG), optei por usar trieiro por entender que este termo - mais coloquial e mais local - ajuda a compor a metáfora no sentido decolonial que desejo para esta empreita. Percebo-o como algo construído com as pessoas envolvidas e que rompe barreiras, como discuto adiante no texto. , conceito que delineia o percurso didático tal como o entendo atualmente. Uso os termos picada e trieiro para me referir a caminhos contra-hegemônicos abertos pela subjetividade com que vivemos nossas praxiologias. Opto por estes vocábulos por serem típicos do Cerrado goiano, em sua referência à abertura a novos caminhos, metáfora que construo ao longo deste artigo.

Um dos primeiros movimentos nessa estrada foi entender que a teoria e a prática são elementos indissociáveis, como alerta Paulo Freire (2020FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 74. ed. Rio de Janeiro: Paz e terra , 2020. 253 p.) e, como tal, compõem minha subjetividade tanto quanto outras vivências. Aos poucos tenho aprendido a não separar cada elemento do meu eu com vírgulas e nem a colocar um ponto final nesta composição identitária. Assim, inspirada nas leituras de Deleuze e Guattari (1995DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 1995. 127 p. v. 1.), sigo reconhecendo e acolhendo os meus atravessamentos (docente e pesquisadora e orientadora e mãe e mulher e socialmente lida como branca e brasileira e...) em uma percepção do ser em devir.

É a partir dessa construção docente que ouso propor, como objetivo deste estudo, um desenho de planejamento de aulas de inglês (embora também possa ser pensado para outras situações de educação linguística) que coadune com a visão de língua como prática social e favoreça a ampliação de repertórios de maneira dialógica, crítica e emergente da práxis. Por isso, ao longo do traçado desta escrita, discuto os caminhos que me levaram à proposta do percurso didático. Primeiramente, delineio a contextualização para a sua concepção e, de modo mais específico, discuto alguns dos elementos que impeliram a proposta. Na sequência, apresento os trieiros que compõem o caminho das aulas, discutindo como eles trilham os rumos de uma educação linguística crítica-decolonial. Nas considerações finais, busco resgatar as pegadas deixadas no trajeto a fim de convidar outras/os professoras/es a se enveredarem por estes caminhos cerradeiros.

Quanto aos caminhos metodológicos, busco dialogar com as onto-epistemologias deste texto e, por isso, considero-o uma escrevivência acadêmica, tal como discutido por Valéria Rosa-da-Silva (2021)ROSA-DA-SILVA, V. Movimentos decoloniais no estágio de língua inglesa: sentidos outros coconstruídos nas vivências em uma escola pública. 2021. 258 f. Tese (Doutorado em Letras e Linguística) - Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2021. em sua tese. Não é possível separar meu eu do texto pelo modo como minhas praxiologias e a minha subjetividade encontram-se tecidas. Tomo emprestado, nas pegadas de Rosa-da-Silva (2021)ROSA-DA-SILVA, V. Movimentos decoloniais no estágio de língua inglesa: sentidos outros coconstruídos nas vivências em uma escola pública. 2021. 258 f. Tese (Doutorado em Letras e Linguística) - Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2021., o termo cunhado por Conceição Evaristo (2020EVARISTO, C. Escrevivência e seus subtextos. In: DUARTE, C. L.; NUNES, I. R. (org.). Escrevivência: a escrita de nós - reflexões sobre a obra de Conceição Evaristo. Rio de Janeiro: Mina Comunicação e Arte, 2020. p. 26-46.) para sentipensar e problematizar minha agência docente nas perspectivas crítico-decoloniais. A escrevivência refere-se a uma escrita denúncia que denota “um profundo incômodo com o estado das coisas. É uma escrita que tem, sim, a observação e a absorção da vida, da existência” (Evaristo, 2020EVARISTO, C. Escrevivência e seus subtextos. In: DUARTE, C. L.; NUNES, I. R. (org.). Escrevivência: a escrita de nós - reflexões sobre a obra de Conceição Evaristo. Rio de Janeiro: Mina Comunicação e Arte, 2020. p. 26-46., p. 34). Trata-se de uma pesquisa entranhada em minhas praxiologias como pesquisadora, formadora e professora de línguas. Por praxiologias, tomo a definição de Rosane Pessoa, Kleber Aparecido Silva e Carla Freitas (2021PESSOA, R. R.; SILVA, K. A. da; FREITAS, C. C. de. Praxiologias do Brasil Central: floradas de educação linguística crítica. In: PESSOA, R. R.; SILVA, K. A. da; FREITAS, C. C. de. (org.). Praxiologias do Brasil Central sobre educação linguística crítica. São Paulo: Pá de Palavra, 2021. p. 15-24., p. 16) de que são “nossas epistemologias fundidas com nossas práticas”, a partir da interpretação da máxima freiriana de que teoria e prática devem sempre ser vistas uma em relação à outra.

Assim, uno minha voz à de Luiz Paulo Moita Lopes (1994)MOITA LOPES, L. P. Pesquisa interpretativista em Linguística Aplicada: a linguagem como condição e solução. DELTA: Documentação e Estudos em Linguística Teórica e Aplicada, v. 10, n. 2, p. 329-338, 1994. para reiterar que as pesquisas da Linguística Aplicada Crítica se comprometem em falar a partir de um ponto de vista epistêmico e ético, concebendo as/os pesquisadoras/es como agentes e, como tal, imprimimos e (des/re)construímos nossas subjetividades em e com nossas praxiologias. Para Catherine Walsh (2015WALSH, C. E. Decolonial Pedagogies Walking and Asking. Notes to Paulo Freire from AbyaYala. Int. J. of Lifelong Education, v. 34, n. 1, p. 9-21, 2015.), a possibilidade de pensar a práxis a partir de vivências e demandas locais surge como um ato de resistência e reexistência às violências que vem sendo operadas pela matriz colonial de poder há mais de cinco séculos. Encontrar um fazer outro que “desafie a hegemonia e a universalidade do capitalismo, da modernidade eurocrentrada e da lógica civilizatória ocidental5 5 Minha tradução para “challenge the hegemony and universality of capitalism, Euro-centred modernity and the Western civilizatory logic”. ” (Walsh, 2015WALSH, C. E. Decolonial Pedagogies Walking and Asking. Notes to Paulo Freire from AbyaYala. Int. J. of Lifelong Education, v. 34, n. 1, p. 9-21, 2015., p. 12) é parte do compromisso de quem se engaja em pedagogias decoloniais. A ação suleada pela decolonialidade é pautada pelo compromisso de interromper violências e resgatar subjetividades postas à margem por aquela matriz. Nessa esteira, apresento este estudo a fim de somar aos saberes construídos na Educação Linguística Crítica. Na intenção de marcar os esforços para a construção de praxiologias com as pessoas, a partir de suas demandas locais e suas contingências, acrescento o marcador decolonial.

2 Caminhos já trilhados - o percurso até os esforços crítico-decoloniais na educação linguística

Historicamente, o ensino de línguas no Brasil tem buscado importar não somente livros e materiais didáticos, mas também métodos e práticas que garantam o sucesso na aprendizagem do idioma. Sucesso esse que tem sido medido por quanto da cultura da/o outra/o a/o aprendiz consegue assimilar e quão bem pode imitar seus sotaques em busca do “inglês perfeito”, como discuto em Sabota (2018SABOTA, B. Do meu encontro com a educação linguística crítica ou de como eu tenho revisitado meu fazer docente In: PESSOA, R.; SILVESTRE, V. P. V.; MONTE MÓR, W. Perspectivas críticas de educação linguística no Brasil. São Paulo: Pá de Palavra , 2018. p. 59-68.). Esses materiais raramente dialogavam com as demandas locais de aprendizes, sobretudo em contextos regulares, como escolas e universidades. Clarissa Jordão (2014JORDÃO, C. ILA - ILF - ILE - ILG: Quem dá conta? Revista Brasileira de Linguística Aplicada, v. 14, n. 1, p. 13-40, 2014.) discute que tais materiais apresentam o idioma como estrangeiro - um bem cultural a ser consumido (inglês como commodity), e não como um potente elemento de construção de sentidos. Na Linguística Aplicada Crítica, ainda segundo a autora, o processo de construção de sentidos (meaning making) é muito importante para a expansão de repertórios bem como para a percepção de língua como prática social. É possível entender, então, que práticas livrescas que sustentam uma visão hermética e estrutural de língua reforçam a noção de completude e fortalecem a imagem de um “falante ideal”, cuja autoridade sobre a língua pode ser usada para oprimir e silenciar a/o aprendiz. Para bell hooks6 6 A autora marca seu nome intencionalmente com letras minúsculas para reiterar que suas ideias são tão relevantes quanto quem as produz. Portanto, respeito aqui sua manifestação política e o transcrevo também em letras minúsculas. (2013hooks, bell. Ensinando a transgredir: educação como prática de liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2013. 283 p.), a língua pode se tornar um elemento de opressão, constrangimento e silenciamento na medida em que apaga saberes e impede que movimentos de subjetividade se manifestem em seu uso. Nas palavras da autora, “sei que não é a língua inglesa que me machuca, mas o que os opressores fazem com ela, como eles a moldam para transformá-la num território que limita e define, como a tornam uma arma capaz de envergonhar, humilhar, colonizar” (hooks, 2013hooks, bell. Ensinando a transgredir: educação como prática de liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2013. 283 p., p. 224). A partir disso, concluo que, na proporção em que a língua encapsulada nos livros didáticos determina o que pode e/ou deve ser dito pelas/os aprendizes, ela opera uma violência contra as/os aprendizes.

Esse modo violento de se relacionar com a língua, para Tânia Rezende (2015REZENDE, T. F. Políticas de apagamento linguístico em contexto brasileiro. In: BARROS, D. M. de; SILVA, K. A. da; CASSEB-GALVÃO, V. C. (org.). O ensino em quatro atos: interculturalidade, tecnologia de informação, leitura e gramática. Campinas: Pontes Editores, 2015. p. 63-77.), faz surgir uma sensação de inferioridade na/o aprendiz, cultivada em nós, brasileiras/os, desde a invasão de nosso território pelos portugueses7 7 Marco intencionalmente o gênero masculino aqui para reiterar que foram, de fato, os homens que perpetraram tais violências. . A autora cunha o termo linguofobia para se referir à pretensa incapacidade de aprender línguas inculcada em nós, majoritariamente em ambientes escolares. Nas palavras de Rezende (2015REZENDE, T. F. Políticas de apagamento linguístico em contexto brasileiro. In: BARROS, D. M. de; SILVA, K. A. da; CASSEB-GALVÃO, V. C. (org.). O ensino em quatro atos: interculturalidade, tecnologia de informação, leitura e gramática. Campinas: Pontes Editores, 2015. p. 63-77., p. 64), linguofobia “é a resistência e insegurança com relação à Língua Portuguesa, na escola, ao português brasileiro nas interações cotidianas assimétricas e, maximamente, ao estudo de línguas estrangeiras, sobretudo, à língua inglesa”. Os desdobramentos da linguofobia repercutem nos baixos desempenhos escolares em exames externos, na insegurança ao elaborar textos (orais ou escritos) em variedades menos coloquiais da língua padrão e no medo de performances orais em situações em que há algum tipo de observação/avaliação em andamento. Por esses motivos, a linguofobia pode ser vista como consequência de reiteradas ações de silenciamento de aprendizes e apagamento de subjetividades em contextos educacionais.

Como professora e pesquisadora, optei por não mais seguir nesses caminhos já pavimentados e me dispus a abrir picadas, como adiantei na introdução deste artigo, para explorar estradas menos percorridas. Minhas aulas não podiam mais ficar contidas em um planejamento engessado, que limitava o tempo para as discussões emergentes de leituras da palavramundo (Freire, 2001FREIRE, P. A importância do ato de ler. 41. ed. São Paulo: Cortez, 2001. 87 p.), que separava vivências de teorias e que silenciava alunas/os ameaçadas/os pela linguofobia (Rezende, 2015REZENDE, T. F. Políticas de apagamento linguístico em contexto brasileiro. In: BARROS, D. M. de; SILVA, K. A. da; CASSEB-GALVÃO, V. C. (org.). O ensino em quatro atos: interculturalidade, tecnologia de informação, leitura e gramática. Campinas: Pontes Editores, 2015. p. 63-77.). Para construir eventos dialógicos que mobilizassem construções de sentidos locais, problematizassem questões crítico-vivenciais, ao invés de apenas tematizar o debate (Rezende, 2017REZENDE, T. F. Posfácio. In: SILVESTRE, V. P. V. Colaboração e crítica na formação de professores/as de línguas: teorizações construídas em uma experiência com o Pibid. Campinas: Pontes Editores , 2017. p. 279-289.), favorecessem a apropriação da língua, antes apresentada como estrangeira, mas recentemente ressignificada como adicional (Jordão, 2014JORDÃO, C. ILA - ILF - ILE - ILG: Quem dá conta? Revista Brasileira de Linguística Aplicada, v. 14, n. 1, p. 13-40, 2014.), era necessário decretar o ‘fim das dinâmicas8 8 Dinâmicas são técnicas desenvolvidas por docentes durante a aula de idiomas com a função de praticar a língua, de modo a fixar o conteúdo e as funções linguísticas em pauta (Larsen-Freeman, 2000). Por trabalharem com sentidos definidos aprioristicamente e incentivar a prática (em detrimento da reflexão), elas apresentam-se como inadequadas para esta proposta de trabalho. ’ nas aulas de inglês!

Tal como discutem Marco Túlio Urzêda-Freitas e Rosane Pessoa (2020URZÊDA-FREITAS, M. T.; PESSOA, R. R. Disinventing and Reconstituting the Concept of Communication. L2 Journal, v. 12, n. 3, p. 61-76, 2020., p. 72), a aula de línguas sob uma perspectiva que entenda a comunicação de maneira complexa deve ser

guiada pelo conceito de aprendizagem como um espaço de compartilhamento e co-construção de conhecimento, performances identitárias e confrontos discursivos que abram espaço para a articulação de análises complexas da vida social9 9 Minha tradução para o trecho “[…] guided by a concept of learning as a space of sharing and co-construction of knowledge, identity performances and discursive clashes that make room for the articulation of complex analyses of social life”. .

Passei a tentar desenhar uma aula que conseguisse deixar que a língua fluísse entre e com as relações (inter)subjetivas, de modo a permitir a construção de saberes a partir de demandas locais e situar a aula como um evento dialógico e sócio-histórico. Além disso, a ideia de que é preciso empenhar esforços para construir outras possibilidades de ser e estar no mundo, criando fissuras na matriz colonial de poder, começou a germinar no chão de nossas salas de aulas no Brasil Central, como marca a obra organizada por Pessoa, Silva e Freitas (2021PESSOA, R. R.; SILVA, K. A. da; FREITAS, C. C. de. Praxiologias do Brasil Central: floradas de educação linguística crítica. In: PESSOA, R. R.; SILVA, K. A. da; FREITAS, C. C. de. (org.). Praxiologias do Brasil Central sobre educação linguística crítica. São Paulo: Pá de Palavra, 2021. p. 15-24.). Relembrando as palavras de Walsh (2018WALSH, C. E. On Decolonial Dangers, Decolonial Cracks, and Decolonial Pedagogies Rising. In: MIGNOLO, W. D.; WALSH, C. E. On decoloniality: Concepts, Analytics, Praxis. Durham: Duke University Press, 2018. p. 81-99., p. 81), passei a ver na decolonialidade uma práxis em movimento contínuo de ruptura em busca de “possibilidades outras de ser, pensar, conhecer, sentir e viver”10 10 Minha tradução para “[…] possibilities of other modes of being, thinking, knowing, sensing, and living”. . Esta proposta, por sua vez, abre espaço para novas semeaduras, novos modos de agir em prol da transformação social que desejo ver em minha comunidade.

Retomando o que discutem Urzêda-Freitas e Pessoa (2020)URZÊDA-FREITAS, M. T.; PESSOA, R. R. Disinventing and Reconstituting the Concept of Communication. L2 Journal, v. 12, n. 3, p. 61-76, 2020., a aula de línguas pode ser um potente espaço para a decolonialidade epistêmica haja vista a possibilidade de desarticulação de discursos hegemônicos que sustentam estruturalmente práticas discriminatórias violentas, tais como: intolerância religiosa, pressão estética, injúria racial, xenofobia, preconceito linguístico, para citar alguns exemplos. Para além disso, concordo com a discussão de Viviane Silvestre (2017SILVESTRE, V. P. V. Colaboração e crítica na formação de professores/as de línguas: teorizações construídas em uma experiência com o Pibid . Campinas: Pontes Editores , 2017. 284 p.) de que os esforços decoloniais na educação linguística podem interromper ciclos criminosos de violência, que também se mantêm nas práticas sociais pela linguagem, como o racismo e a homo(trans)fobia.

O desafio a que nos dispomos como professoras/es de línguas é tornar nossas salas de aula espaços para a interlocução, o debate e a construção de sentidos outros. Assim, preparar aulas sob esforços crítico-decoloniais é agir por meio das seleções, adaptações e elaborações de materiais de uso didático, cuidando para que sejam contingenciais, emersos de demandas locais, e provoquem a leitura da palavramundo11 11 Para Paulo Freire (2001), a leitura da palavramundo é aquela que integra de modo indissociável os dois termos justapostos que a compõe. Por isso, mantenho no texto a grafia usada pelo autor. atrelada à leitura de si. Destarte, a intenção das aulas crítico-decoloniais (entendidas como eventos semióticos12 12 Tomo por evento semiótico os encontros de construção de sentidos que reconhecem a multimodalidade e o contexto como agentes neste processo. Inspiro-me na explicação de Luiz Martins Lima Neto (2017, p. 41) de que “o significado é construído através de recursos de todos os tipos (símbolos, ícones e imagens); de que as línguas/linguagens e os recursos semióticos criam significado através de modalidades diferentes, tais como a oral e a visual; e de que os recursos semióticos estão embutidos em ambientes físicos, alinhando participantes, objetos, corpos e contextos para criar significado”. de construção conjunta de sentidos) é transformar realidades, sentipensar outros modos de ser, estar, conhecer e viver o mundo, povoando-o com mais perguntas do que respostas.

Ao referir-se à prática problematizadora na Educação Linguística Crítica, fundamentada em Margarete Schlatter e Pedro Garcez (2012SCHLATTER, M.; GARCEZ, P. de M. Línguas adicionais na escola: aprendizagens colaborativas em inglês. Erechim: Edelbra, 2012. 176 p.), Silvestre (2015SILVESTRE, V. P. V. Ensinar e aprender língua estrangeira/adicional na escola: a relação entre perspectivas críticas e uma experiência prática localizada. Revista Brasileira de Linguística Aplicada , v. 15, n. 1, p. 61-84, 2015., p. 64) afirma que ela permite “conhecer, participar e dar novos contornos à própria realidade; transitar na diversidade; refletir sobre o mundo em que se vive e agir crítica e criativamente”. A autora reitera que esta é uma maneira de conectar o local ao global, uma vez que, ao pensarmos com as/os agentes e a partir de suas perspectivas, podemos tecer conexões mais amplas e complexas com o mundo e as relações que o compõem. Ao questionar o modo de conhecer e buscar entender como a realidade que se apresenta se compõe, é possível se apropriar do próprio processo de construção de sentidos. Para Vanessa Andreotti e Rene Susa (2018ANDREOTTI, V.; SUSA, R. Global Learning as Unlearning: Beyond the Certainty of Knowing as an Anchor for the Security of Being. UBC Blogs, abr. 2018. p. 1-7. Disponível em: Disponível em: https://blogs.ubc.ca/gceotherwise/files/2018/04/global-learning-as-unlearning.pdf . Acesso em: 25 out. 2021.
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, p. 1),

as preocupações epistemológicas e ontológicas tendem a ter uma orientação sistêmica que destaca as conexões entre história, relações de poder, políticas de produção do conhecimento e a distribuição desigual de riquezas, trabalho, bem como a percepção do valor da vida (humana ou não)13 13 Minha tradução para “epistemological and ontological concerns tend to have a systemic orientation that highlights the connections between history, power relations, the politics of knowledge production, and the uneven distribution of wealth, labour, and the perceived value of life (human and not)”. .

É nesta tessitura que percebemos quais práticas encontram-se naturalizadas, estruturalmente mantidas e que matrizes de poder estão operando. Ao questioná-las, é possível interromper seu ciclo de repetições e fissurar o que está posto. Desse modo, como ressalta Silvestre (2015SILVESTRE, V. P. V. Ensinar e aprender língua estrangeira/adicional na escola: a relação entre perspectivas críticas e uma experiência prática localizada. Revista Brasileira de Linguística Aplicada , v. 15, n. 1, p. 61-84, 2015., p. 96), a prática problematizadora - que entende a língua como “inerentemente política” - não pode se abster do exercício de acolher e tensionar os limites e contornos (de si, da/o outra/o e do próprio contexto social), respeitando os cuidados éticos com a/o outra/o - aqui, parafraseando Andreotti e Susa (2018ANDREOTTI, V.; SUSA, R. Global Learning as Unlearning: Beyond the Certainty of Knowing as an Anchor for the Security of Being. UBC Blogs, abr. 2018. p. 1-7. Disponível em: Disponível em: https://blogs.ubc.ca/gceotherwise/files/2018/04/global-learning-as-unlearning.pdf . Acesso em: 25 out. 2021.
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) - humano ou não.

3 O percurso didático para aulas de inglês crítico-decoloniais - possíveis rupturas

Como tenho argumentado ao longo deste estudo, empenhar esforços decoloniais na Educação Linguística Crítica implica (des/re)construções e rupturas. Tal como narrado na introdução, em minha trajetória docente, tenho buscado fazer escolhas que me levem a caminhos diferentes dos já trilhados, não por considerá-los impróprios, mas por já saber, de antemão, até onde eles vão. Assim, estava convencida de que, para conseguir alcançar locais ainda pouco explorados no ensino de inglês, sobretudo em contextos públicos, era preciso ousar.

Há alguns anos, comecei a repensar o planejamento de aulas de inglês, abandonando o formato PPP, àquele tempo refletindo sobre aulas de leitura (Sabota, 2017aSABOTA, B. Formação de professores de língua estrangeira: uma experiência de pesquisa-ação no estágio supervisionado de língua inglesa. In: SABOTA, B.; SILVESTRE, V. P. V. (org.). Pesquisa-ação & formação: convergências no estágio supervisionado de língua inglesa. 1. ed. Anápolis, Editora da UEG, 2017a. p. 43-65.), por considerar que ele não abria possibilidades para contemplar a visão de educação linguística que eu almejava. Buscava construir, à época com minhas/meus alunas/os de estágio supervisionado, aulas que trouxessem movimentos ontoepistêmicos a fim de desestabilizar as histórias únicas que ouvimos/lemos ao longo da vida, tal como argumenta Chimamanda Adichie (2009ADICHIE, C. N. The Danger of a Single Story. TED Global Talks, jul. 2009. Disponível em: Disponível em: http://www.ted.com/talks/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_story . Acesso em: 09 abr. 2021.
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). Apesar de incipiente, eu já me via como uma professora-pesquisadora em busca da construção de algo que traduzisse minhas inquietações, em um fluxo de possibilidades encadeadas. Visava a “organizar as tarefas feitas em sala de aula em sequências lógicas e viabilizar a mediação do conteúdo de forma progressiva e contextualizada” (Sabota, 2017bSABOTA, B. Leitura e Compreensão textual. In: FIGUEIREDO, F. J. Q. de. (org.). Formação de professores de línguas estrangeiras: princípios e práticas. Goiânia: Ed. da UFG, 2017b. p. 125-150., p. 132). Naquele momento, já trabalhava com etapas mais maleáveis, na medida em que, sempre que era preciso, não somente usava mais tempo em cada uma, mas também utilizava duas, três ou quantas aulas fossem necessárias para que se cumprisse a proposta.

Ao revisitar o meu trabalho com o percurso didático à época, atualmente percebo que ele ainda aprisionava sentidos pré-construídos e admitia uma visão territorializada de língua, pois ainda referendava a progressão de conteúdo a partir de elementos externos ao grupo. A proposta de uma ideia lógica, que rege uma mediação progressiva de conteúdo, ainda ecoava uma matriz de poder moderno colonial, em detrimento de problematizações com o grupo, da busca de um modo interno de articular as ideias para construir sentidos localmente.

Apesar disso, o conceito provocava algumas picadas. Como é possível observar, o questionamento da noção de tempo-espaço configura-se como uma importante ruptura apresentada naquela primeira versão da proposta. A aula institucionalizada (na escola e na universidade) tem um tempo e um espaço rígidos e limitados, o que muitas vezes engessa a ação docente. Contudo, ao tomar a língua como ação política, como prática social, não é possível restringir o tempo da aprendizagem aos 50 minutos do relógio. As discussões iniciadas em classe podem reverberar e estender-se para outros tempos e espaços. As atividades desenvolvidas em aula podem estar imbricadas em um complexo debate que segue uma organização contingencial relacionada àquele contexto local, àquela turma, sem a intenção (ou compromisso) de se repetir algo que já tenha sido feito. Nesse sentido, cada aula é vista como um evento semiótico singular. De forma similar, um tópico pode ser desdobrado em módulos que contemplem unidades de sentido a serem desenvolvidas por uma semana, um bimestre ou qualquer outra unidade de tempo que seja eleito como relevante ou necessário. Acrescentar as dimensões de tempo e espaço, tanto no momento do planejamento quanto nos debates durante as aulas, amplia as dimensões de interpretação.

Para Canagarajah (2018CANAGARAJAH, S. Translingual Practice as Spatial Repertoires: Expanding the Paradigm Beyond Structuralist Orientations. Applied Linguistics, v. 39, n. 1, p. 31-54, 2018.), pensar os usos da língua em relação ao tempo e ao espaço inclui diversidade e imprevisibilidade como elementos integrantes da aula. O autor argumenta que o espaço, as materialidades e o ambiente agem no processo de construção de sentidos. Desse modo, as relações construídas entre as/os agentes - professoras/es e alunas/os - afetam modos de percepção e apropriação da realidade que podem atravessar os muros da escola e afetar a família e a comunidade. Caso isso ocorra, como discutido em Sabota et al. (2021SABOTA, B.; ALMEIDA, R.; MASTRELLA-DE-ANDRADE, M.; SILVESTRE, V. P. V. Educação linguística para uma atuação crítica e criativa: uma iniciativa transdisciplinar em aulas de inglês. Revista Humanidades e Inovação, v. 8, n. 43, p. 74-89, 2021.), o alcance dos debates toma outras dimensões e pode culminar em um projeto ambiental/social/cultural, a depender do fôlego, do empenho, da disponibilidade, da viabilidade e de outros propiciamentos (affordances) contingenciais.

Outra ruptura percebida no modelo inicial do percurso didático foi na estrutura rígida e hierárquica da aula, ou seja, no modo como a sequência do PPP previa uma sequência crescente no grau de dificuldade das atividades. Nesta proposta, vejo que esta hierarquia pode ser suplantada por etapas maleáveis que podem ser intercambiadas, encurtadas ou estendidas, de acordo com o que se faz necessário durante o evento da aula. Como professora, esta percepção me desafiou a focar mais na construção de sentidos que, a meu ver, deve sempre ser privilegiada em aulas de línguas. Para Lynn Mario Menezes de Souza (2011)MENEZES DE SOUZA, L. M. Para uma redefinição de letramento crítico: conflito e produção de significação. In: MACIEL, R. F.; ARAÚJO, V. de A. (org.). Formação de professores de línguas: ampliando perspectivas. Jundiai: Paco Editorial, 2011. p. 128-140., entender que os textos emergem de eventos sócio-históricos e que nossa percepção deles é circunscrita ao nosso próprio contexto consiste em um movimento constante e imbricado e nem sempre isento de conflito. Não obstante a relevância da observação do currículo e/ou dos documentos que regulamentam que conteúdos devem ser ensinados, a preocupação com as relações, as desconstruções e os rearranjos no processo de apropriação e transformação dos saberes discentes deve ser preponderante.

Percebi que, se buscava problematizar questões pertinentes para as/os discentes em sala, era preciso tensionar as relações de poder. Deste modo seria possível deslocar a/o docente para o local da escuta ainda no momento de decisão sobre os tópicos que mobilizam as aulas. Este movimento favorece a criação de espaços de fala que, nas palavras de Silvestre (2017SILVESTRE, V. P. V. Colaboração e crítica na formação de professores/as de línguas: teorizações construídas em uma experiência com o Pibid . Campinas: Pontes Editores , 2017. 284 p., p. 86), oportunizam que as/os agentes tenham suas “concepções, valores e verdades” problematizados, possibilitando a reconstrução de práticas pessoais e de educação linguística. Na intenção de que esses espaços surgissem ainda antes dos debates, tenho experimentado solicitar às/aos alunas/os que sugiram o que gostariam de debater. As sugestões são solicitadas ora por meio de perguntas diretas (O que deveríamos discutir nas próximas aulas?), ora em narrativas mais elaboradas, tanto de forma escrita quanto oral. Embora, em geral, a participação seja tímida, as respostas costumam indicar caminhos relevantes para provocar as construções de sentido iniciais. Mais importante do que a quantidade de tópicos sugeridos é o movimento de potencializar a agência discente e o engajamento nas discussões ao longo de todo o percurso, tal como defendido em Sabota et al. (2018SABOTA, B.;ALMEIDA, R. R.; SILVA, H. E. Sobre o que vamos falar hoje?! Educação linguística crítica em LE/ LA e a escolha de temas para debate em aula de inglês. In: FERRAZ, D. de M.; KAWACHI-FURLAN, C. J. (org.). Educação Linguística em Línguas Estrangeiras. 1. ed. Campinas: Pontes Editora, 2018. v. 1, p. 87-106.).

Mais uma importante ruptura me parecia necessária: era hora de pensar o material didático. Há algum tempo, tenho me permitido criar/adaptar o material que utilizo com minhas turmas, libertando-me do livro didático. Tenho ciência de que poder dispor de tempo e recursos para pensar e propor o próprio material é um privilégio de que nem todas/os as/os docentes gozam, devido às condições de precarização do trabalho docente que se agravam em nosso país. Contudo, penso que dedicar-me à curadoria (busca, seleção e organização) do material de uso didático, a fim de torná-lo mais relevante para meus grupos, tem valido a pena. Ressalto, entretanto, que é possível seguir utilizando livros e adaptá-los/complementá-los de modo a contemplar demandas locais e dedicar-se à práxis problematizadora (Silvestre, 2015SILVESTRE, V. P. V. Ensinar e aprender língua estrangeira/adicional na escola: a relação entre perspectivas críticas e uma experiência prática localizada. Revista Brasileira de Linguística Aplicada , v. 15, n. 1, p. 61-84, 2015.). Uma vez definidos o tópico e o material para as aulas, é chegada a hora de desenhar o percurso e mapear os possíveis trieiros a desbravar, como proponho na próxima seção.

4 O percurso didático e seus trieiros - construindo caminhos crítico-decoloniais

Uma leitura possível da metáfora do caminho é a ideia da construção de possibilidades no desdobramento de uma ação ou de ações encadeadas que delineiam uma rota. Ao propor o percurso didático, penso no processo de composição de uma aula (ou conjunto de aulas) de língua inglesa (ou de outras línguas) que acolha, discuta, (des)mobilize e (des/re)construa sentidos em trocas dialógicas, de maneira a contribuir para aprendizagens plurais, complexas, translíngues e não-hierárquicas. Ou seja, trata-se do desenho de eventos semióticos protagonizados pelas pessoas que os vivenciam a partir de seus atravessamentos identitários subjetivos (cor, raça, sexo, identidade de gênero, composição corporal, classe social, idade e tantos outros), elaborado para que leituras da palavramundo favoreçam a construção dialógica de sentidos. É translíngue por entender, em consonância com Canagarajah (2018CANAGARAJAH, S. Translingual Practice as Spatial Repertoires: Expanding the Paradigm Beyond Structuralist Orientations. Applied Linguistics, v. 39, n. 1, p. 31-54, 2018.), que várias linguagens participam da interação, de modo a transcender: a) a noção de idiomas autônomos (implicando que podem ser acionados a qualquer momento - de modo simultâneo ou alternado) e b) a compreensão de que, como recursos semióticos e multimodais - ao participarem da comunicação -, compõem e transformam a realidade social por meio da linguagem. Por fim, atenua relações hierárquicas em sala de aula por conceber que a/o docente participa da construção de sentidos juntamente com as/os aprendizes e, tanto quanto possível, compartilham a responsabilidade por ações relacionadas ao processo educativo. Dessa maneira, ambas/os, professora/or e alunas/os, deliberam sobre: tópicos a serem discutidos; modos de avaliação e geração de notas - quando é o caso; a abordagem de textos (verbais, não verbais, imagéticos, sonoros etc.). Ações como essas objetivam construir espaços de fala e escuta sensível que acolham e valorizem saberes horizontalizados (isto é, construções epistêmicas menos hierárquicas).

A pluralização das vozes na aula de línguas pode auxiliar a combater a linguofobia, enquanto promove o falar com (em detrimento do falar sobre) em contextos de educação linguística, como observa Rezende (2017REZENDE, T. F. Posfácio. In: SILVESTRE, V. P. V. Colaboração e crítica na formação de professores/as de línguas: teorizações construídas em uma experiência com o Pibid. Campinas: Pontes Editores , 2017. p. 279-289.). Outrossim, favorece vivências com diferentes práticas linguísticas, auxiliando na construção de argumentos e na formação subjetiva das/os agentes. Nesse sentido, argumento que o percurso didático - composto por seus diversos trieiros - se mostra um caminho decolonial porque é construído com as/os agentes e a partir de suas demandas e seus interesses, e não para/sobre elas/es, como normalmente ocorre no modelo PPP (aludido na introdução deste artigo).

Na elaboração da cartografia do percurso didático, busco partir do tópico e propor a discussão de textos multimodais em trieiros que se alternam, enredam e entrelaçam, com o foco em problematizar os sentidos de língua e/em sociedade e romper com o ciclo de violências, apagamentos e silenciamentos que podem se perpetuar pela linguagem. Por trieiro, compreendo o conjunto de ações encadeadas que movimentam as/os agentes durante o percurso. Dito de outro modo, são propostas de atividades planejadas pelas/os agentes (tanto docentes quanto discentes) para mobilizar e construir sentidos em aulas de línguas. Um trieiro é um caminho “aberto a facão”, como vemos muito em matas de nosso Cerrado; inova por espaços ainda não (ou pouco) trilhados; e não desmata, não destrói, porque a vegetação pode voltar a brotar. Nesta imagem de educação linguística, ele é contra-hegemônico, pois se abre a partir das demandas da turma e da/o docente; portanto, não obedece à norma de um livro didático, por exemplo. Acolhe diferentes textos nos mais diversos suportes (fotos, pinturas, poemas, causos, ensaios, artigos, músicas, slam, memes, rap e uma infinitude de possibilidades) e os entende de modos também múltiplos (ao realizar questionamentos, esquematizações, transferências de mídia, provocações de alterações e intertextualizações, propostas de releituras etc.), além de convocar à imaginação e à agência.

Não há uma sequência linear prevista para os trieiros. É possível trabalhar com aspectos específicos da organização da língua, do gênero textual, dos suportes e das mídias junto à proposição de debates e produções textuais. A aula segue fluxos e movimentos locais, decididos por quem gerencia a atividade no momento (a/o professora/or, a/o aluna/o, uma/um convidada/o) e quem nela age. Essa espontaneidade não deve ser confundida com ausência de preparo. Todos os momentos da aula são permeados por reflexões sobre a língua(gem), seus usos, as negociações de sentido, as relações de poder e as práticas sociais que a constituem e/ou que são por ela constituídas. É importante, como tenho observado, que as leituras da palavramundo sejam responsavelmente problematizadas a partir de praxiologias constantemente sentipensadas - um esforço contínuo de entender as transformações vivas das línguas, culturas e sociedades -, e não tratadas de maneira essencializada e/ou naturalizada.

Desde o ano de 2019, tenho inserido explicitamente o percurso didático em meu plano de curso, como discutido no XXIII Encontro da Associação de Professores/as de Língua Inglesa do Estado do Mato Grosso (APLIEMT) e, a cada novo percurso, a cada trieiro aberto a picadas, tenho a oportunidade de amadurecê-los (Sabota, 2021SABOTA, B. Esperança equilibrista: educação linguística crítica em busca de conexões no ensino remoto. XXIII Encontro de Professores de Inglês da APLIEMT, 6 ago. 2021. YouTube: APLIEMT. Disponível em: Disponível em: https://youtu.be/HzJa3K-usDo . Acesso em: 28 out. 2021.
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). Ressalto, contudo, que esta é a primeira vez que escrevo sobre ele com esta configuração. Tenho nomeado os trieiros, a partir de seu foco, como: talking topics (tópicos conversacionais), expanding repertoires (expansão de repertórios), thinking over (reflexões), e bringing to life (propostas de vivências). A cada um desses trieiros, penso sobre o material de uso didático que será necessário para provocar as problematizações e as construções/negociações de sentido e, então, estimo o tempo que será necessário. A estimativa do tempo me permite, como docente, antever alguns rumos e contornos da aula, mas como não intenciono prender as construções de sentido, atento-me ao ritmo das discussões durante os trieiros. Convém ressaltar que, ao imaginar e descrever a ação, penso em todas/os as/os agentes envolvidas/os e em como nos engajaremos durante a sua realização. De igual maneira, busco trazer questionamentos que ampliem os debates e as possibilidades de leitura, com o intuito de favorecer a emergência de várias vozes (e não apenas ecos de um mesmo discurso).

O infográfico, a seguir, busca propor uma visualização de como concebo esses trieiros por um percurso cerradeiro.

Imagem 1
Infográfico com o esquema visual do percurso didático

O infográfico evidencia um cenário alinear e sem um início ou final previamente demarcados. Podemos iniciar o trajeto a partir de quaisquer dos trieiros. As árvores são inspiradas nas floradas dos ipês e nos troncos retorcidos que mostram a força, a boniteza e a resistência com que construímos nossas praxiologias em nosso contexto de atuação (Pessoa; Silva; Freitas, 2021PESSOA, R. R.; SILVA, K. A. da; FREITAS, C. C. de. Praxiologias do Brasil Central: floradas de educação linguística crítica. In: PESSOA, R. R.; SILVA, K. A. da; FREITAS, C. C. de. (org.). Praxiologias do Brasil Central sobre educação linguística crítica. São Paulo: Pá de Palavra, 2021. p. 15-24.). O sol, nosso companheiro nessas terras, energiza nossas discussões e aquece os debates. O lago (ou rio, como leiam), ao fundo, é para nos lembrar de que onde há água, há vida. Nosso solo cerradeiro, berço das águas, nos ensina a esperançar. As ipomeas (flores também conhecidas como glórias-da-manhã) são rasteiras e se espalham como rizomas em várias direções, inclusive se apoiando em árvores e pedras, tal como nossas reflexões florescem em meio a condições adversas, mais uma vez, rememorando a vida e a resistência. Discuto os trieiros em mais detalhes na sequência.

Talking topic - Tópicos conversacionais: este trieiro é um bom início de percurso por ser bem amplo e permitir ter uma visão panorâmica do caminho adiante. Contudo, pode ser retomado ao longo das aulas, sempre que for pertinente, pois, como proponho, não há uma ordem para que os trieiros sejam trilhados. Este é um momento para explorar como cada agente pensa, sente, se deixa afetar pelo que estará em debate durante todo o percurso didático. Pode ser anunciado por um texto multimodal, como uma música, imagens, um poema, um vídeo curto, uma notícia de jornal/revista, ou mesmo por uma conversa/pergunta explícita sobre o tópico, por exemplo: “Vamos falar um pouco sobre a arte de rua? Como você se sente/posiciona em relação à exposição de fotos pessoais em redes sociais?” O propósito é levantar as questões iniciais do debate a partir do conhecimento de mundo de cada uma/um e, então, explorar pontos de convergência e divergência, conhecendo os pensares das pessoas que interagem nesse evento, preparando o terreno para os deslocamentos possíveis e desejados. O objetivo maior deste trieiro é ajudar as pessoas a se conhecerem melhor (de onde falam, que vozes falam com elas). Nesse sentido, visa a gerar um ambiente dialógico respeitoso que acolha o dissenso como oportunidade de lerem a si e à/ao outra/o e de se reconhecerem neste espaço de aprendizagens, tal como defende Menezes de Souza (2011)MENEZES DE SOUZA, L. M. Para uma redefinição de letramento crítico: conflito e produção de significação. In: MACIEL, R. F.; ARAÚJO, V. de A. (org.). Formação de professores de línguas: ampliando perspectivas. Jundiai: Paco Editorial, 2011. p. 128-140.. A escuta sensível e os espaços de fala, discutidos por Silvestre (2017SILVESTRE, V. P. V. Colaboração e crítica na formação de professores/as de línguas: teorizações construídas em uma experiência com o Pibid . Campinas: Pontes Editores , 2017. 284 p.), são favorecidos neste trieiro por provocarem encontros de subjetividades. Há oportunidades para que as pessoas envolvidas no evento semiótico se deixem conhecer, compartilhem emoções, afetos, ideias e, caso desejado, possam (re/des)construir concepções e valores que nos fazem seres sociais.

Expanding repertoires - Expansão de repertórios: nesta etapa, busco tensionar os contornos dos saberes prévios para acomodarmos nova bagagem. É aqui que trago questões mais específicas sobre o gênero textual, suas funções, características e usos sociais, por exemplo. Mais que isso, é neste momento que comparamos diferentes exemplares desses textos e exploramos de maneira mais aprofundada seus atravessamentos e os efeitos de sentido que são gerados. Se trabalhamos com uma tira humorística, a título de ilustração, neste momento dissecamos os elementos semióticos que a compõem e estudamos seus modos de construção, as relações de poder que agem por meio da linguagem, a contextualização histórico-social necessária para entender a construção das figuras de linguagem/estilo (metáfora, metonímia, hipérbole) e de pensamento (ironia, sarcasmo, humor), a variedade linguística, aspectos formais, informais e estruturais das línguas (às vezes isoladas, às vezes em comparação - língua materna e língua adicional). O objetivo principal aqui é entrelaçar repertórios sociais, culturais, linguístico-estruturais, a fim de percebermos que a ampliação de repertórios linguísticos se dá na expansão de nossas zonas de conforto de entendimento e o que ocorre quando são tensionadas por meio do estudo sistemático, via questionamento, reflexão crítica e análise. No debate/nas conversas que ocorre/m na aula, é possível tensionar esses repertórios e se deslocar nas construções de sentido e, ao mesmo tempo, respeitar o dissenso e construir vivências éticas e plurais que formam para a cidadania.

Thinking over - Reflexões: este trieiro corresponde ao modo como podemos conectar o que foi tensionado, as descobertas e as aprendizagens ao nosso contexto próximo. O foco não é a resolução de conflitos ou a homogeneização de ideias. Ao contrário, é perceber de que modo podemos estender a compreensão que se tem sobre o tópico para as vivências pessoais, por exemplo. Em outras palavras, durante este momento de reflexões, somos convocadas/os a reconhecer e assumir a nossa responsabilidade por nossas ações, sejam elas ações verbais ou físicas, nossas escolhas por permanecer como estamos - e, assim, contribuir com a perpetuação da estrutura -, ou de buscar transformá-la, examinando interna e externamente quais são as nossas opções e as possibilidades de agência protagonista na mudança que queremos.

Bringing to life - Propostas de vivências: vejo esta etapa como um momento para compartilharmos o que aprendemos ao longo da discussão sobre o tópico selecionado, com a construção de um (ou mais) texto(s) multimodal(is) pela turma. Pode ser também um momento de compartilhar vivências prévias referentes ao tema que discutimos. Algumas vezes, uso este trieiro ao final de meus percursos didáticos - que podem durar uma ou várias semanas (o que determina o tempo é o ritmo das discussões, a dimensão do que exploramos em relação ao tópico, e o calendário acadêmico) - para entender o caminho percorrido pelas/os alunas/os ao longo das discussões. A proposta de vivências é agência discente em latência, porque as/os aprendizes se desafiam a construir sentidos e compartilhá-los com as/os colegas, explorando o modo como cada uma/um escreviveu o percurso. Costumo propor algumas ideias na intenção de despertar a criatividade, os sentidos, os afetos e o interesse da turma, com o intuito de provocar a curiosidade epistemológica14 14 Para Freire (2014), a curiosidade epistemológica aproxima o sujeito dos saberes formais e movimenta o desejo de aprender. Ela possibilita que questões problematizadoras sejam feitas sobre o objeto de aprendizagem a partir do contexto em que a/o aprendiz se insere. , defendida por Paulo Freire (2014FREIRE, P. Pedagogia da tolerância. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e terra, 2014. 399 p.). Contudo, a decisão do que compartilhar é sempre delas/es. É importante que, desde a concepção das propostas de vivências, a conexão entre o tópico do percurso didático, o contexto em que a atividade se realiza e as práticas sociais de linguagem estejam entrelaçados, porém de maneira a não restringir muito os modos de execução da atividade. Possibilito também que façam esta atividade sozinhas/os ou em pequenos grupos, para que se sintam à vontade para organizar a forma de compartilhamento das vivências ao longo do percurso. Percebo a construção da proposta de vivências como o momento em que todas/os trazem o que (des/re)construíram ao longo das discussões e apresentam suas reflexões para as/os colegas em textos multimodais. Negócio com a turma o prazo, as mídias e os suportes de construção textual: slides/cartões/bloco de notas para registrar as ideias exploradas em uma apresentação oral; diário narrativo online/impresso/à mão, entre outras possibilidades. O texto multimodal (oral, visual, sensorial, estático/dinâmico, sonoro, escrito, musical) ganha vida ao ser socializado com a turma. Durante o compartilhamento, os textos multimodais constroem sentidos também ao serem expostos, pois são ressignificados em conjunto. Algumas das propostas de construção de sentidos que tenho feito às/aos minhas/meus alunas/os incluem: a elaboração de pôsteres, cartazes, colagens, murais virtuais, entrevistas (em áudio/vídeo), rodas de conversa, postagens em blogs e redes sociais, narrativas, (re)contação de histórias, portfólios com produções imagéticas, verbais e sonoras. Tento incentivar que compartilhem também como se sentiram durante a produção do material e, como atuo em uma licenciatura, peço para que reflitam sobre como esta atividade poderia lhes ser útil como professoras/es.

Em Sabota (2021SABOTA, B. Esperança equilibrista: educação linguística crítica em busca de conexões no ensino remoto. XXIII Encontro de Professores de Inglês da APLIEMT, 6 ago. 2021. YouTube: APLIEMT. Disponível em: Disponível em: https://youtu.be/HzJa3K-usDo . Acesso em: 28 out. 2021.
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), no XXIII Encontro da APLIEMT, apresento o trajeto de uma aula de inglês utilizando um percurso didático que talvez possa trazer mais vida e cor às descrições e explicações que apresento nesta seção. Optei por não o registrar aqui para que quem me lê possa imaginar seus próprios caminhos. Mas sinta-se convidada/o para assistir à apresentação, que está disponível on-line. Há também outra demonstração de um percurso didático a partir do entrelaçamento dos tópicos cidadania, meio ambiente e preservação ambiental em Sabota et al. (2021SABOTA, B.; ALMEIDA, R.; MASTRELLA-DE-ANDRADE, M.; SILVESTRE, V. P. V. Educação linguística para uma atuação crítica e criativa: uma iniciativa transdisciplinar em aulas de inglês. Revista Humanidades e Inovação, v. 8, n. 43, p. 74-89, 2021.). Antes de finalizar, gostaria de reiterar que os trieiros são moventes e os percursos didáticos são únicos, pois dependem das subjetividades e de aspectos contingenciais para seus contornos. Assim, outros trieiros podem surgir ou desaparecer com o passar do tempo. Alguns desses mostrados aqui podem se tornar caminhos amplos, estradas por onde muitas/as aprendizes e docentes queiram também seguir. Outros podem deixar que a vegetação cerradeira os cubra e conte novas histórias, afinal, trieiros são caminhos em devir.

5 Considerações transitórias e não o fim da picada

Iniciei este texto com um poema de que gosto muito, relacionando a metáfora do caminho menos percorrido, aludido em The road not taken (a estrada não seguida), às minhas mudanças de rumo ao longo da carreira. Justifiquei essas escolhas por formarem a imagem de como revisito praxiologias durante a construção da proposta do percurso didático e de seus trieiros. Argumento que aulas, quando planejadas com as/os discentes, a partir de demandas locais, podem provocar fissuras no modo como a colonialidade se mantém. Entender a língua como prática social estudada a partir de repertórios múltiplos ajuda a combater a linguofobia e a promover a agência (docente e discente). Como professora e pesquisadora em uma licenciatura em Letras de uma universidade pública, localizada no estado de Goiás, venho ressignificando a cada dia o que conhecer/saber uma língua pode representar. Realizar este trabalho, enquanto estudamos uma língua adicional, como o inglês, a meu ver, reivindica um lugar ao sol como falantes do idioma. Pondero constantemente sobre que sentidos são construídos e como nos vemos nesses sentidos, em que medida corroboramos a estrutura perversa que exclui e segrega pessoas e, ainda mais importante, de que forma podemos (inter)romper o ciclo de manutenção dessas violências.

Não é suficiente refletir apenas sobre como chegamos às licenciaturas, isto é, sobre como os acessos a bens culturais muitas vezes nos são negados, como a depreciação econômica e de nossa profissão nos empurra cada vez mais para a base da pirâmide social, como a formação docente é negligenciada pelos governos. Cabe também pensar em nossas responsabilidades em relação a como saímos desses cursos de formação e que rupturas propomos quando retornamos a eles como docentes. Pensar sobre como temos acesso ao inglês e refletir sobre a possibilidade de sermos construtoras/es de sentido (e não meras/os consumidoras/es) neste idioma me instiga a pensar em modos outros de trabalhar com esta língua e torná-la menos estrangeira e mais adicional.

Por isso, tenho me dedicado a pensar em caminhos outros para construir as aulas de inglês nas turmas em que leciono. Proponho o percurso didático não como uma rota única que venha a suplantar outras construções de aula, mas como uma alternativa que evidencie a agência das/os aprendizes para assumir protagonismos na Educação Linguística Crítica-decolonial. Vejo-o também como um modo de trazer nossos corpos e sentidos - com nossos atravessamentos e subjetividades - para a aula de línguas. Entendo que, por meio do percurso didático, revisitamos nossa cultura, nossos valores, nossos saberes e aprendemos a nos colocar no mundo também em outra língua. Por isso, os trieiros que compõem o percurso são estreitos, mas potentes. Eles nos interpelam a considerar modos de pensar e agir para o engajamento com a educação e a perceber a língua como prática social. Ao fazer as escolhas pelos tópicos e materiais de uso didático, assumimos nossa agência docente/discente. Ao trazer perguntas, propostas de vivências, estudos em conjunto das práticas sociais que produzem textos, as/os agentes se colocam nos eventos semióticos e escolhem os caminhos de sua formação. Destaco que minhas aulas têm se revelado espaços de compartilhamento de histórias de vida e de pequenas mudanças que, somadas, podem se desdobrar em transformações significativas, como discutimos em Sabota et al. (2021SABOTA, B.; ALMEIDA, R.; MASTRELLA-DE-ANDRADE, M.; SILVESTRE, V. P. V. Educação linguística para uma atuação crítica e criativa: uma iniciativa transdisciplinar em aulas de inglês. Revista Humanidades e Inovação, v. 8, n. 43, p. 74-89, 2021.). Em nossas aulas, temos tratado de tópicos que afetam as nossas histórias e, por isso, fazem sentido.

É hora de finalizar este estudo, mas registro que não é o fim da picada15 15 “Fim da picada” é uma expressão coloquial que representa o fim do caminho ou “o ponto além do qual já não se pode ou não se quer avançar” (Rodrigues, 2013, para. 7). . Ainda há muito chão para desbravar. Assim, deixo o convite para quem quiser seguir essas pegadas ou os votos de boa sorte para quem desejar abrir novos trieiros.

Agradecimentos

Como forma de reconhecimento e respeito: às/aos alunas/os que inspiram e co-constroem esses percursos comigo, auxiliando-me no meu próprio processo de (re/des)construção constante; ao pesquisador e às pesquisadoras que me ajudaram na construção desta reflexão por meio de diálogos, leitura de versões prévias deste texto e constantes trocas praxiológicas. Ricardo Regis de Almeida, Viviane Pires Viana Silvestre, Valéria Rosa-da-Silva, Julma Dalva Vilarinho Pereira Borelli, Laryssa Paulino de Queiroz Sousa e Mariana Mastrella-de-Andrade, meu carinhoso obrigada! Cada uma/um de vocês faz parte desta construção de sentidos.

Referências

  • ADICHIE, C. N. The Danger of a Single Story. TED Global Talks, jul. 2009. Disponível em: Disponível em: http://www.ted.com/talks/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_story Acesso em: 09 abr. 2021.
    » http://www.ted.com/talks/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_story
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  • 1
    Minha tradução para “context was treated as a container of language”.
  • 2
    Para o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, “picada” é um “atalho aberto com recurso a um instrumento de corte. Caminho estreito por entre o mato” (https://dicionario.priberam.org/picada. Consultado em: 03 nov. 2021).
  • 3
    Grupo de estudos coordenado pelas professoras Dra. Rosane Rocha Pessoa (UFG) e Dra. Viviane Pires Viana Silvestre (UEG), que reúne pesquisadoras/es que trabalham com a Educação Linguística Crítica. Atualmente o grupo estuda a decolonialidade em sua relação com a educação linguística, sobretudo para pensar a sua repercussão em aulas de inglês e na formação de professoras/es de línguas.
  • 4
    Segundo o Dicionário Informal, “trieiro” é sinônimo de “caminho estreito aberto por passagens sucessivas no meio mato” (https://www.dicionarioinformal.com.br/trieiro/. Consultado em: 03 nov. 2021). Inicialmente eu utilizei a palavra “trilha” para desenhar os caminhos do percurso que ora apresento. No entanto, em diálogo com as colegas Viviane Pires Viana Silvestre (UEG) e Valéria Rosa da Silva (UEG), optei por usar trieiro por entender que este termo - mais coloquial e mais local - ajuda a compor a metáfora no sentido decolonial que desejo para esta empreita. Percebo-o como algo construído com as pessoas envolvidas e que rompe barreiras, como discuto adiante no texto.
  • 5
    Minha tradução para “challenge the hegemony and universality of capitalism, Euro-centred modernity and the Western civilizatory logic”.
  • 6
    A autora marca seu nome intencionalmente com letras minúsculas para reiterar que suas ideias são tão relevantes quanto quem as produz. Portanto, respeito aqui sua manifestação política e o transcrevo também em letras minúsculas.
  • 7
    Marco intencionalmente o gênero masculino aqui para reiterar que foram, de fato, os homens que perpetraram tais violências.
  • 8
    Dinâmicas são técnicas desenvolvidas por docentes durante a aula de idiomas com a função de praticar a língua, de modo a fixar o conteúdo e as funções linguísticas em pauta (Larsen-Freeman, 2000LARSEN-FREEMAN, D. Techniques and Principles in Language Teaching. Oxford: Oxford University Press, 2000. 189 p.). Por trabalharem com sentidos definidos aprioristicamente e incentivar a prática (em detrimento da reflexão), elas apresentam-se como inadequadas para esta proposta de trabalho.
  • 9
    Minha tradução para o trecho “[…] guided by a concept of learning as a space of sharing and co-construction of knowledge, identity performances and discursive clashes that make room for the articulation of complex analyses of social life”.
  • 10
    Minha tradução para “[…] possibilities of other modes of being, thinking, knowing, sensing, and living”.
  • 11
    Para Paulo Freire (2001)FREIRE, P. A importância do ato de ler. 41. ed. São Paulo: Cortez, 2001. 87 p., a leitura da palavramundo é aquela que integra de modo indissociável os dois termos justapostos que a compõe. Por isso, mantenho no texto a grafia usada pelo autor.
  • 12
    Tomo por evento semiótico os encontros de construção de sentidos que reconhecem a multimodalidade e o contexto como agentes neste processo. Inspiro-me na explicação de Luiz Martins Lima Neto (2017LIMA NETO, L. M. de. Ensino crítico de línguas: reprodução social e resistência em uma sala de aula de língua inglesa. 2017. 218 f. Dissertação (Mestrado em Letras e Linguística) - Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2017., p. 41) de que “o significado é construído através de recursos de todos os tipos (símbolos, ícones e imagens); de que as línguas/linguagens e os recursos semióticos criam significado através de modalidades diferentes, tais como a oral e a visual; e de que os recursos semióticos estão embutidos em ambientes físicos, alinhando participantes, objetos, corpos e contextos para criar significado”.
  • 13
    Minha tradução para “epistemological and ontological concerns tend to have a systemic orientation that highlights the connections between history, power relations, the politics of knowledge production, and the uneven distribution of wealth, labour, and the perceived value of life (human and not)”.
  • 14
    Para Freire (2014)FREIRE, P. Pedagogia da tolerância. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e terra, 2014. 399 p., a curiosidade epistemológica aproxima o sujeito dos saberes formais e movimenta o desejo de aprender. Ela possibilita que questões problematizadoras sejam feitas sobre o objeto de aprendizagem a partir do contexto em que a/o aprendiz se insere.
  • 15
    “Fim da picada” é uma expressão coloquial que representa o fim do caminho ou “o ponto além do qual já não se pode ou não se quer avançar” (Rodrigues, 2013RODRIGUES, S. De onde vem a expressão ‘fim da picada’? Veja, 15 ago. 2013. Disponível em: Disponível em: https://veja.abril.com.br/blog/sobre-palavras/de-onde-vem-a-expressao-fim-da-picada/ . Acesso em: 27 out. 2021.
    https://veja.abril.com.br/blog/sobre-pal...
    , para. 7).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    08 Nov 2021
  • Aceito
    31 Ago 2023
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