RESUMO
Considerando comentários críticos relacionados à ausência de tratamento de questões étnico-raciais negras por parte de Machado de Assis em suas obras, o presente estudo pretende aventar hipóteses relacionadas a estratégias de representação literária de personagens e de estruturação de temas e tramas, utilizadas pelo autor, que podem revelar outras abordagens possíveis no tocante à negritude e à branquitude retratadas narrativamente. Partindo da análise do conto “A causa secreta”, de Machado de Assis, visamos ainda refletir sobre as diferentes representações da figura do capoeirista na história e na literatura brasileira. Tem-se como hipótese que a representação machadiana de capoeiristas no conto selecionado, embora sutil, acaba por elevá-los à condição de personagem histórico-social coletivo de poder numa trama em que os protagonistas são personagens brancos, de alto poder aquisitivo, marcados e pautados por diferentes patologias. A pesquisa se apoiará nas concepções de dispositivo de racialidade, de Sueli Carneiro, de pacto de branquitude, de Cida Bento, de união a partir de um inimigo comum, de Frantz Fanon e de contextualização histórica da capoeira, de Letícia Vidor Reis. Quanto à representação literária de personagens, nos apoiaremos nos estudos sobre a personagem de ficção, conforme Antonio Candido, e polifonia, conforme Mikhail Bakhtin.
PALAVRAS-CHAVE: Machado de Assis; representação; negritude; capoeira; personagens negros
ABSTRACT
Considering critical comments related to the lack of treatment of black ethnic-racial issues by Machado de Assis in his works, the present study intends to propose hypotheses related to strategies for literary representation of characters and structuring of themes and plots, used by the author, which can reveal other possible approaches regarding blackness and whiteness portrayed narratively. Starting from the analysis of the short story “A causa secreta”, by Machado de Assis, we also aim to reflect on the different representations of the figure of the capoeirista in Brazilian history and literature. The hypothesis is that Machado's representation of capoeiristas in the selected story, although subtle, ends up elevating them to the status of a collective historical-social character of power in a plot in which the protagonists are white characters, with high purchasing power, marked and guided by different pathologies. The research will be based on the conceptions of raciality device, by Sueli Carneiro, of pact of whiteness, by Cida Bento, of union based on a common enemy, by Frantz Fanon and historical contextualization of capoeira, by Letícia Vidor Reis. As for the literary representation of characters, we will rely on studies on fictional characters according to Antonio Candido, and polyphony according to Mikhail Bakhtin.
KEYWORDS: Machado de Assis; representation; blackness; capoeira; black characters
“(...) Foi uma malta de capoeiras. Eu vinha do quartel de Moura, onde fui visitar um primo, quando ouvi um barulho muito grande, e logo depois um ajuntamento. Parece que eles feriram também a um sujeito que passava e que entrou por um daqueles becos; mas eu só vi a este senhor, que atravessava a rua no momento em que um dos capoeiras, roçando por ele, meteu-lhe o punhal”.
“A causa secreta”, Machado de Assis.
Preâmbulos
Em recente estudo sobre as crônicas de João do Rio - publicadas em periódicos e revistas ao final do século XIX e início do XX e posteriormente compiladas no livro A alma encantadora das ruas -, um dos aspectos que chama a atenção, sob a ótica atual, é o fato de um autor negro pouco enfatizar questões relacionadas à negritude. Uma das hipóteses depreendidas desse estudo mencionado busca explicar essa ausência em função da configuração dos campos simbólicos de poder em que o autor atuava, o jornalístico e o literário, para compreender que as publicações atendiam a linhas editoriais específicas e a públicos igualmente delimitados: em geral pessoas brancas, de classe média e alta, letradas e inseridas em um contexto que buscava se moldar aos ideais europeus de progresso e de modernização (a Belle Époque carioca). Os textos de João do Rio oferecem farta descrição de práticas culturais, sociais, econômicas e de agrupamentos humanos daquele momento histórico, mas poucas menções à questão negra. Além disso, se analisados sob prisma contemporâneo, poderíamos observar, ainda, que o que Cida Bento nomeia enquanto “pacto da branquitude” (Bento, 2022) vigorava nas áreas de atuação implicando demandas que possivelmente delineavam ou mesmo forjavam pautas, discursos e debates. Para se inserir nesse campo de poder regido por regras tácitas de embranquecimento, autores negros provavelmente necessitavam se submeter a elas se quisessem neles se inserir.
Outro autor - consagrado como um dos mais importantes da literatura brasileira -, Machado de Assis, tem sido hoje citado como um escritor negro embranquecido pelo campo literário que pouco desdobrou em seus contos, crônicas, peças e romances questões referentes à negritude:
Já a posição de Machado de Assis tem merecido considerações especiais. Há quem defenda que o fato de um mulato ter se tornado um dos maiores, senão o maior dos escritores brasileiros, é altamente significativo para a causa da afirmação da etnia, embora não se encontre em sua obra ficcional uma assunção ideológica nesse sentido. Outros criticam a ausência em seus textos de problemática ou temática negra positivamente dimensionada e vergastam o seu branqueamento, numa atitude tão racista quanto a que discrimina os negros. Outros mais consideram que a sua crítica mordaz à sociedade brasileira de seu tempo revela um modo de participação que o vincularia a uma certa literatura-denúncia. (Proença Filho, 2004, p. 172).
Reconhecendo que Machado tenha tratado de temáticas étnicas e raciais em alguns de seus contos, ainda assim, Domício Proença Filho assevera a ausência de protagonismo negro na obra machadiana:
De minha parte, entendo que a literatura machadiana é indiferente à problemática do negro e dos descendentes de negro, como ele. Mesmo os dois contos que envolvem escravos, ‘O caso da vara’ e ‘Pai contra mãe’, não se centralizam na questão étnica, mas no problema do egoísmo humano e da tibieza de caráter. Os demais tipos negros ou mestiços participam como figurantes em histórias que, no nível do conteúdo manifesto ou do realismo de detalhe, constituem reflexo da realidade social que pretendem retratar. (Proença Filho, 2004, p.172).
Buscando elementos que possam corroborar ou refutar a afirmação de que Machado de Assis não tenha abordado aspectos da negritude em seus contos, embora não de modo explícito, o presente estudo pretende, a partir de análise do conto “A causa secreta”, tecer considerações a respeito de possíveis estratégias literárias machadianas de estruturação que acabam lidando com problemáticas referentes à branquitude e à negritude de maneira aparentemente tangenciada, mas potente. Assume-se, inclusive, que se trata de uma perspectiva contemporânea, um olhar anacrônico e distanciado temporal e espacialmente da feitura e publicação do conto. A hipótese é que as representações de negritude e branquitude presentes no conto analisado, apesar de não colocarem como protagonistas personagens brancos, não só dão conta de salientar aspectos raciais fulcrais do contexto brasileiro, como o fazem de modo crítico e enfático, embora escamoteado.
“A causa secreta”
Publicado originalmente em 1885, no jornal Gazeta de Notícias, o conto “A causa secreta” também faz parte do livro Várias histórias (1896). Sua trama estrutura-se a partir de um núcleo protagonizado por três personagens principais - Fortunato, Garcia e Maria Luísa -, que também consistirá em triângulo amoroso aos moldes machadianos realistas. O enredo inicia-se in media res, com um narrador onisciente conduzindo nosso olhar através da história por ele narrada quando os personagens principais, segundo ele, “já estão mortos e enterrados” (Assis, 2002, p. 183).
A fortuna crítica sobre o conto1 geralmente ressalta a violência e o sadismo, personificados na figura do personagem Fortunato, “homem, capitalista, morador do Catumbi” (Assis, 2002, p. 185), mas também presente no personagem Garcia, um estudante de Medicina que se torna médico e sócio de Fortunato. Ambos se veem pela primeira vez nas escadarias da Santa Casa, quando Garcia ainda estudava. Na segunda vez em que se encontram causalmente, Garcia vê Fortunato em um teatro afastado do centro da cidade, enquanto no palco há um “dramalhão cosido a facadas” (Assis, 2002, p. 184). Quando o drama termina e vem em seguida uma farsa, Fortunato vai embora do teatro e é seguido por Garcia, que percebe que o outro vai dando “begaladas” nos cães da rua. A terceira vez em que veem é quando um funcionário do arsenal de guerra é esfaqueado por uma malta de capoeiras, ambos tentam acudi-lo. Garcia é vizinho do esfaqueado e percebe que Fortunato acompanha o convalescente chegando a cuidar dele por um longo período como se o conhecesse, embora fosse um completo estranho. Quando o homem se vê curado, Fortunato desaparece e, quando o cuidado aparece em sua casa para lhe agradecer a assistência, Fortunato o trata mal, desdenha dele. A quarta vez em que se encontram guarda um intervalo de distância: Garcia já se formara médico e Fortunato se casara com a bela e jovem Maria Luísa. Garcia recebe um convite para jantar na casa de Fortunato e lá conhece sua esposa. Os encontros passam a se tornar rotineiros e, ao mesmo tempo em que Garcia passa a nutrir interesse - quiçá amor - por Maria Luísa, Fortunato propõe uma sociedade para fundarem juntos uma casa de saúde. Fortunato, o capitalista, entrará com a fortuna, o capital, e Garcia, médico, com a Ciência. A sociedade é firmada alegoricamente, selando uma aliança entre Ciência e Capital. Garcia recebe, então, um pedido de Maria Luísa para que intervenha nos “experimentos” do marido, asseverando que o mesmo leva gatos e cães para os “rasgar” em casa. Garcia estranha o pedido e o comportamento. Mais, percebe que Maria Luísa está ainda mais frágil e pálida. Com o passar do tempo, passa a tossir e a emagrecer. Disposto a falar seriamente com Fortunato, Garcia vai um dia até sua casa e presencia uma cena-ápice do conto: Fortunato, em seu gabinete, tortura um pobre rato cortando-o e chamuscando-o numa chama acesa. Essa revelação - a Garcia e ao leitor - é um dos pontos culminantes, mas não o único. A partir de então, volta-se à cena inicial, narrada em referência ao silêncio que os acompanha logo após a cena do rato. Dali em diante, Maria Luísa adoece e morre tísica, sendo acompanhada de perto por seu esposo e talvez algoz. Durante o velório, no entanto, há uma segunda cena-revelação, um possível desdobramento das causas secretas. Fortunato adormece na sala contígua ao cômodo em que está o corpo velado de Maria Luísa enquanto Garcia se aproxima dela e não consegue conter suas “lágrimas, que vieram em borbotões, lágrimas de amor calado, e irremediável desespero” (Assis, 2002, p. 191). Enquanto isso, Fortunato, já acordado, tem um último regozijo diante do desespero e da tristeza de Garcia: “Fortunato, à porta, onde ficara, saboreou tranquilo essa explosão de dor moral que foi longa, muito longa, deliciosamente longa” (Assis, 2002, p. 191).
O desfecho do conto fornece uma outra cena-clímax do conto por dois motivos, além de confirmar o sadismo do personagem Fortunato. Ao descrever a dor moral do personagem Garcia, o narrador abre a possibilidade de identificarmos também nele - e não apenas em Fortunato - uma patologia até então encoberta pelo sadismo do outro: a obsessão em analisar, em observar, pesquisar, que é própria de alguém inserido no campo médico ou científico: “(...) O Garcia, esse moço possuía me germe a faculdade de decifrar os homens, de decompor os caracteres, tinha o amor da análise, e senti o regalo, que dizia ser supremo, de penetrar muitas camadas morais até apalpar o segredo de um organismo” (Assis, 2002, p. 186). No entanto, no caso do personagem Garcia, ao recuperarmos as passagens em que ele e Fortunato se encontram, podemos constatar que este o segue após a sessão de teatro também para satisfazer sua curiosidade analítica (quem segue um completo desconhecido pelas ruas?). Posteriormente, Garcia também acompanha o sofrimento, o adoecimento e a morte de Maria Luísa e nada faz por ela, embora a amasse, ou seja, se num primeiro momento poderíamos enxergar em Garcia o estereótipo do mocinho heroico que sofre por um amor proibido, num segundo momento, podemos repensá-lo enquanto personagem igualmente patologizado que prefere manter sua sociedade com Fortunato (Ciência e Capital) a salvar a mocinha das mãos do “vilão” (o Amor é deixado para morrer ante a aliança firmada entre Capital e Ciência).
Há, ainda, uma outra camada interpretativa relacionada ao narrador onisciente, especialmente ao final da narrativa, no discurso indireto livre “Fortunato, à porta, onde ficara, saboreou tranquilo essa explosão de dor moral que foi longa, muito longa, deliciosamente longa” (Assis, 2002, p. 191). O advérbio “deliciosamente” parece ressaltar a ambiguidade da fala (do personagem Fortunato? Do narrador?) fazendo com que nós, leitores, percebamos o sadismo também no narrador, quiçá em nós mesmos, na medida em que, diante das cenas de dor e tortura, ainda que sabidamente fictícias, não fechamos o livro, pelo contrário, seguimos lendo, talvez com maior curiosidade.
Apresentadas as patologias das personagens - e até do público leitor - envolvidas, podemos destacar que os protagonistas deste conto machadiano são todos patológicos, adoecidos e passíveis de crítica. Protagonistas e narrador (e público leitor, em especial o do século em que foi escrito o conto) provavelmente brancos, pertencentes às classes média e alta, letrados, ricos. Nosso núcleo principal gira, portanto, em torno da barbárie, da crueldade, da omissão, das patologias, das fragilidades e da conivência com as violências físicas e simbólicas.
Às margens do protagonismo literário
A maior parte das análises que compõem a fortuna crítica sobre esse conto se restringem ao núcleo e à temática principais, ou seja, ao núcleo protagonista e à questão do sadismo. Machado de Assis, no entanto, optou por manter no enredo personagens secundários - alguns quase figurativos - que gostaríamos de olhar e estudar com mais cuidado tendo em vista nosso propósito de pesquisa. Há na trama, como personagens não principais, o empregado do arsenal de guerra, que é esfaqueado (Assis, 2002, p. 184); um “preto” que o servia (Assis, 2002, p. 184); uma malta de capoeiras (que supostamente esfaqueou o empregado do arsenal); uma parenta de Maria Luísa, que “a ajudara a morrer” (Assis, 2002, p. 190). Podemos incluir, ainda, os doentes “cuidados” por Fortunato na casa de saúde e os animais torturados, em especial o rato, que não serão aqui analisados.
A polifonia esmiuçada por Mikhail Bakhtin (Bakhtin, 2010), mediante análise da obra Crime e castigo, de Fiódor Dostoiévski, se transformou em importante conceito utilizado em análises literárias e discursivas para avaliar a equidade com que enredos, personagens, falas e núcleos são tratados em textos e obras. O fator complexidade e o espaço dado a diferentes personagens e núcleos no interior da narrativa estão correlacionados diretamente com a premissa polifônica. Em chave contrária, mas não diametralmente oposta, poderíamos afirmar que no conto aqui estudado a polifonia, em primeira camada, parece não estruturar a trama. Isso não só pelo fato do gênero mais enxuto (conto) privilegiar um único núcleo principal, mas também por ser rapidamente identificável tal núcleo nesse exemplo machadiano. No entanto, aventamos aqui a possibilidade de haver importância e relevo no que está às margens desse primeiro núcleo mais evidente, o que poderíamos considerar enquanto um “núcleo histórico”, ou seja, um núcleo que, apesar de não protagonizar o enredo, deixa o leitor entrever um determinado regime de historicidade (Hartog, 2013) não menos importante que a própria narrativa em destaque e em diálogo com ela.
Ao manter no conto “um preto” que servia outro personagem e uma “malta de capoeiras”, quase como um pano histórico de fundo ou como personagens coletivos, Machado parece demarcar - para quem tiver olhos de ver - um território limítrofe entre o ficcional e o factual, entre lugar e não lugar, entre sanidade e loucura, entre negritude e branquitude.
Quando, mediante a leitura de diferentes camadas interpretativas, depreendemos do enredo narrativo um núcleo de protagonistas brancos marcados essencialmente por patologias, crueldades e vulnerabilidades, o que está fora desse mesmo núcleo pode ser compreendido como o que há de mais lúcido ou são, ainda que às margens. Tanto o trabalho exercido pelo personagem preto quanto o enfrentamento e os embates travados pela malta de capoeiras surgem como contraponto aos adoecidos personagens principais.
Em uma obra literária, geralmente romances, um personagem costuma desvelar princípios e características mais agudas, principalmente por receber o tratamento próprio da ficção; é o que Antonio Candido nomeia como “homo fictus”, dotado de momentos específicos de “iluminação”2 que ilustram ao leitor uma gama intensa de valores ou de cosmovisões:
O Homo fictus é e não é equivalente ao Homo sapiens, pois vive segundo as mesmas linhas de ação e sensibilidade, mas numa proporção diferente e conforme avaliação também diferente. (...) Do ponto de vista do leitor, a importância está na possibilidade de ser ele conhecido muito mais cabalmente, pois enquanto só conhecemos o nosso próximo do exterior, o romancista nos leva para dentro do personagem. (Candido, 2014, p. 40).
Já os personagens secundários citados aqui carecem desse tratamento e, talvez por esse motivo, passem despercebidos a leituras menos atentas. No entanto, justamente por prescindirem do detalhado tratamento ficcional - e pelo fato de consistirem em representações literárias de personagens coletivos que realmente existiram (trabalhadores pretos, capoeiristas) -, incidem com maior força quando cotejamos obra literária e contexto histórico. Quando o fazemos, as lacunas deixadas pela ausência de tratamento literário são preenchidas pelos próprios fatos e sujeitos históricos, fazendo com que outras camadas interpretativas sejam desdobradas da obra. A figura do trabalhador preto ou negro, mais recorrente em outras narrativas, inclusive machadianas, não será nosso foco aqui, mas sim a da malta de capoeiras, pouco presente na literatura brasileira de modo geral.
Representações histórico-sociais e literárias da capoeira e dos capoeiristas
Letícia Vidor de Souza Reis elabora aspectos relacionados à condição dos capoeiristas ao longo dos séculos,3 ressaltando que a capoeira, especialmente a partir do século XIX, pode ser considerada um fenômeno urbano:
(...) a capoeira era um fenômeno urbano. Em torno da década de 1810, os jovens escravos africanos já eram capoeiras aficionados. O castigo infligido aos escravos presos por capoeira era, em média, de duzentos açoites. Entre os principais códigos de identificação dos capoeiras escravos estavam o assobio, a cabeçada, o uso de fitas de cores vermelha e amarela - as quais eram, em geral, sinais de pertencimento a um determinado grupo - e o chapéu. (Reis, 2010, p. 19).
Os capoeiristas mantinham uma íntima relação com a Monarquia (Chalhoub apudReis, 2010, p. 42), além de serem constantemente convocados - não sem oferecerem resistência à obrigatoriedade imposta - a fazer parte das forças militares em enfrentamentos e guerras (como a Guerra do Paraguai, 1860-1870). Também a Guarda Negra contra republicanos na Sociedade dos Ginastas (episódio ocorrido em novembro de 1888 que resultou em avarias e mortes aos republicanos) contava com capoeiristas em seus quadros de forças paramilitares. Entretanto, havia, também da parte de capoeiristas, insurgências dentro das Forças Armadas.4
Transitando pelos estereótipos de mandingueiro/malandro e do criminoso/subversivo, podemos observar que os capoeiras eram constantemente submetidos a cooptações diversas. Embora essas representações sejam as mais firmadas no imaginário brasileiro e na literatura, Reis assevera que os capoeiristas eram em sua maioria trabalhadores:
Embora as representações sociais sobre os capoeiras de fins do século XIX os associem a vadios, vagabundos ou gatunos, a análise do registro das profissões declaradas pelos capoeiras revela-nos outra realidade. (...) Bretas (1991) (...) [conclui] que a maioria dos capoeiras era composta por: ‘artesãos, vendedores ambulantes, empregados nos transportes e serviços urbanos - muitos deles sem horário e trabalhando nas ruas, império da capoeira, como os muitos vendedores de folhas presos em 1885 ou os cocheiros de 1890. (Reis, 2010, p. 24).
A criminalização da capoeira (em 11 de outubro de 1890, artigo 402, “Dos vadios e capoeiras”)5 contribui para que os traços de marginalidade, de ilegalidade e de crime se fixem nos praticantes da luta. Sob o prisma de hoje - e considerando conceitos já pavimentados por diferentes autores - poderíamos considerar que essa criminalização faz parte do projeto de atuação do biopoder (Carneiro, 2023)6 e da necropolítica (Mbembe, 2019) no contexto brasileiro.
Mais especificamente sobre as maltas de capoeiras do século XIX, eram chamadas por nomes diversos7 e consistiam em grandes agrupamentos, distribuídos por diferentes freguesias e bairros da cidade do Rio de Janeiro:
Embora os dados estatísticos possam às vezes passar a impressão de que os capoeiras estavam em geral atomizados e dispersos, a leitura de alguns cronistas da época revela a surpreendente organização dos capoeiras em maltas. Há referências esparsas à existência destes grupos ao longo de todo o século 19. (...) A malta Cadeira da Senhora ficava na freguesia de Sant’ Anna; a Três Cachos, na freguesia de Santa Rita; a Franciscano, na freguesia de São Francisco de Assis; a Flor da Gente na freguesia da Glória; a Espada, no Largo da Lapa; a Guaiamu, na Cidade Nova; a Monturo, na Praia de Santa Luzia, dentre outras. (Reis, 2010, p. 27).
Ainda sobre o modus operandi das maltas, seria interessante salientar suas diferenças e enfrentamentos particulares - as maltas constantemente divergiam e lutavam entre si - e os “ajuntamentos” coletivos ou a união em torno de um fim em comum: “(...) a despeito de todas as suas diferenças, as maltas uniam-se quando o alvo maior era o inimigo comum, ou seja, o poder escravista, condensado ora na pessoa do proprietário de escravos, ora nas instituições vinculadas ao aparelho estatal” (Reis, 2010, p. 48).
Essa capacidade elástica de, ao mesmo tempo, travarem batalhas entre si e de se unirem quando se viam ameaçados por um inimigo comum maior nos lembra o pacto da branquitude analisado por Cida Bento,8 mas - como operado e acordado por negros capoeiristas - no seu avesso: um pacto da negritude. Frantz Fanon, em Os condenados da terra, ao avaliar o contexto de luta dos colonizados de Angola pela sua independência, chama a atenção para o constante estado de alerta em que devem se encontrar os que estão submetidos à colonização, também salientando aspectos que unem os antigos adversários em torno de um inimigo mais forte e mais necessário de ser combatido:9
Tribos historicamente rivais fazem as pazes e, com alegria e lágrimas, prometem se socorrer a se ajudar. No ombro a ombro fraterno, na luta ramada, os homens se juntam aos inimigos de ontem. (...) Cada vilarejo descobre-se agente e intermediário. A solidariedade intertribal, a solidariedade entre vilarejos, a solidariedade nacional se revelam primeiramente na multiplicação dos golpes contra o inimigo. (Fanon, 2022, p. 130).
Algumas considerações
A estruturação literária de um núcleo de personagens brancos, pertencentes a uma camada socioeconômica favorecida que, no entanto, é composta por seres patológicos e com interesses ambíguos e escusos, expoentes e protagonistas alegóricos de uma sociedade adoecida, pode sugerir - pela secundarização na representação ficcional - que os personagens negros não faziam parte desse círculo que perpetua a fraqueza, o sadismo e a omissão representados respectivamente pelos personagens Maria Luísa, Fortunato e Garcia, no conto machadiano “A causa secreta”. Além disso, apresentar um personagem-coletivo, a malta de capoeiras, que esfaqueia um personagem relacionado ao arsenal de guerra parece sugerir um poder que emerge das margens, das franjas do instituído, seja literária ou historicamente.
Por intermédio da análise da estruturação narrativa dialética branca-negra (protagonismo cruel - marginalidade de resistência e enfrentamento à crueldade imposta), portanto, as diferentes camadas do conto estudado podem nos fazer repensar os questionamentos sobre a ausência de tratamento acerca da negritude por parte de Machado de Assis, sugerindo que essa abordagem não só tenha sido contemplada como talvez tenha ocorrido através de estratégias literárias que lidam com o entrelugar ocupado pelo negro no contexto colonial brasileiro. Pela contraposição ausência-presença, pelo protagonismo-marginalidade marcados na ficção e na história brasileira é possível entrever tanto os pactos da branquitude quanto os pactos da negritude, com este último ressaltando os enfrentamentos por parte da população negra.
Referências
- ASSIS, Machado de. Os melhores contos de Machado de Assis São Paulo: Global, 2002.
- BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.
- BENTO, Maria Aparecida da Silva. O pacto da branquitude São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
- CANDIDO, Antonio (org.). A personagem de ficção São Paulo: Perspectiva, 2014.
- CARNEIRO, Sueli. Dispositivo de racialidade - a construção do outro como não ser como fundamento do ser Rio de Janeiro: Zahar, 2023.
- FANON, Frantz. Os condenados da Terra Rio de Janeiro: Zahar, 2022.
- HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.
- MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte São Paulo: n-1 Edições, 2019.
- PARRINE, Raquel. A partilha secreta do segredo: uma discussão de "A causa secreta" através de sua fortuna crítica. Machado Assis em Linha, v. 9, n. 19, 2016.
- PROENÇA FILHO, Domício. A trajetória do negro na literatura brasileira. Estudos Avançados, v. 50, n. 18, p. 161-193, 2004.
- REIS, Letícia Vidor de Sousa. O mundo de pernas para o ar: a capoeira no Brasil Curitiba: CRV, 2010.
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“Em ‘A causa secreta’, Machado de Assis narra a amizade de dois homens, Fortunato e Garcia, marcada por encontros fortuitos e um cenário de adultério e violência. A fortuna crítica em volta do conto desafia a revelação apresentada pelo narrador e mostra horizontes não contemplados pela mente do analista: Paul Dixon ressalta a função do olhar que recai sobre os eventos; Abel Barros Baptista se debruça sobre o papel do analista; Silviano Santiago desconfia das verdadeiras motivações dos encontros fortuitos; Baptista, outra vez, relaciona a arbitrariedade da solução do relato com a arbitrariedade da construção do conto; e Eliane Robert Moraes investiga as conexões entre a prosa machadiana e a do Marquês de Sade. Esse movimento de desconfiança mimetiza a crise do narrador em geral, e a do narrador machadiano em particular, mas também aponta para o segredo da alteridade.” (Parrine, 2016, s/p).
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“Muitas vezes (as personagens) debatem-se com a necessidade de decidir-se em face de colisão de valores, passam por terríveis conflitos e enfrentam situações-limite em que se revelam aspectos essenciais da vida humana: aspectos trágicos, sublimes, demoníacos, grotescos ou luminosos. Estes aspectos profundos, muitas vezes de ordem metafísica, incomunicáveis em toda a sua plenitude através do conceito, revelam-se, como num momento de iluminação, na plena concreção do ser humano individual.” (Rosenfeld apudCandido, 2014, p. 45).
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3
“A existência da capoeira parece remontar aos quilombos brasileiros da época colonial, quando os escravos fugitivos, para se defenderem, faziam do próprio corpo uma arma. Não há indicações seguras de que a capoeira, tal qual a conhecemos no Brasil ainda hoje, tenha se desenvolvido em qualquer parte do mundo. Como não existem pesquisas históricas a respeito da capoeira entre os séculos 16 e 18, não é possível reconstruirmos o processo que levou ao seu deslocamento do campo à cidade, o que deve ter acontecido por volta do começo do século 19, pois datam desse período as primeiras referências históricas a respeito dos capoeiras urbanos.” (Reis, 2010, p. 17).
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4
“O recrutamento forçado para o serviço militar, incrementado com a Guerra do Paraguai, que custou a vida de milhares de negros, foi um dos expedientes de que se serviu a Monarquia para livrar-se dos elementos considerados indesejáveis, dentre os quais, os capoeiras. No entanto, há vários relatos de capoeiras que de dentro da ordem a corroíam. Na documentação jurídica abundam ocorrências onde aparecem policias (civis e militares), bombeiros ou membros da Guarda Nacional, do Exército e da Marinha que eram capoeiras. Às vezes, em momentos de conflito com a polícia estes capoeiras alinhavam-se ao lado de seus companheiros civis. Este foi o caso de Felisberto do Amaral, alistado na Guarda Nacional, que segundo requerimento do chefe de polícia do Rio, em 1859, deveria ser transferido para o posto de praça no Exército, visto que: ‘(...) é muito perigoso, e, reconhecido como chefe dos capoeiras que se reúnem na freguesia de Santa Rita, sendo ele o próprio que, por ocasião de ser perseguida uma malta de capoeiras naquele lugar, arremessou um tijolo sobre o pedestre [designação dos guardas civis da época] Lúcio Feliciano da Costa, que ficou ferido na cabeça’.” (Reis, 2010, 40).
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“Fazer nas ruas e praças públicas exercícios de agilidade e destreza corporal conhecidos pela denominação capoeiragem; andar em correrias, com armas ou instrumentos capazes de produzir uma lesão corporal, provocando tumulto ou desordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incluindo temor de algum mal. Pena de prisão celular de dois a seis meses. Parágrafo único: é considerada circunstância agravante pertencer o capoeira a algum bando ou malta. Aos chefes e cabeças se imporá a pena em dobro.” (Rego apudReis, 2010, p. 34).
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“(...) onde não há para o biopoder interesse de disciplinar, subordinar ou eleger o elemento subordinado da relação de poder construída pela racialidade, ele passa a atuar como estratégia de eliminação do Outro indesejável. O biopoder aciona o dispositivo de racialidade paea determinar quem deve morrer e quem deve viver.” (Carneiro, 2023, p. 65).
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7
“Os dados coligidos por Soares (1994) confirmam essa presença massiva de escravos capoeiras na primeira metade do século 19. Para o autor, a capoeira configura-se como uma ‘invenção escrava urbana do Brasil’ ainda que marcada por um forte legado africano. Com base no Livro de Entrada da Casa de Detenção relativo a 1863, Soares (1994) extrai algumas informações sobre o universo escravo capoeira: em geral estavam agrupados em maltas (essa era a denominação policial para os bandos de capoeiras, também conhecidos como ‘partidos’, ‘casas’, ‘guaias’, ‘nações’ ou ‘províncias’) e eram artesãos de ofícios variados desde sapateiros a pedreiros.” (Reis, 2010, p. 21).
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“Esse fenômeno tem um nome, branquitude, e sua perpetuação no tempo se deve a um pacto de cumplicidade não verbalizado entre pessoas brancas, que visa manter seus privilégios. E claro que elas competem entre si, mas é uma competição entre segmentos que se consideram ‘iguais’. (...) Esse pacto da branquitude possui um componente narcísico, de autopreservação, como se o ‘diferente’ ameaçasse o ‘normal’, o ‘universal’.” (Bento, 2002, p. 218).
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9
“O colonizado está continuamente em estado de alerta, pois, tendo dificuldade em decifrar os inúmeros sinais do mundo colonial, nunca sabe se ultrapassou ou não o limite. Diante do mundo criado pelo colonialista, o colonizado é sempre presumido culpado. A culpa do colonizado não é uma culpa assumida, mas uma espécie de maldição, de espada de Dâmocles. Porém, no mais profundo do seu ser, o colonizado não reconhece nenhuma instância. É dominado, mas não domesticado. É inferiorizado, mas não convencido de sua inferioridade. Espera pacientemente até o colono relaxar a vigilância para saltar em cima dele.” (Fanon, 2022, p. 49).
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
16 Dez 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
-
Recebido
30 Jul 2024 -
Aceito
09 Set 2024