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A padronização do ensino em oftalmologia

Assim como na educação básica, em que os alunos são divididos em séries, para que o mesmo conteúdo seja ensinado a todos, esta tendência padronizadora também acontece na formação dos oftalmologistas. Nos dois primeiros anos da residência médica, o aluno aprende a examinar e a entender o funcionamento do olho. No terceiro ano, já define algumas áreas de preferência e aprende a operar. Para o estágio de especialização, escolhe uma área de atuação. A partir daí, em geral, a tendência atual é pela hiperespecialização progressiva: retina, catarata, glaucoma, córnea, etc (1Chamon, W, Schor P/ Teaching ophthalmology to the medical student: a novel approach. Arq Bras Oftalmol. 2012;75(1):5-7.,2Ventura CC, Gomes ML, Carvalho BV,Ventura LO, Brandt CT. Características e deficiências dos programas de pós-graduação em oftalmologia no Brasil segundo pós-graduandos participantes. Rev Bras Oftalmmol. 2012;71(3):173-9.).

O modelo de formação acima descrito estimula a atuação profissional em escala, em que o subespecialista cuida somente de sua área. Assim, cada profissional dedicaria seu tempo e energia para estudar e atuar somente em um segmento. O rápido avanço tecnológico da medicina, com excesso de conhecimento disponível, favorece esse modelo. No entanto, a saúde não pode ser tratada como uma linha de montagem, em que pacientes passam, como em uma esteira, por vários subespecialistas, dependendo dos sintomas. A sociedade, em geral, não suportaria financeiramente este modelo.

Embora sete bilhões de pessoas no mundo só conseguem sobreviver por causa da otimização da produtividade em geral, secundária à divisão do trabalho em uma seqüência linear de tarefas especializadas, ganhos constantes de eficácia e à venda de produtos padronizados (linha de montagem), na área da saúde, essa hierarquização leva, entre outros problemas, ao aumento insuportável do custo, pois a tendência do hiperespecialista é a de solicitar exames complementares cada vez mais complexos, para melhor avaliar o, cada vez menor, segmento em que atua, indicando tratamentos clínicos ou cirúrgicos, algumas vezes precipitados. Existe, portanto, uma contradição, em que a padronização excessiva da saúde levaria à perda de eficiência ao invés da desejada melhora da cobertura assistencial à população (3Bar-Yam Y. Making things work. Solving Complex Problems in a Complex World. Cambridge, MA: Nesci Knowledge Press; 2004.

Nye DE. Amercia s assembly line. Cambridege: MIT Press; 2013.

Burgierman DR. O mundo está muito complexo. São Paulo: Abril; 2014.
-6Estacia P, Reginatto RC, Nunes TT, Silva TM, Pasqualotti A. Avaliação do custo de colírios lubrificantes a base exclusivamente de carboximetilcelulose no mercado brasileiro. Rev Bras Oftalmol. 2013;72(5):331-4.).

Como, também, existem problemas oculares complexos, os quais necessitarão de um raciocínio lógico e elaborado por parte do médico, que entende o funcionamento do olho como um todo e associa o conhecimento de várias subespecialidades.A formação e a atuação em escala não estimula e nem exercita o mecanismo de pensar e refletir a respeito do olho, da visão e do paciente, pois, em uma linha de montagem, cada profissional realiza uma tarefa curta e repetitiva, de maneira que nenhum tem o domínio do processo como um todo.

Não considero errado o modelo da residência médica ou a opção do oftalmologista em aprofundar seus estudos em algumas subespecialidades. O que sugiro é que a opção de muitos colegas, ainda em formação, por atuar em somente uma única área, deva ser repensada. Muitas vezes, traçamos nossos projetos profissionais influenciados somente pelo momento atual, enquanto deveríamos, também, tentar projetá-los visando um futuro próximo. Nos EUA, por exemplo, a hiperespecialização tem sido desestimulada pelo governo, com consequente corte no número de bolsas de estudo para a formação após a residência. Dessa maneira, é possível, que em alguns anos, o profissional mais valorizado seja o oftalmologista com boa formação geral e preparado para conduzir adequadamente tanto doenças clássicas como complexas, encaminhando somente casos muito específicos. É certo que o hiperespecialista nunca irá desaparecer, mas talvez tenha menos campo de trabalho, inclusive porque avanços tecnológicos permitem, progressivamente, que um menor número de profissionais, principalmente de uma maneira padronizada, consiga tratar uma maior quantidade de pessoas. Enquanto que o raciocínio clínico não pode ser replicado.

Com relação aos clientes mais exigentes, estes sempre valorizarão o profissional que discute o raciocínio clínico e explica de maneira coerente o problema e as possibilidades de cura, ou seja, valorizarão o oftalmologista com boa formação geral, treinado para refletir sobre os sintomas, as doenças e as necessidades dos pacientes. A formação padronizada da residência médica ou do estágio de complementação, em geral, não prioriza este ensinamento, mas oferece as ferramentas adequadas para sua obtenção, principalmente ao proporcionar a proximidade dos alunos com os professores, em um ambiente acadêmico. Contudo, acredito que seja no período de uma eventual pós-graduação (mestrado ou doutorado), que o jovem médico terá melhores condições de aprender e de treinar a pensar e a raciocinar sobre sua prática, pois essa é a essência da pesquisa científica.

Enquanto o sistema linear e padronizado da residência médica forma alunos, em geral, com o mesmo conhecimento, o programa de pós-graduação tende a otimizar a capacidade individual de cada aluno, abrindo sua mente e preparando-o para acessar o conhecimento que está além do livro-texto, aquele conhecimento adquirido por meio do raciocínio, capacitando-o a resolver problemas diversos e complexos.

Newton Kara-Junior

REFERÊNCIAS

  • 1
    Chamon, W, Schor P/ Teaching ophthalmology to the medical student: a novel approach. Arq Bras Oftalmol. 2012;75(1):5-7.
  • 2
    Ventura CC, Gomes ML, Carvalho BV,Ventura LO, Brandt CT. Características e deficiências dos programas de pós-graduação em oftalmologia no Brasil segundo pós-graduandos participantes. Rev Bras Oftalmmol. 2012;71(3):173-9.
  • 3
    Bar-Yam Y. Making things work. Solving Complex Problems in a Complex World. Cambridge, MA: Nesci Knowledge Press; 2004.
  • 4
    Nye DE. Amercia s assembly line. Cambridege: MIT Press; 2013.
  • 5
    Burgierman DR. O mundo está muito complexo. São Paulo: Abril; 2014.
  • 6
    Estacia P, Reginatto RC, Nunes TT, Silva TM, Pasqualotti A. Avaliação do custo de colírios lubrificantes a base exclusivamente de carboximetilcelulose no mercado brasileiro. Rev Bras Oftalmol. 2013;72(5):331-4.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Aug 2014
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