RESUMO
A doença de Tay-Sachs é um distúrbio neurodegenerativo autossômico recessivo, o qual envolve o metabolismo dos lipídios, levando ao acúmulo de gangliosídeos nos tecidos, devido à deficiência da enzima hexosaminidase A. Esse depósito progressivo resulta em perda da função neurológica e, quando acomete as células ganglionares da mácula, causa o achado típico da doença, a “mácula em cereja”. A patologia é diagnosticada por meio dos níveis de hexosaminidase A e hexosaminidase total no soro, além análise do DNA do gene HEXA. Este caso relata uma criança com doença de Tay-Sachs cujo diagnóstico foi suspeitado por conta dos achados oftalmológicos.
Descritores: Doença de Tay-Sachs; Hexosaminidase A/genética; Doenças metabólicas; Manifestações oculares; Manifestações neurológicas
ABSTRACT
Tay-Sachs Disease is an autosomal recessive neurodegenerative disorder, which involves the metabolism of lipids, leading to the accumulation of gangliosides in the tissues, due to the deficiency of the enzyme Hexosaminidase A. This progressive deposit results in loss of neurological function and, when it affects macula ganglion cells, it causes the typical disease finding, the “cherry red spot”. The pathology is diagnosed through the levels of Hex A and total Hexosaminidase in the serum, in addition to the analysis of the DNA of the HEXA gene. This case reports a child with Tay-Sachs disease with a suspected diagnosis was through ophthalmologic findings.
Keywords: Tay-Sachs disease; Hexosaminidase A/genetics; Metabolic diseases; Eye manifestations; Neurologic manifestations
INTRODUÇÃO
Tay-Sachs é uma doença neurodegenerativa rara, potencialmente letal, caracterizada por uma desordem lisossomal autossômica recessiva. É ocasionada por mutações no gene HEXA que resultam na deficiência da enzima hexosaminidase A (Hex A), com consequente acúmulo de gangliosídeos (GM2), principalmente no tecido neuronal.( 1 , 2 )
A incidência dessa patologia é de 1:100 mil nascidos vivos na população em geral,( 3 ) sendo cerca de cem vezes maior entre a comunidade de judeus asquenazes, provenientes da Europa central e oriental.( 1 ) Antes da triagem populacional e do aconselhamento genético, essa comunidade apresentava incidência estimada de 1:3.600 nascimentos.( 4 )
Altas taxas de incidência destacam-se também entre a comunidade cajun de Louisiana, a ordem religiosa Amish na Pensilvânia e os não judeus franceses canadenses próximo a Saint Lawrence.( 5 ) Apesar disso, essa enfermidade já foi relatada em quase todos os grupos étnicos, raciais e religiosos.( 4 )
As manifestações clínicas são divididas de acordo com a idade do início dos sintomas, que depende sumariamente da taxa de atividade enzimática residual da Hex A em cada paciente.( 3 ) Assim, a forma clássica infantil apresenta nível de atividade enzimática muito baixo (<0,05%), sendo devastadora e levando a óbito entre 3 e 5 anos de idade. Uma menor parte dos casos carrega mutações leves e se manifesta na forma juvenil ou adulta, as quais apresentam sintomatologia branda.( 3 , 5 )
O acometimento ocular, mais presente na forma infantil, caracteriza-se pela palidez macular decorrente da deposição de lipídios, esfingolipídeos e oligossacarídeos em sua camada de células ganglionares. Na região foveal, em que as células ganglionares não estão presentes, a coloração avermelhada se mantém, originando assim o aspecto típico de “mácula em cereja”.( 6 )
Neste artigo, temos como objetivo relatar um caso dessa rara doença, em que os achados oculares foram fundamentais para corroborar a suspeita clínica e o diagnóstico.
RELATO DO CASO
Paciente do sexo masculino, raça branca, com 1 ano e 1 mês de vida realizou consulta em um Serviço de Oftalmologia de um hospital pediátrico de referência para investigação de atraso do neurodesenvolvimento e baixa resposta a estímulos visuais.
Nascido de parto a termo, gestação sem intercorrências e pré-natal com sorologias negativas. Foi diagnosticado previamente com laringomalácia, sem outras comorbidades. Os pais eram primos de primeiro grau.
Ao exame da acuidade visual, seguia pouco as luzes ou os objetos. Não apresentava anormalidades de segmento anterior e nem de reflexos pupilares. O mapeamento de retina evidenciava disco óptico róseo de bordos bem delimitados, “mácula em cereja” e retina aplicada em ambos os olhos.
Baseado nos achados fundoscópicos, foi solicitada retinografia ( Figura 1 ), a qual confirmou as alterações. Em avaliação conjunta com a neurologia, foi solicitada ressonância magnética (RM) de crânio, a qual evidenciou alteração da substância branca dos hemisférios cerebrais e alteração de sinal do tálamo e dos núcleos lentiformes. Devido ao resultado do exame, juntamente das alterações oftalmológicas, suspeitou-se de gangliosidose.
Retinografia do paciente, evidenciando “mácula em cereja” bilateralmente. Paciente foi submetido a estudo genético, sendo encontrada mutação no gene HEXA c.1073+1G>A ( splice donor ) em homozigose e firmado o diagnóstico de Doença de Tay-Sachs.
DISCUSSÃO
A doença de Tay-Sachs é uma desordem genética destrutiva das células nervosas do sistema nervoso central. Desse modo, a suspeita clínica na forma clássica infantil baseia-se no atraso do desenvolvimento neuropsicomotor em torno dos 6 meses de vida. O paciente pode apresentar incapacidade para sentar e sustentar a cabeça sem apoio, hipotensão, crises convulsivas, nistagmo e mácula em cereja.( 5 , 7 )
Na forma juvenil, o neurodesenvolvimento inicia-se normal e, geralmente, entre 3 e 10 anos ocorre regressão, principalmente, com alterações de marcha, disfagia, hipotensão e progressão de espasmos. Já a doença de Tay-Sachs de início tardio é mais branda, diferenciando-se das demais por também ocasionar alterações psiquiátricas.( 3 , 4 )
No caso relatado, é possível identificar a apresentação típica da doença infantil, com seus achados oftalmológicos, os quais foram fundamentais para auxiliar no diagnóstico do paciente.
O aspecto fundoscópico de “mácula em cereja” também pode ser encontrado em outras desordens de depósito de lipídios neuronais. Assim, fazem diagnóstico diferencial com Tay-Sachs a doença de Sandhoff (GM2 tipo 2), a gangliosidose GM2 tipo 3 e GM1 tipo 1, a doença de Niemann-Pick, a doença de Farber, as sialidoses tipos 1 e 2, a mucolipidose 3, a toxicidade à dapsona e a doença de Wolman.( 6 )
Exames de imagem também são importantes na avaliação desses pacientes. Os achados neurorradiológicos na doença são descritos em três fases do curso clínico. Na fase inicial, a substância branca cerebral e os gânglios da base apresentam hipodensidade na tomografia computadorizada (TC) de crânio e sinais de hiperintensidade em T2 na RM. Na primeira e na segunda fases, os núcleos caudados estão aumentados e se estendem para o ventrículo lateral, sendo que, na fase final, o cérebro torna-se atrófico. A combinação de hiperdensidade nas imagens de TC e sinal de RM T2W hipointenso/T1W hiperintenso envolvendo tálamo bilateral é sugestiva de doença de Tay Sachs ( Figura 2 ).( 5 )
O diagnóstico definitivo, entretanto, é obtido por meio da demonstração dos níveis de Hex A e hexosaminidase total no soro e teste genético molecular.( 5 , 7 )
Embora recentemente tenham surgido algumas opções de tratamento para as doenças de armazenamento lisossomal, a doença de Tay-Sachs permanece sem terapêutica disponível.( 3 ) Atualmente buscam-se medicamentos capazes de alterar o curso da doença. As opções já exploradas baseiam-se na terapia de redução de substrato (diminuição da formação do material acumulado), terapia de reprodução enzimática (fornecer a enzima diminuída), transplante de medula (fornecimento de células sem atividade enzimática) e terapia de genes (correção da mutação através de vetores).( 3 , 8 )
Estudo realizado por Vu et al. evidenciou que o uso de Hex A recombinante diminui o acúmulo lipídico lisossomal, prejudicial nessa patologia, porém a passagem pela barreira hematoencafálica para concentrações adequadas no sistema nervoso central ainda é um dos desafios a serem vencidos.( 9 )
A doença de Tay-Sachs, apesar de rara, deve ser lembrada sempre como diagnóstico diferencial em pacientes com atraso ou regressão do neurodesenvolvimento. Por meio deste relato, ressaltamos ainda a importância da avaliação oftalmológica nessa população. Apesar de ainda não haver cura para a doença, seu diagnóstico é fundamental para que sejam adotadas medidas de suporte ao paciente, além de acompanhamento multidisciplinar e aconselhamento genético.
REFERÊNCIAS
- 1 Zhang J, Chen H, Kornreich R, Yu C. Prenatal diagnosis of Tay-Sachs disease. Methods Mol Biol. 2019;1885:233-50.
- 2 Dersh D, Iwamoto Y, Argon Y. Tay-Sachs disease mutations in HEXA target the α chain of hexosaminidase A to endoplasmic reticulum-associated degradation. Mol Biol Cell. 2016;27(24):3813-27.
- 3 Solovyeva VV, Shaimardanova AA, Chulpanova DS, Kitaeva KV, Chakrabarti L, Rizvanov AA. New approaches to tay-sachs disease therapy. Front Physiol. 2018;9:1663.
- 4 Toro C, Shirvan L, Tifft C. HEXA disorders. 1999 Mar 11 [updated 2020 Oct 1]. In: Adam MP, Everman DB, Mirzaa GM, Pagon RA, Wallace SE, Bean LJH, Gripp KW, Amemiya A, editors. GeneReviews®. Seattle (WA): University of Washington, Seattle; 1993–2022. PMID: 20301397.
- 5 Ramani PK, Sankaran BP. Tay-Sachs disease. In: StatPearls. Treasure Island (FL): StatPearls Publishing; 2022.
- 6 Aragão RE, Ramos RM, Pereira FB, Bezerra AF, Fernandes DN. “Cherry red spot” in a patient with Tay-Sachs disease: case report. Arq Bras Oftalmol. 2009;72(4):537-9.
- 7 Bibi F, Ullah A, Bourinaris T, Efthymiou S, Kriouile Y, Sultan T, et al. Tay-Sachs disease: Two novel rare HEXA mutations from Pakistan and Morocco. Klin Padiatr. 2021;233(5):226-30.
- 8 Lew RM, Burnett L, Proos AL, Delatycki MB. Tay-Sachs disease: current perspectives from Australia. Appl Clin Genet. 2015;8:19-25.
- 9 Vu M, Li R, Baskfield A, Lu B, Farkhondeh A, Gorshkov K, et al. Neural stem cells for disease modeling and evaluation of therapeutics for Tay-Sachs disease. Orphanet J Rare Dis. 2018;13(1):152.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
28 Abr 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
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Recebido
17 Out 2022 -
Aceito
14 Nov 2022