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Abordagem conservadora da mão torta ulnar tipo III: Relato de caso

Resumo

A mão torta ulnar é uma rara afecção de membros superiores, cujo tratamento depende do grau de comprometimento morfológico e funcional, que se correlaciona com a classificação radiográfica de Dobyns, Wood e Bayne. O objetivo deste estudo é relatar um caso de um paciente de 6 anos de idade, do sexo masculino, acompanhado devido a mão torta ulnar do tipo III (aplasia total da ulna). Apesar da dificuldade inicial de manipular objetos e realizar tarefas cotidianas, o tratamento conservador fisioterapêutico propiciou o ganho de força e o desenvolvimento de habilidades funcionais para a vida diária. Concluímos que pacientes com deformidade do tipo III podem ser manejados adequadamente com reabilitação embora necessitem de seguimento ambulatorial até a maturidade esquelética, pois deformidades dinâmicas e novas limitações funcionais podem levar à necessidade de cirurgias corretivas.

Palavras-chave
anormalidades musculoesqueléticas; deformidades congênitas da mão; deformidades congênitas das extremidades superiores; focomelia; ulna/anormalidades

Abstract

Ulnar club hand is a rare condition of the upper limbs, for which treatment depends on the degree of morphological and functional impairment, correlating with the radiographic classification of Dobyns, Wood, and Bayne. The aim of the present study is to report a case of a 6-year-old male patient, followed up for type III ulnar club hand (total ulnar dysplasia). Despite the initial difficulty of manipulating objects and performing everyday tasks, conservative physical therapy treatment provided strength gain and development of functional skills for daily life. We conclude that patients with type III deformity can be properly managed with rehabilitation although they require outpatient follow-up until skeletal maturity is reached, as dynamic deformities and new functional limitations may lead to need for corrective surgeries.

Keywords
hand deformities, congenital; musculoskeletal abnormalities; phocomelia; ulna/abnormalities; upper extremity deformities, congenital

Introdução

A mão torta ulnar (MTU) é uma afecção congênita rara.11 Monteiro AV, Chiconelli JR. Deficiência ulnar congênita: conduta de tratamento. Rev Bras Ortop 1997;32(08):637–640 No Brasil, uma incidência de 1,6% de MTU foi relatada.22 Pinto HB, Pais AP, Vitorio SC, Brandão R, Moreira AAD, Molinaro LR. Case Study of Congenital Anomalies of the Upper Limb in Reference Ambulatory Care Facility. Acta Ortop Bras 2018;26(05):325–327 Trata-se de uma das mais raras deformidades congênitas dos membros superiores.22 Pinto HB, Pais AP, Vitorio SC, Brandão R, Moreira AAD, Molinaro LR. Case Study of Congenital Anomalies of the Upper Limb in Reference Ambulatory Care Facility. Acta Ortop Bras 2018;26(05):325–327

A MTU é uma falha longitudinal na formação da ulna (focomelia), que pode estar total ou parcialmente ausente.33 Swanson AB. A classification for congenital limb malformations. J Hand Surg Am 1976;1(01):8–22 Ela é mais frequente em homens, no lado direito, e unilateral em 70% dos casos. A forma incompleta é a mais comum.44 Panda A, Gamanagatti S, Jana M, Gupta AK. Skeletal dysplasias: A radiographic approach and review of common non-lethal skeletal dysplasias. World J Radiol 2014;6(10):808–825

A deformidade é caracterizada por antebraço curto e curvado para o lado radial, com a mão desviada em sentido ulnar.44 Panda A, Gamanagatti S, Jana M, Gupta AK. Skeletal dysplasias: A radiographic approach and review of common non-lethal skeletal dysplasias. World J Radiol 2014;6(10):808–825 Outras anormalidades associadas podem estar presentes.44 Panda A, Gamanagatti S, Jana M, Gupta AK. Skeletal dysplasias: A radiographic approach and review of common non-lethal skeletal dysplasias. World J Radiol 2014;6(10):808–825 A função do cotovelo pode estar comprometida em diferentes graus (desde rigidez até aumento da mobilidade, com instabilidade).11 Monteiro AV, Chiconelli JR. Deficiência ulnar congênita: conduta de tratamento. Rev Bras Ortop 1997;32(08):637–640,55 Schachinger F, Girsch W, Farr S. Soft-Tissue Distraction Prior to Single Bone Forearm Surgery in Ulnar Longitudinal Deficiency: A Report of Two Cases. J Hand Surg Asian Pac Vol 2018;23(01):153–157 Em crianças maiores, a luxação da cabeça radial poderá ocorrer.11 Monteiro AV, Chiconelli JR. Deficiência ulnar congênita: conduta de tratamento. Rev Bras Ortop 1997;32(08):637–640

Dobyns, Wood e Bayne classificam esta afecção em quatro tipos. No tipo I, há hipoplasia da ulna, pequeno desvio ulnar, arqueamento do rádio, e não existe anlage. No tipo II, há aplasia parcial da ulna (terço médio ou distal), a articulação proximal da ulna com o úmero está presente, existe anlage distal, e há luxação da cabeça do rádio. No tipo III, ocorre a aplasia total da ulna, não existe anlage, o rádio é arqueado, e a cabeça do rádio é luxada (com instabilidade do cotovelo). No tipo IV, há sinostose radioumeral e o anlage costuma estar presente.66 Bayne LG. Ulnar club hand (Ulnar deficiencies). In: Green DP. Operative hand surgery. New York: Churchill Livingstone; 1993: 288–303

O objetivo deste estudo é apresentar um caso de MTU tipo III, no qual o desafio foi a escolha do tratamento. Discutimos os elementos que norteiam a indicação terapêutica, os relacionados ao acompanhamento clínico e apresentamos os resultados funcionais após 2 anos de seguimento.

Relato de caso

Um paciente de 4 anos de idade, do sexo masculino, foi admitido em ambulatório especializado devido a "má formação do membro superior direito (MSD)". O diagnóstico de MTU havia sido realizado por ultrassonografia morfológica e confirmado após o nascimento. Além da MTU, foi diagnosticada agenesia testicular à esquerda. Havia história familiar de atrofia muscular espinhal tipo III (paterna). Este trabalho foi aprovado pelo CEP (CAAE:97048518.9.0000.5103).

Uma deformidade típica de MTU associada à agenesia do quarto e quinto quirodáctilos era evidente (Fig. 1). Não foi possível identificar formação de barra fibrosa ou cartilaginosa (anlage). Havia importante limitação funcional e dificuldades para manipular objetos além de hipoestesia na borda medial do terceiro dedo.

Fig. 1
Ectoscopia da deformidade. (A) Face anterior do membro. (B) Perfil com flexão.

As radiografias (Fig. 2) evidenciaram ausência completa da ulna, luxação da cabeça do rádio, e ossos do carpo centralizados. Não havia displasia glenoumeral no ombro.

Fig. 2
(A) Mão torta ulnar tipo III de Dobyns, Wood e Bayne – Aplasia total da ulna e ausência de 4° e 5° quirodáctilos direitos e seus respectivos metacarpos com relação articular preservada. (B) Luxação da cabeça do rádio. (C) Ausência de deformidades do úmero proximal.

Diante das limitações para a vida diária, o paciente procurou nosso ambulatório onde recebeu indicação de tratamento fisioterápico. O objetivo era otimizar a atividade motora fina e ganho funcional (como usar o celular, se vestir sozinho e colocar os sapatos). O tratamento foi realizado durante 9 meses (1 hora, 3 vezes por semana) (Quadro 1).

Quadro 1
Procedimentos fisioterapêuticos realizados pelo paciente durante o período de fisioterapia

O resultado da fisioterapia foi mensurado pela escala Goal Attainment Scale (GAS),77 McDougall J, Wright V. The ICF-CY and Goal Attainment Scaling: benefits of their combined use for pediatric practice. Disabil Rehabil 2009;31(16):1362–1372 que elencou três tarefas consensuais entre os familiares e o terapeuta. Os objetivos foram: melhorar a funcionalidade do MSD com ganho de movimentos finos; aprimorar a preensão palmar; reduzir a discinesia escapular durante a abdução para pegar brinquedo na prateleira. Em 2 meses, o paciente apresentou melhora em 2 tarefas (função do MSD, comparada em vídeo, e melhora da preensão palmar nas tarefas diárias).

Na consulta após a fisioterapia, aplicamos o questionário Disabilities of the Arm, Shoulder and Hand (DASH).88 Orfale AG, Araújo PM, Ferraz MB, Natour J. Translation into Brazilian Portuguese, cultural adaptation and evaluation of the reliability of the Disabilities of the Arm, Shoulder and Hand Questionnaire. Braz J Med Biol Res 2005;38(02):293–302 Por ser criança, as questões 7, 8, 12 e 21 não puderam ser aplicadas por abordarem funções típicas dos adultos. Esta modificação nos levou a considerar não o escore absoluto (38,33 pontos), mas sim o seu valor ponderado (46%), classificando a disfunção como moderada. O Quadro 2 elenca outros achados.

Quadro 2
Avaliação de atividade antes e após a fisioterapia

O paciente mantém o acompanhamento após 2 anos, assintomático e com o quadro estável, realiza o movimento de pinça do polegar, apesar de não apresentar função da musculatura de oponência. A musculatura flexora dos três dedos é normal, então o paciente é capaz de brincar com o celular, se vestir independentemente e realizar outras tarefas diárias (Fig. 3). Optamos por não indicar cirurgia neste momento, embora a conduta possa ser revista, principalmente se houver perda da capacidade de pinça do polegar, piora da estabilidade do cotovelo, perda progressiva da função, ou dor.

Fig. 3
Imagens ilustrativas da funcionalidade do membro utilizando aparelho eletrônico e demonstrando função de pinça.

Discussão

Nosso caso é ilustrativo da MTU, pois inclui paciente do sexo masculino, de acometimento no lado direito.44 Panda A, Gamanagatti S, Jana M, Gupta AK. Skeletal dysplasias: A radiographic approach and review of common non-lethal skeletal dysplasias. World J Radiol 2014;6(10):808–825 Na literatura, a agenesia parcial da ulna (Bayne II) é o fenótipo mais frequente, diferente do nosso caso.11 Monteiro AV, Chiconelli JR. Deficiência ulnar congênita: conduta de tratamento. Rev Bras Ortop 1997;32(08):637–640,55 Schachinger F, Girsch W, Farr S. Soft-Tissue Distraction Prior to Single Bone Forearm Surgery in Ulnar Longitudinal Deficiency: A Report of Two Cases. J Hand Surg Asian Pac Vol 2018;23(01):153–157,66 Bayne LG. Ulnar club hand (Ulnar deficiencies). In: Green DP. Operative hand surgery. New York: Churchill Livingstone; 1993: 288–303 Não identificamos casos semelhantes ao nosso na literatura nacional.

A agenesia de metacarpos e falanges observada também é reportada na maioria dos estudos.11 Monteiro AV, Chiconelli JR. Deficiência ulnar congênita: conduta de tratamento. Rev Bras Ortop 1997;32(08):637–640,55 Schachinger F, Girsch W, Farr S. Soft-Tissue Distraction Prior to Single Bone Forearm Surgery in Ulnar Longitudinal Deficiency: A Report of Two Cases. J Hand Surg Asian Pac Vol 2018;23(01):153–157 Não identificamos anormalidades musculoesqueléticas concomitantes ou limitação da mobilidade do cotovelo, ao contrário de outros autores.55 Schachinger F, Girsch W, Farr S. Soft-Tissue Distraction Prior to Single Bone Forearm Surgery in Ulnar Longitudinal Deficiency: A Report of Two Cases. J Hand Surg Asian Pac Vol 2018;23(01):153–157,66 Bayne LG. Ulnar club hand (Ulnar deficiencies). In: Green DP. Operative hand surgery. New York: Churchill Livingstone; 1993: 288–303

O tratamento nos casos de MTU requer abordagem multiprofissional e individualizada.99 Frantz DH, O'Rahilly R. Ulnar hemimelia. Artif Limbs 1971;15(02):25–35 A maioria das crianças é tratada sem cirurgia, especialmente na MTU unilateral.99 Frantz DH, O'Rahilly R. Ulnar hemimelia. Artif Limbs 1971;15(02):25–35 Nos casos que necessitam de cirurgia, o objetivo é melhorar a função do membro afetado.99 Frantz DH, O'Rahilly R. Ulnar hemimelia. Artif Limbs 1971;15(02):25–35

Para avaliar o ganho de função podemos utilizar escalas objetivas (ex.: DASH) ou outras mais subjetivas (ex.: GAS). Embora seja validado, o questionário DASH apresenta desvantagens por envolver um período maior de aplicação e ser específico para adultos. Por isso, o GAS é preferido por nós, por ser mais prático. Ele envolve definir um conjunto de objetivos, especificando uma gama de possíveis resultados para cada objetivo (em uma escala que contém 5 níveis, de −2 a +2). É utilizado para avaliar o desempenho após um período de intervenção especificado.77 McDougall J, Wright V. The ICF-CY and Goal Attainment Scaling: benefits of their combined use for pediatric practice. Disabil Rehabil 2009;31(16):1362–1372

A abordagem cirúrgica nos casos de Bayne II foi advogada por Monteiro e Schachinger.11 Monteiro AV, Chiconelli JR. Deficiência ulnar congênita: conduta de tratamento. Rev Bras Ortop 1997;32(08):637–640,55 Schachinger F, Girsch W, Farr S. Soft-Tissue Distraction Prior to Single Bone Forearm Surgery in Ulnar Longitudinal Deficiency: A Report of Two Cases. J Hand Surg Asian Pac Vol 2018;23(01):153–157 Em pacientes com Bayne IV, o tratamento conservador é recomendado.1010 Elhassan BT, Biafora S, Light T. Clinical manifestations of type IV ulna longitudinal dysplasia. J Hand Surg Am 2007;32(07):1024–1030 Não identificamos recomendações para Bayne III. Neste caso, optou-se pelo tratamento conservador devido à idade do paciente e boa resposta à fisioterapia com adaptação adequada às atividades do dia a dia.

O prognóstico da MTU dependerá de fatores como: unilateralismo, associação a síndromes, o número de dedos presentes, o grau de atrofia dos membros e a presença de sindactilia.99 Frantz DH, O'Rahilly R. Ulnar hemimelia. Artif Limbs 1971;15(02):25–35 Em nosso caso, a função de articulações do cotovelo e punho pode piorar com o crescimento, o que justifica acompanhamentos seriados e eventuais intervenções.11 Monteiro AV, Chiconelli JR. Deficiência ulnar congênita: conduta de tratamento. Rev Bras Ortop 1997;32(08):637–640 No entanto, o seguimento dos últimos 2 anos evidenciou evolução satisfatória.

  • Suporte Financeiro
    Não houve suporte financeiro de fontes públicas, comerciais, ou sem fins lucrativos.
  • Estudo realizado na Faculdade de Ciências Médicas e da Saúde de Juiz de Fora, MG, Brasil

References

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    23 Dez 2020
  • Aceito
    07 Abr 2021
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