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Doença ou Doente?

EDITORIAL EDITORIAL

Doença ou Doente?

Ao pensar na pergunta "doença ou doente?" vem imediatamente à minha mente uma frase de um livro do Professor Protásio da Luz, do Instituto do Coração, em São Paulo (Incor, SP), e que diz (cito): "O médico pode ser visto como um companheiro solidário no infortúnio, sempre disposto a ajudar o paciente, ou como um profissional que, embora competente, fica restrito à verdade científica, esquecido das emoções e sentimentos envolvidos no caso".

Nesse sentido é que vimos nas últimas décadas o surgimento de um grande número de publicações dedicadas à relação médico-paciente. O modelo mais tradicional dessa relação tem sido chamado por alguns de relação "centralizada no médico" ou "centralizada na doença", caracterizando uma relação que tende a ser mais autoritária, na qual o paciente e suas necessidades têm papel passivo e o médico passa a ser o detentor de toda a expertise e conhecimento. Este tipo de abordagem utiliza como base o modelo biomédico de doença que define o cuidado médico como o tratamento dos sintomas e sinais físicos em termos quantificáveis, e no qual a cura é definida por índices objetivos. O benefício deste modelo está em sua cientificidade, isto é, ele se baseia em dados médicos objetivos. Uma importante desvantagem desta abordagem é que ela negligencia outras contextualizações dos sintomas e sinais apresentados pelos pacientes e que incluem os aspectos funcionais, sociais e emocionais da saúde.

Consequentemente, temos visto mais recentemente surgir aquela que tem sido denominada de abordagem biopsicossocial da medicina (ou medicina holística) que incorpora as dimensões social e psicológica aos sintomas físicos. Este modelo permite que durante a consulta tópicos psicossociais possam ser abordados e, de forma mais importante, as impressões do paciente sobre seu próprio estado físico, funcional e sua qualidade de vida possam ser discutidas. Nesta visão, o médico deve encorajar o paciente a discutir sua experiência enquanto "doente" de forma que a consulta acabe centrada nas agendas tanto do médico como do paciente. Isto é, "o médico tenta entrar no mundo do paciente de forma a ver a doença através dos olhos do paciente" (McWhinney; 1985). Esta abordagem "centrada no paciente" se baseia numa relação médico-paciente mais equitativa dando igual peso aos valores, sentimentos e pensamentos de ambos.

Outra forma de abordar a mesma questão da relação médico-paciente tem sido chamada de "as duas faces da medicina", isto é, de um lado estão os profissionais orientados no sentido da cura enquanto que do outro estão aqueles voltados para o cuidado do paciente. No primeiro caso estão as atitudes instrumentais com dimensão orientada para as tarefas a serem executadas pelo profissional médico, enquanto que, no segundo, as atitudes são orientadas para a dimensão afetiva do encontro médico. Embora haja consenso sobre a importância dessas duas faces na relação médico-paciente, a realidade diária sugere que, na maioria das vezes, elas atuam como forças antagônicas. Em um estudo interessante feito na Europa por Grol et al., 1990, verificou-se que a maioria dos médicos entrevistados privilegia o lado técnico da relação o que levou ao aumento na prescrição de medicação sintomática, ao encurtamento no tempo das consultas e à presença de arquivos inadequados sobre os pacientes.

Deixando de lado as posições mais acadêmicas sobre a relação médico-paciente, gostaria de voltar ao Professor Protásio da Luz (Incor, SP) que, mesmo sendo um acadêmico no sentido mais positivo deste termo, escreveu um livro com o seguinte título: "Nem só de ciência se faz a cura". Já no primeiro capítulo, intitulado "Afinal do que tratamos: doença ou pessoas?" podemos intuir toda sua preocupação com o chamado ato médico. Para ele a relação médico-paciente depende de muitas variáveis, das quais duas são fundamentais: a compreensão e a confiança e, para tanto, ele afirma: para fazer medicina clínica é preciso gostar de gente, pois só assim vamos compreender o que o outro nos quer dizer e possibilitar o estabelecimento de uma relação confiante e honesta. Outro aspecto de fundamental importância está relacionado ao fato de que a busca por uma medicina mais humanizada não descarta, em hipótese alguma, a excelência do conhecimento. A confusão entre dados científicos e crença pessoal é muito comum entre os chamados médicos práticos e que não possuem o treinamento científico formal. Na realidade, e embora a experiência pessoal conte muito, não se pode abrir mão do conhecimento atualizado e abordado de forma crítica frente à situação particular do paciente. Para o professor Protásio da Luz, a experiência é adquirida por se fazer alguma coisa muitas vezes enquanto a excelência reflete a capacidade de se fazer algo da melhor maneira, com maestria. E ele vai além ao dizer que: "diferentemente de um problema matemático, o problema médico é como um presente que se recebe; ele vem acondicionado no invólucro da personalidade humana. É preciso penetrar cuidadosamente esse invólucro para saber o que está dentro".

Avanços recentes da ciência e sua aplicação na área da saúde têm permitido que, em certas situações, o ser humano possa viver mais e melhor. Ao mesmo tempo, o controle tecnológico da vida (clonagem, prolongamento artificial da vida, transplantes de órgãos, fertilização in vitro, etc) tem chamado as sociedades para um debate profundo sobre as questões éticas envolvidas e estas, sem dúvida, têm permeado mais de perto as relações médico-paciente para além da ética própria que deve presidir essa relação. Sem que se possa fazer um paralelo imediato, este assunto me reporta a um livro que li há 30 anos, intitulado Nemesis da Medicina escrito por Ivan Illich e que começava com estas palavras: "A empresa médica é uma ameaça à saúde" para afirmar depois que "A maior ameaça à saúde é a medicina moderna". A saúde, argumentava Illich – falecido em 2002, é a capacidade de lidar com as realidades humanas da morte, do sofrimento e da doença. Os avanços tecnológicos podem amenizar a verdade destes fatos, mas a medicina moderna foi muito além, lançando-se numa batalha sem precedentes contra a morte, o sofrimento e as doenças. Ao fazer isso, ela transformou as pessoas em consumidores de serviços ou artigos médicos ou objetos de experiências médicas, destruindo sua capacidade para a saúde.

Illich identificou três níveis de patologias induzidas pela medicina moderna:

• Iatrogênese clínica – que inclui todas as lesões e/ou doenças causadas pela imperícia médica ou pelo uso de tratamentos ineficazes, tóxicos ou inseguros;

• Iatrogênese social -que resulta da medicalização da vida, na maioria das vezes mediada pela indústrias farmacêuticas interessadas no lucro;

• Iatrogênese cultural, a pior de todas para ele, pois tem destruído as formas tradicionais de lidar com a morte a dor e a doença.

Seu livro provocou, e provoca ainda, muitos debates acalorados naqueles que tiveram ocasião de lê-lo ou mesmo naqueles que puderam estar presentes a uma das conferências que este professor de Edimburgo fez por todo o mundo. Para ele, reduzimos a experiência de "estar vivo" por uma abstração que denominamos "uma vida" o que pode levar o indivíduo a cair num vazio que o asfixia. Hoje, a busca pela saúde é quase o oposto da busca pelo sadio "como uma liturgia social a serviço de um ídolo que aniquila o sujeito". Isto é, quanto maior a oferta de "saúde", mais as pessoas têm problemas, necessidades e doenças. Ou ainda, quanto mais a oferta de toda a parafernália clínica resultar num engajamento político da população, mais intensamente é percebida a falta de saúde a ponto de ocorrer uma transição do "corpo físico para um corpo fiscal" (Sajay Samuel, Universidade de Bucknell).

Mais ou menos na mesma direção vai o Professor Charles Rosemberg da Universidade de Harvard, ao discutir a "tirania do diagnóstico" na prática médica. Para ele, as noções de doença e saúde, além de sentidos culturais diversos, necessitam ser redefinidas, pois, na maioria das vezes, elas são supostamente compreendidas e acabam se tornando invisíveis. Neste sentido eu gostaria de sugerir aos interessados a leitura de um interessante trabalho publicado pelo Prof. Naomar de Almeida Filho, intitulado "Para uma teoria geral da saúde: anotações epistemológicas e antropológicas preliminares" e publicado nos Cadernos de Saúde Pública em 2001.

Mas voltando ao Prof. Rosemberg, a necessidade de nomear as doenças tem utilidade social dentro do mundo administrativo da medicina e tem servido quase que exclusivamente para determinar ou controlar a duração do período de internação ou o custo de uma consulta de especialista. Neste ponto podemos ampliar nossa discussão sobre a humanização da relação médico-paciente para aquela da humanização da assistência à saúde que, como frequentemente colocado pelo Prof. William Saad Hossne, vai além de ter um hospital limpo e arejado, ter servidores uniformizados, abolir as camas e macas dos corredores, ter serviço de voluntariado, ter mais ambulâncias, ou a instalação de aparelhos de TV nas salas de exames laboratoriais – o que particularmente acho péssimo, etc., aspectos que contribuem para o conforto dos doentes, mas não tornam, obrigatoriamente, a assistência mais humanizada.

A humanização da assistência médica deve estar relacionada ao esforço de tratar as pessoas respeitando suas necessidades intrínsecas, considerando sua autonomia nas escolhas para defender seus interesses, sua necessidade de valorização, de pertencer a um determinado grupo social e de se sentir aceito, de ser escutado e compreendido, entre outros aspectos que constroem a sua dignidade.

Para terminar, gostaria de voltar-me um pouco para a questão do sentido da "ética como virtude" dentro da profissão médica. A definição de Aristóteles para virtude é, a meu ver, a mais adequada para a profissão médica, pois alia excelência moral com a excelência do trabalho. Publicamente, o médico professa duas coisas: ser competente e ter sempre como objetivo o bem do paciente. Assim, está implícito que a relação médico-paciente deve levar à cura quando possível, ao "cuidar" sempre, ao alívio do sofrimento e a cultivar a saúde, o que Pellegrino (médico e professor da Georgetown University, USA) tem chamado de "ética médica baseada em virtude". Para ele, o bom médico é aquele que exibe características que são indispensáveis para que se atinjam os objetivos da medicina. De forma mais específica Pellegrino propõe apenas seis pontos em sua ética da virtude:

• Fidelidade – base para a confiança;

• Benevolência -tal qual no juramento de Hipócrates – sempre objetivar o bem do paciente e , em consequência, evitar o mal;

• Honestidade intelectual – lembrando que a medicina é instrumento tanto para o bem como para o mal na dependência de como o conhecimento e a práxis forem utilizadas;

• Coragem – já que o médico está exposto aos perigos da contaminação, a lesões físicas em casos de emergências, a trabalhar em condições políticas adversas, à possibilidade de falhas humanas e, não raramente, tem que enfrentar o poder econômico para o bem do paciente;

• Compaixão – principalmente nas situações médicas mais difíceis e complicadas de forma a assegurar que seu julgamento científico seja moralmente defensável e adequado às condições do paciente;

• Ser verdadeiro – já que o paciente deve ter o conhecimento necessário para fazer as escolhas mais adequadas para sua vida.

Se os médicos e todos aqueles que se dedicam à saúde humana seguirem estes seis artigos de um "código" não escrito da ética médica baseado na virtude, tenho a convicção de que não necessitaremos mais nos perguntar se tratamos de doenças ou de doentes.

É, portanto, com imensa satisfação que, ao abrir o ano acadêmico de 2009 do programa de Pós-Graduação dessa casa, posso estar confiante de que a pesquisa que vem sendo desenvolvida assim como aquela para a qual o IMIP se prepara para desenvolver têm como objetivo central o bem das pessoas. O que, sem dúvida alguma, é reflexo da personalidade de seu criador, o Prof. Fernando Figueira, que sempre ensinou a todos que só se consegue fazer medicina de qualidade aliando o melhor conhecimento técnico-científico ao respeito e à dedicação aos pacientes.

Esper Cavalheiro

Professor do Departamento de Neurologia da Universidade Federal de São Paulo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Jun 2009
  • Data do Fascículo
    Jun 2009
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