Uma unidade de terapia intensiva (UTI) eficiente é aquela capaz de prestar cuidados que resultem em uma taxa de mortalidade inferior à estimada (em função da gravidade dos pacientes), sendo esta associada a uma menor utilização de recursos (geralmente considerando uma menor utilização de recursos como marcador dos custos).(1,2)
Assim, cuidados eficientes e de elevada qualidade devem se traduzir no maior número de sobreviventes com a mais elevada qualidade de vida possível.(3) A avaliação do desempenho das UTI é, por isso, fundamental para identificar os outliers, as metas de melhoria e os gargalos e problemas no processo assistencial. Medir o desempenho em UTI é uma tarefa árdua, mas, a despeito de seus desafios, vários métodos têm sido aplicados com sucesso nas últimas três décadas, permitindo a adequada avaliação e a aferição do desempenho e benchmarking.(2,4) O desempenho na UTI é normalmente medido por meio da avaliação da razão de mortalidade padronizada (SMR - standardized mortality ratio, ou seja, a razão entre a mortalidade real e a mortalidade média esperada normalmente obtida por um escore de gravidade da doença, como, por exemplo, o Simplified Acute Physiology Score 3 - SAPS3) e da utilização de recursos padronizados (SRU - standardized resource use, que é normalmente medido como a razão entre o tempo de internação dos sobreviventes - LOS - e o LOS esperado também estimado a partir de um escore de gravidade), de modo que dois aspectos essenciais do “desempenho”, nomeadamente a SMR e a SRU, são combinados para fornecer um diagnóstico da eficiência da unidade.(4-6) Isto, contudo, está associado a várias limitações importantes, incluindo o desempenho limitado da pontuação de gravidade da doença em alguns cenários, que só pode ser corrigido parcialmente, por meio de ajustes estatísticos.(6)
As alterações recentes e repentinas no status quo das UTIs,(7) devido à atual pandemia de doença pelo coronavírus 2019 (COVID-19), representam um desafio para a forma usual de avaliação do desempenho de UTIs e à capacidade da sua medição precisa. Neste “novo cenário normal”, assegurar um bom desempenho da UTI é essencial por várias razões, em especial num cenário de restrição de recursos. É mais fácil e mais barato melhorar o desempenho e aumentar o giro de leitos do que criar um novo leito de UTI (com todos seus investimentos iniciais, de pessoal e materiais, além dos custos relacionados com medicamentos). Existem evidências recentes de que a melhoria da eficiência da UTI e, por conseguinte, de seu desempenho pode ser alcançada pela implementação de cuidados baseados em evidências, incluindo sedação leve, ventilação com baixo volume corrente e bundles de prevenção de infecções associadas aos cuidados de saúde.(8) A adesão às práticas da medicina baseada na evidência (MBE) é, portanto, um indicador de qualidade de uma UTI, podendo ser utilizado com bom desempenho na avaliação de desempenho. Por conseguinte, a medição e o acompanhamento da adesão às medidas de MBE do processo de cuidados podem fornecer informações valiosas e passíveis de modificação, ou seja, geram suas taxas e, ao identificá-las, há medidas concretas a serem tomadas, com impacto na prática assistencial e nos desfechos.(5,9)
É claro que muitas questões urgentes podem dificultar as tentativas de medir e melhorar o desempenho durante a pandemia de COVID-19, incluindo mudança abrupta no perfil de casos (case-mix) na UTI (por exemplo, brusco aumento da gravidade e número de pacientes ventilados), necessidade de alterações em todo o funcionamento da UTI devido a medições de precauções, aumento dos custos devido a uma maior utilização de equipamento de proteção pessoal e até mesmo redução do pessoal disponível devido à doença ou burnout. Finalmente, não dispomos atualmente de uma ferramenta que nos permita prever com precisão a mortalidade de pacientes com COVID-19 ou a duração de internação deles. Isso não só representa uma grande limitação para os SMR/SRU, mas também reduz a potencial utilização de outras métricas com base em resultados cumulativos, como a variable-adjusted life displays (VLADS). É necessária muita cautela ao interpretar e utilizar as SMR neste momento. As classificações de gravidade da doença sofrem geralmente de um desempenho heterogêneo quando são consideradas para condições únicas (incluindo sepse ou síndrome do desconforto respiratório agudo).(2,4,6) Adicionalmente, são necessários períodos de tempo mais longos (normalmente 2 ou 3 meses) para permitir um número relevante de doentes com desfechos hospitalares. Por conseguinte, a SMR e a SRU devem ser utilizadas e comparadas (com benchmarks), mas estas não devem ser consideradas isoladamente nem baseadas apenas em seus valores absolutos, sendo necessárias tendências temporais e intervalos de tempo mais longos que o habitual. Assim, outras variáveis devem ser medidas para melhor compreensão dos resultados de uma UTI e também para ajudar os coordenadores das UTIs a identificar onde investir e/ou alterar as práticas, com vista a alcançar melhores desfechos. Uma avaliação abrangente, mas sempre pragmática, do perfil de pacientes e da utilização de recursos e seu benchmarking são viáveis e podem fornecer informações relevantes (Tabela 1); ao centrar-se na adesão ao processo de cuidados, podem acrescentar um valor substancial em comparação a uma abordagem que se centra estritamente nos resultados de eficiência.
O que medir na avaliação de eficiência de uma unidade de terapia intensiva na pandemia de COVID-19
A recente pandemia de COVID-19 representa mudança abrupta nos resultados da UTI (processo de “produção de sobreviventes”), com alteração súbita no input, mudanças nos cuidados de processo, falta de protocolos de tratamento eficazes e específicos, uma velocidade excepcional nas mudanças de rotinas da UTI, entre outros fatores. Essa situação pode ser agravada pela falta de equipamento adequado para Suporte Avançado de Vida, especialmente em UTI em situação de strain ou em cenários de escassez de recursos (materiais e humanos). Para algumas UTI, os fatores limitantes podem ser a falta de equipamento, a falta de pessoal, o encaminhamento tardio dos doentes, ou todos os fatores referidos. Uma avaliação individual dos casos com resultados desfavoráveis utilizando diagramas simples de Ishikawa (“espinha de peixe”) pode ser útil, particularmente no início da pandemia. No entanto, à medida que os casos acumulam-se, as evidências devem provir de séries maiores de casos, com uma análise adequada.
Nesse sentido, outras formas de medir o desempenho podem ser obtidas a partir da economia, especialmente utilizando production possibility frontier e o envelope de dados.(10) A análise do envelope de dados é um processo econométrico interessante, em que são considerados inputs e outputs, em que é realizado um benchmark. Essa análise é flexível no sentido em que se acomoda com diferentes métricas; por exemplo, as entradas podem incluir níveis de pessoal, equipamento disponível para suporte de órgãos, número de camas e número de admissões solicitadas (e sua respectiva gravidade média de doença), e as saídas podem incluir número de sobreviventes, dias de ventilação mecânica sem UTI etc. Pode também ajudar a identificar potenciais problemas de contenção entre unidades (Figura 1). Isso pode ser útil mesmo para a comparação do desempenho da UTI ao longo do tempo e fornecer uma benchmarking em relação a outras UTIs.
Novo modelo para medir o desempenho da unidade de terapia intensiva. (A) Um gráfico de teia de aranha para uma unidade de terapia intensiva em quatro momentos distintos (0 - 3) considerando inputs (deficiência de oxigenação dos pacientes internados, gravidade moderada, nível de staff) e outputs (dias livres de ventilação mecânica e mortalidade). A mesma unidade em quatro pontos temporais diferentes é mostrada. Há alterações na gravidade da doença, no nível de staff e na oxigenação ao longo do tempo, o que resulta em diferenças nos resultados. Essas tendências, juntamente da eficiência relativa, são mostradas no painel (B). Note-se que, nos momentos 1 e 2, a eficiência é maximizada quando comparada com os tempos 0 e 3 (marcados com "*"), apesar de uma redução no nível de staff de 1 - 2 e flutuações na gravidade. No ponto 3, o desempenho parece piorar (menor sobrevivência e menos dias livres de ventilação mecânica que são desproporcionais ao aumento da gravidade de internação). O envelope de dados poderia apontar que a redução do staff é provavelmente o passo limitante nesse exemplo. Min - mínimo; Max - máximo; VM - ventilação mecânica; PF - pressão parcial de oxigênio arterial/fração inspirada de oxigênio.
CONCLUSÃO
A medição do desempenho da UTI nunca foi tão importante, nem tão difícil, como durante a pandemia da COVID-19. Enquanto há poucos dados sobre escores prognósticos que limitam o uso de métricas mais tradicionais, as UTIs devem focar na mensuração de parâmetros indiretos de desempenho, especialmente analisando seu perfil de pacientes, utilização de recursos, desfechos globais e taxa de aderência às melhores práticas baseadas em evidência.
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Agradecimentos & Financiamento: Este projeto foi apoiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), pela Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) e por fundos departamentais do Instituto D’Or de Investigação e Ensino.
REFERÊNCIAS
- 1 Power GS, Harrison DA. Why try to predict ICU outcomes? Curr Opin Crit Care. 2014;20(5):544-9.
- 2 Salluh JI, Soares M. ICU severity of illness scores: APACHE, SAPS and MPM. Curr Opin Crit Care. 2014;20(5):557-65.
- 3 Rhodes A, Moreno RP, Azoulay E, Capuzzo M, Chiche JD, Eddleston J, Endacott R, Ferdinande P, Flaatten H, Guidet B, Kuhlen R, León-Gil C, Martin Delgado MC, Metnitz PG, Soares M, Sprung CL, Timsit JF, Valentin A; Task Force on Safety and Quality of European Society of Intensive Care Medicine (ESICM). Prospectively defined indicators to improve the safety and quality of care for critically ill patients: a report from the Task Force on Safety and Quality of the European Society of Intensive Care Medicine (ESICM) Intensive Care Med. 2012;38(4):598-605.
- 4 Salluh JI, Soares M, Keegan MT. Understanding intensive care unit benchmarking. Intensive Care Med. 2017;43(11):1703-7.
- 5 Salluh JI, Chiche JD, Reis CE, Soares M. New perspectives to improve critical care benchmarking. Ann Intensive Care. 2018;8(1):17.
- 6 Keegan MT, Soares M. What every intensivist should know about prognostic scoring systems and risk-adjusted mortality. Rev Bras Ter Intensiva. 2016;28(3):264-9.
- 7 Alhazzani W, Møller MH, Arabi YM, Loeb M, Gong MN, Fan E, et al. Surviving Sepsis Campaign: guidelines on the management of critically ill adults with Coronavirus Disease 2019 (COVID-19). Intensive Care Med. 2020;46(5):854-87.
- 8 Soares M, Bozza FA, Angus DC, Japiassú AM, Viana WN, Costa R, et al. Organizational characteristics, outcomes, and resource use in 78 Brazilian intensive care units: the ORCHESTRA study. Intensive Care Med. 2015;41(12):2149-60.
- 9 Kallen MC, Roos-Blom MJ, Dongelmans DA, Schouten JA, Gude WT, de Jonge E, et al. Development of actionable quality indicators and an action implementation toolbox for appropriate antibiotic use at intensive care units: a modified-RAND Delphi study. PLoS One. 2018;13(11):e0207991.
- 10 Bannick RR, Ozcan YA. Efficiency analysis of federally funded hospitals: comparison of DoD and VA hospitals using data envelopment analysis. Health Serv Manage Res. 1995;8(2):73-85.
Editado por
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Editor responsável: Felipe Dal-Pizzol
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
13 Jul 2020 -
Data do Fascículo
Apr-Jun 2020
Histórico
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Recebido
28 Maio 2020 -
Aceito
02 Jun 2020