Resumos
O objetivo desse trabalho foi realizar uma revisão da literatura sobre o histórico e o estágio atual de conhecimento sobre a analgesia sistêmica em neonatologia e os fatores que influenciam a sua utilização. Foi realizada busca de artigos científicos através das bases dados do MEDLINE, SciELO e LILACS com as palavras chave: analgesia, analgésicos sistêmicos, dor, neonatologia, recém-nascido, unidade de terapia intensiva e unidade de terapia intensiva neonatal, além de pesquisa adicional em bancos de dados de dissertações, teses e livros texto. A literatura consultada revela que a analgesia não é uma prática rotineira nas unidades de terapia intensiva neonatal, de uma forma geral, apesar dos inúmeros estudos demonstrando a importância do tema. Apesar de ser o alívio da dor um dos princípios básicos da medicina, de envolver questões éticas e humanitárias, e de estarem disponíveis atualmente vários guias práticos e consensos a respeito do manejo da dor no neonato de risco, os resultados encontrados no presente estudo estão muito aquém das recomendações atuais, tornando-se necessária uma intervenção urgente para reverter a situação observada.
Analgesia; Dor; Recém-nascido; Unidades de terapia intensiva neonatal
The purpose of this paper was to carry out a review of literature on the history and current stage of the knowledge of systemic analgesia in neonatology and the factors influencing its use. A search for scientific articles was made in the MEDLINE, SciELO and LILACS databases using the keywords: analgesia, systemic analgesics, pain, neonatology, newborn, intensive care units and neonatal intensive care units. Additional research was made on dissertations and thesis databanks as well as text books. Literature consulted disclosed that, in general, analgesia is not a routine practice in neonatal intensive care units, despite the numerous studies demonstrating its importance. Although pain relief is a basic principle of medicine, involving ethic and humanitarian issues and despite the current availability of a number of practical guidelines and consensus regarding pain management in newborns at risk, findings of the present study fall far short of current recommendations. Urgent intervention is required to redress this situation.
Analgesia; Pain; Infant newborn; Neonatal intensive care units
ARTIGO DE REVISÃO
Fatores relacionados ao uso de analgesia sistêmica em neonatologia
Carmen Lúcia Guimarães de AymarI; Sônia Bechara CoutinhoII
IPós-graduanda (Mestrado) em Saúde da Criança e do Adolescente da Universidade Federal de Pernambuco e Neonatologista da Unidade Neonatal do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco.- UFPE - Recife (PE), Brasil
IIDoutora, Professora da Pós-Graduação em Saúde da Criança e do Adolescente e da Disciplina de Neonatologia e Puericultura do Departamento Materno-Infantil da Universidade Federal de Pernambuco - UFPE - Recife (PE), Brasil
Autor para correspondência Autor para correspondência: Carmen Lúcia Guimarães de Aymar Rua Teles Júnior, 155-B/2001 - Aflitos CEP 52050-040 - Recife (PE), Brasil Fones: 081-9111-0441 / 081-3426-0136 FAX: 081-2126-3712 E-mail: claymar@globo.com
RESUMO
O objetivo desse trabalho foi realizar uma revisão da literatura sobre o histórico e o estágio atual de conhecimento sobre a analgesia sistêmica em neonatologia e os fatores que influenciam a sua utilização. Foi realizada busca de artigos científicos através das bases dados do MEDLINE, SciELO e LILACS com as palavras chave: analgesia, analgésicos sistêmicos, dor, neonatologia, recém-nascido, unidade de terapia intensiva e unidade de terapia intensiva neonatal, além de pesquisa adicional em bancos de dados de dissertações, teses e livros texto. A literatura consultada revela que a analgesia não é uma prática rotineira nas unidades de terapia intensiva neonatal, de uma forma geral, apesar dos inúmeros estudos demonstrando a importância do tema. Apesar de ser o alívio da dor um dos princípios básicos da medicina, de envolver questões éticas e humanitárias, e de estarem disponíveis atualmente vários guias práticos e consensos a respeito do manejo da dor no neonato de risco, os resultados encontrados no presente estudo estão muito aquém das recomendações atuais, tornando-se necessária uma intervenção urgente para reverter a situação observada.
Descritores: Analgesia/métodos; Dor; Recém-nascido; Unidades de terapia intensiva neonatal
INTRODUÇÃO
Diversos estudos vêem mostrando que o estímulo doloroso repetitivo ou prolongado em fases precoces da vida pode levar a alterações no sistema nervoso central com conseqüências durante a infância e, possivelmente, na vida adulta.(1,2) Por conseguinte, a dor prolongada persistente ou repetitiva induziria a mudanças fisiológicas e hormonais que modificariam os mecanismos moleculares neurobiológicos. Assim, sugere-se que o bebê grave, por meio dos sentidos, lembre-se da dor, sem necessariamente registrá-la cognitivamente. Além disso, mudanças nas conexões neurais poderiam contribuir para a síndrome da dor crônica.(1,3,4)
Partindo do modelo conceitual da utilização de analgésicos sistêmicos em unidades de terapia intensiva neonatal, apresentado na figura 1, será realizada a descrição das variáveis relacionadas aos recém-nascidos, ao profissional médico envolvido e aos serviços.
VARIÁVEIS RELACIONADAS AOS PACIENTES
Ocorrência de situações dolorosas, capacidade de sentir e expressar dor e perfil biológico do paciente
São múltiplas as causas de estresse para o recém-nascido numa unidade de terapia intensiva neonatal, incluindo: ventilação prolongada, nutrição inadequada, episódios de quedas de saturação de oxigênio, iluminação intensa, ruídos constantes, procedimentos múltiplos, entre outros. Sabe-se que a cóclea e os órgãos sensoriais se desenvolvem por volta da 25ª semana de gestação e que a capacidade de ouvir ruídos de 40 decibéis está presente a partir da 28ª semana. Outro fator é o desenvolvimento do ritmo circadiano o qual ocorre por volta da 32ª semana e pode ser alterado pelas variações de iluminação do ambiente de uma unidade de terapia intensiva neonatal.(5) Assim, é fundamental tentar minimizar as agressões sofridas pelo neonato durante sua internação na unidade neonatal, através de estratégias simples, como medidas posturais, adequação dos procedimentos, e humanização do assistir.(6-8) Dessa forma, importantes medidas não-farmacológicas podem ser empregadas com o objetivo de minimizar a dor e o estresse durante a permanência na unidade neonatal.(9,10)
Com o aprofundamento dos conhecimentos a respeito da dor no período neonatal, foram desenvolvidas pesquisas que procuraram identificar a capacidade de percepção da dor na vida intra-uterina.(11,12) Assim, sabe-se que desde a 16ª semana de gestação, a transmissão da dor, a partir de receptores periféricos até o córtex, é possível e tem seu desenvolvimento completado após a 26ª semana. Desta forma, o feto é capaz de sentir dor a partir desse estágio. Entretanto, é importante registrar que os mecanismos inibitórios e moduladores da dor só se desenvolverão após o nascimento, fazendo com que o organismo imaturo seja ainda mais sensível aos estímulos dolorosos.(11-14)
Durante o período neonatal, há um rápido crescimento e desenvolvimento cerebral, por isso a ocorrência de dor e estresse repetido, nesse período, pode levar a um desenvolvimento alterado do sistema de dor, associado com diminuição do seu limiar, além de alterações na sua estabilidade respiratória, cardiovascular e metabólica.(1,3,9,12,14-17)
Recém-nascidos expostos a estímulos nocivos apresentam imediatas alterações hormonais e fisiológicas. Contudo, bebês prematuros e nascidos a termo comportam-se de forma diferente em resposta à dor, podendo os prematuros apresentar uma resposta inicial diminuída à dor, não significando com isso que não a sintam.(8,18) Observa-se que as crianças de maior peso e idade gestacional, ao nascer, apresentam maior chance de receber analgesia.(19)
VARIÁVEIS RELACIONADAS AOS PROFISSIONAIS
Apesar da crescente disponibilidade de recursos terapêuticos e de avaliação, observa-se ainda a pouca utilização de analgesia nas unidades de terapia intensiva neonatal.(19-22) O manejo da dor do neonato não é adequado devido à falta de conhecimento dos mecanismos pelos quais se dá a nocicepção e a aplicação errônea das informações disponíveis.(23)
Segundo Castro et al.(19), as dificuldades para o tratamento adequado da dor no recém-nascido não residem somente na falta de opções diagnósticas e terapêuticas, mas em como os profissionais da área de saúde se utilizam dos conhecimentos científicos a respeito da presença, do diagnóstico e do tratamento da dor em sua prática diária.
Fatores individuais
Dentre os fatores que interferem na percepção da dor do outro e na motivação para o alívio da dor do paciente, está a relação médico/paciente, relação interpessoal na qual se encontram: a identificação (processo psicológico pelo qual um indivíduo assimila um aspecto, um atributo de outro e se transforma, segundo o modelo dessa pessoa), a transferência (conjunto dos fenômenos que constituem as relações entre as pessoas) e a contra-transferência (conjunto de reações inconscientes do médico à pessoa do seu paciente). A partir do sofrimento corporal do paciente, está em jogo a relação interpessoal, ou seja, o médico reativa e presentifica vários sentimentos além de eventos vividos num outro momento, em etapas anteriores de sua vida. Assim, a percepção e a intervenção em um sintoma podem estar seriamente comprometidas em seu atendimento e compreensão.(24)
Além disso, pode ser observado um mecanismo de defesa psicológica do profissional que realiza procedimentos invasivos rotineiramente, através de uma reestruturação cognitiva, tornando-os mais céticos em relação às respostas subjetivas de dor e estresse exibidas pelo paciente em terapia intensiva. Como conseqüência, pode ocorrer o desinteresse nas medidas que visam reduzir o estresse e a dor no bebê.(19) Apesar dos profissionais reconhecerem que o recém-nascido sente dor, eles têm dificuldade em defini-la e lidar com ela.(6)
Conhecimento de métodos de avaliação
Como a dor é uma ocorrência subjetiva, há certa dificuldade na sua avaliação, principalmente nos indivíduos que não conseguem verbalizá-la, em especial nos recém-nascidos. Esse fato leva a uma necessidade do adulto reconhecer ou decodificar os sinais de dor emitidos pelo paciente pré-verbal, dependendo, para isso, do seu conhecimento a respeito da dor nessa faixa etária, de sua sensibilidade e atenção para a percepção desses sinais.(19,21,22) Segundo Silva et al., "a dor deve ser valorizada como sendo o quinto sinal vital e avaliada de maneira sistematizada também nos recém-nascidos".(25)
Encontram-se à disposição, atualmente, vários parâmetros fisiológicos e comportamentais, além de escalas multidimensionais para avaliação da presença e intensidade da dor no neonato.(9,19,21,23,26-28) Dentre esses parâmetros fisiológicos, são considerados: freqüência cardíaca, freqüência respiratória, pressão arterial, saturação de oxigênio, tensão transcutânea de oxigênio e de dióxido de carbono e dosagens hormonais. Entre os principais parâmetros comportamentais utilizados estão: o choro, a atividade motora e a mímica facial de dor.
O choro é uma forma de comunicação e manifestação do bebê, sendo muito utilizado pelas mães e por cuidadores. Apesar de o choro ser considerado um parâmetro importante na avaliação da dor, a American Academy of Pediatrics e a Canadian Paediatric Society, em 2000, ao discutirem a prevenção e o manejo da dor assim como o estresse em neonatos, chamam a atenção de que a ausência de respostas comportamentais, incluindo o choro e movimentos, não é necessariamente, indicativo de falta de dor. O choro é pouco específico, mas parece ser um instrumento útil quando associado às outras medidas de avaliação da dor.(6,16,29)
A atividade motora isoladamente também parece ser um método sensível de avaliação da dor em recém-nascidos a termo e prematuros, mas, quando analisada em conjunto com outras variáveis fisiológicas e comportamentais, torna-se mais segura(16) Já a observação da expressão facial é um método específico para avaliação da dor.(30)
Constatada a subjetividade que envolve o tema estudado e a necessidade da instituição de modelos para avaliar a presença da dor, foram desenvolvidas várias escalas para sua avaliação. Dentre elas, as mais estudadas são: Escala de Codificação de Atividade Facial Neonatal (NFCS - Neonatal Facial Coding Scale), Escala de Avaliação de Dor Neonatal (NIPS - Neonatal Infant Pain Scale) e o Perfil de Dor do Prematuro (PIPP - Premature Infant Pain Profile).(31-33)
A NFCS é uma escala unidimensional, amplamente utilizada em pesquisas, aceita e válida para avaliação da dor aguda. A NIPS avalia os parâmetros antes e após procedimentos invasivos em neonatos a termo e prematuros. Além disso, permite avaliar a resposta do bebê aos procedimentos potencialmente dolorosos. Nos pacientes que estão em ventilação mecânica, dobra-se a pontuação da mímica facial, sem avaliar o parâmetro choro (paciente intubado).(34) A PIPP é a escala mais indicada para ser aplicada em prematuros, pois leva em consideração as alterações próprias desse grupo de pacientes.
Ainda não dispomos de um padrão-ouro para avaliação de dor no neonato, e os instrumentos atualmente disponíveis não são capazes de medir objetivamente a intensidade da dor. Todavia, dada à importância da correta avaliação das situações para que se possa instituir uma adequada conduta, cada caso deve ser analisado individualmente, e o instrumento mais adequado deve ser utilizado.
Conhecimento sobre drogas disponíveis e efeitos adversos
Não existe um consenso em relação ao melhor esquema farmacológico para tratamento da dor de pacientes criticamente enfermos. Mesmo com as possíveis explicações já relatadas para o pouco uso de analgesia em unidades de terapia intensiva neonatal, deve-se lembrar dos efeitos adversos dos fármacos, relatados como "temíveis" por alguns profissionais. Dentre esses, destaca-se: depressão respiratória, rigidez da parede torácica, tolerância, abstinência e dependência.(16,34-38) Observa-se, com maior freqüência, a utilização das seguintes drogas nas unidades de terapia intensiva neonatal:(9,39)
Analgésicos não-opióides
Dentre os fármacos desse grupo, apenas o paracetamol está liberado para uso no período neonatal, porém, no Brasil não se dispõe de apresentação para uso parenteral, o que limita sua utilização nas unidades de terapia intensiva neonatal.(16,40) A dose recomendada é de 10 a 15mg/kg para recém-nascidos de termo e 10mg/kg para prematuros, a cada seis horas. Está contra-indicado em portadores de deficiência de G6PD.(16)
Analgésicos opióides
São a mais importante arma para o tratamento da dor em terapia intensiva neonatal.(10) Entre os efeitos indesejáveis comuns a todos os opióides, destacam-se: depressão respiratória, sedação, íleo paralítico, retenção urinária, náuseas, vômitos e dependência física.(41)
- Morfina: doses recomendadas: administração intermitente de 0,05 a 0,2mg/kg/dose, até a cada 4 horas, por via venosa. Para administração contínua em recém-nascidos de termo de 5 a 20µg/kg/hora e para prematuros de 2 a 10µg/kg/hora.(10)
- Fentanil: apresenta início de ação mais rápido e duração mais curta do que a morfina, com estabilidade hemodinâmica, sendo bastante utilizado em neonatologia. Doses recomendadas: administração intermitente de 1 a 4µg/kg, até a cada 2 a 4 horas, por via venosa. Para administração contínua em recém-nascidos de termo de 0,5 a 3µg/kg/hora e para prematuros de 0,5 a 2µg/kg/hora.(10) A desvantagem da infusão contínua é o efeito de tolerância.(16)
- Remifentanil: opióide sintético que apresenta todas as características farmacodinâmicas da sua classe, porém com recuperação rápida dos seus efeitos (dentro de cinco a dez minutos) e correlação direta entre dose, níveis sangüíneos e resposta. As doses variam de acordo com o objetivo desejado, sendo recomendado para infusão em bolus para intubação de 1 a 3µg/kg e para infusão contínua de 0,1 a 5µg/kg/minuto.(42)
VARIÁVEIS RELACIONADAS AOS SERVIÇOS
Com o aumento da complexidade da atenção (uso indiscriminado de tecnologia e procedimentos médicos cada vez mais sofisticados), houve uma expansão de trabalhos e pesquisas de avaliação da qualidade da atenção médica. Sob essa visão, vários estudos vêm sendo desenvolvidos em diversos países, com o objetivo de verificar a prática profissional relacionada ao manejo da dor no período neonatal, porém percebe-se um baixo número de serviços que possuem rotinas escritas para manejo da dor aguda e para controle da dor prolongada.(7,43) Observa-se ainda uma lacuna entre as evidências científicas e a prática clínica(20,44) e destaca-se a necessidade de todas as unidades terem suas normas e rotinas para analgesia neonatal, pois transformar evidências em práticas é difícil, e requer certo tempo.(45)
CONCLUSÃO
Sabe-se que, apesar de ser o alívio da dor um dos princípios básicos da medicina, além de envolver questões éticas e humanitárias, a analgesia não é uma prática rotineira em unidades de terapia intensiva neonatal, apesar de estarem disponíveis atualmente vários guias práticos e consensos a respeito do manejo da dor no neonato de risco.(10,16,46,47)
Portanto, faz-se necessário unir esforços no sentido de corrigir as atuais falhas na assistência intensiva neonatal, através de novas pesquisas sobre o tema, incluindo drogas mais seguras, introdução no currículo formal de disciplinas relativas a estratégias para promover o bem estar do paciente, organização dos serviços no sentido da detecção das falhas na assistência e do estabelecimento de rotinas específicas sobre o manejo da dor no recém-nascido, além da atualização e sensibilização dos profissionais envolvidos nos cuidados aos bebês.
Submetido em 18 de Junho de 2008
Aceito em 26 de Novembro de 2008
Recebido da Universidade Federal de Pernambuco - UFPE - Recife (PE), Brasil.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
05 Fev 2009 -
Data do Fascículo
Dez 2008
Histórico
-
Aceito
26 Nov 2008 -
Recebido
18 Jun 2008