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Relações entre idade linguística e consciência fonológica de crianças com transtorno do desenvolvimento da linguagem

RESUMO

Objetivo:

verificar se há relações entre a idade linguística e consciência fonológica em crianças com transtorno do desenvolvimento de linguagem.

Métodos:

estudo retrospectivo. Foram sujeitos 53 crianças com transtorno do desenvolvimento da linguagem com idade entre 4 e 7 anos. O diagnóstico seguiu critérios de inclusão descritos internacionalmente. Todas as crianças passaram por avaliação da consciência fonológica e avaliação de linguagem por meio de testes específicos. Os dados passaram por análise estatística. A análise de correlação foi realizada utilizando o teste de correlação de Pearson. Na análise de regressão, os modelos tiveram a idade linguística expressiva e receptiva como variáveis independentes e o desempenho em consciência fonológica como variável dependente. O valor de significância estatística adotado foi igual a 5% (p ≤ 0,05).

Resultados:

os dados indicaram forte relação entre idade linguística e habilidades de consciência fonológica. Observou-se, ainda, forte correlação entre consciência silábica e idade linguística. Além disso, a consciência fonêmica mostrou-se correlacionada com a idade cronológica. Todas as correlações foram confirmadas por meio de uma análise de regressão.

Conclusão:

os dados indicaram forte correlação entre a idade linguística e as habilidades de consciência fonológica em crianças com transtorno do desenvolvimento da linguagem. Ademais, mostraram evidências de que essa correlação existe tanto para idade linguística expressiva quanto receptiva apenas quanto às habilidades silábicas.

Descritores:
Avaliação; Linguagem; Criança; Transtorno Específico de Linguagem; Testes de Linguagem

ABSTRACT

Purpose:

to verify whether there is a relation between linguistic age and performance in phonological awareness of children presented with developmental language disorder.

Methods:

a retrospective study comprising 53 children with developmental language disorder aged between 4 and 7 years old. Their language disorder diagnosis followed the inclusion criteria internationally described and Brazilian standardized tests for language assessment were used. All children underwent phonological awareness and linguistic skills assessment via standardized tests and all data went through statistical analysis. For correlation analysis, the p-value was performed through the Pearson’s test. In the regression analysis the models used expressive and receptive linguistic age as independent variables and the performance in phonological awareness as a dependent variable (p=0,036* and p= 0,048*).

Results:

the data indicated a strong correlation between language age and phonological awareness skills in children with language developmental disorder. A strong correlation between syllabic awareness and linguistic age was found as well. In addition, phonemic awareness was correlated to their chronological age. All correlation tests were confirmed by regression analysis.

Conclusion:

the data indicated a strong correlation between linguistic age and phonological awareness in children with developmental language disorders. These findings raise discussion regarding phonemic skills in children under this condition and their literacy process.

Keywords:
Evaluation; Language; Child; Specific Language Disorder; Language Tests

Introdução

Crianças com Transtorno do Desenvolvimento de Linguagem (TDL) apresentam desenvolvimento atípico e discrepante nas habilidades de linguagem, além de desenvolvimento linguístico comprometido11. Bishop DVM, Adams C. A prospective study of the relationship between specific language impairment, phonological disorders and reading retardation. J Child Psychol Psychiatry. 1990;31(7):1027-50.

2. Bishop DVM, Snowling MJ, Thompson PA, Greenhalgh T, Adams C, Archibald L et al. Phase 2 of CATALISE: a multinational and multidisciplinary Delphi consensus study of problems with language development: Terminology. J Child Psychol Psychiatry Allied Discip. 2017;58(10):1068-80.
-33. Fortunato-Tavares T, Rocha CN, de Andrade CRF, Befi-Lopes DM, Schochat E, Hestvik A et al. Processamento linguístico e processamento auditivo temporal em crianças com distúrbio específico de linguagem. Pro-Fono R. Atualiz. Cientif. 2009;21(4):279-84.. Embora a característica marcante consista na heterogeneidade das manifestações linguísticas, é frequente a manutenção de processos fonológicos do desenvolvimento e presença de processos idiossincráticos, vocabulário restrito, déficits em diferentes subsistemas linguísticos, prejuízo na memória fonológica e compreensão linguística comprometida44. Befi-Lopes DM, Cáceres AM, Esteves L. Linguistic profile of children with language impairment. Rev Soc Bras Fonoaudiol. 2012;17(2):274-8..

Nos últimos anos, diversos pesquisadores dedicaram-se ao estudo mais aprofundado do TDL, que, até pouco tempo atrás, era referido em toda a literatura internacional como Distúrbio Específico de Linguagem (DEL) com características linguísticas bem definidas, critérios diagnósticos e manifestações descritas em diferentes idiomas22. Bishop DVM, Snowling MJ, Thompson PA, Greenhalgh T, Adams C, Archibald L et al. Phase 2 of CATALISE: a multinational and multidisciplinary Delphi consensus study of problems with language development: Terminology. J Child Psychol Psychiatry Allied Discip. 2017;58(10):1068-80.,33. Fortunato-Tavares T, Rocha CN, de Andrade CRF, Befi-Lopes DM, Schochat E, Hestvik A et al. Processamento linguístico e processamento auditivo temporal em crianças com distúrbio específico de linguagem. Pro-Fono R. Atualiz. Cientif. 2009;21(4):279-84.,55. Broc L, Joye N, Dockrell JE, Olive T. Capturing the nature of spellind errors in Developmental Language Disorder: a scoping review. Lang Speech Hear Serv in Schools. 2021;52(4):1127-40

6. Godin MP, Gagné A, Chapleau N. Spelling acquisition in French children with developmental language disorder: An analysis of spelling error patterns. Child Lang Teach Ther. 2018;34(3):221-33.

7. Snowling MJ, Moll K, Hulme C. Language difficulties are a shared risk factor both for reading and mathematics disorder. J Exp Child Psyshol. 2021;202(2021):1-12.

8. Snowling MJ, Duff FJ, Nash HM, Hulme C. Language profiles and literacy outcomes of children with resolving, emerging, or persisting language impairments. J Child Psychol Psychiatry Allied Discip. 2016;57(12):1360-9.
-99. Rudolph JM, Leonard LB. Early language milestones and specific language impairment. J Early Interv. 2016;38(1):41-58.. Entretanto, com o avanço dos estudos, o entendimento dessa patologia de forma mais abrangente pôde propiciar uma expansão do conceito de alterações estritas à linguagem, mas também passou a considerar outras possíveis comorbidades e/ou alterações que podem permear ou intensificar as alterações de linguagem, como as intelecto-cognitivas e/ou atencionais22. Bishop DVM, Snowling MJ, Thompson PA, Greenhalgh T, Adams C, Archibald L et al. Phase 2 of CATALISE: a multinational and multidisciplinary Delphi consensus study of problems with language development: Terminology. J Child Psychol Psychiatry Allied Discip. 2017;58(10):1068-80.. Ademais, o entendimento de tal transtorno como do tipo desenvolvimental implica em uma atenção mais holística à aquisição da linguagem como um todo, compreendendo também uma maior preocupação e investigação do processo de aprendizagem da linguagem escrita por essa população, algo que não era muito comum em alguns países, como é o caso do Brasil.

Sabe-se, entretanto, que ao ingressar na escola, esse grupo de crianças costuma apresentar alterações na aquisição da língua em seu modo escrito, as quais estão geralmente associadas a prejuízos no processamento fonológico, possivelmente por dificuldades perceptuais dos sons da fala, além do comprometimento nas demais áreas da linguagem55. Broc L, Joye N, Dockrell JE, Olive T. Capturing the nature of spellind errors in Developmental Language Disorder: a scoping review. Lang Speech Hear Serv in Schools. 2021;52(4):1127-40. Estudos recentes, realizados em Português do Brasil (PB), têm indicado que crianças com TDL apresentam prejuízos em habilidades metalinguísticas, dentre elas, as metafonológicas, e em específico, as de consciência fonológica, comprometendo o processo de aprendizagem da leitura e escrita1010. Pedott PR, Cáceres-Assenço AM, Befi-Lopes DM. Alliteration and rhyme skills in children with specific language impairment. CoDAS. 2017;29(2):e20160017.

11. Delage H, Durrleman S. Developmental dyslexia and specific language impairment: Distinct syntactic profiles? Clin Lingu Phonetics. 2018;32(8):758-85.

12. Kouri TA. Phonogram and word decoding patterns in children with developmental language disorders: Evidence for protracted periods of graphophonemic decoding. J Commun Disord. 2020;84:1-15.
-1313. Lauterbach AA, Park Y, Lombardino LJ. The roles of cognitive and language abilities in predicting decoding and reading comprehension: comparisons of dyslexia and specific language impairment. Ann Dyslexia. 2017;67(3):201-18.. A consciência fonológica permite a identificação e manipulação das unidades das palavras e ocorre em dois níveis: silábico ou fonêmico; é uma habilidade que evolui com a experiência em linguagem oral e, quando adequadamente desenvolvida, desempenha papel importantíssimo no processo de aquisição e desenvolvimento da leitura e da escrita, principalmente num idioma de base alfabética, como é o caso do PB1010. Pedott PR, Cáceres-Assenço AM, Befi-Lopes DM. Alliteration and rhyme skills in children with specific language impairment. CoDAS. 2017;29(2):e20160017.,1414. Soares AJC, Cárnio MS. Phonemic awareness in students before and after language workshops. J Soc Bras Fonoaudiol. 2012;24(1):69-75.,1515. Chen H, Myhill D. Children talking about writing: Investigating metalinguistic understanding. Linguist Edu. 2016;35(2016):100-8.. Em caso de alterações ou déficits nessas habilidades, a aquisição e desenvolvimento da leitura e escrita poderão estar comprometidas.

Crianças com transtorno do desenvolvimento da linguagem apresentam déficits marcados no processamento fonológico, colocando-as em maior risco de déficit de leitura. Um estudo1212. Kouri TA. Phonogram and word decoding patterns in children with developmental language disorders: Evidence for protracted periods of graphophonemic decoding. J Commun Disord. 2020;84:1-15. investigou a influência das características fonológicas e lexicais de palavras no desempenho em consciência fonológica, comparando crianças com desenvolvimento típico, TDL e dislexia. Os resultados forneceram três achados principais: (a) crianças em desenvolvimento típico obtiveram vantagem para palavras não comuns, (b) crianças com TDL apresentaram desempenho inferior ao de crianças típicas, (c) crianças com dislexia exibiram um padrão de desempenho imaturo quando comparado ao de crianças com TDL e daquelas com desenvolvimento típico.

Coletivamente, os resultados em si reforçam a teoria da hipótese do déficit fonológico, centrado na influência das características dos sons da fala e na capacidade de manipulá-los. Essa teoria postula que as crianças com déficits nas habilidades de consciência fonológica têm dificuldade em armazenar e processar os sons de palavras. Entretanto, cabe reiterar que as características lexicais também possuem sua influência na consciência fonológica, ou seja, as representações mentais das palavras se tornam cada vez mais detalhadas à medida que o vocabulário da criança cresce. Dessa forma, quanto maior e mais estruturado o vocabulário de uma criança, maiores e melhores serão as suas representações fonológicas, que são necessárias para o adequado processamento da informação e para a manipulação de estruturas linguísticas de forma consciente1212. Kouri TA. Phonogram and word decoding patterns in children with developmental language disorders: Evidence for protracted periods of graphophonemic decoding. J Commun Disord. 2020;84:1-15..

Diversos estudos longitudinais apontaram consistentemente que crianças com TDL apresentam alto risco para alterações de aprendizagem em decorrência de seu déficit léxico-fonológico55. Broc L, Joye N, Dockrell JE, Olive T. Capturing the nature of spellind errors in Developmental Language Disorder: a scoping review. Lang Speech Hear Serv in Schools. 2021;52(4):1127-40,66. Godin MP, Gagné A, Chapleau N. Spelling acquisition in French children with developmental language disorder: An analysis of spelling error patterns. Child Lang Teach Ther. 2018;34(3):221-33.,1111. Delage H, Durrleman S. Developmental dyslexia and specific language impairment: Distinct syntactic profiles? Clin Lingu Phonetics. 2018;32(8):758-85.,1616. Graham S, Hebert M, Fishman E, Ray AB, Rouse AG. Do children classified with specific language impairment have a learning disability in writing? A meta-analysis. J Learn Disabil. 2020;53(4):292-310. Entretanto, dada à heterogeneidade do quadro, as manifestações apresentadas pelas crianças com TDL podem se apresentar extremamente diversas tanto em termos de severidade quanto em relação ao perfil de alterações fonológicas, lexicais e morfossintáticas na modalidade oral e escrita1616. Graham S, Hebert M, Fishman E, Ray AB, Rouse AG. Do children classified with specific language impairment have a learning disability in writing? A meta-analysis. J Learn Disabil. 2020;53(4):292-310.

Um estudo1717. Catts HW, Fey ME, Tomblin JB, Zhang X. A longitudinal investigation of children with language impairments. J Speech, Lang Hear Res. 2002;45(6):1142-57. avaliou o desenvolvimento da leitura de 328 crianças com alterações de linguagem avaliadas no 2º e 4º ano. De acordo com seus resultados, aproximadamente 50% da amostra apresentou alterações após dois ou quatro anos de escolarização. Apesar disso, os autores afirmam que algumas crianças com TDL parecem adquirir leitura e escrita de maneira semelhante às crianças típicas, indicando que crianças que superam suas alterações por volta dos cinco anos de idade tendem a obter melhores resultados na leitura11. Bishop DVM, Adams C. A prospective study of the relationship between specific language impairment, phonological disorders and reading retardation. J Child Psychol Psychiatry. 1990;31(7):1027-50.,1717. Catts HW, Fey ME, Tomblin JB, Zhang X. A longitudinal investigation of children with language impairments. J Speech, Lang Hear Res. 2002;45(6):1142-57.,1818. Conti-Ramsden G, Mok PLH, Pickles A, Durkin K. Adolescents with a history of specific language impairment (SLI): strengths and difficulties in social, emotional and behavioral functioning. Res Dev Disabil. 2013;34(11):4161-9..

Com base nessa hipótese, a investigação da relação entre os déficits na linguagem e as alterações de leitura e escrita é fundamental. Um modelo desenvolvimental causal que considera a interdependência entre déficits cognitivos e linguísticos auxilia no entendimento destas relações1919. Scarborough HS. Connecting early language and literacy to later reading (dis)abilities: evidence, theory, and practice. In: Neuman S , Dickinson D, editors, Handbook for research in early literacy. 2018. New York: Guilford Press. p. 23-36.. De acordo com esse modelo, as dificuldades de leitura de crianças com TDL devem ser consideradas como uma consequência de suas alterações na linguagem oral.

Nesse sentido, considera-se que o perfil linguístico dessas crianças pode mudar por influência da aquisição de novas habilidades, ainda que habilidades linguísticas anteriores permaneçam pouco desenvolvidas. Assim, crianças com TDL podem apresentar diferentes padrões de dificuldades em pontos distintos do desenvolvimento. Isso porque as alterações manifestadas podem ocorrer devido a um fator único comum que prejudica o processo de aquisição da leitura e escrita como um todo, mas também pode surgir de alterações específicas, por exemplo, um déficit significativo na aquisição de novos vocábulos na linguagem oral pode levar a dificuldades persistentes na compreensão de leitura. Sendo assim, o estudo entre as relações da aquisição da linguagem oral e escrita em crianças com TDL tem se tornado interesse de diferentes pesquisadores55. Broc L, Joye N, Dockrell JE, Olive T. Capturing the nature of spellind errors in Developmental Language Disorder: a scoping review. Lang Speech Hear Serv in Schools. 2021;52(4):1127-40,66. Godin MP, Gagné A, Chapleau N. Spelling acquisition in French children with developmental language disorder: An analysis of spelling error patterns. Child Lang Teach Ther. 2018;34(3):221-33.,1313. Lauterbach AA, Park Y, Lombardino LJ. The roles of cognitive and language abilities in predicting decoding and reading comprehension: comparisons of dyslexia and specific language impairment. Ann Dyslexia. 2017;67(3):201-18.,2020. Loucas T, Baird G, Simonoff E, Slonims V. Phonological processing in children with specific language impairment with and without reading difficulties. Int J Lang Commun Disord. 2016;51(5):581-8..

Dessa forma, diversos estudos já demonstraram que o desenvolvimento da linguagem em crianças com TDL acontece de forma mais lenta quando comparado ao desenvolvimento de crianças típicas. Assim, tem-se que, em muitos casos, crianças com TDL apresentam idade linguística diferente da idade cronológica11. Bishop DVM, Adams C. A prospective study of the relationship between specific language impairment, phonological disorders and reading retardation. J Child Psychol Psychiatry. 1990;31(7):1027-50.,44. Befi-Lopes DM, Cáceres AM, Esteves L. Linguistic profile of children with language impairment. Rev Soc Bras Fonoaudiol. 2012;17(2):274-8.. Um teste muito utilizado para a caracterização da idade linguística no exterior é o Test of Early Language Development(TELD-3)33. Fortunato-Tavares T, Rocha CN, de Andrade CRF, Befi-Lopes DM, Schochat E, Hestvik A et al. Processamento linguístico e processamento auditivo temporal em crianças com distúrbio específico de linguagem. Pro-Fono R. Atualiz. Cientif. 2009;21(4):279-84.,2121. Hadley PA, Short H. The onset of tense marking in children at risk for specific language impairment. J Speech, Lang Hear Res. 2005;48(6):1344-62.

22. Hammer CS, Lawrence FR, Miccio AW. Exposure to english before and after entry into head start: Bilingual children's receptive language growth in Spanish and English. Int J Biling Educ Biling. 2008;11(1):30-56.

23. Giusti E, Befi-Lopes DM. Tradução e adaptação transcultural de instrumentos estrangeiros para o Português Brasileiro (PB). Pro-Fono R. Atualiz. Cientif. 2008;20(3):207-10.
-2424. Hresko WP, Reid DK, Hamill DD. Test of early language development. 3rd ed. San Antonio: Pearson Assessment; 1999.. No Brasil, sua utilização acontece prioritariamente em pesquisa e tem auxiliado no monitoramento da evolução do desenvolvimento da linguagem, além de propiciar melhor entendimento do estágio de desenvolvimento da linguagem no qual a criança se encontra; o teste tem se mostrado um importante instrumento de pesquisa para determinação e caracterização da idade linguística de crianças com alterações específicas de linguagem44. Befi-Lopes DM, Cáceres AM, Esteves L. Linguistic profile of children with language impairment. Rev Soc Bras Fonoaudiol. 2012;17(2):274-8..

Sabendo-se que o desenvolvimento de habilidades metafonológicas, como a consciência fonológica, está intrinsicamente ligado à proficiência em linguagem oral e que essa, por sua vez, encontra-se alterada em crianças com TDL, investigar em que medida o gap entre idade linguística e cronológica pode estar relacionado às alterações na consciência fonológica, pode auxiliar no entendimento do desenvolvimento de tais habilidades nessa população. Ademais, considerando que as escolas regulares tendem a considerar exclusivamente a idade cronológica para matricular as crianças, é fundamental que se discuta a importância de se considerar a idade linguística em crianças com TDL. Outrossim, os resultados advindos da presente pesquisa podem prover dados ao indicar como se dá o processo de aquisição de leitura e escrita dessas crianças em idade pré-escolar e, além disso, propiciar subsídios para um melhor delineamento terapêutico, incluindo, se necessário, atividades envolvendo habilidades metafonológicas no processo terapêutico da criança com TDL. Assim, o objetivo do presente estudo foi verificar se há relação entre a idade linguística e o desempenho em consciência fonológica de crianças com TDL.

Métodos

Estudo de caráter retrospectivo aprovado pelo Comitê de Ética da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Brasil, sob nº 406.972. Todos os pais/responsáveis assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para participação de seus filhos nessa pesquisa, quando da entrada para atendimento no serviço onde o estudo foi realizado.

Participantes

Para a realização da presente pesquisa, foram utilizados os dados de prontuário de crianças com diagnóstico de TDL, com idade entre 4 e 7 anos e 11 meses, com média de idade de 6 anos e 2 meses no período em que os dados foram coletados. Foram selecionados os dados dos prontuários de 41 sujeitos do sexo masculino e 12 do sexo feminino, totalizando 53 sujeitos. Todas as crianças foram atendidas em uma clínica escola de uma universidade no período de 2012 a 2017. A análise dos prontuários ocorreu no biênio 2018-2019. O diagnóstico de TDL dos sujeitos foi realizado com base em critérios de inclusão descritos internacionalmente, a saber: prejuízo em pelo menos duas medidas de linguagem que compõem a avaliação completa de linguagem, que abrange a caracterização da maturidade simbólica, memória de curto prazo fonológica, vocabulário receptivo e expressivo, fonologia, extensão média do enunciado, discurso, tal qual realizado em estudo anterior33. Fortunato-Tavares T, Rocha CN, de Andrade CRF, Befi-Lopes DM, Schochat E, Hestvik A et al. Processamento linguístico e processamento auditivo temporal em crianças com distúrbio específico de linguagem. Pro-Fono R. Atualiz. Cientif. 2009;21(4):279-84.; desempenho dentro dos critérios de normalidade em medida de quociente intelectual (QI); e ausência de comprometimento neurológico, psiquiátrico e/ou sensorial.

Os dados referentes ao desempenho em consciência fonológica foram avaliados por meio do Instrumento de Avaliação Sequencial da Consciência Fonológica (CONFIAS)2525. Moojen S, Lamprecht RR, Santos RM, Freitas GM, Brodacz R, Siqueira M et al. CONFIAS - Consciência Fonológica: instrumento de avaliação sequencial. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2003.. A aferição da idade linguística expressiva e receptiva foi realizada por meio do Test of Early Language Development(TELD-3). É importante ressaltar que a comparação do desempenho das crianças nos referidos testes utilizou, como balizador, a primeira avaliação da consciência fonológica que ocorre, geralmente, aos cinco anos de idade cronológica, como rotina das avaliações de linguagem da referida clínica-escola. Assim, mesmo pacientes que já tinham realizado avaliação do TELD-3 anterior à idade de cinco anos tiveram a sua avaliação refeita ao completar cinco anos, como parte da pesquisa e também como política da clínica-escola de acompanhamento anual da idade linguística das crianças.

Para a avaliação da consciência fonológica, foi utilizado o Instrumento de Avaliação Sequencial da Consciência Fonológica, o CONFIAS2525. Moojen S, Lamprecht RR, Santos RM, Freitas GM, Brodacz R, Siqueira M et al. CONFIAS - Consciência Fonológica: instrumento de avaliação sequencial. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2003.. O CONFIAS é composto por duas partes: nível silábico, constituído por nove itens de avaliação, em ordem crescente de dificuldade, que são: síntese silábica, segmentação, identificação da sílaba inicial, identificação de rima, produção de palavra com sílaba dada, identificação da sílaba medial, produção de rima, exclusão e transposição silábica. Similarmente, o nível fonêmico também é organizado em ordem crescente de dificuldade e é constituído por sete itens, a saber: produção de palavra que se inicia com o som dado, identificação do fonema inicial, identificação do fonema final, exclusão, síntese, segmentação e transposição fonêmica.

Todas as crianças foram avaliadas seguindo as instruções do teste, que incluem, para todas as tarefas, dois estímulos-teste para garantir que a criança entendeu o que se espera dela na execução das atividades propostas. Os dados foram marcados em protocolo específico e a pontuação também foi realizada conforme parâmetros do teste. Dessa maneira, a pontuação seguiu os critérios estabelecidos pelos autores (respostas corretas valem um ponto e incorretas, zero), com possibilidade de se atingir 40 pontos na parte silábica e 30 na fonêmica.

O Test of Early Language Development (TELD-3)2424. Hresko WP, Reid DK, Hamill DD. Test of early language development. 3rd ed. San Antonio: Pearson Assessment; 1999. é um protocolo de identificação precoce de alterações do desenvolvimento de linguagem, que avalia as habilidades receptivas e expressivas nos componentes semântico, sintático e morfológico. Ele pode ser aplicado em crianças de 2 anos a 7 anos e 11 meses e fornece um índice para a idade linguística receptiva e outro para a idade linguística expressiva, além de um índice de linguagem falada, que corresponde à combinação dessas medidas, equivalendo a um indicador de habilidade geral da linguagem oral. O teste original é composto pela forma A e a forma B que, segundo os autores, são equivalentes. É importante ressaltar que a adaptação para o Português Brasileiro foi realizada apenas para a forma A, a qual foi utilizada no presente estudo2323. Giusti E, Befi-Lopes DM. Tradução e adaptação transcultural de instrumentos estrangeiros para o Português Brasileiro (PB). Pro-Fono R. Atualiz. Cientif. 2008;20(3):207-10..

O subteste de linguagem receptiva conta com 37 itens, sendo 24 itens semânticos e 13 morfossintáticos que verificam as habilidades de compreensão oral da criança. Por outro lado, o subteste de linguagem expressiva consta de 39 itens, sendo 22 itens semânticos e 17 morfossintáticos. A pontuação obtida em ambos os subtestes é convertida em quociente e pode receber sete classificações possíveis, que variam de muito superior a muito pobre. Ademais, a soma do escore bruto, permite encontrar o quociente de linguagem falada, que propicia uma visão geral do desempenho da criança em linguagem.

A tradução e validação do TELD-3 para o Português mostrou que esta versão é passível de utilização para a realização de diagnósticos, a verificação da gravidade e a observação da evolução clínica de crianças com distúrbios de linguagem2323. Giusti E, Befi-Lopes DM. Tradução e adaptação transcultural de instrumentos estrangeiros para o Português Brasileiro (PB). Pro-Fono R. Atualiz. Cientif. 2008;20(3):207-10..

Por se tratar de um estudo específico para crianças com TDL, os sujeitos foram analisados como um único grupo, sendo a divisão realizada para análise focada no desempenho das provas aplicadas e suas correlações. Os dados de ambas as provas foram organizados e tabulados em planilha do Excel e, em seguida, encaminhados para a análise estatística. O valor de significância estatística adotado foi igual a 5% (p ≤ 0,05). Utilizou-se o software SPSS Statistics, versão 25.0 (IBM Corp., Armonk, NY, EUA). Para o cálculo dos intervalos de confiança de 95% foi utilizado o método de viés corrigido e acelerado com base em 2000 amostras bootstrap. Os valores entre colchetes nas tabelas indicam os limites superior e inferior dos intervalos de confiança de 95%. Para a análise de correlação, realizou-se o cálculo do coeficiente de correlação e do valor de p por meio do teste de correlação de Pearson (paramétrico), uma vez que todas as variáveis apresentaram número amostral suficiente (n>30) para a utilização direta de testes paramétricos em virtude do Teorema Central do Limite.

Na análise de regressão, os modelos tiveram a idade linguística expressiva e receptiva obtidas no TELD-3 como variáveis independentes e o desempenho total nos níveis silábico e fonêmico do CONFIAS como variável dependente. A idade cronológica foi inserida como primeiro passo no modelo, de modo a controlar o seu efeito. As variáveis independentes foram inseridas simultaneamente no segundo passo.

Resultados

A análise descritiva mostra melhor desempenho em síntese silábica e segmentação e pontuação mais baixa na produção de rimas e transposição silábica. No que diz respeito à pontuação total, a média alcançada pelas crianças foi menor que a metade da pontuação máxima do teste (Tabela 1).

Tabela 1:
Desempenho das crianças com Transtorno do Desenvolvimento da Linguagem em consciência silábica e fonêmica

Os dados da Tabela 1 também mostram que, em relação à consciência fonêmica, as médias foram baixas em todas as tarefas, com destaque para segmentação e transposição fonêmica. A melhor média foi observada na identificação de fonema inicial e, ainda assim, com um valor muito baixo. No que diz respeito à pontuação total, a média apresentada pelo grupo é menor do que um terço da pontuação máxima.

Na análise dos resultados do TELD-3, os dados indicam melhores médias na linguagem receptiva e um alto desvio-padrão nas atividades de linguagem falada (Tabela 2).

Tabela 2:
Desempenho das crianças com Transtorno do Desenvolvimento da Linguagem no Test of Early Language Development

A análise de correlação apresentada na Tabela 3 indica correlações positivas entre idade linguística expressiva em diversas tarefas silábicas. É possível também observar correlação entre a pontuação total de consciência silábica e idade cronológica.

Tabela 3:
Correlação entre as habilidades silábicas e as tarefas do Test of Early Language Development

Em relação à consciência fonêmica, a análise de correlação também ocorreu entre consciência fonêmica e a idade linguística expressiva, entretanto, em apenas uma das tarefas fonêmicas. Contrariamente ao que ocorreu nas tarefas silábicas, observou-se correlação entre as tarefas fonêmicas e a idade cronológica, assim como em relação à pontuação total da consciência fonêmica (Tabela 4).

Tabela 4:
Correlação entre as habilidades fonêmica e as tarefas do Test of Early Language Development

No intuito de investigar mais profundamente se a idade linguística ou cronológica se correlaciona com a consciência fonológica, uma análise de regressão foi realizada. O modelo usou as tarefas do TELD-3 como variáveis independentes e consciência silábica e fonêmica como variáveis dependentes. A idade cronológica foi inserida no modelo com o objetivo de controlar seu efeito e as variáveis independentes foram inseridas simultaneamente em seguida (Tabela 5).

Tabela 5:
Modelo de regressão linear do desempenho no Test of Early Language Development como preditor de desempenho em consciência silábica e fonêmica

Os dados da Tabela 5 mostram que a idade linguística expressiva e receptiva foi efetiva para explicar 29,0% (r² = 0,29, p < 0,001) da variância na pontuação total das habilidades silábicas. Observou-se ainda que somente a idade linguística expressiva foi considerada um preditor estatisticamente significante para o desempenho em consciência silábica. O coeficiente b não padronizado mostra que mantendo-se todos os valores constantes, ao acrescentar-se um ano na idade linguística expressiva, ocorre uma aumento de 3,7 pontos na pontuação total da consciência silábica.

Ainda no que diz respeito aos dados da Tabela 5, evidenciou-se que a idade linguística expressiva foi efetiva para explicar 13,0% (r² = 0,13, p < 0,048) da variância da pontuação total da consciência fonêmica. Observou-se ainda que somente a idade linguística expressiva foi considerada um preditor estatisticamente significante para o desempenho em consciência fonêmica. O coeficiente b não padronizado indica que mantendo-se todos os valores estáveis e aumentando um ano na idade linguística expressiva, a pontuação no valor total em consciência fonêmica aumenta 2 pontos.

Discussão

A grande diferença entre os valores mínimos e máximos para as pontuações em consciência fonológica demonstra a grande heterogeneidade das crianças no que se refere às capacidades fonológicas. Os dados também indicaram melhor desempenho em síntese e segmentação silábica, seguida por identificação de sílaba inicial. É importante ressaltar que tais tarefas são mais simples, comparadas à rima, exclusão e transposição silábica, que demandam habilidades mais complexas tanto do ponto de vista linguístico quanto de processamento fonológico. Em relação à consciência fonêmica, observam-se maiores médias na identificação de fonema inicial e produção de palavra com o som dado, tarefas que envolvem pistas sonoras e visuais, uma vez que tais tarefas envolvem a utilização de fricativas labiodentais.

Ao analisar mais profundamente a consciência silábica e fonêmica, tarefa por tarefa, os desvios-padrão mostram-se baixos, entretanto, considerando-se os valores totais, estes apresentam-se elevados. Neste sentido, é possível observar um padrão nesta população ao se observar maiores índices de acertos em tarefas que demandam menos processamento linguístico e fonológico e resultados muito baixos em tarefas que envolvem maior complexidade linguística. Ressalta-se, porém, que ainda que apresentem melhor pontuação em tarefas linguisticamente mais simples, os resultados das crianças com TDL encontram-se muito abaixo do esperado para seus pares típicos1010. Pedott PR, Cáceres-Assenço AM, Befi-Lopes DM. Alliteration and rhyme skills in children with specific language impairment. CoDAS. 2017;29(2):e20160017.,1414. Soares AJC, Cárnio MS. Phonemic awareness in students before and after language workshops. J Soc Bras Fonoaudiol. 2012;24(1):69-75.,1515. Chen H, Myhill D. Children talking about writing: Investigating metalinguistic understanding. Linguist Edu. 2016;35(2016):100-8.. Além disso, verificando-se os resultados de crianças com TDL, quando comparados aos resultados de crianças disléxicas de outros estudos brasileiros, observa-se que as crianças com TDL parecem, mais uma vez, apresentar resultados inferiores2626. Germano GD, César ABPC, Capellini SA. Screening protocol for early identification of Brazilian children at risk for dyslexia. Front Psychol. 2017;8(OCT):1-13.,2727. Germano GD, Capellini SA. Desempenho de escolares com dislexia, transtornos e dificuldades de aprendizagem em provas de habilidades metafonológicas (PROHFON). J Soc Bras Fonoaudiol. 2011;23(2):135-41..

Os resultados permitem especular que a heterogeneidade de desempenho pode estar relacionada à variabilidade de alterações que essa população apresenta na linguagem oral, conforme relatado por diversos estudos e, principalmente, levando em consideração a correlação entre as habilidades de linguagem oral e de consciência fonológica descrita na literatura33. Fortunato-Tavares T, Rocha CN, de Andrade CRF, Befi-Lopes DM, Schochat E, Hestvik A et al. Processamento linguístico e processamento auditivo temporal em crianças com distúrbio específico de linguagem. Pro-Fono R. Atualiz. Cientif. 2009;21(4):279-84.,1010. Pedott PR, Cáceres-Assenço AM, Befi-Lopes DM. Alliteration and rhyme skills in children with specific language impairment. CoDAS. 2017;29(2):e20160017.,1212. Kouri TA. Phonogram and word decoding patterns in children with developmental language disorders: Evidence for protracted periods of graphophonemic decoding. J Commun Disord. 2020;84:1-15.,1313. Lauterbach AA, Park Y, Lombardino LJ. The roles of cognitive and language abilities in predicting decoding and reading comprehension: comparisons of dyslexia and specific language impairment. Ann Dyslexia. 2017;67(3):201-18.. Um estudo55. Broc L, Joye N, Dockrell JE, Olive T. Capturing the nature of spellind errors in Developmental Language Disorder: a scoping review. Lang Speech Hear Serv in Schools. 2021;52(4):1127-40 mostrou que habilidades metafonológicas, como a consciência fonológica, têm sido cada vez mais exploradas como uma faceta importante de desenvolvimento da linguagem das crianças monolíngues. Tal estudo também ressalta a importância da consciência fonológica, não apenas para a alfabetização, mas também a influência do repertório em linguagem oral para o adequado desenvolvimento da consciência fonológica, hipótese que corrobora os resultados do presente estudo.

Ao comparar a média da idade cronológica e a idade linguística das crianças com TDL é notória a diferença entre elas, reafirmando que a linguagem receptiva e a expressiva se encontram aquém do esperado quando comparadas à idade cronológica de crianças com TDL. Esses dados também foram apontados em estudos anteriores44. Befi-Lopes DM, Cáceres AM, Esteves L. Linguistic profile of children with language impairment. Rev Soc Bras Fonoaudiol. 2012;17(2):274-8.,1010. Pedott PR, Cáceres-Assenço AM, Befi-Lopes DM. Alliteration and rhyme skills in children with specific language impairment. CoDAS. 2017;29(2):e20160017.,1818. Conti-Ramsden G, Mok PLH, Pickles A, Durkin K. Adolescents with a history of specific language impairment (SLI): strengths and difficulties in social, emotional and behavioral functioning. Res Dev Disabil. 2013;34(11):4161-9.,2828. Macchi L, Casalis S, Schelstraet MA. Phonological and orthographic reading routes in French-speaking children with severe developmental language disorder. J Comm Disord. 2019; 81:10-59.. Cabe ressaltar que, internacionalmente, essa diferença já foi relatada e também é considerada como um dos fatores de inclusão para o diagnóstico de TDL em crianças com queixas de atraso de linguagem1010. Pedott PR, Cáceres-Assenço AM, Befi-Lopes DM. Alliteration and rhyme skills in children with specific language impairment. CoDAS. 2017;29(2):e20160017.,1818. Conti-Ramsden G, Mok PLH, Pickles A, Durkin K. Adolescents with a history of specific language impairment (SLI): strengths and difficulties in social, emotional and behavioral functioning. Res Dev Disabil. 2013;34(11):4161-9.. Os resultados do presente estudo reforçam essa hipótese ao indicar diferença significante entre as idades cronológica e linguística, além de apontar maior comprometimento nas habilidades expressivas de crianças com TDL.

No que diz respeito à análise de correlação, o fato de a consciência silábica ter apresentado correlação com as variáveis do TELD-3 permite hipotetizar que as habilidades de consciência fonológica de crianças com TDL estão associadas ao seu repertório linguístico receptivo e expressivo, principalmente no que concerne à consciência silábica. Tais dados são reforçados pela análise de regressão, que confirma essa relação e indica a idade linguística como um preditor importante para a consciência silábica. Dessa maneira, as análises do presente estudo fornecem evidência importante quanto ao desenvolvimento da consciência fonológica em crianças com TDL, sugerindo que, apesar de suas alterações persistentes de linguagem, essas crianças possuem percurso de desenvolvimento das habilidades metafonológicas semelhante ao observado em seus pares típicos, porém, com suas particularidades. Nesse sentido, a inclusão de atividades de consciência fonológica no processo de reabilitação de crianças com TDL é de fundamental importância55. Broc L, Joye N, Dockrell JE, Olive T. Capturing the nature of spellind errors in Developmental Language Disorder: a scoping review. Lang Speech Hear Serv in Schools. 2021;52(4):1127-40,2020. Loucas T, Baird G, Simonoff E, Slonims V. Phonological processing in children with specific language impairment with and without reading difficulties. Int J Lang Commun Disord. 2016;51(5):581-8..

O fato de a consciência fonêmica correlacionar-se apenas com a idade cronológica reforça dados de estudos anteriores que indicaram que tal habilidade se desenvolve mais fortemente após a entrada da criança no ensino formal, uma vez que a descoberta da relação grafo-fonêmica potencializa a aquisição da consciência fonêmica1414. Soares AJC, Cárnio MS. Phonemic awareness in students before and after language workshops. J Soc Bras Fonoaudiol. 2012;24(1):69-75.,2929. Zhao J, Joshi RM, Dixon LQ, Chen S. Contribution of phonological, morphological and orthographic awareness to English word spelling: A comparison of EL1 and EFL models. Contemp Educ Psychol. 2017;49:185-94. Salienta-se que diferentemente do que foi observado em outros estudos1414. Soares AJC, Cárnio MS. Phonemic awareness in students before and after language workshops. J Soc Bras Fonoaudiol. 2012;24(1):69-75.,1515. Chen H, Myhill D. Children talking about writing: Investigating metalinguistic understanding. Linguist Edu. 2016;35(2016):100-8.,2020. Loucas T, Baird G, Simonoff E, Slonims V. Phonological processing in children with specific language impairment with and without reading difficulties. Int J Lang Commun Disord. 2016;51(5):581-8.,3030. Wilcox MJ, Gray S, Reiser M. Prescoolers with developmental speech and/or language impairment: efficacy of the teaching early literacy and language (TELL) curriculum. Early Child Quar. 2020; 51(2):124-43., encontrou-se correlação positiva apenas entre a idade cronológica e a consciência fonêmica. Uma possível hipótese para tal correlação, decorre do fato de o Português Brasileiro ser um idioma com ortografia transparente, o que leva a uma aprendizagem mais fácil das relações grafo-fonêmicas e, consequentemente, expande a atenção da criança para a existência do fonema. Apesar desse fato, entretanto, o uso e o incentivo de políticas educacionais voltadas para os métodos globais ainda se faz preponderante no país, o que pode ser um fator dificultador para o desenvolvimento da consciência fonêmica dos escolares brasileiros1414. Soares AJC, Cárnio MS. Phonemic awareness in students before and after language workshops. J Soc Bras Fonoaudiol. 2012;24(1):69-75.,2626. Germano GD, César ABPC, Capellini SA. Screening protocol for early identification of Brazilian children at risk for dyslexia. Front Psychol. 2017;8(OCT):1-13..

Os dados do presente estudo nos permitem especular que para crianças brasileiras com TDL as habilidades silábicas estão mais relacionadas ao seu repertório linguístico e as fonêmicas são mais dependentes do processo de escolarização, que favorece a descoberta do fonema. Esse é um dado importante e que pode ser expandido em estudos cross-linguísticos com idiomas de diferentes graus de transparência e opacidade a fim de melhor entender tais processos.

Em um estudo1616. Graham S, Hebert M, Fishman E, Ray AB, Rouse AG. Do children classified with specific language impairment have a learning disability in writing? A meta-analysis. J Learn Disabil. 2020;53(4):292-310 que avaliou a consciência fonológica de crianças com TDL longitudinalmente antes e após um programa de remediação fonológica, os autores indicaram grande melhora dos sujeitos após a execução do programa. Os pesquisadores indicaram que o processo de alfabetização aumentou a percepção da existência do fonema, o que contribuiu não apenas com a consciência fonêmica em si, como hipotetizado no presente estudo, mas também para o processo de alfabetização como um todo.

Desta forma, a presente pesquisa fornece evidência importante no que diz respeito à relação entre idade linguística e consciência fonológica de crianças com TDL. Esses dados são fundamentais para um melhor entendimento do desenvolvimento da linguagem dessa população e promovem reflexões a respeito da importância de delinear procedimentos terapêuticos que visem também à redução dos déficits na consciência fonológica dessas crianças e, consequentemente, de dificuldades no processo de aquisição de leitura e escrita.

Cabe ressaltar, entretanto, que o recorte transversal desta pesquisa pode não representar com acurácia a exata relação entre as habilidades aqui estudadas, podendo ser essa uma limitação desse estudo. Dessa maneira, estudos longitudinais são necessários para aprofundar o entendimento da correlação de tais habilidades no processo de desenvolvimento dessas crianças durante a infância. Além disso, estudar o efeito da intervenção fonoaudiológica nessas variáveis ao longo do tempo, verificando-se como elas se comportam, também é de fundamental importância para a área.

Conclusão

Os dados indicaram forte correlação entre a idade linguística e as habilidades de consciência fonológica em crianças com TDL. Ademais, mostraram evidências de que essa correlação existe tanto para idade linguística expressiva quanto receptiva apenas no que diz respeito às habilidades silábicas. Adicionalmente, os resultados da presente pesquisa promovem importantes reflexões sobre a consciência fonêmica e o processo de aquisição de leitura e escrita de crianças com TDL.

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  • Trabalho realizado no Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - USP, São Paulo, São Paulo Brasil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    30 Ago 2021
  • Aceito
    07 Dez 2021
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