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A Prática da Contabilidade ao Serviço da Escravatura no Brasil: Uma Análise Bibliográfica e Documental* * I would like to thank CAPES for granting the scholarship (process no. BEX 0579/12-2) that enabled me to undertake a doctorate abroad.

Resumos

O foco deste trabalho está no aspeto social, econômico e de relações institucionais que determinaram um padrão único de desigualdade. Temos como objetivo examinar o papel particular do uso da contabilidade como uma prática utilizada com fins à desumanização de toda uma classe de pessoas. A finalidade primordial deste trabalho não é examinar a rentabilidade da escravidão, mas, sim, identificar como o uso da prática contabilística serviu à escravatura. O método de pesquisa utilizado para o desenvolvimento deste trabalho é o qualitativo. Com relação aos procedimentos técnicos, o presente estudo faz uso da pesquisa bibliográfica e documental. Para efeito desta investigação e em conformidade com a pesquisa bibliográfica e documental, analisaremos artigos científicos, livros e documentos do Arquivo Nacional, Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e Fundação Biblioteca Nacional. Diante do apresentado no desenvolver deste paper, no que se refere à prática da contabilidade, podemos considerá-la uma ferramenta mais ativa do que passiva e, portanto, é possível considerar a contabilidade como uma ferramenta que foi utilizada como apoio à manutenção do regime escravista. Em essência, foi possível observar que a contabilidade foi usada para converter os atributos qualitativos do humano em um número limitado de categorias (idade, sexo, cor) pelas quais os escravos eram diferenciados e monetizados a fim de facilitar o tráfico comercial. Acreditamos que as práticas contabilísticas serviram como ferramentas facilitadoras das trocas de escravos, de sua conversão, exploração, procedimentos que ignoraram completamente a dimensão qualitativa e humana da escravidão. No que diz respeito às oportunidades para futuras investigações sobre a contabilidade no período escravista, assim como em outros regimes de opressão, estas parecem ilimitadas, principalmente para a realidade brasileira.

Prática contabilística; Desumanização; Escravos


This study focuses on the social and economic aspects and institutional relationships that determined a unique pattern of inequality. We aim to examine the particular role of accounting as a practice used to dehumanize an entire class of people. The primary purpose of this study is not to examine slavery's profitability but rather to identify how accounting practices served slavery. A qualitative research method is applied in this study. Regarding technical procedures, this study makes use of bibliographic and documentary sources. For the purpose of this investigation, and in accordance with bibliographic and documentary research methods, we analyze scientific articles, books and documents from the Brazilian National Archive, the Brazilian Historic and Geographic Institute and the Brazilian National Library Foundation. In light of what was discovered through the study's development, we can consider accounting as a tool that is more active than passive and, therefore, as a tool that was used to support the slave regime. In essence, accounting was used to convert a human's qualitative attributes into a limited number of categories (age, gender, race), through which slaves were differentiated and monetized to facilitate commercial trafficking. We believe that accounting practices facilitated slave trading, conversion and exploitation, procedures that completely ignored qualitative and human dimensions of slavery. Opportunities for future studies on accounting in the slave period, as is the case of other oppressive regimes, are infinite, especially in the case of Brazil.

Accounting; Dehumanization; Slaves


1 INTRODUÇÃO

Este estudo é sobre um regime específico e deliberado de poder utilizado sobre a população escrava, a qual foi oprimida e excluída da cidadania e da sociedade civil. O foco está no aspeto social, econômico e de relações institucionais que determinaram um padrão único de desigualdade e de que maneira a prática contabilística foi efetivamente mobilizada para servir os objetivos da escravatura. Não se trata de qualquer julgamento moral da contabilidade em si, mas de sua utilização, no caso, para os fins citados.

O método de pesquisa utilizado para o desenvolvimento deste trabalho é o qualitativo. Com relação aos procedimentos técnicos, o presente estudo faz uso da pesquisa bibliográfica e documental. Tanto a pesquisa documental como a pesquisa bibliográfica têm como foco de investigação a análise do documento, entretanto, com algumas diferenças. Para Oliveira (2007)Oliveira, M. M. (2007). Como fazer pesquisa qualitativa. Petrópolis: Vozes., a pesquisa bibliográfica é uma modalidade de estudo e análise de documentos de domínio científico, tais como livros, periódicos, enciclopédias, ensaios críticos, dicionários e artigos científicos. Conforme Helder (2006)Helder, R. R. (2006). Como fazer análise documental. Porto: Universidade do Algarve., a pesquisa documental vale-se de documentos originais, que ainda não receberam tratamento analítico por nenhum autor. Para efeito desta investigação e em conformidade com a pesquisa bibliográfica e documental, foi realizada uma análise em artigos científicos, livros e documentos do Arquivo Nacional, Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro e Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Nessas condições, esta investigação cairá no âmbito dos estudos que apresentam uma tendência crítica e interpretativa (Carnegie & Napier, 1996Carnegie, G. D., & Napier, C. J. (1996). Critical and interpretive histories: insights into accounting's present and future through its past. Accounting, Auditing & Accountability, 9 (3), 7-39.).

Relativamente ao uso da contabilidade como apoio ao regime escravista, em termos de pesquisa na história da contabilidade, poucos estudiosos têm examinado especificamente os aspetos morais da escravidão ou a utilização da contabilidade no reforço das instituições escravistas e das relações sociais (Tyson, Fleishman, & Oldroyd, 2004Tyson, T. N., Fleishman, R. K., & Oldroyd, D. (2004). Theoretical perspectives on accounting for labor on slave plantations of the USA and British West Indies. Accounting, Auditing & Accountability, 17 (5), 758-778., p. 4). No Brasil, apesar da crescente importância dos contabilistas e da contabilidade (Rodrigues, Schmidt, Santos, & Fonseca, 2011Rodrigues, L. L., Schmidt, P., Santos, J. L., & Fonseca, P. C. D. (2011). A research note on accounting in Brazil in the context of political, economic and social transformations 1860-1964. Accounting History, 16 (1), 111-123.), pouco se tem documentado a respeito de como a contabilidade serviu à escravatura. Este estudo tem como objetivo preencher esta lacuna de investigação na história da contabilidade brasileira. É proposto identificar o uso da prática da contabilidade no apoio ao regime escravista brasileiro.

Como contributo, este trabalho procura reforçar a bibliografia brasileira sobre a história da contabilidade, através da análise de medidas e avaliações contabilísticas, evidenciando os aspetos morais da escravidão brasileira (e não da contabilidade em si). Relativamente às limitações para o desenvolvimento deste trabalho, destacamos a subjetividade do julgamento do autor no que toca à escolha do material adequado à análise e também à limitação dos registros disponíveis. Para efeito de futuras investigações sobre a contabilidade no regime escravocrata, as alternativas parecem ilimitadas para a realidade brasileira.

2 REVISÃO DA LITERATURA

2.1 Contexto Político, Social e Econômico.

A economia colonial brasileira desenvolveu-se no apogeu do mercantilismo. Com base no monopólio colonial, Portugal detinha a exclusividade do comércio brasileiro que era altamente especializado e dirigido para o mercado externo. Internamente, a metrópole tinha caráter predatório sobre os recursos naturais da sua colônia. A produção estava centrada na grande propriedade territorial, na qual se desenvolvia um empreendimento comercial destinado a fornecer à metrópole gêneros alimentícios, e na utilização essencial de uma numerosa mão de obra escrava.

A sociedade colonial no Brasil, principalmente em Pernambuco e no Recôncavo da Bahia, desenvolveu-se patriarcal e aristocraticamente à sombra das grandes plantações de açúcar (Freyre, 2001Freyre, G. (2001). Casa-grande & senzala: introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil (v. 45). Rio de Janeiro: Record.). O apogeu da colônia se deu no período de 1770 a 1808 (Prado, 1981Prado Jr., C. (1981). História econômica do Brasil. (v. 26). São Paulo: Brasiliense., p. 91). Na segunda metade do século XVIII, a agricultura consegue sair de um período sombrio, período este que começou no início do mesmo século (Prado, 1981Prado Jr., C. (1981). História econômica do Brasil. (v. 26). São Paulo: Brasiliense.). As velhas regiões produtoras do açúcar, Bahia e Pernambuco, decadentes havia quase cem anos, se renovam e passam a brilhar outra vez como nos dois primeiros séculos da colonização.

Em meados do século XVIII, o sertão do Nordeste alcança o apogeu do seu desenvolvimento (Prado, 1981Prado Jr., C. (1981). História econômica do Brasil. (v. 26). São Paulo: Brasiliense., p. 45). Conforme Silva e Eltis (2008)Silva, D. B. D., & Eltis, D. (2008). The slave trade to Pernambuco, 1561- 1851 Extending the frontiers: essays on the new transatlantic slave trade database. New Haven: Yale University Press., Recife, em Pernambuco, foi o quinto maior centro organizado do tráfico transatlântico de escravos do mundo. Sabe-se que a demanda pelo trabalho escravo, em Pernambuco, foi oriunda da necessidade desta mão de obra nas grandes plantações de açúcar.

No século XIX, com a crise da produção de açúcar, sabe-se que a concentração de escravos em Pernambuco passou a se encontrar no Sertão Semiárido (na criação extensiva de gado) ou na região intermediária do Agreste (nas plantações de algodão e culturas alimentares). Em contraste com o século XVI, quando a grande maioria dos escravos da chamada Zona da Mata Litorânea fazia parte de plantéis com mais de vinte escravos, no Agreste e no Sertão, de dois terços a nove décimos dos escravos pertenciam a senhores com vinte ou menos cativos (Versiani & Vergolino, 2002Versiani, F. R., & Vergolino, J. R. (2002). Preços de escravos em Pernambuco no século XIX. Universidade de Brasília, Working Paper 252, 1-25., 2003Versiani, F. R., & Vergolino, J. R. (2003). Preços de escravos em Pernambuco no século XIX. Estudos Econômicos, 33, 353-393.). Por outro lado, em estudo realizado por Versiani e Vergolino (2003)Versiani, F. R., & Vergolino, J. R. (2003). Preços de escravos em Pernambuco no século XIX. Estudos Econômicos, 33, 353-393., a difusão da propriedade de escravos, avaliada pela proporção de inventários post mortem que continham escravos, era muito similar (ao redor de 75%-80%) nas três regiões.

Outra similaridade encontrada em investigação realizada por Versiani e Vergolino (2003)Versiani, F. R., & Vergolino, J. R. (2003). Preços de escravos em Pernambuco no século XIX. Estudos Econômicos, 33, 353-393. relaciona-se com o peso do valor dos escravos no montante total da riqueza inventariada. Na Mata, esse peso tendeu a aumentar após 1850 (ano em que se deu a extinção do tráfico negreiro decretado pela Lei Eusébio de Queirós em 4 de setembro de 1850), quando o preço médio dos escravos aumentou significativamente. No Agreste e Sertão houve um comportamento similar, o que, neste caso, contrasta fortemente com a evidência disponível para outras regiões com estrutura de produção análoga.

2.2 A Contabilidade Utilizada em Regimes Repressores

Na sociedade contemporânea é possível constatar o uso do poder de forma contínua. No dia a dia, observamos uma supervisão sobre o indivíduo através do controle de sua atividade (qualidade do tempo, anulação de tudo que possa perturbar e distrair). Essa supervisão possibilita a moldagem e transformação do indivíduo em conformidade com as normas estabelecidas.

Abordar o tema "Poder" nos remete ao filósofo francês Michel Foucault. O autor possui uma extensa obra que inclui a análise do poder (Neto, Cardoso, Riccio, & Sakata, 2008Mendonça, O. R., Neto, Cardoso, R. L., Riccio, E. L., & Sakata, M. C. G. (2008). A contabilidade ao serviço do nazismo: uma análise da utilização da contabilidade como instrumento de poder. Revista de Contabilidade da UFBA, 2 (2), 4-14.) e as ideias de Michel Foucault a esse respeito constituem uma sólida base teórica que pode servir para explicar o uso da contabilidade como instrumento de exercício do poder (Neto et al., 2008Mendonça, O. R., Neto, Cardoso, R. L., Riccio, E. L., & Sakata, M. C. G. (2008). A contabilidade ao serviço do nazismo: uma análise da utilização da contabilidade como instrumento de poder. Revista de Contabilidade da UFBA, 2 (2), 4-14., p. 6).

Funnel (1998)Funnel, W. (1998). Accounting in the service of the holocaust. Critical Perspectives on Accounting, 9 (4), 435-464. apresenta a contabilidade a ser utilizada como um instrumento auxiliar do exercício do poder na instauração e perpetuação de regimes políticos autoritários e repressores. Em seu trabalho, é possível observar a contabilidade sendo utilizada como um instrumento para a imposição da vontade de alguns sobre os demais.

Cooper (1992)Cooper, C. (1992). The non and nom of accounting for (m)other nature. Accounting, Auditing & Accountability, 5 (3), 16-39. afirma que as relações de poder presentes na sociedade estão implícitas em contabilidade. Segundo o autor, isto pode ser visto na "conta de apropriação". A conta de apropriação contém três elementos: a tributação (o Estado), dividendos (acionistas) e lucros retidos (para organizações de fins lucrativos).

A contabilidade utilizada como instrumento para o exercício de poder também pode ser observada quando nos remetemos às investigações com foco no Holocausto. Como exemplo da informação produzida em decorrência do controle contabilístico, Lippman e Wilson (2007)Lippman, E. J., & Wilson, P. A. (2007). The culpability of accounting in perpetuating the Holocaust. Accounting History, 12 (3), 283-303., através de uma declaração de rendimentos de Buchenwald (campo de concentração), conseguem apresentar a receita líquida diária que cada prisioneiro fornece a um grande cliente durante os anos de guerra – Schutzstaffel (SS). Ao analisar essa declaração, Lippman e Wilson (2007)Lippman, E. J., & Wilson, P. A. (2007). The culpability of accounting in perpetuating the Holocaust. Accounting History, 12 (3), 283-303. verificaram a utilização de conceitos comuns de contabilidade, tais como estimativas sobre a vida útil, valor residual e amortização. Um outro conceito de contabilidade, desta vez da contabilidade de custos, também é constatado pelos autores: análise do custo-benefício. Como exemplo, Lippman e Wilson (2007Lippman, E. J., & Wilson, P. A. (2007). The culpability of accounting in perpetuating the Holocaust. Accounting History, 12 (3), 283-303., p. 289), referindo-se a estudiosos como Greenberg (1975) e Fleischner (1977), confirmam que, na Alemanha nazista, os contabilistas fizeram uso da análise de custo-benefício para comparar o custo de matar crianças com gás e queimar seus corpos versus simplesmente queimálas vivas até a morte. A segunda opção, mesmo a gerar gritos por todo o campo, foi a escolhida por ser a menos dispendiosa (Lippman & Wilson, 2007Lippman, E. J., & Wilson, P. A. (2007). The culpability of accounting in perpetuating the Holocaust. Accounting History, 12 (3), 283-303., p. 289). Aqui, podemos chamar atenção para o caráter desumano que pode ser dado ao uso da contabilidade.

Um outro exemplo da utilização da contabilidade como ferramenta de poder foi possível ser constatado no campo de Auschwitz. Os presos que lá trabalhavam tinham números atribuídos tatuados em seus antebraços. Uma vez com este número, a única informação sobre os prisioneiros que interessava era o número que estava registrado no "Livro da Morte" (Funnel, 1998Funnel, W. (1998). Accounting in the service of the holocaust. Critical Perspectives on Accounting, 9 (4), 435-464.). Percebe-se, a partir deste exemplo, as pessoas a serem registradas como máquinas e, provavelmente, qualquer trabalho oriundo do trabalho humano seria como se estivesse a ser realizado por uma máquina. Conforme observa Funnel (1998)Funnel, W. (1998). Accounting in the service of the holocaust. Critical Perspectives on Accounting, 9 (4), 435-464., verifica-se, no Holocausto, o uso da contabilidade por um grupo específico de interesse com a intenção de atingir fins muito particulares.

Diante da literatura consultada e apresentada sobre o uso da contabilidade em contextos opressores, percebe-se a contabilidade a desempenhar o papel de uma potente arma da política social, capaz de afetar a vida humana. Portanto, ao contrário do que normalmente se acredita, a contabilidade é mais do que uma insignificante ferramenta burocrática.

Sobre o uso da contabilidade como apoio ao regime escravista, pouco se sabe. Isto porque, em termos de pesquisa na história da contabilidade, poucos estudiosos têm examinado especificamente os aspetos morais da escravidão ou a utilização da contabilidade no reforço das instituições escravistas e das relações sociais (Tyson et al., 2004Tyson, T. N., Fleishman, R. K., & Oldroyd, D. (2004). Theoretical perspectives on accounting for labor on slave plantations of the USA and British West Indies. Accounting, Auditing & Accountability, 17 (5), 758-778., p. 377). Embora os historiadores críticos tenham examinado as minorias étnicas e os interesses sociais marginalizados dentro da profissão contabilística, tem havido poucos trabalhos (Fleischman, Oldroyd, & Tyson, 2011Fleischman, R. K., Oldroyd, D., & Tyson, T. N. (2011). Plantation accounting and management practices in the US and the British West Indies at the end of their slavery eras. The Economic History Review, 64 (3), 765-797.) desenvolvidos sobre a implantação da contabilidade em apoio aos regimes racistas. Dentro do contexto da contabilidade x escravatura, podemos destacar as investigações realizadas por Hammond e Streeter (1994)Hammond, T. A., & Streeter, D. W. (1994). Overcoming barriers: early African-American certified public accountants. Accounting, Organizations and Society, 19 (3), 271-288., Gaffney, Mcewen, e Welsh (1995)Gaffney, M. A., Mcewen, R. A., & Welsh, M. J. (1995). Expectations of professional success in accounting: an examination of race and gender differences. Advances in Public Interest Accounting, 6, 177-202., Annisette (1999)Annisette, M. (1999). Importing accounting: the case of Trinidad and Tobago. Accounting History Review, 9 (1), 103-133. e Hammond (2002)Hammond, T. (2002). A white-collar profession: African American Certified Public Accountants since 1921. Chapel Hill, NC: University of North Carolina Press., contudo não são trabalhos que abordam o uso da contabilidade em apoio aos regimes opressores/racistas, esses trabalhos demonstraram a discriminação contra os negros no contexto da profissão contabilística.

O escravo encontrava-se na posição de propriedade de seu senhor, não possuindo assim qualquer direito (Bennassar & Marin, 2000Bennassar, B., & Marin, R. (2000). História do Brasil. Lisboa: Teorema.). Era o seu proprietário o responsável por garantir os elementos básicos à sua sobrevivência, como a alimentação e as suas vestimentas. O cativo estava à disposição do seu dono, que exaltava as qualidades de um "bom escravo": obediência, humildade e fidelidade a fim de se conseguir facilitar uma maior exploração do negro (Bennassar & Marin, 2000Bennassar, B., & Marin, R. (2000). História do Brasil. Lisboa: Teorema.). Segundo Schwartz (1985)Schwartz, S. B. (1985). Sugar plantation in the formation of Brazilian Society Bahia 1550-1835. Cambridge: Press Syndicate of the University of Cambridge., nas fazendas, o escravo trabalhava de seis da manhã às seis da noite com meia hora para o café e duas horas para o almoço quando a moenda não estava em funcionamento. Chegada a safra, as demandas de trabalho aumentavam. Os escravos eram vigiados pelos chamados capitães-do-mato, que também capturavam os escravos fugidos e lhes aplicavam os mais diversos tipos de castigos, como o açoitamento, o tronco, a peia, entre outras punições, o que contribuía para diminuir o tempo de vida dessa mão de obra que, segundo estudiosos como Simonsen (1977)Simonsen, R. C. (1977). História econômica do Brasil (v. INL/MEC). Brasília: Nacional., rondava os sete anos. Em síntese, o escravo executava o seu trabalho nas mais desumanas das condições.

Em estudo realizado por Fleischman e Tyson (2004)Fleischman, R. K., & Tyson, T. N. (2004). Accounting in service to racism: monetizing slave property in the antebellum South. Critical Perspectives on Accounting, 15 (3), 376-399. nos engenhos de açúcar do Havai, foi revelado que os trabalhadores escravos foram categorizados, enumerados e avaliados com total desrespeito pela sua humanidade. Os autores afirmam que, com o uso da contabilidade, tornava-se possível o intercâmbio do escravo, a sistematização das transações de escravos, a valorização das fazendas escravistas, e a monitoração da produtividade do escravo. Os autores explicam que, quando eram atribuídos valores monetários aos escravos, estes poderiam ser utilizados como garantia em hipotecas e outras operações de crédito.

Em Johnson (1999)Johnson, W. (1999). Soul by soul: life inside the antebellum slave market. Cambridge: Harvard University Press., Klein (1987)Klein, H. S. (1987). A demografia do tráfico atlântico de escravos para o Brasil. Estudos Econômicos, 17 (2), 129-149. e Versiani e Vergolino (2003)Versiani, F. R., & Vergolino, J. R. (2003). Preços de escravos em Pernambuco no século XIX. Estudos Econômicos, 33, 353-393. é possível encontrar uma descrição clara de como a classificação contabilística foi utilizada para organizar os dados (os comerciantes classificavam os escravos por categorias de preços de acordo com sexo, idade, altura, peso, local de origem e cor da pele) e corroborar com o tráfico de escravos. Em consequência da conversão de almas humanas em "mercadorias", os escravos podiam, por exemplo, ser alugados, vendidos, trocados e hipotecados, demonstrando uma forma eficaz de desumanizar um ser humano.

Hollister e Schultz (2010)Hollister, J., & Schultz, S. M. (2010). Slavery and emancipation in rural New York: evidence from nineteenth-century accounting records. Accounting History, 15 (3), 371-405. analisaram os registros contabilísticos mantidos por Ann DeWitt Baviera e constataram que a proprietária de escravos mantinha documentados em razão a compra e venda de escravos. Não foi feito uso do livro-diário, mas Ann Baviera tinha sua caderneta dividida em secções dedicadas ao acompanhamento de recebimentos, pagamentos e dados sobre as contas que ela mantinha com terceiros, no que diz respeito aos escravos. Nos documentos examinados, foi identificada a atribuição de um valor monetário para os escravos. Esses valores eram determinados para a compra ou venda de escravos ou quando os ativos de um descendente estavam a ser inventariados.

Para a realidade brasileira, poucos são os estudos que focam a contabilidade no regime escravista. Sá (2008)Sá, A. L. D. (2008). História geral da contabilidade no Brasil. Brasília: Conselho Federal de Contabilidade., de forma breve, aborda sobre a existência do profissional da contabilidade para realizar os registros contabilísticos dos movimentos relativos a cada uma das viagens das expedições marítimas (no que diz respeito ao imposto sobre a transação de escravos e abatimento sobre a rejeição daqueles quando com defeitos físicos).

3 METODOLOGIA DA PESQUISA

Apesar de a contabilidade ser visualizada, algumas vezes, como um campo ilegítimo para a investigação histórica (Napier, 1989Napier, C. J. (1989). Research direction in accounting history. British Accounting Review, 21 (3), 237-254.), para uma melhor compreensão do papel da contabilidade nas organizações e na sociedade, a busca pelo conhecimento histórico é primordial (Napier, 2006Napier, C. J. (2006). Accounts of change: 30 years of historical accounting research. Accounting, Organizations and Society, 31 (4-5), 445-507.). As pesquisas históricas testam as afirmações sobre o passado, dão um melhor entendimento do presente e podem servir de aprendizado, evitando repetições de erros e infortúnios no futuro (Keenan, 1998Keenan, M. G. (1998). A defence of "traditional" accounting history research methodology. Critical Perspectives on Accounting, 9 (6), 641-666.).

Para o desenvolvimento deste estudo, adotamos uma perspetiva de investigação que vê o mundo a ser construído de forma social e de maneira subjetiva (ver Covaleski & Dirsmith, 1990Covaleski, M. A., & Dirsmith, M. W. (1990). Dialectic tension, double reflexivity and the everyday accounting researcher: on using qualitative methods. Accounting, Organizations and Society, 15 (6), 543-573.). Considerar que os sistemas sociais não podem ser tratados como fenômenos naturais, mas sim como fenômenos socialmente construídos, são o ponto de partida da investigação qualitativa (Major & Vieira, 2009Major, M. J., & Vieira, R. (2009). Contabilidade e controlo de gestão: teoria, metodologia e prática. Lisboa: Escola Editora., p. 132). A investigação qualitativa, conforme Major (2009)Major, M. J., & Vieira, R. (2009). Contabilidade e controlo de gestão: teoria, metodologia e prática. Lisboa: Escola Editora., procura explicar a forma como os fenômenos sociais são interpretados, compreendidos, produzidos e constituídos. Consequentemente, uma vez que há o reconhecimento da contabilidade como um fenômeno social, a contabilidade tem de ser analisada e interpretada no seu contexto econômico, social e organizacional (Hopwood, 1983Hopwood, A. G. (1983). On trying to study accounting in the contexts in which it operates. Accounting, Organizations and Society, 8 (2-3), 287-305., 1987Hopwood, A. G. (1987). The archeology of accounting systems. Accounting, Organizations and Society, 12 (3), 207-234.).

Relativamente ao método de pesquisa, este trabalho adota o método de pesquisa qualitativa baseada em textos e documentos. Conforme Covaleski e Dirsmith (1990)Covaleski, M. A., & Dirsmith, M. W. (1990). Dialectic tension, double reflexivity and the everyday accounting researcher: on using qualitative methods. Accounting, Organizations and Society, 15 (6), 543-573., o méto do de pesquisa qualitativa é um método de pesquisa útil para estudar o papel simbólico da contabilidade nas organizações e na sociedade.

Tanto a pesquisa documental como a pesquisa bibliográfica (textos) têm como foco de investigação a análise do documento, entretanto, com algumas diferenças. Para Oliveira (2007)Oliveira, M. M. (2007). Como fazer pesquisa qualitativa. Petrópolis: Vozes., a pesquisa bibliográfica é uma modalidade de estudo e análise de documentos de domínio científico tais como livros, periódicos, enciclopédias, ensaios críticos, dicionários e artigos científicos. Conforme Helder (2006)Helder, R. R. (2006). Como fazer análise documental. Porto: Universidade do Algarve., a pesquisa documental vale-se de documentos originais, que ainda não receberam tratamento analítico por nenhum autor. Na pesquisa documental, é natural que o tipo de documento seja dependente do objetivo da investigação (Major, 2009Major, M. J., & Vieira, R. (2009). Contabilidade e controlo de gestão: teoria, metodologia e prática. Lisboa: Escola Editora.). Para efeito e no intuito de seguir o objetivo proposto, realizamos a análise bibliográfica e documental. A pesquisa bibliográfica se deu através da inserção de palavras-chaves no ambiente online. As palavras-chaves que utilizamos para realização da pesquisa foram: escravos, Brasil, século XIX, slaves, accounting e XIX century. A pesquisa documental foi realizada através de consultas presenciais, assim como online. Os arquivos consultados foram: Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e Fundação Biblioteca Nacional. As fontes consultadas nos arquivos são de origem impressa (Diário do Rio de Janeiro, Correio do Brazil, Diário de Notícias e A Folha Nova: noticiosa, litteraria e agricola); manuscrita e fotográfica.

4 APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

Nesta seção, será realizada uma análise que se concentra na avaliação de escravos como ativos e de como a contabilidade serviu como instrumento ao regime escravista. É nossa convicção de que grande parte da história da contabilidade, especialmente a história anterior ao desenvolvimento de uma profissão contabilística, é caracterizada pelo compêndio da prática da contabilidade e da manutenção dos registros que serviam de apoio à gestão da propriedade.

A falta de uma contabilidade estruturada no setor privado e de um número suficiente de profissionais habilitados no século XIX não nos permitiu encontrar livros contabilísticos que servissem de manutenção dos registros.

Através de observações realizadas no Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro, no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro e na Fundação Biblioteca Nacional, percebem-se evidências de que os escravos tinham a sua condição humana reduzida à mercadoria. Os escravos, ao chegarem de África, eram expostos a venda nos mercados.

Figura 1
Mercado de escravos em Recife.

No momento de seu desembarque, os escravos eram avaliados para que fosse possível lhes atribuir um valor (Pinto, 2005Pinto, L. R. (2005). O avaliador de escravos e o mercado de almas da praça carioca (1808-1831). Rio de Janeiro: O Autor.). Sabemos que, para se efetuar a compra de escravos, estes eram avaliados. Não havia diferenciação entre a forma de avaliação de um escravo e um outro animal, pois ambos se encontravam dentro da mesma escala do ser. Todos submetidos à mesma inspeção desconfortável. Em uma compra de escravos, realizada pelo Governo Imperial, foi possível verificar a avaliação realizada pelo Dr. João Ribeiro de Almeida, na qual o Doutor atestava a capacidade do escravo e "recomendava", após avaliação, a sua compra ou não pelo valor estipulado.

O valor do escravo era proposto pelo seu proprietário, como é possível observar nas propostas do Sr. Joaquim Martins da Silva e do Sr. Barão de Muritiba:

Ao 2° Genal

Em 20 de Fevereiro de 1868.

Joaquim Martins da Silva, propõe vender ao Governo Imperial, escravo de nome Domingos, crioulo, idade 22 annos e sua propriedade pela quantoa de dois contos de reis, em apólices da Divida Publica de um conto de reis cada uma.

Rio de Janeiro, 20 de Fevereiro de 1868

Joaquim Martins da Silva

Ao 2° Genal

Em 20 de Fevereiro de 1868.

Seja inspeccionado

Pb Gal da Mara em 20 de Fevro de 1868

Proponho vender ao governo Imperial o escravo Mariano, criolo idade de 18 annos propriedade do Exmo Sr. Barão de Muritiba pela quantia de dois contos de reis em appolices de contos de reis a cotação official.

Rio de Janeiro, 20 de Fevereiro de 1868

Henrique J. Gomes

Após avaliação realizada pelo Dr. João Ribeiro de Almeida, o Governo Imperial possuía as condições necessárias para decidir sobre a compra ou não do escravo, como vemos:

Appresentado por Joaquim Martin s da Silva, Domingos, crioulo – Congestão de fígado e hyportemia............Incapaz Appresentado por Henrique Jose Gomes – Mariano, crioulo – Não tem a robustez necessária............Incapaz

Com a atribuição de um valor à alma humana, após a sua avaliação (que não era diferente da avaliação de outras formas de propriedade), inúmeros negócios se tornavam possíveis. Os escravos eram regularmente negociados em mercados organizados, e os preços das transações de escravos eram publicados em jornais locais, como destacamos:

Figura 2
Anúncio de Venda

O escravo, antes de qualquer coisa, era uma mercadoria. Como qualquer mercadoria, poderia ser vendida, alugada ou até mesmo hipotecada, conforme se pode ver em diversos anúncios de época:

Figura 3
Aluguel de escravos
Figura 4
Hypotheca de escravos

Para os que possuíam escravos, a sociedade os apontava como pessoas de relevo e projeção (Costa, 1998Costa, E. V. D. (1998). Da senzala à colônia (v. 4). São Paulo: Editora UNESP.). Numa investigação sobre a estrutura da riqueza dos senhores de engenho, realizada por Versiani e Vergolino (2003)Versiani, F. R., & Vergolino, J. R. (2003). Preços de escravos em Pernambuco no século XIX. Estudos Econômicos, 33, 353-393., foi possível identificar o grande peso do escravo no patrimônio dos senhores. O valor do plantel dos escravos era superior a qualquer outro ativo, em todos os estratos (exceto, naturalmente, o daqueles que não possuíam escravos). Segundo Costa (1998)Costa, E. V. D. (1998). Da senzala à colônia (v. 4). São Paulo: Editora UNESP., havia senhores que colecionavam escravos como colecionavam fazendas.

Considerado um capital empatado e negociável, uma mercadoria de luxo e de alta liquidez, era comum notar algum controle desse ativo tão valioso. Em estudo realizado por Fleishman e Tyson (2004)Fleischman, R. K., & Tyson, T. N. (2004). Accounting in service to racism: monetizing slave property in the antebellum South. Critical Perspectives on Accounting, 15 (3), 376-399., foi identificado um livro extremamente popular que continha páginas especificamente destinadas para a listagem de escravos, com colunas de acompanhamento para as idades e os valores no início e no final do ano. Claramente, este livro pretendia controlar a mudança na riqueza de um proprietário de um ano para o outro.

Para a realidade brasileira, autores como Versiani e Vergolino (2002Versiani, F. R., & Vergolino, J. R. (2002). Preços de escravos em Pernambuco no século XIX. Universidade de Brasília, Working Paper 252, 1-25., 2003Versiani, F. R., & Vergolino, J. R. (2003). Preços de escravos em Pernambuco no século XIX. Estudos Econômicos, 33, 353-393.), em investigação realizada no Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambuco (IAHGP), examinaram centenas de inventários que continham informações sobre a classificação dos escravos por idade / valorização estatísticas, que coletivamente compõem a Tabela 1. A Tabela 1 nos mostra os preços nominais médios de escravos "padrão" para todo Pernambuco, por quinquênios, no período 1800 - 1887. Nesta tabela, como explicado pelos autores, foram definidos, como escravos padrão, os da faixa etária mais produtiva, de 15 a 40 anos, e foram excluídos os que eram descritos como portadores de doença ou defeito físico. A tabela elaborada por Versiani e Vergolino (2002)Versiani, F. R., & Vergolino, J. R. (2002). Preços de escravos em Pernambuco no século XIX. Universidade de Brasília, Working Paper 252, 1-25. engloba dados relativos a 4.085 escravos de toda a província.

Tabela 1
Pernambuco. Preço de escravos padrão, por quinquênios, 1800-1887 Em mil-réis

Para Fleischman e Tyson (2004)Fleischman, R. K., & Tyson, T. N. (2004). Accounting in service to racism: monetizing slave property in the antebellum South. Critical Perspectives on Accounting, 15 (3), 376-399., o valor dos escravos refletia seu estágio no ciclo de vida e seu valor para o proprietário de escravos. Para a realidade brasileira não é diferente. Segundo Furtado (2007)Furtado, C. (2007). Formação econômica do Brasil. (v. 5). São Paulo: Nacional., os escravos eram valorizados tendo em conta o seu local de origem, sua idade e robustez. Ao observar a Tabela 1, notamos um crescente aumento no valor do escravo, fato este que dá origem a um considerável aumento da riqueza do proprietário de escravos. É possível notar um considerável aumento no valor dos escravos após a pressão da Inglaterra pela abolição dos escravos (a partir de 1808 com a chegada da corte portuguesa ao Brasil, dá-se início à pressão da Inglaterra em favor da abolição da escravatura). Na década de 1850, nota-se que o valor do escravo chega a duplicar. Esta década foi caracterizada pela extinção do tráfico negreiro, decretado pela Lei Eusébio de Queirós no dia 4 de setembro de 1850. Este considerável aumento pode ser explicado pela lei da oferta e da procura, em que quanto menor a oferta de um produto (neste caso, o escravo), maior será o seu valor.

Agora, nota-se que mais importante do que os padrões de idades e valores, foi o cuidado que os grandes proprietários tiveram em atualizar o valor monetário dos escravos. Os dados levantados por Versiani e Vergolino (2002)Versiani, F. R., & Vergolino, J. R. (2002). Preços de escravos em Pernambuco no século XIX. Universidade de Brasília, Working Paper 252, 1-25. indicam que o valor pelo qual os escravos foram agrupados foram ajustados para cima em intervalos regulares. Assim como na observação feita por Fleischman e Tyson (2004)Fleischman, R. K., & Tyson, T. N. (2004). Accounting in service to racism: monetizing slave property in the antebellum South. Critical Perspectives on Accounting, 15 (3), 376-399. e, apesar de não ter sido constatada a existência de algum livro especificamente destinado para a listagem de escravos, que demonstrasse o seu valor ao início e ao final de cada ano, é possível notar a pretensão dos fazendeiros em controlar a mudança em sua riqueza.

Diante dos fatos, é possível acreditar e concordar com Fleischman e Tyson (2004)Fleischman, R. K., & Tyson, T. N. (2004). Accounting in service to racism: monetizing slave property in the antebellum South. Critical Perspectives on Accounting, 15 (3), 376-399. de que há evidências de que a força escrava era avaliada, em algum momento, por grupos de grandes proprietários, superintendentes, e / ou avaliadores. Segundo os autores, as sutis diferenciações nas avaliações dos escravos baseavam-se em fatores tais como a aparência física, temperamento e pelo potencial produtivo.

Em observação às causas que apontam para a diferenciação nas avaliações dos escravos, destacadas por Fleischman e Tyson (2004)Fleischman, R. K., & Tyson, T. N. (2004). Accounting in service to racism: monetizing slave property in the antebellum South. Critical Perspectives on Accounting, 15 (3), 376-399., verificamos no folhetim do dia 9 de março de 1883, do jornal "A Folha Nova: noticiosa, litteraria e agricola" (edição 00106), a valorização de uma escrava em decorrência de sua aparência física e temperamento:

(...) Diziam que ella era uma boa escrava – tinha muito boas maneiras....Não era respondona. Aturava o maior castigo sem dizer uma palavra áspera, sem fazer um gesto desabrido.

Enquanto o chicote cantava-lhe nas costas, ella apenas gemia, e deixava que as lagrimas lhe corressem silenciosamente pela face.

Além disso era forte, rija para o trabalho. Poderia nesse tempo valer bem um conto de réis.

Entretanto, o pai de Amaro a comprara muito em conta. Uma verdadeira pechincha, porque o demonio da negra estava n'essa época que não valia duas patacas; mas Vasconcellos a metera em casa, dera-lhe algumas garrafadas de laranja da terra e a preta em breve começou a deitar corpo e a endireitar que era aquillo que se podia vêr!

A redução do ser humano à condição de objeto ou animal era evidente nas avaliações e inventários. Conforme Antonil (1711Antonil, A. J. (1711). Cultura e opulência do Brasil: por suas drogas e minas (v. 1). Lisboa: Na officina real Deslandesiana., p. 26), os senhores de escravos tinham mais afeição pelo seu cavalo (pois o cavalo era servido e tinha quem lhe colhesse o capim, tinha pano para o suor, cela e freio dourado) do que pelos escravos. No que diz respeito à prática de conceitos da contabilidade, os escravos se encontravam ao mesmo nível do gado, burros, carneiros etc. e estavam todos sujeitos ao mesmo exame e forma de classificação. Estavam todos inseridos no mesmo grupo de escala, o grupo do bem semovente. Como demonstração da forma desumana de classificação do escravo, apresentamos a relação de bens semoventes existentes na Fazenda do Macaco em 31 de dezembro de 1864, a qual, claramente, revela os trabalhadores escravos a serem classificados com desrespeito à sua humanidade.

Relação do Escravos, Gado, Burros e Carneiros existentes na Fazenda do Macaco em 31 de Dezembro de 1864.

Escravos Existião em princípio do anno 152 Nascerão durante o anno 9 Fallecerão 6 Vendeo-se 1 Existem 154 Gado Existião em princípio do anno 25 Nascerão durante o anno 4 Matou-se p incapar do servisso 1 Morrerão durante o anno 2 Existem 26 Burros Existião em princípio do anno 28 Comprarão-se durante o anno 4 Morrerão durante 4 Existem 28 Carneiros Existião em princípio do anno 20 Nascerão durante o anno 23 Vendeo-se 1 Morrerão 4 Existem 38 (Coleção Da Amélia de Leuchtenberg, lata 524, pasta 4, IHGB)

Em observação às fontes primárias e secundárias, é possível concordar que o uso das práticas contabilísticas pode contradizer com a perspetiva tradicionalista de que a contabilidade é apenas um conjunto de técnicas neutras e imparciais. Evidências como a avaliação dos escravos, a atribuição de um valor monetário, a facilidade em negociá-los nos mercados organizados e a valorização da propriedade privada, levam-nos a concordar com Fleischman e Tyson (2004)Fleischman, R. K., & Tyson, T. N. (2004). Accounting in service to racism: monetizing slave property in the antebellum South. Critical Perspectives on Accounting, 15 (3), 376-399. e Francis (1990)Francis, J. R. (1990). After virtue? Accounting as a moral and discursive practice. Accounting, Auditing & Accountability, 3 (3), 5-17., de que a contabilidade deve ser entendida como intrinsecamente carregada de valor. Não é nossa intenção afirmar que a contabilidade foi responsável pela escravidão ou que, sem esta ferramenta, o regime escravista não seria possível. Por outro lado, poucas são as dúvidas de que o uso da contabilidade e da informação gerada por esta ferramenta serviram de apoio à manutenção do regime escravista.

5 CONCLUSÃO

A partir do desenvolvimento deste trabalho é possível acreditar que a contabilidade é uma ferramenta muito mais construtiva do que reflexiva. No que se refere à ordem social, podemos concordar com Fleischman e Tyson (2004)Fleischman, R. K., & Tyson, T. N. (2004). Accounting in service to racism: monetizing slave property in the antebellum South. Critical Perspectives on Accounting, 15 (3), 376-399., e considerar a contabilidade uma ferramenta mais ativa do que passiva e, portanto, o uso desta ferramenta é capaz, ainda que inconscientemente, de apoiar regimes opressores/escravistas. Tanto quanto apoiar regimes democráticos, instituições de fins humanísticos etc. Em essência, através da análise bibliográfica e documental foi possível observar que o uso de ferramentas contábeis como a avaliação do ativo foi feito para facilitar o intercâmbio de escravos (através da compra, venda, aluguel e hipoteca), assim como para valorizar a propriedade privada.

Um conjunto de estudos críticos na história da contabilidade, e apontados ao longo do texto, examinaram como pode-se utilizar a contabilidade para agir de forma dominante e opressiva na ordem social, legitimando, assim, a sociedade capitalista. Tanto quanto pode ser utilizada para legitimar uma sociedade socialista. Este potencial da contabilidade também pode ser visto no regime escravista.

Os dados compilados nas plantações de Pernambuco por Versiani e Vergolino (2002Versiani, F. R., & Vergolino, J. R. (2002). Preços de escravos em Pernambuco no século XIX. Universidade de Brasília, Working Paper 252, 1-25., 2003Versiani, F. R., & Vergolino, J. R. (2003). Preços de escravos em Pernambuco no século XIX. Estudos Econômicos, 33, 353-393.) foram analisados pelos autores numa perspetiva econômica. Para uma melhor análise contabilística, sugerimos uma recolha de dados com observação do sistema de controle do trabalho escravo (observando como os senhores de engenho relacionavam o trabalho escravo com uma maior produtividade), do sistema de custos, assim como uma melhor observação do valor do escravo a cada etapa de sua vida, a fim de ser feita uma análise da valorização/depreciação do escravo com o decorrer de sua idade.

No que diz respeito às oportunidades para futuras investigações sobre a contabilidade no período escravista, assim como em outros regimes de opressão, estas parecem ilimitadas, principalmente para a realidade brasileira.

  • *
    Agradeço à CAPES pela concessão da bolsa de estudos (processo n°, BEX 0579/12-2) para realização do doutorado pleno no exterior.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2014

Histórico

  • Recebido
    06 Abr 2013
  • Revisado
    15 Abr 2013
  • Aceito
    26 Ago 2014
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