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A Comissão das Partidas Dobradas de 1914 e a Contabilidade Pública Brasileira

Resumos

A história da contabilidade brasileira ainda é relativamente muito pouco explorada. Através de uma pesquisa histórica, o presente artigo buscou trazer a lume a história da Comissão das Partidas Dobradas de 1914. Com a Proclamação da República (1889), o governo passou a buscar novas dimensões, multiplicando seus órgãos administrativos, o que exigia uma burocracia apta a desempenhar estas funções. A esse fato se associa o forte desenvolvimento económico que teve o Brasil com a expansão da economia cafeeira. Em 1905, sob a liderança de Carlos de Carvalho, foi organizada a escrituração contábil do Tesouro do Estado de São Paulo, através do estabelecimento da escrituração por partidas dobradas e pela introdução da contabilidade patrimonial e financeira. A exigência da escrituração por partidas dobradas na contabilidade pública federal, embora presente na legislação desde 1808, somente foi efetivamente levada a cabo a partir da criação da Comissão das Partidas Dobradas de 1914. Neste ano, em decorrência da negociação de um segundo funding loan, auditores dos banqueiros credores ingleses solicitaram o balanço do Tesouro Nacional ao ministro da Fazenda, Rivadávia Corrêa. Como o mencionado balanço encontrava-se defasado em oito anos, foi constituída, em junho de 1914, a Comissão das Partidas Dobradas, a qual levantou, tecnicamente, o balanço de Receita e Despesa e o primeiro balanço de Ativo e Passivo elaborado na administração do país, desde o Brasil Colónia. A Comissão das Partidas Dobradas de 1914 tornou-se o catalisador de mudanças na contabilidade pública brasileira da época, tais como a constituição do Código de Contabilidade Pública em 1922 e a aprovação do regulamento da Contadoria Central da República em 1924, que fortaleceram e deram perenidade às práticas adotadas a partir de 1914.

Contabilidade pública; Escrituração por partidas dobradas; Comissão das Partidas Dobradas


The history of Brazilian accounting has not been explored at length. Through a historical survey, this article presents the history of the Double-entry Bookkeeping Committee of 1914. After the Proclamation of the Republic was announced in 1889, the government started to expand its administrative bodies, necessitating the introduction of a bureaucracy able to perform new functions. In the same period, Brazil experienced a strong economic development with the development of its coffee industry. In 1905, under the leadership of Carlos de Carvalho, São Paulo State Treasury bookkeeping tasks were introduced under a double-entry bookkeeping system and through accrual and financial accounting. Double-entry bookkeeping practices in the federal public accounting system, although enshrined in law since 1808, were only fully realized after the creation of the Double-entry Bookkeeping Committee in 1914. In that same year, due to the negotiation of a second funding loan, English creditor bank auditors requested a balance of the National Treasury from the Minister of Finance Rivadávia Corrêa. Because the balance had not been prepared in eight years, the Double-entry Bookkeeping Committee was established in June of 1914, and this body completed a technical audit of Revenues and Expenditures. The committee also conducted the state administration's first Asset and Liability audit since the colonial era. The Double-entry Bookkeeping Committee of 1914 spearheaded changes to the Brazilian public accounting system, including the creation of the Public Accounting Code in 1922 and the approval of Central Accounting Office of the Republic regulation in 1924, strengthening and ascribing perpetuity to practices adopted after 1914.

Public accounting; Double-entry bookkeeping; Double-entry Bookkeeping Committee


1 INTRODUÇÃO

Em junho de 2014 completou-se um século da criação da Comissão de Escrituração por Partidas Dobradas pelo ministro da Fazenda Rivadávia Corrêa, sob o governo do presidente da República Hermes da Fonseca, acontecimento de importância ímpar na história da introdução definitiva da escrituração por partidas dobradas (EPD) na contabilidade pública brasileira, que não merece ser olvidado.

A história da contabilidade brasileira ainda é relativamente muito pouco explorada, haja vista o pequeno número de trabalhos publicados sobre esse tema. D'Auria (1925D'Auria, F. (1925). Apontamentos de historia da Contabilidade. Rio de Janeiro: s.n.]., p. 25) assevera: "O Brasil póde figurar condignamente com a sua historia da contabilidade. Pouco, ou quasi nada, se tem escripto sobre esta matéria, em nosso paiz". Conforme Martins, Silva, e Ricardino Filho (2006)Martins, E., Silva, A. F., & Ricardino Filho, A. A. (2006). Escola Politécnica: possivelmente o primeiro curso formal de Contabilidade do Estado de São Paulo. Revista Contabilidade e Finanças - USP, 17 (42), 113-122. doi 10.1590/S1519-70772006000300010.
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, a falta de pesquisas voltadas à recuperação da história da contabilidade no Brasil permite, vez por outra, que algumas afirmações se perpetuem por intermédio de contínuas referências escritas ou verbais à afirmativa original.

Ao estudar este episódio da história da contabilidade brasileira, o presente trabalho se propõe, ainda que minimamente, a reduzir tal lacuna. Dessa forma, busca-se recuperar a memória da criação da Comissão das Partidas Dobradas de 1914, aumentando a literatura disponível sobre a adoção da EPD na contabilidade pública nacional, e possivelmente estimulando a realização de novas pesquisas sobre a história da contabilidade brasileira. Também se tem por objetivo analisar a influência da referida comissão como catalisadora de um processo de mudanças na contabilidade federal da época. Como recorte temporal, serão considerados os fatos ocorridos nos anos que precederam a constituição da Comissão das Partidas Dobradas de 1914, principalmente a partir de 1889, e os impactos causados por essa comissão sobre os eventos ocorridos nos anos subsequentes à sua criação, até o final da década de 1920.

Para realizar este estudo foi utilizado o método histórico de pesquisa. Segundo Aróstegui (2006)Aróstegui, J. (2006). A pesquisa histórica: teoria e método. Bauru: EDUSC., a pesquisa da História, sempre que se entenda que é uma pesquisa do passado, estará ligada a algumas especificidades que não se apresentam, ou não se apresentam da mesma forma, em outras ciências sociais. A primeira delas reside na natureza de suas fontes de informação, por serem indiretas, baseadas em vestígios, restos ou testemunhos, que são a matéria informativa normal do historiador. A segunda especificidade deriva da perspectiva essencial da temporalidade como natureza do histórico, entendendo como investigação e representação da História não meramente a descoberta de coisas ocorridas no passado cuja memória se havia perdido, mas dando-se conta de como as sociedades se comportam e evoluem no tempo. O terceiro aspecto refere-se à globalidade do processo histórico, pois a história de uma sociedade se encontra entrelaçada, ou tende a estar, à história de todas as sociedades do mundo.

A técnica utilizada neste estudo é a qualitativa. Conforme Aróstegui (2006)Aróstegui, J. (2006). A pesquisa histórica: teoria e método. Bauru: EDUSC., poderíamos dizer que as técnicas qualitativas seriam aquelas que não aspiram a medir na construção dos dados. Sua aspiração é, portanto, a de classificar, tipolo-gizar, reunir os dados em função de sua qualidade, de suas características - o que necessariamente exige primeiro do pesquisador uma tarefa de conceitualização - classificando fenómenos de acordo com informações verbais ou verbalizando as informações numéricas. As técnicas qualitativas acabam sempre em informações verbais. Dentro das técnicas qualitativas, foi empregada a técnica da observação documental, examinando-se fontes primárias e secundárias.

Das fontes primárias examinadas neste estudo, destaca-se a autobiografia Cinqüenta Anos de Contabilidade (1903-1953), de Francisco D'Auria. Essa obra contém um relato minucioso da vida profissional do autor, membro da Comissão das Partidas Dobradas de 1914 e Contador Geral da República no período de 1923 a 1928 (D'Auria, 1953D'Auria, F. (1953). Cinqüenta anos de Contabilidade (1903-1953). São Paulo: Indústria Gráfica Siqueira S/A.). Iudícibus (2010)Iudícibus, S. (2010). Teoria da Contabilidade. (10 ed.). São Paulo: Atlas. assevera que os autores brasileiros que mais se destacaram, pertencentes à escola clássica, foram, incontestavelmente, Francisco D'Auria e Frederico Herrmann Júnior. D'Auria teve o mérito de ser o mais "brasileiro" dos autores famosos da época, no sentido de que conseguiu formar o que se poderia chamar de embrião de uma autêntica Escola Brasileira de Contabilidade.

Outras fontes primárias relevantes provieram de João Ferreira de Moraes Junior, também membro da referida comissão, e de Carlos de Carvalho. Foram consultados os periódicos Revista Brasileira de Contabilidade e Revista Paulista de Contabilidade, jornais, a legislação da época, além de obras de História e Economia brasileiras e sobre a história da Contabilidade.

Quanto à organização deste trabalho, a próxima seção tratará sobre a abordagem acadêmica recente da história da contabilidade e o delineamento a ser dado neste estudo, seguido pela situação da contabilidade pública brasileira no contexto político-económico da Proclamação da República (1889). Em sequência, será apresentado o episódio do segundo funding loan e a criação da Comissão das Partidas Dobradas de 1914, e os comentários acerca da EPD na legislação brasileira. Por fim, teremos a descrição dos desdobramentos na contabilidade pública federal após a referida comissão e as conclusões deste trabalho.

2 DESENVOLVIMENTO

A pesquisa em história da contabilidade teve importante desenvolvimento desde o último quartel do século passado, principalmente em âmbito internacional. Tal de senvolvimento veio acompanhado por mudanças nas abordagens teóricas de pesquisa adotadas. Conforme Edwards, Coombs, e Greener (2002Edwards J. R., Coombs, H. M., & Greener, H. T. (2002). British central government and "the mercantile system of double entry" bookkeeping: a study of ideological conflict. Accounting, Organizations and Society, 27 (7), 637-658. doi 10.1016/S0361-3682(01)00060-5.
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, tradução nossa), historiadores de contabilidade, em especial os tradicionais, têm sido criticados por traçar a história da contabilidade como sendo de uma evolução contínua, aperfeiçoamento técnico e melhoria de seu estado atual. Esse método de estudar o passado da contabilidade foi criticado, em 1987, por Anthony Hopwood, arquiteto líder da denominada "Nova história da contabilidade", sob o argumento de que a maioria dos estudos anteriores de história da contabilidade tinha adotado uma perspectiva bastante técnica, delineando os resíduos do passado contábil, em vez de investigar de forma mais ativa a ação dos processos e forças subjacentes.

Segundo Miller (1994Miller, P. (1994). Accounting as social and institutional practice: an introduction. In A.G. Hopwood, & P. Miller (Eds.), Accounting as social and institutional practice (pp. 1-39). Cambridge: University Press., tradução nossa), a partir da década de 1980 houve uma profunda transformação no entendimento sobre a contabilidade, a qual passou a ser considerada como uma prática social e institucional, intrínseca e constitutiva de relações sociais, ao invés de derivada ou secundária. O foco tem sido na contabilidade como uma prática, uma visão de que a contabilidade é, acima de tudo, uma tentativa de intervir, agindo sobre indivíduos, entidades e processos para transformá-los e para atingir fins específicos. Nesta perspectiva, a contabilidade pode ser vista como um conjunto de práticas que afetam o tipo de mundo em que vivemos, o tipo de realidade social em que nos ocupamos, a forma pela qual entendemos as escolhas abertas a empresas e indivíduos, o modo como nós controlamos e organizamos atividades e processos de diversos tipos, a maneira pela qual administramos a vida dos outros e a de nós mesmos.

A respeito da pesquisa em história da contabilidade do setor público, Carnegie e Napier (2002Carnegie, G. D., & Napier, C. J. (2002). Exploring comparative international accounting history. Accounting, Auditing & Accountability Journal, 15 (5), 689-718. doi 10.1108/09513570210448966.
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, tradução nossa) relatam o surgimento do interesse em estudos dessa natureza em vários países. Em razão das organizações do setor público, muitas vezes, terem uma maior propensão para sobreviver do que as entidades do setor privado, e por geralmente possuírem uma abordagem mais formal para a preservação dos registros, o setor público é geralmente bem servido em termos de disponibilidade de materiais de pesquisa primária. Como exemplos de trabalhos realizados nos últimos anos, a introdução da EPD no governo central britânico foi tratada nos trabalhos de Edwards et al. (2002Edwards J. R., Coombs, H. M., & Greener, H. T. (2002). British central government and "the mercantile system of double entry" bookkeeping: a study of ideological conflict. Accounting, Organizations and Society, 27 (7), 637-658. doi 10.1016/S0361-3682(01)00060-5.
https://doi.org/10.1016/S0361-3682(01)00...
, tradução nossa) e de Edwards e Greener (2003Edwards, J. R., & Greener, H. T. (2003). Introducing mercantile bookkeeping into British central government, 1828-1844. Accounting and Business Research, 33 (1), 51-64. doi 10.1080/00014788.2003.9729631.
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, tradução nossa). Gomes, Carnegie, e Rodrigues (2008Gomes, D., Carnegie, D. G., & Rodrigues, L. L. (2008). Accounting change in central government - the adoption of double entry bookkeeping at the Portuguese Royal Treasury (1761). Accounting, Auditing & Accountability Journal, 21 (8), 1144-1184. doi 10.1108/09513570810918797.
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, tradução nossa) abordaram a adoção da EPD no Erário Régio português.

De acordo com Gomes et al. (2008Gomes, D., Carnegie, D. G., & Rodrigues, L. L. (2008). Accounting change in central government - the adoption of double entry bookkeeping at the Portuguese Royal Treasury (1761). Accounting, Auditing & Accountability Journal, 21 (8), 1144-1184. doi 10.1108/09513570810918797.
https://doi.org/10.1108/0951357081091879...
, tradução nossa), dos séculos XVI a XIX, os governos de diferentes países europeus implementaram reformas contábeis que resultaram na introdução da EPD para o gerenciamento das finanças públicas no âmbito do governo central. O uso da EPD para fins mercantis, especialmente dentro de grandes estabelecimentos comerciais, proporcionou evidência para os principais tomadores de decisão da potencial relevância da técnica para a administração pública. Conforme Carvalho (1914)Carvalho, C. (1914). A contabilidade do thesouro de S. Paulo. Revista Brasileira de Contabilidade, 3 (7), 127-131., a aplicação da EPD no início do século XX dava-se na contabilidade pública de países como Inglaterra, França, Itália, Espanha, Bélgica e Argentina.

Este estudo examinará os resultados atingidos pela Comissão das Partidas Dobradas de 1914 e o papel desempenhado por essa comissão no processo de mudanças ocorrido na contabilidade pública brasileira nos anos subsequentes à sua constituição.

2.1 A Contabilidade Pública no Contexto Político-Econômico da Proclamação da República (1889)

À Proclamação da República, em 1889, segue-se praticamente uma década de muitas conturbações políticas, as quais somente vieram a se arrefecer no governo do presidente Campos Sales, com a instituição da denominada Política dos Governadores. Tal política prevaleceu, não isenta de sobressaltos, até sua cisão definitiva em 1930, com a Revolução de 1930 e o fim da Primeira República.

Segundo Prado Júnior (1994)Prado Júnior, C. (1994). História econômica do Brasil. (41 ed.). São Paulo: Brasiliense., a República, rompendo os quadros conservadores dentro dos quais se mantivera o Império, apesar de todas as suas concessões, desencadeava um novo espírito e tom social bem mais de acordo com a fase de prosperidade material em que o país se engajara. O grande surto de crescimento econômico ocorrido na época se verificou sobretudo no desenvolvimento do comércio externo, financiado principalmente pelos capitais e créditos internacionais. Ao café acrescentam-se, na lista dos grandes produtos exportáveis, a borracha, que chegará quase a emparelhar-se a ele, o cacau, o mate, o fumo. O Brasil tornar-se-á, neste momento, um dos grandes produtores mundiais de matérias-primas e gêneros tropicais.

De acordo com Saes e Cytrynowicz (2001)Saes, F. A. M., & Cytrynowicz, R. (2001). O ensino comercial na origem dos cursos superiores de economia, contabilidade e administração. Revista Álvares Penteado, 3 (6), 37-59., na segunda metade do século XIX, a expansão cafeeira, o Código Comercial, o estabelecimento de estradas de ferro e de empresas de serviços urbanos, inclusive por meio de investimentos estrangeiros, são indicadores da crescente complexidade da economia. Nesse quadro, um conhecimento mais rigoroso dos princípios do comércio e gestão dos negócios tornou-se imperioso. Tal cenário se acentua ainda mais a partir da Primeira República. No plano econômico, manteve-se o crescimento da produção cafeeira (apesar de crises recorrentes), acelerando o processo de urbanização. Paralelamente houve o estabelecimento de grandes indústrias e a multiplicação do número de casas comerciais importadoras e exportadoras, de bancos e de outras empresas. Não menos importante foi a supressão do trabalho escravo, a imigração e a introdução da forma de trabalho livre e assalariada.

Conforme os mesmos autores, na economia, ganha importância a gestão das atividades produtivas e também o controle administrativo dos fluxos de produtos e dinheiro, demandando pessoas habilitadas a exercê-los. O próprio governo no período republicano ganha novas dimensões, multiplicando seus órgãos administrativos, cada vez mais especializados, o que exigia uma burocracia apta a desempenhar essas funções. Finalmente, o processo de urbanização ampliava a parcela da população identificada, em linhas gerais, como de classe média que, sem ter acesso aos cursos superiores tradicionais (Direito, Medicina e Engenharia), almejava por uma formação profissional que permitisse sua ascensão social.

A grande transformação da economia brasileira no período refletiu-se sobre todos os entes da sociedade, inclusive sobre os profissionais de contabilidade, na época comumente denominados como Guarda-Livros. Tais profissionais encontravam-se oficialmente organizados como uma associação de classe desde 1870, quando o Decreto n. 4.475, de 18 de fevereiro do mesmo ano, aprovou os estatutos da Associação dos Guarda-Livros.

No início do século XX, um novo impulso se dá na criação de escolas de ensino comercial, identificado principalmente com a formação do contador. No ano de 1902 são fundadas a Academia de Comércio do Rio de Janeiro e a Escola Prática de Comércio de São Paulo, posteriormente denominada Escola de Comércio Álvares Penteado (Saes & Cytrynowicz, 2001Saes, F. A. M., & Cytrynowicz, R. (2001). O ensino comercial na origem dos cursos superiores de economia, contabilidade e administração. Revista Álvares Penteado, 3 (6), 37-59.). Em 1905 é fundada a Escola Comercial da Bahia e, nos anos posteriores, diversas outras escolas são constituídas (Sá, 2008Sá, A. L. (2008). História geral da Contabilidade no Brasil. Brasília: Conselho Federal de Contabilidade.).

O Decreto Legislativo n. 1.339, de 09 de janeiro de 1905, declarou a Academia de Comércio do Rio de Janeiro instituição de utilidade pública, reconhecendo os diplomas por ela oferecidos como de caráter oficial. O decreto estendeu as mesmas disposições à Escola de Comércio Álvares Penteado. Nos anos seguintes, as disposições desse decreto foram estendidas a diversas outras escolas.

Com o advento da República, diversos atos normativos 1 1 Decreto Legislativo n. 23 de 30/10/1891, Decreto n. 2.807 de 31/01/1898, Decreto Legislativo n. 1.178 de 16/01/1904, Lei n. 2.083 de 30/07/1909, Decreto n. 7.751 de 23/12/1909. buscaram reorganizar os serviços da administração pública federal, dentre os quais os serviços elaborados pelo Tesouro Federal e pela Diretoria de Contabilidade do Ministério da Fazenda. No que tange à reorganização da contabilidade pública, destaque deve ser feito à modernização da escrituração mercantil realizada em 1905 no governo do Estado de São Paulo. Conforme D'Auria (1953)D'Auria, F. (1953). Cinqüenta anos de Contabilidade (1903-1953). São Paulo: Indústria Gráfica Siqueira S/A., o Decreto n. 1.335, de 12 de dezembro de 1905, do governo do Estado de São Paulo, deu origem a um progresso imenso na administração financeira de São Paulo, da União e de todo o país. Tal como se apresenta na Figura 1, este decreto dispôs em seu artigo 1°: "Fica estabelecida, no Tesouro do Estado, a escrituração em forma mercantil" e, no artigo 4°: "A escrituração a que se refere o presente decreto começará a ser feita no dia 1° de janeiro de 1906" (D'Auria, 1953D'Auria, F. (1953). Cinqüenta anos de Contabilidade (1903-1953). São Paulo: Indústria Gráfica Siqueira S/A., p.16).

Figure 1
Decreto n. 1.335 de 12 de dezembro de 1905. Institúe no Thesouro do Estado a escripturação em fórma commercial. Diario Official do Estado de São Paulo. 14 de dezembro. Recuperado de http://dobuscadireta.imprensaoficial.com.br/default.aspx?DataPublicacao=19051214&Caderno=Diario%20Oficial&NumeroPagina=3039.

Segundo Mascarenhas (1922)Mascarenhas, J. (1922). Carlos de Carvalho. Revista Paulista de Contabilidade, 1 (1), 16-17., em 1905, envolvia-se o Estado de São Paulo em dois grandes empreendimentos: a encampação da Estrada de Ferro Sorocabana e a valorização do café, por meio do Convênio de Taubaté. Carlos de Carvalho, dada sua reconhecida competência, foi convidado para acompanhar essas duas operações nos seus mínimos detalhes, além de também empreender a reforma da escrituração do Tesouro através do estabelecimento da EPD e pela introdução da contabilidade patrimonial ao lado da financeira. Conforme Mancini (1978)Mancini, J. (1978). Estanislau Kruszynski. São Carlos: Editora Ind. e Com. Gráfico "O Expresso" Ltda., em 1892, Carlos de Carvalho havia sido responsável pela organização da contabilidade da prefeitura municipal de São Carlos, obra delineada e orientada pelo polonês Estanislau Kruszynski.

D'Auria (1953)D'Auria, F. (1953). Cinqüenta anos de Contabilidade (1903-1953). São Paulo: Indústria Gráfica Siqueira S/A. assevera que o acontecimento máximo da época, para a história da contabilidade pública do Brasil, foi o processo introduzido por Carlos de Carvalho no Tesouro de São Paulo. No Relatório da Secretaria da Fazenda, do ano de 1905, Capítulo 3° (Ativo e Passivo do Estado), elaborado por Carvalho, as primeiras palavras foram: "Pela primeira vez o Tesouro do Estado de São Paulo apresenta o seu - balanço do ativo e passivo - completo e organizado de acordo com as normas, modernamente aconselhadas pelos mestres da contabilidade pública" (D'Auria, 1953D'Auria, F. (1953). Cinqüenta anos de Contabilidade (1903-1953). São Paulo: Indústria Gráfica Siqueira S/A., p.17). O método de escrituração adotado no Estado de São Paulo foi posteriormente seguido na contabilidade federal, e por diversos outros Estados e Municípios do país.

2.2 O Segundo Funding Loan e a Criação da Comissão das Partidas Dobradas

O funding loan, empréstimo de reestruturação de dívida externa, teve sua primeira realização no Brasil em 1898. A renegociação da dívida externa brasileira fazia parte do programa de restauração das finanças nacionais promovido pelo presidente Campos Sales. Embora marcado pela austeridade, tal programa foi de fundamental importância para a estabilidade económica na década seguinte.

Conforme Fausto (1977)Fausto, B. (1977). Expansão do café e política cafeeira. In B. Fausto (Org.). História geral da civilização brasileira. Tomo III - O Brasil republicano. Estrutura de poder e economia (1889-1930). (Vol. 1, pp. 195-248). São Paulo: Difel., em 1909 surgiram os primeiros resultados da política de valorização do café, iniciada em 1906 com o Convênio de Taubaté. Os preços internacionais do café começaram a subir e se mantiveram em alta até 1912, graças à retração da oferta e à diminuição do volume das safras. A re-ativação económica vinha sendo gestada desde 1903, a partir do programa de investimentos públicos realizado pelo governo do presidente Rodrigues Alves, dirigido sobretudo a reapa-relhar os portos, estender e equipar a rede ferroviária.

Entretanto, conforme Abreu (2002)Abreu, M. P. (2002). Os funding loans brasileiros - 1898-1931. Pesquisa e Planejamento Econômico (PPE) - IPEA, 32 (3), 515-540. Recuperado de http://ppe.ipea.gov.br/index.php/ppe/article/view/142/77.
http://ppe.ipea.gov.br/index.php/ppe/art...
, o significativo aumento da dívida externa tornou a economia brasileira extremamente vulnerável a qualquer perturbação que afetasse fluxos de capital e exportações. A partir de 1912, o Brasil enfrentou uma sucessão de eventos que transformaram radicalmente a posição do seu balanço de pagamentos. O serviço da dívida, decorrente do primeiro funding loan, havia sido retomado a partir de 1909. As exportações de café reduziram-se com a queda de preços decorrente da venda de estoques nos Estados Unidos, determinada pela justiça norte-americana em decisão com base no Sherman Act 2 2 Legislação federal dos EUA de 1890 que proibia a criação de monopólios, coibindo tentativas diretas ou indiretas de interferência na natureza livre e competitiva da produção e distribuição de bens. . As exportações de borracha caíram rapidamente, em vista do impacto da entrada no mercado mundial da borracha asiática. Tornou-se difícil o lançamento de empréstimos brasileiros com a deterioração política na Europa, especialmente nos Bálcãs.

Fausto (1977)Fausto, B. (1977). Expansão do café e política cafeeira. In B. Fausto (Org.). História geral da civilização brasileira. Tomo III - O Brasil republicano. Estrutura de poder e economia (1889-1930). (Vol. 1, pp. 195-248). São Paulo: Difel. observa que, em 1913, os preços dos produtos de exportação caíram abruptamente e a manutenção do elevado nível de importações provocou um déficit na balança comercial brasileira, fato que ocorria pela primeira vez na história da República. Com a deflagração da Primeira Guerra Mundial, em julho de 1914, paralisou-se a entrada de capitais estrangeiros, ao mesmo tempo em que o país se via obrigado a remeter 10 milhões de libras esterlinas para atender a compromissos da dívida externa. Em agosto, a taxa cambial, no mercado livre, caiu abaixo da taxa de estabilização, provocando uma corrida aos depósitos da Caixa de Conversão 3 3 A Caixa de Conversão foi criada em 1906 e tinha por finalidade a manutenção da estabilidade cambial, através da fixação da taxa nominal de câmbio. e o seu fechamento.

Consequentemente, tornou-se inevitável a negociação de um segundo funding loan. Conforme Fritsch (1988Fritsch, W. (1988). External constraints in economic policy in Brazil 1889-1930. Londres: Macmillan., tradução nossa), em setembro de 1913, uma missão financeira 4 4 Fazendo um paralelo aos tempos atuais, tais missões financeiras se assemelhariam às missões do Fundo Monetário Internacional (FMI). enviada pelos banqueiros ingleses Rothschild chegou ao Rio de Janeiro para avaliar a capacidade de serviço da dívida externa do Brasil, de modo a fornecer as bases para a negociação de um novo grande empréstimo público. Evidências indiretas mostram que os banqueiros não ficaram otimistas pelo que viram, sugerindo que, se a assistência financeira era para ser fornecida, deveria ter suas condições firmemente amarradas. Em março de 1914, último ano do período presidencial de Hermes da Fonseca, sendo ministro da Fazenda Rivadávia Corrêa, uma conferência de banqueiros liderada por N. M. Rothschild & Sons Limited, incluindo os principais bancos franceses, bem como Speyer e Schroeder, decidiu ser impossível tomar posição sobre um empréstimo ao Brasil sem informações adicionais (Abreu, 2002Abreu, M. P. (2002). Os funding loans brasileiros - 1898-1931. Pesquisa e Planejamento Econômico (PPE) - IPEA, 32 (3), 515-540. Recuperado de http://ppe.ipea.gov.br/index.php/ppe/article/view/142/77.
http://ppe.ipea.gov.br/index.php/ppe/art...
).

Segundo D'Auria (1953)D'Auria, F. (1953). Cinqüenta anos de Contabilidade (1903-1953). São Paulo: Indústria Gráfica Siqueira S/A., uma das informações solicitadas pelos banqueiros foi o balanço do Tesouro. Os representantes dos banqueiros ingleses, que deveriam realizar este empréstimo 5 5 Conforme Abreu (2002), o segundo funding loan teve as negociações arrastadas por longos meses, sendo interrompidas com o início da Primeira Guerra Mundial. Em setembro de 1914 foi acertado que o funding loan teria um capital nominal máximo de 15 milhões de libras esterlinas, 63 anos de prazo de amortização, com início de resgate em 1927, tendo como garantia a receita da alfândega do Rio de Janeiro e, subsidiariamente, de todas as outras alfândegas da República. Seriam suspensas as amortizações de todos os empréstimos federais denominados em libras ou francos franceses até 1° de agosto de 1927 e os juros desses empréstimos que vencessem entre 1° de agosto de 1914 e 31 de julho de 1917 seriam refinanciados pelos novos títulos. Ficavam vedadas, também por três anos, a emissão e a garantia de novos empréstimos externos, ou de empréstimos internos com juros pagáveis no exterior. , solicitaram ao ministro Rivadávia Corrêa que lhes fornecesse, demonstrada, a situação financeira da República. O ministro então determinou ao diretor de contabilidade que lhe apresentasse o balanço do Tesouro. Para decepção do ministro Rivadávia, a feitura do balanço estava com oito anos de atraso, sendo que o último balanço publicado era de 1905. O ministro então determinou a Carlos Claudio da Silva, diretor de contabilidade da Caixa de Conversão e a Francisco Chagas Galvão, subdiretor de contabilidade do Tesouro Nacional, o início de imediatos estudos para a regularização dos balanços do Tesouro. A conclusão que ambos tiveram foi que a melhor solução seria o estudo da contabilidade praticada na Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo, adaptando esta organização ao Tesouro Nacional.

As demonstrações anteriormente elaboradas pelo Tesouro Nacional encontravam-se em completa inobservância dos mais comezinhos preceitos de contabilidade pública, tratando-se de meras estatísticas de rendas e despesas. Rui Barbosa, quando ministro da Fazenda do Governo Provisório, asseverou que a prática, assim como a teoria do sistema de contabilidade pública brasileiro, estavam atrasadíssimas (Contabilidade Fiscal, 1916Contabilidade fiscal. (1916). Revista Brasileira de Contabilidade, 5 (4), 75-77.).

Uma comissão do governo federal foi a São Paulo para reunião com Carlos de Carvalho, chefe da Seção de Contabilidade da Secretaria da Fazenda. Conforme D'Auria (1953)D'Auria, F. (1953). Cinqüenta anos de Contabilidade (1903-1953). São Paulo: Indústria Gráfica Siqueira S/A., Carlos de Carvalho, com aquela "argúcia penetrante" que o distinguia, compreendeu logo que nenhum dos membros da comissão federal estava em condições de assimilar a organização contábil praticada no governo de São Paulo e, assim pensando, persuadiu a comissão de que a melhor maneira de se fazer a reforma da contabilidade federal seria a ida ao Rio de Janeiro de dois dos seus auxiliares, a saber, Francisco D'Auria e Carlos Levy Magano. Por ato do ministro Rivadávia Corrêa, constituiu-se, em junho de 1914, a "Comissão das Partidas Dobradas", chefiada por Carlos Claudio da Silva, iniciando-se os trabalhos em 16 de junho de 1914 (Lobo & Moraes Junior, 1941Lobo, U., & Moraes Junior, J. F. (1941). Departamento administrativo do serviço público - exposição de motivos. Diário Oficial dos Estados Unidos do Brasil. 17 de maio. Recuperado de http://www.jusbrasil.com.br/diarios/2303417/dou-secao-1-17-05-1941-pg-97/pdfView.
http://www.jusbrasil.com.br/diarios/2303...
). Foram também designados para fazer parte da comissão João Ferreira de Moraes Junior e Ernesto Le Cesne.

A primeira parte dos trabalhos foi a de coligir dados para abertura da escrita. Após seis meses, foi concluída a primeira fase de remodelação, quando, segundo D'Auria (1953)D'Auria, F. (1953). Cinqüenta anos de Contabilidade (1903-1953). São Paulo: Indústria Gráfica Siqueira S/A., foram levantados, tecnicamente, o balanço de Receita e Despesa e o primeiro balanço de Ativo e Passivo elaborado na administração do país, desde o Brasil Colônia. Em fins de 1914, foi redigido o Relatório da Comissão das Partidas Dobradas, junto ao qual estavam os dois já mencionados balanços 6 6 Os balanços da Receita e Despesa da União em 30 de junho de 1914 e do Ativo e Passivo da União encerrado em 31 de outubro de 1914 encontram-se anexos a este trabalho, apenas a título de ilustração. . Tal relatório foi apresentado ao então presidente da República, Venceslau Brás. Na apresentação, Francisco D'Auria ressaltou ao presidente que as peças apresentadas eram tecnicamente bem feitas, mas incompletas quanto aos dados que nelas se continham, devido a atrasos no envio de dados pelas delegacias fiscais e pelas pagadorias do Tesouro. O presidente então instou imediatas providências para resolução dessas pendências.

Nessa ocasião, teve também Francisco D'Auria a oportunidade de elucidar ao presidente da República o princípio da competência de exercícios, esclarecendo que o balanço da Receita e Despesa, como se fazia no Brasil, não exprimia a verdadeira situação financeira, porquanto nele não figuravam as despesas realizadas e ainda não pagas. O presidente redarguiu que não deveria ser de outra forma, pois despesas ainda não pagas não deveriam figurar no balanço, ao que D'Auria esclareceu que, tecnicamente, não deveria ser assim e, politicamente, também não convinha que assim fosse, pois a omissão permitiria a postergação de pagamentos para aparentar melhor resultado financeiro (D'Auria, 1953D'Auria, F. (1953). Cinqüenta anos de Contabilidade (1903-1953). São Paulo: Indústria Gráfica Siqueira S/A.).

O senador João de Lyra Tavares, que fizera parte da Comissão das Partidas Dobradas antes de sua eleição para o Senado Federal, fez referência aos trabalhos dessa comissão em discurso ao Senado em 17 de novembro de 1915:

O trabalho feito, afirmo ao Senado com a responsabilidade de humilde profissional, é importantíssimo, e tive a satisfação de ouvir do atual Ministro da Fazenda, Sr. Dr. Pandiá Calógeras, a declaração de que em Janeiro próximo será estabelecida definitivamente a escrituração por partida-dobrada nas repartições de fazenda. Portanto, resta-nos votar quanto antes, o código de contabilidade pública 7 7 O Código de Contabilidade Pública viria a ser aprovado somente em 1922. cujo projeto existe na Câmara dos Deputados.

(D'Auria, 1953D'Auria, F. (1953). Cinqüenta anos de Contabilidade (1903-1953). São Paulo: Indústria Gráfica Siqueira S/A., p.44)

D'Auria (1953)D'Auria, F. (1953). Cinqüenta anos de Contabilidade (1903-1953). São Paulo: Indústria Gráfica Siqueira S/A. assevera que o bom seguimento da Comissão das Partidas Dobradas deve-se em grande parte ao empenho de João Pandiá Calógeras, ministro da Fazenda do governo do presidente Venceslau Brás de julho de 1915 a setembro de 1917. Através de Portaria do ministro Calógeras, foi criada, em 31 de dezembro de 1915, a "Seção de Escrituração por Partidas-Dobradas", a qual, segundo o mesmo autor, foi o grande passo inicial para firmar a remodelação da contabilidade federal.

Houve oposição ao desenvolvimento dos trabalhos da Comissão das Partidas Dobradas até mesmo por parte de membros do Ministério da Fazenda. De acordo com D'Auria (1953D'Auria, F. (1953). Cinqüenta anos de Contabilidade (1903-1953). São Paulo: Indústria Gráfica Siqueira S/A., p. 42): "Era manifesta a má-vontade contra os nossos serviços, a começar pelos mais altos funcionários do Ministério, - os bispos da repartição, como então se dizia". Manifestações contrárias à adoção da EPD no Tesouro Nacional também se deram na imprensa da época, segundo Carvalho (1914)Carvalho, C. (1914). A contabilidade do thesouro de S. Paulo. Revista Brasileira de Contabilidade, 3 (7), 127-131..

A extensão da EPD às delegacias fiscais iniciou-se na Delegacia Fiscal de São Paulo, em setembro de 1916. A partir de então, conforme D'Auria (1953)D'Auria, F. (1953). Cinqüenta anos de Contabilidade (1903-1953). São Paulo: Indústria Gráfica Siqueira S/A., a remodelação foi se estendendo às repartições congéneres.

2.3 Comentários acerca da EPD na Legislação Brasileira

O sistema de EPD na contabilidade pública nacional, cuja adoção foi realizada e apregoada pelo governo federal em 1914, encontrava-se presente na legislação desde 1808, através do Alvará de 28 de Junho de 1808 de D. João VI, que criou o Erário Régio e o Conselho da Fazenda 8 8 O Alvará de 28 de Junho de 1808, conforme seu próprio preâmbulo, teve por inspiração a Lei de 1761 que criou o Erário Régio em Portugal. . A edição do jornal O Estado de S. Paulo de 22 de julho de 1914, que reproduziu o editorial do jornal Correio da Manhã, ironizou tal situação:

- A proposito da introducção do systema de partidas dobradas na escripturação das repartições publicas:

Fala-se "agora" em estabelecer a escripturação por partidas dobradas para todas as repartições publicas.

Não ha necessidade de dizer que esse é o systema usado em quasi todo o mundo civilisado. Mas ha necessidade de accrescentar que o que se projecta fazer "agora", não constitue nenhuma novidade para o Brasil.

Em 28 de Junho de 1808, portanto pouco tempo depois da chegada ao Rio de Janeiro do rei d. João VI, foi publicado um "Alvará", que abaixo transcrevemos, não como recordação de uma velharia historica, mas como affirmação de que não tem faltado ao Brasil leis sabias que o governem, mas apenas tem havido desconhecimento da existência dessas leis, que, por isso mesmo, não têm tido execução. Ahi vae transcripto o "Alvará", que até parece ter sido feito de proposito para ser lido nestes tempos que vão correndo: "Creação de um Erario ou Thesouro Geral e Publico. Titulo II - Do methodo da escripturação e contabilidade do Erario.

1.° - Para que o methodo de escripturação e formulas de contabilidade da minha real Fazenda não fique arbitrario, e sujeito á maneira de pensar de cada hum dos Contadores geraes que sou servido crear para a referido Erario: ordeno que a escripturação seja mercantil por partidas dobradas, por ser a unica seguida pelas nações civilisadas, assim pela sua brevidade para o manejo de grandes sommas, como por ser a mais clara, e a que menos lugar dá a erros e subterfugios, onde se esconde a malicia e a fraude dos prevaricadores.

2.° - Por tanto haverá em cada uma das Contadorias Geraes hum diario, hum livro mestre, e hum memorial ou borrador, além de mais hum livro auxiliar ou de contas correntes para cada um dos rendimentos das estações de arrecadação, recebedoria, thesouraria, contratos ou administrações da minha Real Fazenda. E isto para que sem delongas se veja, logo que se precisar, o estado da conta de cada hum dos devedores ou exactores das rendas da minha coroa e fundos publicos.

3.° - Ordeno que os referidos livros de escripturação sejam inalteraveis, e que para ella se não possa augmentar ou diminuir nenhum, sem se me fazer saber por consulta do presidente, a necessidade que houver para se diminuir ou accrescentar o seu numero"

(Jornaes do Rio, 1914Jornaes do Rio. (1914). O Estado de S. Paulo. 22 de Julho. Recuperado de http://acervo.estadao.com.br/publicados/1914/07/22/g/19140722-12997-nac-0005-999-5-not-wspxxga.jpg.
http://acervo.estadao.com.br/publicados/...
, p.5)
Também D'Auria (1925D'Auria, F. (1925). Apontamentos de historia da Contabilidade. Rio de Janeiro: s.n.]., p. 25) afirma a este respeito:

Um estudioso diligente de cousas de contabilidade, o illustre Dr. Viçoso Jardim, fez um "Escorço historico de Contabilidade Publica do Brasil", em sua substanciosa obra "A Contabilidade Publica do Brasil". Cita, o Dr. Viçoso Jardim, a legislação relativa ao Erario Regio, a partir do primeiro acto, que foi o alvará de 28 de junho de 1808. Por essa legislação verifica-se que não era, na época, descurada a pratica de boa contabilidade.

Fala-nos o citado autor do notável Contador Geral, Manoel Alves Branco, funccionario de grande dedicação que, mais tarde, foi elevado ao cargo de Ministro da Fazenda. As instrucções de 26 de abril de 1832 9 9 Decisão n. 147 de 26/04/1832 do Ministério da Fazenda. encerram seguras normas de escripturação por partidas-dobradas. Não era uma contabilidade completa, mas representa um progresso notavel no tempo em que era praticada. Triste, humilhante até, é o facto de não ter brotado tão bem intencionada semente. Os regulamentos do Thesouro sempre prescreveram o emprego das partidas-dobradas, mas, na realidade, ellas só figuraram nesses regulamentos, porque a escripturação do Thesouro, antes da reorganização iniciada e levada a effeito nestes ultimos tempos, foi sempre um lamentavel attestado de incuria por um serviço primordial para administração dos dinheiros públicos.

João Ferreira de Moraes Junior, em artigo à Revista Brasileira de Contabilidade, denominado "Ainda a lei de Contabilidade Pública", descreve a história da EPD na contabilidade pública brasileira. Conforme Moraes Junior (1921a)Moraes Junior, J. F. (1921a). Ainda a lei de Contabilidade Publica - I. Revista Brasileira de Contabilidade, 10, 89-93., a má interpretação do Decreto n. 5.245, de 05 de abril de 1873, que aboliu a escrituração a limpo dos Diários e Livros Mestres, transmitiu a errónea suposição de que havia sido abandonada a EPD 10 10 Uma analogia à má interpretação apontada, guardadas as devidas proporções, pode ser feita com a situação atualmente vigente na qual empresas enquadradas em determinados regimes tributários (por exemplo, o Simples Nacional) estariam desobrigadas e/ou dispensadas de executar sua escrituração contábil. . O autor assevera que, durante mais de um século, a obrigatoriedade da EPD constou na legislação de Fazenda e, nesse prazo, foi ela praticada durante algum tempo, sendo depois arbitrariamente abandonada.

Segundo Moraes Junior (1921b)Moraes Junior, J. F. (1921b). Ainda a lei de Contabilidade Publica - II. Revista Brasileira de Contabilidade, 10, 101-103., os principais fatores que impediram a eficiência da EPD na contabilidade pública foram a Inércia, a Incompetência e a Má vontade. A Inércia não cogitou pór o método em prática, não obstante fosse uma lei a cumprir. A Incompetência não permitiu perceber os benefícios advindos da adoção da escrituração dúplice. Por fim, a Má vontade alegava que o método era muito trabalhoso, exigia grande quantidade de livros, sendo muito dispendioso; que era inexequível porque exigia um corpo especial de técnicos para sua execução; e que, por ser minucioso, exigente, indiscreto, criava dificuldades à administração.

Gomes et al. (2008Gomes, D., Carnegie, D. G., & Rodrigues, L. L. (2008). Accounting change in central government - the adoption of double entry bookkeeping at the Portuguese Royal Treasury (1761). Accounting, Auditing & Accountability Journal, 21 (8), 1144-1184. doi 10.1108/09513570810918797.
https://doi.org/10.1108/0951357081091879...
, tradução nossa) observam que o estudo das reformas contábeis em governos centrais europeus também tem demonstrado que a adoção inicial da EPD pelo governo central, em alguns países, não foi um processo simples. Associado ao processo geralmente lento de adoção da EPD estava normalmente a falta de pessoas qualificadas, com conhecimento e experiência em EPD, o que condicionou a implementação do sistema.

2.4 Desdobramentos na Contabilidade Pública Federal após a Comissão das Partidas Dobradas de 1914

Uma das primeiras mudanças na legislação federal após o trabalho realizado pela Comissão das Partidas Dobradas de 1914 deu-se através da publicação do Decreto n. 13.248, de 23 de outubro de 1918, por iniciativa do então ministro da Fazenda Antonio Carlos Ribeiro de Andrada. Esse decreto trouxe alterações ao Decreto n. 7.751, de 23 de dezembro de 1909, tratando do regulamento para execução dos serviços da Administração Geral da Fazenda Nacional. Mais especificamente quanto à Diretoria de Contabilidade do Tesouro Nacional, foi reforçada a competência dessa diretoria na suprema administração da contabilidade da União, à qual ficariam incorporadas, como parte do seu organismo, as diretorias de contabilidade dos ministérios, as seções de contabilidade, quaisquer que fossem suas denominações, as tesourarias e pagadorias das repartições que as possuíssem, fossem civis ou militares.

Importante modificação deu-se através do artigo 45 deste decreto, o qual criou a Seção de Contabilidade. Conforme Moraes Junior (1921b)Moraes Junior, J. F. (1921b). Ainda a lei de Contabilidade Publica - II. Revista Brasileira de Contabilidade, 10, 101-103., a integração definitiva da Comissão de Escrituração por Partidas Dobradas de 1914, como órgão técnico da Diretoria de Contabilidade, deu-se com a criação da referida seção. A Seção de Contabilidade tinha como principal incumbência a escrituração de toda a Receita e Despesa da União pelo sistema de partidas dobradas. Em 03 de setembro de 1919, o Decreto n. 13.746 deu instruções ao serviço geral de contabilidade pública.

Lobo e Moraes Junior (1941)Lobo, U., & Moraes Junior, J. F. (1941). Departamento administrativo do serviço público - exposição de motivos. Diário Oficial dos Estados Unidos do Brasil. 17 de maio. Recuperado de http://www.jusbrasil.com.br/diarios/2303417/dou-secao-1-17-05-1941-pg-97/pdfView.
http://www.jusbrasil.com.br/diarios/2303...
observam que, embora as instruções legais existissem, havia grande dificuldade na implantação prática da EPD, especialmente nas delegacias e alfândegas do país. Instrutores foram enviados aos Estados com a missão de montar a escrita por partidas dobradas nas delegacias e alfândegas, mas, em muitos casos, o trabalho desses instrutores foi inteiramente perdido, porque sendo amovível o pessoal daquelas repartições, assim que começava a ser eficiente, era afastado do serviço de escrituração ou por conveniência própria ou por conveniência dos respectivos delegados e inspetores, alguns destes muito interessados em demonstrar que era inexequível o novo método mandado adotar. Apesar das instruções minuciosas e dos modelos do Decreto n. 13.746, a maioria das repartições se mantinha em grande atraso na remessa de seus balanços mensais e definitivos, bases da prestação de contas e da sua centralização. Havia necessidade de um órgão autônomo que superintendesse, em todo o Brasil, a contabilidade pública.

Conforme D'Auria (1953)D'Auria, F. (1953). Cinqüenta anos de Contabilidade (1903-1953). São Paulo: Indústria Gráfica Siqueira S/A., depois de uma vintena de anos, permanecia, ainda em estudos, na respectiva Comissão da Câmara Federal, o projeto do Código de Contabilidade Pública. A iniciativa da remodelação da contabilidade do Tesouro Nacional, desde meados de 1914, fora motivo para ativação dos trabalhos da mencionada comissão. O projeto foi apresentado em 1917, por mãos do parlamentar Barbosa Lima.

Em 28 de janeiro de 1922, através do Decreto Legislativo n. 4.536, foi organizado o Código de Contabilidade da União. O decreto foi dividido em seis capítulos: Centralização dos Serviços de Contabilidade; Do Exercício Financeiro - Orçamento e Contas da Gestão Financeira; Da Receita Pública; Da Despesa Pública; Dos Bens Públicos; Dos Responsáveis por Bens Públicos.

O código dispunha sobre a Contabilidade da União, compreendendo todos os atos relativos às contas de gestão do patrimônio nacional, à inspeção e registro da receita e despesa federais, centralizados no Ministério da Fazenda, sob a imediata direção da Diretoria Central de Contabilidade da República 11 10 A denominação foi retificada para "Contadoria Central da República" conforme artigo 153 do Decreto Legislativo n. 4.555 de 10/08/1922. e fiscalização do Tribunal de Contas. Segundo D'Auria (1953)D'Auria, F. (1953). Cinqüenta anos de Contabilidade (1903-1953). São Paulo: Indústria Gráfica Siqueira S/A., o regulamento do Código de Contabilidade baixado com o Decreto n. 15.783, de 8 de novembro de 1922, foi elaborado por João Ferreira de Moraes Junior, compondo-se de mais de 900 artigos.

Lobo e Moraes Junior (1941)Lobo, U., & Moraes Junior, J. F. (1941). Departamento administrativo do serviço público - exposição de motivos. Diário Oficial dos Estados Unidos do Brasil. 17 de maio. Recuperado de http://www.jusbrasil.com.br/diarios/2303417/dou-secao-1-17-05-1941-pg-97/pdfView.
http://www.jusbrasil.com.br/diarios/2303...
asseveram que o aparecimento do Código de Contabilidade, depois de uma estagnação tão longa no Congresso Nacional, deu-se também devido ao interesse do governo de então e de alguns deputados e senadores em ver um pouco de ordem nas contas da União. Acrescentam os mesmos autores a importância do trabalho silencioso e anônimo de alguns devotados à causa da contabilidade pública no Brasil, que passaram a procurar os legisladores mais influentes, para convencê-los de que o código em debate era um imperativo inadiável.

A Contadoria Central da República foi criada através do Decreto n. 15.210 de 28 de dezembro de 1921. Entretanto, somente com o Decreto n. 16.650, de 22 de outubro de 1924, foi organizada definitivamente a Contadoria Central da República e aprovado seu regulamento.

Conforme o Decreto n. 16.650, a Contadoria Central da República encontrava-se imediatamente subordinada ao ministro da Fazenda, não estando mais sob a dependência do Tesouro Nacional. Como órgão centralizador da contabilidade da União, tinha por responsabilidade todos os atos relativos às contas de gestão do patrimônio nacional, à inspeção e registro da receita e despesa federais e à superintendência da contabilidade de todas as repartições e serviços públicos federais, civis ou militares. Competia à Contadoria Central, além da suprema administração da contabilidade geral da União, a fiscalização para a fiel observância, pelas diferentes repartições e serviços federais, civis ou militares, dos preceitos de contabilidade pública estabelecidos pelo Código de Contabilidade e seu regulamento.

Encontravam-se subordinadas à Contadoria Central da República as contadorias e subcontadorias seccionais distribuídas pelo país. A Contadoria manteria um serviço de inspeção permanente em todas as repartições que lhe fossem subordinadas. O contador geral, contador-adjunto, subcontadores, secretário-chefe de seção, guardalivros e auxiliares seriam nomeados por decreto do presidente da República. Comenta Moraes Junior (1921b)Moraes Junior, J. F. (1921b). Ainda a lei de Contabilidade Publica - II. Revista Brasileira de Contabilidade, 10, 101-103. a respeito deste órgão:

No discurso com que justificou o parecer da Commissão Especial ás emendas apresentadas em terceira discussão ao projeto daquelle Codigo de Contabilidade Pública], o preclaro Deputado Federal Sr. Dr. Josino Araujo, tece um verdadeiro hymno de louvor á creação daquella Contadoria, que "tem por fim principalmente systematisar, organisar, dirigir, orientar e fiscalizar todos os serviços das contabilidades ministeriaes e outras repartições dependentes", e que, na centralização e uniformização das leis e preceitos de contabilidade "será como o centro cerebro-espinhal do systema nervoso, dirigindo por meio dos nervos todos os movimentos do organismo".

(Moraes Junior, 1921bMoraes Junior, J. F. (1921b). Ainda a lei de Contabilidade Publica - II. Revista Brasileira de Contabilidade, 10, 101-103., p.103)

Segundo D'Auria (1953)D'Auria, F. (1953). Cinqüenta anos de Contabilidade (1903-1953). São Paulo: Indústria Gráfica Siqueira S/A., indispensável seria à contabilidade federal a criação de um órgão como a Contadoria Central da República, como repartição reguladora e informante de toda a sua atividade administrativa. Lobo e Moraes Junior (1941)Lobo, U., & Moraes Junior, J. F. (1941). Departamento administrativo do serviço público - exposição de motivos. Diário Oficial dos Estados Unidos do Brasil. 17 de maio. Recuperado de http://www.jusbrasil.com.br/diarios/2303417/dou-secao-1-17-05-1941-pg-97/pdfView.
http://www.jusbrasil.com.br/diarios/2303...
ressaltam que as condições para o êxito deste órgão, como centralizador e superintendente da contabilidade pública brasileira, seriam a sua autonomia, a existência de um quadro de pessoal técnico como nunca teve a administração pública e a fixação de um corpo de disposições, devidamente coordenadas, que regulasse a contabilidade, de modo uniforme, em todas as repartições federais. De acordo com os mesmos autores, as duas primeiras condições foram atingidas com a criação da contadoria, e a terceira com a aprovação do Código de Contabilidade Pública.

Em 29 de abril de 1924 procedeu-se à inauguração oficial da Contadoria Central da República. O discurso feito nessa ocasião pelo contador geral, Francisco D'Auria, ilustra o quanto a contabilidade pública estava passando por transformações neste período (D'Auria, 1953D'Auria, F. (1953). Cinqüenta anos de Contabilidade (1903-1953). São Paulo: Indústria Gráfica Siqueira S/A.):

Esta repartição, mal entendida para uns e, para outros, alvo de ataques sistemáticos, consagra, na realidade, um passo concreto para a sistematização dos princípios reguladores da ordem e da clareza nas finanças públicas. Que confiança poderão merecer as contas do Tesouro obtidas por métodos caóticos, obedecendo à orientação de cada encarregado da escrituração dos fatos administrativos, - quando um método fôsse adotado -, ou então nenhuma escrituração regular ser feita?

....................................................................................................................................

O regulamento do Tesouro mandou, sempre, que a escrituração se fizesse por partidas-dobradas, mas a verdade é que o Tesouro nunca teve escrita!

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É ocioso repetir, aqui, quais foram as vicissitudes por que passou o trabalho de remodelação da contabilidade federal. Obstáculos de tôda sorte defrontaram-se à comissão de partidas-dobradas. E nesse andar continuaria a utilíssima iniciativa, ou antes, a rotina, a inconsciência e a indiferença, talvez a tivessem asfixiado, se não surgissem paladinos para a grande campanha.

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Ao contrário do que sucedera em 1914 (quando o Tesouro não poude demonstrar a sua situação, para o fim de realizar operação de crédito) - há dois meses apenas, a contabilidade federal recebeu francos elogios dos membros da Missão Britânica, tendo um dos seus componentes, profissional contabilista dos mais completos que a Inglaterra possúe, declarado que a nossa organização contábil é superior à do seu próprio país.

(D'Auria, 1953D'Auria, F. (1953). Cinqüenta anos de Contabilidade (1903-1953). São Paulo: Indústria Gráfica Siqueira S/A., p.85)

A remodelação que se iniciara no Ministério da Fazenda, com a centralização do registro de todos os fatos da administração financeira e patrimonial da União, já em 1925 se havia estendido às delegacias fiscais, às repartições especiais do Distrito Federal, aos ministérios e aos serviços industriais, recebendo a Contadoria um total de 37 balancetes mensais (D'Auria, 1953D'Auria, F. (1953). Cinqüenta anos de Contabilidade (1903-1953). São Paulo: Indústria Gráfica Siqueira S/A.). Ao final da década de 1920, a Contadoria Central da República contava com um quadro de aproximadamente 600 funcionários (D'Auria, 1930D'Auria, F. (1930). Casa do contabilista. Revista Brasileira de Contabilidade, 2 (1), 1-4.).

3 CONCLUSÃO

Fato de grande importância para o estabelecimento definitivo da EPD na contabilidade pública federal foi a criação da Comissão das Partidas Dobradas de 1914, seguindo o modelo de escrituração contábil adotado em 1905 por Carlos de Carvalho no Tesouro do Estado de São Paulo. Embora a exigência de realização da EPD estivesse presente na legislação desde 1808, só se efetivou de fato na contabilidade pública federal mais de um século depois, a partir de 1914, quando o então ministro da Fazenda, Rivadávia Corrêa, após solicitação de auditores dos banqueiros credores ingleses, soube que a feitura do balanço do Tesouro Nacional encontrava-se atrasada em oito anos, tomando então as providências para a constituição da Comissão das Partidas Dobradas.

A ausência de mecanismos de fiscalização e controle e de imposição de sanções para o descumprimento da lei, bem como o quase completo desinteresse da administração pública na sua aplicação fizeram com que a legislação permanecesse como que esquecida por mais de um século. A Comissão das Partidas Dobradas de 1914 atingiu seus principais objetivos, que foram a apresentação, no prazo de seis meses, dos balanços da Receita e Despesa da União em 30 de junho de 1914 e do Ativo e Passivo da União encerrado em 31 de outubro de 1914, e a criação de um órgão técnico na Diretoria de Contabilidade do Ministério da Fazenda, responsável pela realização da EPD na contabilidade pública federal.

O episódio que originou a criação da Comissão das Partidas Dobradas de 1914 não é pródigo em nossa história. A administração pública mais uma vez se mostrou reativa a um problema há muito tempo já existente, somente decidindo tomar iniciativa após ser alertada por autoridades estrangeiras. Ao menos inicialmente, o objetivo da comissão não foi a manutenção de uma boa prática de contabilidade pública visando ao controle do patrimônio público da nação e à prestação de contas à sociedade, mas sim o atendimento de uma exigência pontual para obtenção de um empréstimo externo.

Um paralelo, parcial, que poderia ser feito em relação à atualidade, seriam os alertas realizados nos últimos tempos pelas agências internacionais de classificação de risco de crédito a respeito das manobras contábeis efetuadas pelo Tesouro Nacional, também denominadas como "contabilidade criativa", visando dar cumprimento à meta fiscal de superávit primário do governo federal, estabelecida pela Lei de Diretrizes Orçamentárias. No que se refere a 1914, parece-nos que os alertas das autoridades estrangeiras foram mais oportunistas do que visando à melhoria dos padrões contábeis. Quanto às agências de risco, agora, nada mais estão fazendo do que reagindo a práticas incorretas, além do mau andamento geral de nossa economia.

Ainda assim, a iniciativa de remodelação do Tesouro Nacional em 1914, com a criação da referida comissão, tornou-se o catalisador de um processo de mudanças na contabilidade pública nacional da época, tais como a constituição do Código de Contabilidade Pública e a criação da Contadoria Geral da República, que fortaleceram e deram perenidade às práticas adotadas a partir de 1914.

ANEXO A

Figura A1
Balanço da receita e despesa da União em 30/06/1914. Em Thesouro Nacional. (1914)Thesouro Nacional. (1914). Revista Brasileira de Contabilidade, 3 (12), 232-237.. Revista Brasileira de Contabilidade, 3 (12), 232-237.

ANEXO B

Figura B1
Balanço do ativo e passivo da União encerrado em 31/10/1914 (Página 1). Em Thesouro Nacional. (1914)Thesouro Nacional. (1914). Revista Brasileira de Contabilidade, 3 (12), 232-237.. Revista Brasileira de Contabilidade, 3 (12), 232-237.
Figura Bb
Balanço do ativo e passivo da União encerrado em 31/10/1914 (Página 2). Em Thesouro Nacional. (1914)Thesouro Nacional. (1914). Revista Brasileira de Contabilidade, 3 (12), 232-237.. Revista Brasileira de Contabilidade, 3 (12), 232-237.

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  • 1
    Decreto Legislativo n. 23 de 30/10/1891, Decreto n. 2.807 de 31/01/1898, Decreto Legislativo n. 1.178 de 16/01/1904, Lei n. 2.083 de 30/07/1909, Decreto n. 7.751 de 23/12/1909.
  • 2
    Legislação federal dos EUA de 1890 que proibia a criação de monopólios, coibindo tentativas diretas ou indiretas de interferência na natureza livre e competitiva da produção e distribuição de bens.
  • 3
    A Caixa de Conversão foi criada em 1906 e tinha por finalidade a manutenção da estabilidade cambial, através da fixação da taxa nominal de câmbio.
  • 4
    Fazendo um paralelo aos tempos atuais, tais missões financeiras se assemelhariam às missões do Fundo Monetário Internacional (FMI).
  • 5
    Conforme Abreu (2002), o segundo funding loan teve as negociações arrastadas por longos meses, sendo interrompidas com o início da Primeira Guerra Mundial. Em setembro de 1914 foi acertado que o funding loan teria um capital nominal máximo de 15 milhões de libras esterlinas, 63 anos de prazo de amortização, com início de resgate em 1927, tendo como garantia a receita da alfândega do Rio de Janeiro e, subsidiariamente, de todas as outras alfândegas da República. Seriam suspensas as amortizações de todos os empréstimos federais denominados em libras ou francos franceses até 1° de agosto de 1927 e os juros desses empréstimos que vencessem entre 1° de agosto de 1914 e 31 de julho de 1917 seriam refinanciados pelos novos títulos. Ficavam vedadas, também por três anos, a emissão e a garantia de novos empréstimos externos, ou de empréstimos internos com juros pagáveis no exterior.
  • 6
    Os balanços da Receita e Despesa da União em 30 de junho de 1914 e do Ativo e Passivo da União encerrado em 31 de outubro de 1914 encontram-se anexos a este trabalho, apenas a título de ilustração.
  • 7
    O Código de Contabilidade Pública viria a ser aprovado somente em 1922.
  • 8
    O Alvará de 28 de Junho de 1808, conforme seu próprio preâmbulo, teve por inspiração a Lei de 1761 que criou o Erário Régio em Portugal.
  • 9
    Decisão n. 147 de 26/04/1832 do Ministério da Fazenda.
  • 10
    Uma analogia à má interpretação apontada, guardadas as devidas proporções, pode ser feita com a situação atualmente vigente na qual empresas enquadradas em determinados regimes tributários (por exemplo, o Simples Nacional) estariam desobrigadas e/ou dispensadas de executar sua escrituração contábil.
  • 10
    A denominação foi retificada para "Contadoria Central da República" conforme artigo 153 do Decreto Legislativo n. 4.555 de 10/08/1922.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2014

Histórico

  • Recebido
    30 Out 2013
  • Revisado
    07 Nov 2013
  • Aceito
    17 Jul 2014
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