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As empresas de tecnologia exigem que a contabilidade seja diferente?

1. INTRODUÇÃO

Tem-se argumentado que, atualmente, estamos no início de uma nova revolução industrial. Houve outras, é claro. A primeira revolução ocorreu há 250 anos. Seu motor foi a mecanização. Outra, focada na eletrificação e na produção em massa, ocorreu há 100 anos e, 50 anos depois, a eletrônica e a automação iniciaram uma terceira revolução. Hoje, nossos mundos físicos e virtuais estão convergindo e isso tem afetado o modo como produzimos, consumimos, movemos, comunicamos e interagimos. O modo como reagimos é diferente porque, durante as primeiras três revoluções, poucas pessoas estavam cientes da escala das mudanças que estavam em curso. Entretanto, há poucos estudiosos no presente que desconhecem que nos encontramos em um período de transformação que marca época. À medida que a quarta revolução industrial se desenrola, o material e o digital vão se fundindo, abrindo, assim, grandes possibilidades para reconfigurar nossas atividades, inclusive trocas econômicas e inovações de gestão. E, se optarmos por isso, podemos afetar a direção da revolução que já começou. Essa conscientização é crucial, porque possibilitará que a gestão financeira seja alavancada pelos executivos das empresas, de modo a alterar a direção da mudança. Em essência, a contabilidade fornece a lente através da qual o futuro será moldado - mas deve ser a forma correta de contabilidade, calibrada hoje para nos ajudar a projetar qual será a cara do futuro. Neste ensaio, considero a paisagem modificada que a tecnologia criou para as startups e discuto o reenfoque simultâneo que é exigido da contabilidade voltada à tomada de decisões do empreendedorismo de tecnologia. As ideias aqui expressas são condensadas de Bhimani (2017Bhimani, A. (2017). Financial management for technology start-ups. London: Kogan Page.).

Há inúmeras oportunidades para acoplar novas tecnologias ao comércio - e algumas startups que fazem isso neste exato momento serão, sem dúvida, os titãs tecnológicos do futuro. A tentativa de criar valor econômico da lógica tecnológica não é mais o domínio das empresas que podem atender aos requisitos dos investimentos de recursos intensivos. Muitas empresas de pequeno porte com capital mínimo simplesmente combinaram a capacidade do Google de liberar informações para o acesso de 1/5 da população mundial por meio do Facebook. A disponibilidade imediata de serviços baratos na internet e as diversas possibilidades de desenvolver conteúdo publicitário e deixá-lo bem na frente dos leitores por meio do Google Adsense ou de afiliadas da Amazon, por exemplo, proporcionaram tudo o que é necessário para criar e posicionar um negócio de tecnologia. Dessa forma, qualquer pessoa que possa sentir que estamos no meio de uma revolução industrial em andamento pode trabalhar em uma ideia de startup de tecnologia. Contudo, o que permanece menos óbvio é que as empresas de tecnologia precisam de uma abordagem própria de gestão financeira.

2. POR QUE PRECISAMOS DE CONTABILIDADE?

A contabilidade sempre ajudou os tomadores de decisão de negócios a direcionar os retornos financeiros ao considerar, à luz das informações contábeis, determinadas questões-chave:

  • O negócio está criando valor?

  • Ele está criando tanto valor quanto se propôs a criar?

  • Ele está usando o mínimo de recursos para gerar o máximo de valor possível?

As startups de tecnologia não são diferentes por ter de lidar com essas questões. No entanto, seus circuitos financeiros são diferentes das empresas convencionais da era industrial. Os empreendedores de tecnologia requerem uma lente que os permita entrar em estratégias financeiras alinhadas com suas estruturas de custos e seus objetivos econômicos. A contabilidade tradicional não oferece essa lente. E, como outros setores, as startups de tecnologia não só necessitam de métricas financeiras ou de outra natureza para gerir o negócio, mas também precisam atender aos requisitos de informação dos investidores. Os investidores estabelecerão metas econômicas e operacionais que devem ser disponibilizadas por meio de informações financeiras sobre o andamento do negócio. Assim, no espaço da inovação tecnológica, as informações financeiras adequadas são fundamentais.

3. O QUE É REALMENTE DIFERENTE ACERCA DA TECNOLOGIA?

Há uma disrupção no coração da mudança tecnológica. Assim, no mundo tecnológico, não existe uma maneira definida de fazer as coisas. As startups sempre experimentam diferentes modos de usar a tecnologia, para que possam determinar novas formas de benefício para os consumidores. Os modelos de negócio nas empresas de tecnologia podem, por exemplo, contar com melhor qualidade de oferta, ofertas mais transparentes, preços mais baixos, novos modos de agrupamento de serviços etc. Às vezes, direcionadores de valor completamente novos criam suas próprias necessidades de mercado adicionais. Portanto, não podemos esperar que o entendimento da gestão financeira permaneça fixo onde a tecnologia e as operações passaram por transformações de larga escala e onde os modelos de negócio mudaram a partir da premissa de empreendimentos comerciais industriais. Podemos ilustrar a questão considerando contextos inovadores onde a tecnologia transformou o circuito financeiro das empresas de tecnologia.

Observemos algumas ilustrações: esse é o caso de muitas empresas industriais tradicionais terem se baseado na produção em grandes quantidades, gerando lucros por meio de economias de escala. Tais empresas vendem produtos por preços inferiores aos dos negócios de pequeno porte ao se concentrar no lado da oferta, inclusive a compra em grande volume para reduzir seus custos materiais. Essas grandes empresas também poderiam investir em tecnologias mais rápidas e flexíveis. À medida que seus custos diminuíam, sua eficiência aumentava, permitindo que elas se tornassem gigantes lucrativas em seus setores industriais. Por outro lado, as empresas de tecnologia se concentram na demanda. Elas usam inovações tecnológicas para criar e expandir redes. O crescimento das redes muitas vezes se torna autorreforçador, porque os usuários obtêm valor das conexões - assim, as conexões crescem. Uma base de usuários maior na rede aumentará a demanda pelo produto. Então, isso alimenta ainda mais a expansão da rede e a demanda subsequente. Às vezes, as redes se conectam a outras redes, criando ainda mais valor. Se as transações comerciais crescerem porque as redes se expandem em várias direções e desafiam os caminhos lineares, então será de pouca valia se basear em informações financeiras cuja premissa é um foco de oferta que captura apenas caminhos lineares de criação de valor.

Em segundo lugar, torna-se cada vez mais claro que as startups de tecnologia precisam experimentar continuamente para inovar. Elas não são como empreendimentos comerciais tradicionais, onde os recursos são avaliados em termos do que é necessário para servir um segmento de mercado de um produto que tem um valor conhecido. Não há tal certeza em ambientes tecnológicos de evolução rápida, onde o ajuste do produto ao mercado se desenvolve de modo contínuo. Uma empresa de tecnologia pode querer experimentar um novo recurso de site, talvez queira explorar a construção de relacionamentos com influenciadores, ela pode tentar testar um ângulo de produto alterado, pode tentar um esquema de preços diferenciado, pode tentar brincar com um template móvel interativo, pode explorar novas táticas orgânicas para aumentar o tráfego on-line, e assim por diante. Algumas experiências podem produzir impactos de negócios muito pequenos, enquanto outras podem desencadear mudanças de nível estratégico. Do ponto de vista financeiro, uma empresa de tecnologia desejará ter modos específicos de rastrear atividades que ajudem a determinar quais ações devem ser tomadas e quando elas devem ser levadas a cabo. O ponto-chave é que as informações contábeis ajudam a operar a startup de modo muito específico, por meio de rastreamento e monitoramento atento das atividades experimentais.

Em terceiro lugar, a empresa de tecnologia pode estar mobilizando um modelo de negócio pautado na ideia de que, quando os clientes ganham dinheiro, a startup de tecnologia também obtém uma proporção do valor criado. Para as plataformas tecnológicas, como Airbnb e Uber, a intenção é simplesmente permitir que usuários necessitando de um serviço ou produto se juntem a fornecedores com capacidade não utilizada, beneficiando ambas as partes. Os modelos associados à economia colaborativa dependem especificamente de novas fontes de criação de valor trazidas ao mercado pelos fornecedores existentes. Os fornecedores convencionais, como os táxis, os trens e outros serviços de transporte pré-existentes tiveram de investir de modo tradicional em novos recursos para operar em seu modelo comercial. Entretanto, as startups de tecnologia nesse tipo de espaço de negócios permitem que as fontes de fornecimento existentes sejam liberadas, trazendo a capacidade disponível para dentro do mercado. Tudo o que é necessário é uma plataforma tecnológica eficaz. Como resultado do aumento da oferta de serviços, os provedores tradicionais terão de compartilhar o gasto do cliente com novos fornecedores. Isso reduzirá os preços ao longo de toda a indústria, porque a oferta cresceu. E oferta maior e preços mais baixos ampliam o alcance do cliente. Assim, uma parte dos lucros vai para os novos fornecedores de capacidade disponível e outra parte deles vai para os consumidores, que agora têm mais opções, com preços mais baixos se tornando disponíveis.

Existem muitos outros modos pelos quais as startups de tecnologia diferem das empresas tradicionais, tornando as informações contábeis convencionais muito restritas para ajudar na tomada de decisão eficaz. Hoje em dia, as startups disruptivas, por esses e outros motivos, tornam crucial que seja posta em prática a gestão financeira focada na tecnologia.

4. E OS INVESTIDORES?

Avaliar o risco é um reflexo condicionado para todos os investidores e gestores. Decidir-se sobre um curso de ação geralmente envolve olhar para o valor do resultado desejado e pesar isso contra os custos de atuação, bem como levar em consideração possíveis efeitos não intencionais. As pessoas normalmente tomam decisões financeiras esperando que as recompensas correspondam aos riscos absorvidos. A certeza traz pouco risco e a recompensa tende a ser menor. Contudo, espera-se rendimentos claramente maiores de uma proposição de risco, devido ao potencial de baixos rendimentos ou até de perdas. Para as startups de tecnologia há duas grandes categorias de risco. A primeira é o risco comercial em torno do produto, da tecnologia ou do mercado. Por exemplo, pode haver problemas com o produto se sua qualidade, suas características ou suas preferências de entrega estiverem abaixo dos padrões. Pode haver falhas tecnológicas quando se trata de desenvolvimento, oferta ou manutenção do produto. Talvez os clientes almejados não sejam receptivos ao conceito do produto. O mercado pode ser muito pequeno ou pode mudar muito rápido em direção a outras soluções ou outros serviços. Todos estes são potenciais riscos comerciais. A outra categoria se refere ao risco financeiro da empresa. O modo como o negócio se financia (e sua estrutura de custos) afetará os riscos que uma startup enfrenta. Ao longo da última década, ambos os tipos de riscos mudaram muito em todos os mercados comerciais, todas as indústrias e todas as plataformas, devido a novas tecnologias e inovações econômicas. Como consequência, as oportunidades para que as startups de tecnologia criem valor expandiram-se muito rapidamente. De modo natural, os desafios e os riscos também. É claro que fixar o risco no nível dos retornos esperados é o que mantém as decisões de investimento subjacentes.

Um investidor que considere financiar uma startup de tecnologia verificará se as relações entre risco e retorno mostram equilíbrio. Os investidores irão considerar o nível de viabilidade de um conceito no início e qual é a capacidade de a startup sustentar operações bem-sucedidas em longo prazo. Haverá avaliação da ideia de uma startup de tecnologia, do mercado e da equipe em questão, para assegurar que podem cumprir o que se espera. Em termos de conceito de produto e mercado, um investidor procurará uma característica competitiva diferencial. Talvez a startup possa executar melhor algo que já tenha um mercado existente. Ou pode avançar em um negócio de serviços completamente novo ou mobilizar um mercado a ser desenvolvido. Talvez o produto tenha capacidade de bloqueio, onde há resistência para que um cliente se afaste assim que adotar um produto em termos de esforço e tempo. Se o conceito goza de efeitos de rede, essa pode ser uma oportunidade muito atraente, na qual o rápido desenvolvimento e crescimento comercial se tornam importantes.

O investidor também quer ver se há singularidade na tecnologia e até que ponto o conceito foi desenvolvido no momento em que ele entra em cena. Essa análise como um todo se resume a avaliar o potencial de risco e retorno. As startups de tecnologia tendem a ter pequenas chances de altos retornos em longo prazo, mas grandes chances de altas necessidades de caixa imediato. Isso não é problema - na verdade, é o que torna as startups de tecnologia tão atraentes para investidores específicos. Se é provável que os retornos serão positivos, mas não muito altos, diversos investidores tecnológicos permanecerão fora. E se as necessidades de financiamento de uma startup são baixas quando há altos retornos esperados, é provável que o financiamento seja atingido por outros meios. Concentrando-se unicamente nas dimensões de risco e retorno de um investimento, os investidores buscarão características de alto risco/alto retorno que, em geral, são o que as startups de tecnologia apresentam. Com isso, os fundadores de empresas de tecnologia precisam entender o risco à luz do investidor.

5. QUAL TIPO DE CONTABILIDADE?

As startups precisam manter o ajuste de suas atividades com base em quaisquer novas informações recebidas e elas “giram” seu modelo de negócios quando a trajetória precisa mudar. Uma startup exige um processo formal para esse modo experimental de operação que a ajudará a:

  • planejar suas atividades;

  • atuar nas atividades almejadas;

  • monitorar os resultados;

  • alterar e refinar quaisquer novos planos de ação;

  • manter os investidores informados e tranquilos.

Estes são problemas comuns às necessidades de gestão de todas as empresas. Os operadores das empresas devem fazer duas coisas básicas: identificar suas atividades e colocar seus planos em prática. Assim que se alcança certo ponto, onde o impacto daquelas ações possa ser avaliado, medidas de desvio devem estar à mão para fornecer explicações sobre desvios daquilo que se esperava. Com base nessa aprendizagem, novos planos para orientar as ações futuras são elaborados. Isso se aplica como observado em todos os negócios. No entanto, para ser bem-sucedido, um negócio de tecnologia precisa ter um mecanismo para analisar novas informações do mundo empresarial externo e de suas próprias operações. Ele deve procurar saber o que poderia e deveria mudar seu modelo de negócios à medida que este evolui. Ao contrário das empresas industriais convencionais, as startups de tecnologia não têm acesso a amplas tendências históricas de operações financeiras nem a precedentes ou marcos de referência. Não é algo tão claro como elas podem progredir positivamente. Assim, as empresas de tecnologia devem buscar informações do mercado e de fontes externas e avaliar continuamente as implicações para suas próprias atividades. O “ciclo de controle financeiro” é uma abordagem que pode ajudar a enfocar as necessidades de informação financeira de uma startup. Isso é ilustrado na Figura 1.

Figura 1
O “ciclo de controle financeiro” da startup de tecnologia.

Essa ferramenta ajudará a formalizar o que um negócio de tecnologia deve fazer para aumentar as finanças e apoia um processo de feedback para planejar, operar e monitorar, além de trazer o aprendizado de volta às operações. Essencialmente, as atividades de negócios devem ser fundadas em uma hipótese ampla que, então, sustenta o modelo de negócios. O ciclo de controle financeiro captura três etapas essenciais e específicas para o controle financeiro de uma startup de tecnologia. O primeiro passo abrange a informação necessária em relação aos custos e às contribuições, de modo a entender quanto uma startup pode render em termos financeiros. Posteriormente, é necessário realizar análises financeiras do negócio. Por fim, deve-se aplicar as métricas financeiras, proporcionando uma avaliação detalhada.

Com efeito, as mudanças de custos devem ser examinadas antes de obter determinada compreensão do desempenho do negócio em termos financeiros, a fim de orientar a empresa sob o ponto de vista do empreendedor. Uma vez que existe robustez no monitoramento financeiro, as pessoas podem controlar as operações por meio de um ciclo de informações de feedback e identificar como aumentar ainda mais as finanças e como o negócio tem avançado em direção à intenção de saída estratégica dos investidores.

REFERENCE

  • Bhimani, A. (2017). Financial management for technology start-ups London: Kogan Page.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Maio 2018
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