Accessibility / Report Error

Racismo creditício no Brasil e nos EUA: risco discriminatório no acesso a crédito

CREDIT RACISM IN BRAZIL AND THE USA: DISCRIMINATORY RISK IN ACCESS TO CREDIT

RACISMO CREDITICIO EN BRASIL Y ESTADOS UNIDOS: RIESGO DISCRIMINATORIO EN EL ACCESO AL CRÉDITO

Resumo

O acesso ao crédito tem funções econômicas e sociais relevantes diante das desigualdades brasileiras. Apesar do papel vital, a regulação jurídica no Brasil sobre discriminação no acesso ao crédito é esparsa em diversos diplomas jurídicos nas áreas de direito do consumidor, regulação financeira, direito internacional e legislações antidiscriminatórias. Considerando esse caráter fragmentado, o presente artigo, descritivamente, apresenta um mapeamento das normas que proíbem a discriminação no acesso ao crédito no Brasil e, analiticamente, avalia os riscos de discriminação associados ao uso de dados para concessão de crédito. Para isso, utilizam-se a literatura e a regulação dos Estados Unidos da América (EUA) como base comparativa, por existir nesse país legislação, práticas institucionais e mobilização social a respeito do tema há pelo menos meio século. A pesquisa sugere a possibilidade de discriminações direta e indireta contra pessoas negras nas decisões de concessão de crédito, incluindo o uso de algoritmos. A principal contribuição deste artigo é a apresentação de uma classificação dos dados em três categorias de risco de discriminação racial: risco baixo (dados de utilização a princípio aceitáveis), risco alto (dados a princípio inaceitáveis para avaliação do crédito) e risco incerto (dados que se enquadram em uma zona cinzenta).

Palavras-chave
Discriminação racial; acesso a crédito; igualdade; regulação financeira; direito antidiscriminatório

Abstract

Access to credit plays significant economic and social roles in addressing Brazilian inequalities. Despite its vital importance, legal regulation in Brazil regarding discrimination in credit access is sparse across various legal statutes, in areas such as consumer law, financial regulation, international law, and anti-discrimination legislation. Considering this fragmented nature, this paper, descriptively, maps the norms prohibiting discrimination in credit access in Brazil and, analytically, presents an assessment of discriminatory risk in the use of data for credit allocation. It employs literature and regulation from the United States of America (USA) for comparison, given that, in this country, there has been legislation, institutional practice, and social mobilization on the topic for at least half a century. The research suggests the possibility of direct and indirect discrimination against Black individuals in credit granting decisions, including through the use of algorithms. The main contribution of this paper lies in presenting a classification of data into three categories of racial discrimination risk: low risk (data initially acceptable for use), high risk (data initially unacceptable for credit evaluation), and uncertain risk (data that fall into a gray area).

Keywords
Racial discrimination; access to credit; equality; financial regulation; anti-discrimination law

Resumen

El acceso al crédito desempeña funciones económicas y sociales significativas en el abordaje de las desigualdades en Brasil. A pesar de su importancia vital, la regulación jurídica en Brasil respecto a la discriminación en el acceso al crédito es dispersa en diversos estatutos legales, en áreas como derecho del consumidor, regulación financiera, derecho internacional y legislaciones antidiscriminatorias. Teniendo en cuenta esta naturaleza fragmentada, el presente artículo, de manera descriptiva, mapea las normas que prohíben la discriminación en el acceso al crédito en Brasil y, de manera analítica, presenta una evaluación del riesgo discriminatorio en el uso de datos para la asignación de crédito. Son utilizadas la literatura y la regulación de Estados Unidos de América (EE. UU.) como comparativo, dado que, en ese país, ha habido legislación, práctica institucional y movilización social respecto al tema durante al menos medio siglo. La investigación sugiere riesgos de discriminación directa e indirecta contra personas negras en las decisiones de concesión de crédito, incluyendo a través del uso de algoritmos. La principal contribución de este artículo radica en la presentación de una clasificación de los datos en tres categorías de riesgo de discriminación racial: riesgo bajo (datos inicialmente aceptables para su uso), riesgo alto (datos inicialmente inaceptables para la evaluación del crédito) y riesgo incierto (datos que caen en una zona gris).

Palabras clave
Discriminación racial; acceso al crédito; igualdad; regulación financiera; derecho antidiscriminatorio

Introdução1 1 Este artigo é resultado de uma consultoria remunerada. Essa consultoria não interferiu de maneira alguma na substância do artigo.

O que há em comum nos seguintes fatos? Um estudante universitário consegue acesso a um cartão de crédito e a um limite maior em sua conta-corrente após mudar seu endereço para um local mais próximo da região central de São Paulo (Matsue, 2022MATSUE, Carla. “Precisei mudar de endereço para conseguir cartão de crédito”. Valor Investe, São Paulo, 8 abr. 2022. Disponível em: Disponível em: https://valorinveste.globo.com/produtos/servicos-financeiros/noticia/2022/04/08/precisei-mudar-de-endereco-para-conseguir-cartao-de-credito.ghtml . Acesso em: 18 dez. 2023.
https://valorinveste.globo.com/produtos/...
); a avaliação por algoritmo pode resultar em uma chance 20 vezes menor de acesso ao crédito para mulheres em comparação aos homens (Adage, 2019ADAGE, Do. Apple é acusada de discriminação em cartão de crédito. Meio & Mensagem, [s.l.], 13 nov. 2019. Disponível em: Disponível em: https://www.meioemensagem.com.br/home/marketing/2019/11/13/apple-e-acusada-de-discriminacao-em-cartao-de-credito.html . Acesso em: 18 dez. 2023.
https://www.meioemensagem.com.br/home/ma...
; Marshall, 2021MARSHALL, Elizabeth Dilts. ​​Apple e Goldman são inocentados em caso sobre discriminação em oferta de cartões. CNN Brasil, [s.l.], 23 mar. 2021. Disponível em: Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/economia/apple-e-goldman-nao-cometeram-violacoes-em-oferta-de-cartoes-de-credito-dizem-a/#:~:text=O%20Departamento%20de%20Servi%C3%A7os%20Financeiros,contra%20os%20interessados%20no%20produto . Acesso em: 18 dez. 2023.
https://www.cnnbrasil.com.br/economia/ap...
); um cliente obteve custo mais elevado de crédito na renegociação de financiamento imobiliário após informar ser negro (Olick, 2020OLICK, Diana. A Troubling Tale of a Black Man Trying to Refinance His Mortgage. CNBC, [s.l.], 19 ago. 2020. Disponível em: Disponível em: https://www.cnbc.com/2020/08/19/lenders-deny-mortgages-for-blacks-at-a-rate-80percent-higher-than-whites.html . Acesso em: 18 dez. 2023.
https://www.cnbc.com/2020/08/19/lenders-...
); de maneira geral, as condições de acesso ao crédito (Rothacker; Ingram, 2012ROTHACKER, Rick; INGRAM, David. Wells Fargo to Pay $175 Million in Race Discrimination Probe. Reuters, [s.l.], 12 jul. 2012. Disponível em: Disponível em: https://www.reuters.com/article/us-wells-lending-settlement-idUSBRE86B0V220120712 . Acesso em: 18 dez. 2023.
https://www.reuters.com/article/us-wells...
; CFPB [...], 2014CFPB Orders GE Capital to Pay $225 Million in Consumer Relief for Deceptive and Discriminatory Credit Card Practices. CFPB - Consumer Financial Protection Bureau, [s.l.], 19 jun. 2014. Disponível em: Disponível em: https://www.consumerfinance.gov/about-us/newsroom/cfpb-orders-ge-capital-to-pay-225-million-in-consumer-relief-for-deceptive-and-discriminatory-credit-card-practices/ . Acesso em: 18 dez. 2023.
https://www.consumerfinance.gov/about-us...
), incluindo financiamentos imobiliários (Redlining, 2016REDLINING: CFPB and DOJ Action Requires BancorpSouth Bank to Pay Millions to Harmed Consumers. CFPB - Consumer Financial Protection Bureau, [s.l.], 29 jun. 2016. Disponível em: Disponível em: https://www.consumerfinance.gov/about-us/blog/redlining-cfpb-and-doj-action-requires-bancorpsouth-bank-pay-millions-harmed-consumers/ . Acesso em: 18 dez. 2023.
https://www.consumerfinance.gov/about-us...
) e de automóveis (Ficklin, 2016aFICKLIN, Patrice Alexander. Harmed Ally Borrowers Have Been Sent $80 Million in Damages. CFPB - Consumer Financial Protection Bureau, [s.l.], 29 jan. 2016a. Disponível: Disponível: https://www.consumerfinance.gov/about-us/blog/harmed-ally-borrowers-have-been-sent-80-million-in-damages/ . Acesso em: 18 dez. 2023.
https://www.consumerfinance.gov/about-us...
; 2016bFICKLIN, Patrice Alexander. What You Need to Know to Get Money from the Settlement with Honda Finance for Overcharging Minorities. CFPB - Consumer Financial Protection Bureau, [s.l.], 3 out. 2016b. Disponível: Disponível: https://www.consumerfinance.gov/about-us/blog/what-you-need-know-get-money-settlement-honda-finance-overcharging-minorities . Acesso em: 18 dez. 2023.
https://www.consumerfinance.gov/about-us...
), são menos favoráveis e mais difíceis para negros e outros grupos historicamente discriminados. A semelhança entre esses relatos sugere a existência de discriminação racial no sistema financeiro, visto que as barreiras no acesso a produtos bancários não parecem resultar de uma análise de dados essenciais na avaliação do risco de crédito, mas sim de caraterísticas pessoais dos clientes ou interessados envolvidos.

Para efeitos de clareza conceitual, é necessário diferenciar racismo e discriminação racial. Racismo, de acordo com Almeida (2019ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.), é um sistema de desigualdade racial estrutural repetida, normalizada e impregnada em regras culturais, jurídicas, econômicas e sociais e fincada em ideologia de superioridade racial, enquanto discriminação racial é o ato específico de diferenciação e hierarquização com base, direta ou indiretamente, em critérios de raça/cor. A legislação já endossa esses termos. O Decreto n. 10.932, de 10 de janeiro de 2022, que promulgou no país a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, define discriminação racial como “qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência” com base em “raça, cor, ascendência ou origem nacional ou étnica” (art. 1o) (Brasil, 2022), BRASIL. Decreto n. 10.932, de 10 de janeiro de 2022. Promulga a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, firmado pela República Federativa do Brasil, na Guatemala, em 5 de junho de 2013. Diário Oficial da União, Brasília, 2022.ao passo que conceitua racismo como um sistema ideológico fundado na superioridade e que gera desigualdades raciais. A discriminação racial estrutural no acesso ao crédito, que inclui a repetição de práticas excludentes e a omissão no enfrentamento do risco discriminatório, é o que se denomina aqui de racismo creditício.

O acesso ao crédito tem funções econômicas e sociais relevantes, especialmente como uma ferramenta para redução de desigualdades da sociedade brasileira. A inclusão financeira2 2 Por inclusão financeira, considera-se o acesso e o uso dos serviços e produtos financeiros oferecidos pelo sistema formal. (Sarma; Pais, 2011SARMA, Mandira; PAIS, Jesim. ​Financial Inclusion and Development​. Journal of International Development, [s.l.], v. 23, n. 5, p. 613-628, jul. 2011. Disponível em: http://doi.wiley.com/10.1002/jid.1698. Acesso em: 18 dez. 2023.
https://doi.org/http://doi.wiley.com/10....
; Paixão, 2017PAIXÃO, Marcelo. Acesso ao crédito produtivo pelos microempreendedores afrodescendentes: desafios para a inclusão financeira no Brasil. Salvador: BID, 2017. Disponível em: Disponível em: https://publications.iadb.org/pt/publications/portuguese/viewer/Acesso-ao-cr%C3%A9dito-produtivo-pelos-microempreendedores-afrodescendentes-Desafios-para-a-inclus%C3%A3o-financeira-no-Brasil-Sum%C3%A1rio-executivo.pdf . Acesso em: 18 dez. 2023.
https://publications.iadb.org/pt/publica...
) possibilita a integração efetiva do indivíduo no sistema econômico como um todo. A ampliação do acesso ao financiamento impacta o acesso a produtos e serviços,3 3 Não se ignoram os problemas que o acesso excessivo ao crédito, sem critérios para avaliação de capacidade financeira, pode gerar. O superendividamento, disciplinado na Lei n. 14.181/2021 (Lei do Crédito Responsável [Brasil, 2021a]), no entanto, não é objeto deste texto. e aumenta a participação no mercado de consumo (Lopes, 1996LOPES, José Reinaldo de Lima. Crédito ao consumidor e superendividamento: uma problemática geral. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, n. 17, p. 57-64, jan./mar. 1996.; Marques, 2012MARQUES, Cláudia Lima. Consumo como igualdade e inclusão social: a necessidade de uma lei especial para prevenir e tratar o “superendividamento” dos consumidores pessoas físicas. Revista Jurídica da Presidência, [s.l.], v. 13, n. 101, p. 405-424, 2012.). Há um potencial círculo virtuoso na democratização do crédito, como evidenciado pela política do Banco Central do Brasil (Bacen), que empreende “um conjunto de esforços a fim de mensurar e estimular a inclusão financeira no país” (Corrales, 2020CORRALES, Beatriz Rossi. Algoritmos sociais inclusivos: o caso da Conta Black. 2020. 122 f. Dissertação (Mestrado em Administração Pública e Governo) - Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas, São Paulo, 2020. Disponível em: Disponível em: https://repositorio.fgv.br/server/api/core/bitstreams/742c8597-df3e-4749-922c-e2c087c5a53f/content . Acesso em: 18 dez. 2023.
https://repositorio.fgv.br/server/api/co...
, p. 20), inclusive por meio dos microcréditos (Banco Central, 2021BANCO CENTRAL. Relatório de Cidadania Financeira, 2021. Brasília: Banco Central do Brasil, 2021. Disponível em: Disponível em: https://www.bcb.gov.br/content/cidadaniafinanceira/documentos_cidadania/RIF/Relatorio_de_Cidadania_Financeira_2021.pdf . Acesso em: 8 jul. 2024.
https://www.bcb.gov.br/content/cidadania...
).

A importância da inclusão financeira e o potencial círculo virtuoso da ampliação do crédito, no entanto, não eliminam a necessidade dos modelos de análise de risco na atividade bancária. A decisão sobre a concessão de crédito está no âmbito da discricionariedade das instituições financeiras e depende do seu modelo de negócio e da respectiva matriz de análise de risco. No segmento de clientes de varejo, é cada vez mais frequente que a decisão de concessão de crédito seja em grande parte baseada em análises e avaliações automatizadas de dados, por meio de métodos estatísticos para buscar simplificação, rapidez e maior eficiência decisória. É no tratamento desses dados que pode estar a origem de eventuais discriminações no acesso ao crédito ou a produtos e serviços financeiros.

Na literatura nacional que tangencia o tema deste artigo, há estudos que revelam a discriminação no acesso ao crédito (Paixão, 2017PAIXÃO, Marcelo. Acesso ao crédito produtivo pelos microempreendedores afrodescendentes: desafios para a inclusão financeira no Brasil. Salvador: BID, 2017. Disponível em: Disponível em: https://publications.iadb.org/pt/publications/portuguese/viewer/Acesso-ao-cr%C3%A9dito-produtivo-pelos-microempreendedores-afrodescendentes-Desafios-para-a-inclus%C3%A3o-financeira-no-Brasil-Sum%C3%A1rio-executivo.pdf . Acesso em: 18 dez. 2023.
https://publications.iadb.org/pt/publica...
), que analisam e avaliam o impacto de iniciativas regulatórias no sistema financeiro para ampliar o acesso ao crédito (Kumar, 2004KUMAR, Anjali (coord.). Brasil: acesso a serviços financeiros. Rio de Janeiro: IPEA: Washington, DC: Banco Mundial, 2004. Disponível em: Disponível em: http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/3087/1/Livro_Brasil_acesso%20aos%20servi%C3%A7os%20financeiros.pdf . Acesso em: 18 dez. 2023.
http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream...
), e que examinam a dinâmica e as consequências de decisões autonomizadas na concessão de crédito e no tratamento de dados (Rebelo; Analide; Abreu, 2020REBELO, Diogo Morgado; ANALIDE, Cesar; ABREU, Joana Covelo de. O Mercado Único Digital e a “(leigo)ritmia” da pontuação de crédito na era da Inteligência Artificial. Revista de Direito e Tecnologia, [s.l.], v. 2, n. 1, p. 1-69, 2020.), em especial, o risco de discriminação por meio de algoritmos (Mendes; Mattiuzzo, 2019MENDES, Laura Schertel; MATTIUZZO, Marcela. Discriminação algorítmica: conceito, fundamento legal e tipologia. Direito Público, Porto Alegre, v. 16, n. 90, nov./dez. 2019.; Pereira, 2018PEREIRA, Laudelina Leonardo. Data brokers: reflexões sobre os impactos da classificação e do score de crédito na sociedade. 2018. 154 f. Monografia (Especialização em Gestão Integrada da Comunicação Digital para Ambientes Corporativos - Digicorp) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018. Disponível em: Disponível em: https://www.researchgate.net/profile/Laudelina-Pereira/publication/340389056_Data_Brokers_reflexoes_sobre_os_impactos_da_classificacao_e_do_score_de_credito_na_sociedade/links/5e862a8d4585150839b9432a/Data-Brokers-reflexoes-sobre-os-impactos-da-classificacao-e-do-score-de-credito-na-sociedade.pdf . Acesso em: 18 dez. 2023.
https://www.researchgate.net/profile/Lau...
; Schippers, 2018SCHIPPERS, Laurianne-Marie. Algoritmos que discriminam: uma análise jurídica da discriminação no âmbito das decisões automatizadas e seus mitigadores. 2018. 57 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Direito) - Fundação Getulio Vargas, São Paulo, 2018. Disponível em: Disponível em: https://repositorio.fgv.br/server/api/core/bitstreams/94f7422c-0c0d-4ac6-8a76-8031d5d4c481/content . Acesso em: 18 dez. 2023.
https://repositorio.fgv.br/server/api/co...
). O debate no Brasil, no entanto, carece de uma análise abrangente dos riscos de discriminação no acesso ao crédito, que não se limite à discriminação algorítmica ou à importância do crédito para a economia. Apesar da crescente relevância do tema na literatura nacional, o país ainda precisa de uma abordagem, a partir do Direito, que organize as diferentes normas jurídicas brasileiras - esparsas em searas tão distintas quanto a proteção de dados, o direito do consumidor, a regulação financeira, o direito internacional e o direito antidiscriminatório. É justamente essa abordagem organizadora dos termos do debate que o presente artigo propõe, a fim de lidar atualmente no Brasil com o caráter fragmentado da regulação jurídica sobre acesso ao crédito e discriminação.

Para isso, analisamos, comparativamente, as principais lições e os avanços regulatórios da experiência dos Estados Unidos da América (EUA). Comparar o caso brasileiro ao dos EUA se justifica por algumas razões. Embora haja diferenças na estrutura de acesso ao crédito entre os dois países, há justificativas jurídico-regulatórias suficientes para essa comparação. Primeiro, os EUA têm uma longeva legislação sobre o tema - Equal Credit Opportunity Act (EUA, 1974ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA (EUA). Equal Credit Opportunity Act (ECOA), 15 U.S.C. § 1691, 1974. Disponível em: Disponível em: https://www.govinfo.gov/content/pkg/USCODE-2011-title15/html/USCODE-2011-title15-chap41-subchapIV.htm . Acesso em: 18 dez. 2023.
https://www.govinfo.gov/content/pkg/USCO...
) -, o que permitiu um acúmulo de debates sobre o tema de meio século. Segundo, nos EUA há uma agência independente - Consumer Financial Protection Bureau (CFPB), desde 2011 - que emite diretrizes sobre acesso ao crédito e recebe denúncias relacionadas a crédito e discriminação, objeto deste artigo. Terceiro, do ponto de vista de mobilização social e direito, os EUA têm sido historicamente palco de reivindicações por grupos de direitos civis acerca do acesso ao crédito para comunidades não brancas, inclusive com a criação de instituições bancárias lideradas por pessoas negras (Broady; McComas; Ouazad, 2021BROADY, Kristen; McCOMAS, Mac; OUAZAD, Amine. An Analysis of Financial Institutions in Black-Majority Communities: Black Borrowers and Depositors Face Considerable Challenges in Accessing Banking Services. Brookings, [s.l.], 2 nov. 2021. Disponível em: Disponível em: https://www.brookings.edu/articles/an-analysis-of-financial-institutions-in-black-majority-communities-black-borrowers-and-depositors-face-considerable-challenges-in-accessing-banking-services/ . Acesso em: 18 dez. 2023.
https://www.brookings.edu/articles/an-an...
).

Este artigo tem dois objetivos principais. O primeiro é descritivo: detalhar, a partir do regime jurídico aplicável, os fundamentos para a proibição de discriminação no acesso ao crédito. No Brasil, não há uma única legislação que concentre as principais normas sobre discriminação e acesso ao crédito. Uma das tentativas legislativas nesse sentido, ainda em tramitação, é o Projeto de Lei n. 4.529, de autoria do senador Fabiano Contarato, do Partido dos Trabalhadores do Espírito Santo (PT/ES), que tem como objetivo dispor sobre “a obrigação de motivação acerca das razões que fundamentam a recusa de crédito e combater a discriminação racial nas relações de consumo” (Brasil, 2021bBRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei n. 4.529, de 2021. Altera a Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor) para dispor sobre a obrigação de motivação acerca das razões que fundamentam a recusa de crédito e combater a discriminação racial nas relações de consumo. 2021b. Disponível em: Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/151387 . Acesso em: 18 dez. 2023.
https://www25.senado.leg.br/web/atividad...
).

Metodologicamente, são mapeadas as regras jurídicas aplicáveis no Brasil para suprir o caráter fragmentado da regulação atual, incluindo referências a legislações como a Lei do Cadastro Positivo, o Código de Defesa do Consumidor (CDC) e a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), entre outras descritas a seguir.

O segundo objetivo do estudo é analítico: propor, de forma inovadora, uma classificação dos dados utilizados no processo decisório de concessão de crédito e suas condições, visando mitigar os riscos de discriminação. A partir da identificação de possíveis discriminações diretas e indiretas, os autores sugerem a classificação dos dados em três categorias de risco de discriminação: risco baixo (dados de utilização a princípio aceitáveis), risco alto (dados a princípio inaceitáveis para a análise) e risco incerto (dados que se enquadram em uma zona cinzenta, exigindo maior sensibilidade nas análises como medida de precaução).

As limitações deste texto também são claras e podem ser tratadas em estudos futuros. Primeiro, são apontados os limites legais no tratamento de dados para a tomada de decisão na concessão de crédito e seu potencial de discriminação racial direta ou indireta. Não é o foco discutir modelos mais eficientes ou adequados para lidar com o risco do crédito. Em segundo lugar, apesar da tendência ainda incipiente de concessão de crédito a grupos específicos - como a iniciativa de cartão de crédito liderada pelo Movimento Black Money em 2021 (França, 2021FRANÇA, Anna. Conheça a mulher que fundou uma plataforma financeira para pessoas negras. IstoÉ Dinheiro, [s.l.], 22 dez. 2021. Disponível em: Disponível em: https://www.istoedinheiro.com.br/a-nova-cor-do-dinheiro/ . Acesso em: 18 dez. 2023.
https://www.istoedinheiro.com.br/a-nova-...
) -, este artigo não abordará créditos específicos, mas sim como os dados considerados na concessão de crédito não setorizado para grupos específicos podem reproduzir práticas discriminatórias de natureza racial.

Na primeira seção, investiga-se a possibilidade de discriminação racial no acesso ao crédito por meio de práticas corporativas. Na segunda seção, apresentam-se os tipos de discriminação direta e indireta, além de uma proposta de classificação de dados que pode ser utilizada no processo decisório para a concessão de crédito. Em seguida, na seção 3, destacam-se os riscos de discriminação no uso de dados. Por fim, apresenta-se a conclusão.

1. Discriminação na análise de risco de crédito

A importância da inclusão financeira e o potencial círculo virtuoso da ampliação da concessão do crédito não afastam a necessidade de modelos de análise de risco na atividade bancária. Esses modelos devem considerar tanto a relevância do crédito para a solidez do sistema financeiro quanto o risco de exclusão de indivíduos com menor potencial econômico. A decisão sobre concessão de crédito está sujeita à discricionariedade das instituições financeiras, e o Direito atua como um mecanismo para garantir que essa discricionariedade seja exercida dentro de uma matriz de análise de risco financeiro, evitando riscos sistêmicos no mercado bancário (Fabiani, 2017FABIANI, Emerson Ribeiro. Direito e crédito bancário no Brasil. São Paulo: Saraiva Jur, 2017.). Este artigo investiga como os ditames legais de antidiscriminação podem ou, normativamente, deveriam influenciar a avaliação do risco de crédito.

Cabe ao regulador bancário verificar os riscos sob o ponto de vista sistêmico, por meio de metodologia própria para assegurar a robustez do sistema financeiro, seguindo os critérios estabelecidos pelo Comitê da Basileia (Banco Central, [s.d.a]BANCO CENTRAL. Recomendações de Basileia, [s.l.], [s.d.a]. Disponível em: Disponível em: https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/recomendacoesbasileia . Acesso em: 18 dez. 2023.
https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinan...
). A agenda prioritária do Bacen está focada em mitigar o risco sistêmico e garantir a estabilidade e a higidez do sistema financeiro nacional. Embora a proteção do cliente bancário ou a avaliação do quão inclusivo o sistema pode ser não sejam necessariamente as principais preocupações do regulador bancário, o tema da inclusão financeira ou cidadania financeira tem ganhado destaque na agenda do Bacen (Banco Central, 2021BANCO CENTRAL. Relatório de Cidadania Financeira, 2021. Brasília: Banco Central do Brasil, 2021. Disponível em: Disponível em: https://www.bcb.gov.br/content/cidadaniafinanceira/documentos_cidadania/RIF/Relatorio_de_Cidadania_Financeira_2021.pdf . Acesso em: 8 jul. 2024.
https://www.bcb.gov.br/content/cidadania...
).

É importante ressaltar que a decisão de concessão de crédito frequentemente envolve análise e avaliação automatizada de dados, utilizando métodos estatísticos para alcançar simplificação, rapidez e maior eficiência decisória. Contudo, a percepção de neutralidade e imparcialidade das decisões algorítmicas, baseadas em big data, tem sido amplamente questionada (Corrales, 2020CORRALES, Beatriz Rossi. Algoritmos sociais inclusivos: o caso da Conta Black. 2020. 122 f. Dissertação (Mestrado em Administração Pública e Governo) - Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas, São Paulo, 2020. Disponível em: Disponível em: https://repositorio.fgv.br/server/api/core/bitstreams/742c8597-df3e-4749-922c-e2c087c5a53f/content . Acesso em: 18 dez. 2023.
https://repositorio.fgv.br/server/api/co...
). Citron e Pasquale (2014CITRON, Danielle Keats; PASQUALE, Frank A. The Scored Society: Due Process for Automated Predictions. Washington Law Review, v. 89, n. 1, 2014. Disponível em: Disponível em: https://digitalcommons.law.umaryland.edu/fac_pubs/1431/ . Acesso em: 18 dez. 2023.
https://digitalcommons.law.umaryland.edu...
) destacam que as oportunidades individuais (como acesso a crédito, emprego, educação ou consumo) dependem cada vez mais de decisões baseadas em avaliações mecânicas de dados - os chamados scores.4 4 O score de crédito utiliza estatística e modelos matemáticos para avaliar o risco na concessão de crédito a um indivíduo. Esses modelos para a avaliação do risco de crédito (o risco de o tomador do crédito cumprir ou inadimplir sua obrigação de pagar) são desenvolvidos para lidar com um grande número de clientes, proporcionando rapidez na decisão e utilizando critérios predefinidos para avaliar as informações. As técnicas estatísticas possibilitam a atribuição de pontuações a variáveis específicas, com base em análises anteriores sobre sua relevância para determinar a probabilidade de adimplência nas relações creditícias. Ao final do processo, o cliente recebe uma nota (score) gerada a partir de seus próprios dados, que indica a probabilidade de cumprimento ou não das obrigações financeiras (Langenbucher, 2020). Os autores concluem que, apesar de os sistemas de score criarem uma impressão de precisão e confiança, estão longe de fornecer informações necessariamente corretas e justas (Citron; Pasquale, 2014CITRON, Danielle Keats; PASQUALE, Frank A. The Scored Society: Due Process for Automated Predictions. Washington Law Review, v. 89, n. 1, 2014. Disponível em: Disponível em: https://digitalcommons.law.umaryland.edu/fac_pubs/1431/ . Acesso em: 18 dez. 2023.
https://digitalcommons.law.umaryland.edu...
). Para identificar possíveis vieses na decisão algorítmica, é preciso compreender os processos e verificar se os critérios para classificação dos indivíduos “são corretos, transparentes e, em última instância, justos” (Mendes; Mattiuzzo, 2019MENDES, Laura Schertel; MATTIUZZO, Marcela. Discriminação algorítmica: conceito, fundamento legal e tipologia. Direito Público, Porto Alegre, v. 16, n. 90, nov./dez. 2019.). A definição cuidadosa das variáveis e a metodologia para tratamento dos dados são pontos essenciais. Embora este texto não explore especificamente a intersecção entre tecnologia, algoritmos e discriminação, os elementos para análise de risco antidiscriminatório podem contribuir, com adaptações, para o debate sobre discriminação algorítmica.

A não discriminação ocupa um papel central no ordenamento jurídico brasileiro (Moreira, 2020MOREIRA, Adilson José. Tratado de direito antidiscriminatório. São Paulo: Contracorrente, 2020., p. 684) e integra os princípios que norteiam a atuação dos agentes econômicos no país. A LGPD (Lei n. 13.709/2018) estabelece como fundamental o princípio da não discriminação, o qual define, no art. 6o, IX, como “impossibilidade de realização do tratamento [de dados] para fins discriminatórios ilícitos ou abusivos” (Brasil, 2018BRASIL. Lei n. 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Diário Oficial da União, Brasília, 15 ago. 2018. Disponível em: Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13709.htm . Acesso em: 18 dez. 2023.
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_a...
).

Em um contexto em que agentes financeiros devem considerar parâmetros não vinculativos, como princípios de sustentabilidade e princípios vinculantes, como os de direitos humanos e antidiscriminação, a análise de potencial discriminação no acesso ao crédito deve incluir a reflexão sobre o processo de análise de risco de crédito. Isso ocorre porque, além das justificativas morais e econômicas que poderiam ser discutidas, o ordenamento jurídico estabelece normas de antidiscriminação no uso de dados que não podem ser negligenciadas na análise de crédito.

2. Tipos de discriminação no acesso ao crédito

O debate sobre discriminação no acesso ao crédito tem recebido crescente atenção da literatura especializada e dos reguladores nacionais (Pereira, 2018PEREIRA, Laudelina Leonardo. Data brokers: reflexões sobre os impactos da classificação e do score de crédito na sociedade. 2018. 154 f. Monografia (Especialização em Gestão Integrada da Comunicação Digital para Ambientes Corporativos - Digicorp) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018. Disponível em: Disponível em: https://www.researchgate.net/profile/Laudelina-Pereira/publication/340389056_Data_Brokers_reflexoes_sobre_os_impactos_da_classificacao_e_do_score_de_credito_na_sociedade/links/5e862a8d4585150839b9432a/Data-Brokers-reflexoes-sobre-os-impactos-da-classificacao-e-do-score-de-credito-na-sociedade.pdf . Acesso em: 18 dez. 2023.
https://www.researchgate.net/profile/Lau...
; Schippers, 2018SCHIPPERS, Laurianne-Marie. Algoritmos que discriminam: uma análise jurídica da discriminação no âmbito das decisões automatizadas e seus mitigadores. 2018. 57 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Direito) - Fundação Getulio Vargas, São Paulo, 2018. Disponível em: Disponível em: https://repositorio.fgv.br/server/api/core/bitstreams/94f7422c-0c0d-4ac6-8a76-8031d5d4c481/content . Acesso em: 18 dez. 2023.
https://repositorio.fgv.br/server/api/co...
; Mendes; Mattiuzzo, 2019MENDES, Laura Schertel; MATTIUZZO, Marcela. Discriminação algorítmica: conceito, fundamento legal e tipologia. Direito Público, Porto Alegre, v. 16, n. 90, nov./dez. 2019.; Silveira; Silva, 2020SILVEIRA, Sergio Amadeu da; SILVA, Tarcízio Roberto da. Controvérsias sobre danos algorítmicos: discursos corporativos sobre discriminação codificada. Revista Observatório, Palmas, v. 6, n. 4, p. 1-17, jul./set. 2020. Disponível em: Disponível em: https://sistemas.uft.edu.br/periodicos/index.php/observatorio/article/view/11069/17889 . Acesso em: 18 dez. 2023.
https://sistemas.uft.edu.br/periodicos/i...
). Discriminação refere-se à diferenciação injustificada no impacto ou no tratamento com base em características físicas ou culturais, como sexo, origem étnica, religião, opiniões políticas, idade, deficiência, orientação sexual e identidade de gênero (Nações Unidas, 1948NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos. 1948. Disponível em: Disponível em: https://www.ohchr.org/sites/default/files/UDHR/Documents/UDHR_Translations/por.pdf . Acesso em: 8 jul. 2024.
https://www.ohchr.org/sites/default/file...
). A avaliação da presença, da extensão, da natureza e das tendências da discriminação, assim como sua prevenção na tomada de decisões (possivelmente automatizada), é de importância primordial. A facilidade de armazenamento e retenção de dados, o aumento da capacidade computacional e o desenvolvimento de análises inteligentes e técnicas de mineração de dados permitem que práticas discriminatórias, antes limitadas geográfica e socialmente, sejam agora aplicadas em grande escala, transcendendo fronteiras nacionais e gerando debates internacionais. Portanto, o racismo creditício pode adquirir dimensões globais.

Do ponto de vista jurídico, a discriminação surge quando são aplicadas regras ou práticas diferentes a situações comparáveis, ​​ou a mesma regra ou prática a situações diferentes (Tobler, 2008TOBLER, Christa. Limits and Potential of the Concept of Indirect Discrimination. European Network of Legal Experts in Non-Discrimination Field. Luxemburgo: Comissão Europeia, 2008. Disponível em: Disponível em: https://www.tandis.odihr.pl/bitstream/20.500.12389/20645/1/05963.pdf . Acesso em: 18 dez. 2023.
https://www.tandis.odihr.pl/bitstream/20...
). Quando tais regras ou práticas tratam explicitamente uma pessoa de forma menos favorável por motivos proibidos do que outra que está sendo, foi ou será tratada de maneira semelhante, isso constitui discriminação direta, também conhecida como discriminação sistemática ou tratamento desigual (Romei; Ruggieri, 2014ROMEI, Andrea; RUGGIERI, Salvatore. A Multidisciplinary Survey on Discrimination Analysis. The Knowledge Engineering Review, Cambridge, v. 29, n. 5, p. 582-638, 2014. Disponível em: Disponível em: https://www.cambridge.org/core/journals/knowledge-engineering-review/article/abs/multidisciplinary-survey-on-discrimination-analysis/D69E925AC96CDEC643C18A07F2A326D7 . Acesso em: 18 dez. 2023.
https://www.cambridge.org/core/journals/...
). No entanto, a discriminação indireta, às vezes referida como impacto díspar, ocorre quando uma disposição, um critério ou uma prática aparentemente neutra resulta em tratamento injusto de um grupo protegido, devido ao impacto diferenciado que gera (Collins, 2018COLLINS, Hugh. Justice for Foxes: Fundamental Rights and Justification of Indirect Discrimination. In: COLLINS, Hugh; KHAITAN, Tarunabh (eds.). Foundations of Indirect Discrimination Law. Oxford: Hart Publishing, 2018. p. 249-278.).

Em termos regulatórios, nos Estados Unidos, o principal instrumento referente à discriminação no crédito é o dispositivo legal Equal Credit Opportunity Act (EUA, 1974ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA (EUA). Equal Credit Opportunity Act (ECOA), 15 U.S.C. § 1691, 1974. Disponível em: Disponível em: https://www.govinfo.gov/content/pkg/USCODE-2011-title15/html/USCODE-2011-title15-chap41-subchapIV.htm . Acesso em: 18 dez. 2023.
https://www.govinfo.gov/content/pkg/USCO...
). Essa lei define de modo explícito as atividades que configuram discriminação de crédito e as que não configuram, no contexto dos EUA. No Quadro 1, a seguir, apresentamos os termos dessa legislação, destacando as atividades que constituem e aquelas que não constituem discriminação.

Quadro 1 -
Equal Credit Opportunity Act (EUA, 1974ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA (EUA). Equal Credit Opportunity Act (ECOA), 15 U.S.C. § 1691, 1974. Disponível em: Disponível em: https://www.govinfo.gov/content/pkg/USCODE-2011-title15/html/USCODE-2011-title15-chap41-subchapIV.htm . Acesso em: 18 dez. 2023.
https://www.govinfo.gov/content/pkg/USCO...
)

Não se trata apenas de diretrizes regulatórias substantivas. O Equal Credit Opportunity Act estabelece também um procedimento pelo qual o tomador de crédito pode solicitar as razões por trás das decisões de crédito. Além disso, permite que os consumidores apresentem reclamações ao CFPBCONSUMER FINANCIAL PROTECTION BUREAU (CFPB). Complaint Procedure, [s.l.], [s.d.a]. Disponível em: Disponível em: https://www.consumerfinance.gov/complaint/ . Acesso em: 18 dez. 2023.
https://www.consumerfinance.gov/complain...
, a agência reguladora dos EUA responsável por assegurar o respeito ao Equal Credit Opportunity Act.

O bureau estabelece uma série de diretrizes para prevenir a discriminação de crédito, incluindo a discriminação oculta. Segundo o órgão, “a discriminação de crédito costuma ser oculta ou mesmo não intencional, o que torna difícil identificá-la” (CFPB, [s.d.]CONSUMER FINANCIAL PROTECTION BUREAU (CFPB). What Protections Do I Have against Credit Discrimination?, [s.l.], [s.d.b]. Disponível em: Disponível em: https://www.consumerfinance.gov/fair-lending/ . Acesso em: 8 jul. 2024.
https://www.consumerfinance.gov/fair-len...
, tradução nossa). Entre os sinais de alerta identificados pelo órgão estão: (i) a discriminação direta: ser tratado de forma diferente pessoalmente e ao telefone; (ii) o desincentivo: ser desencorajado a solicitar crédito; (iii) a microagressão:5 5 A definição de “microagressões” e outras usadas neste texto não constam do documento do bureau, são classificações utilizadas pelos autores. ouvir o credor fazer comentários negativos sobre raça, nacionalidade, sexo ou outros grupos protegidos; (iv) a recusa injustificada de crédito: ter o crédito recusado, embora o cliente se qualifique para isso, ou ter o crédito negado sem uma justificativa; (v) ter acesso ao crédito em piores condições: receber uma oferta de crédito com taxa mais alta do que a solicitada, embora o cliente se qualifique para a taxa mais baixa, ou a oferta parecer boa demais para ser verdade, em que informações desfavoráveis podem ser ocultadas; e (vi) a pressão para assinar o crédito: sentir-se pressionado a assinar o contrato de crédito (Gelfond; Vespa-Papaleo, 2016GELFOND, Rebecca; VESPA-PAPALEO, J. Frank. What You Need to Know About the Equal Credit Opportunity Act and How It Can Help You: Know Your Rights. CFPB - Consumer Financial Protection Bureau, [s.l.], 2 nov. 2016. Disponível em: Disponível em: https://www.consumerfinance.gov/about-us/blog/what-you-need-know-about-equal-credit-opportunity-act-and-how-it-can-help-you-know-your-rights/ . Acesso em: 18 dez. 2023.
https://www.consumerfinance.gov/about-us...
).

Apesar dessas diretrizes, a discriminação racial no acesso ao crédito ainda pode ocorrer de diversas formas. Entre elas, estão: a discriminação direta - quando o marcador de diferença é explicitamente considerado na distinção -; a discriminação indireta - quando o impacto ou tratamento é desproporcional contra a população negra, mesmo que o ato seja aparentemente neutro -; e, por fim, a discriminação por meio de algoritmos - embora possa se enquadrar como discriminação direta ou indireta, tem as suas especificidades devido à natureza automatizada do processo.

O objetivo dessa classificação é permitir uma compreensão abrangente de como a literatura sobre discriminação aborda o tema em geral, para que, no tópico seguinte, os riscos de discriminação possam ser avaliados especificamente no contexto do crédito.

2.1. Discriminação direta

Parâmetros de direitos humanos globais e regionais proíbem a discriminação com base em uma série de fatores (Nações Unidas, [s.d.]NAÇÕES UNIDAS. Equality and Non-Discrimination, [s.d.]. Disponível em: Disponível em: https://www.un.org/ruleoflaw/thematic-areas/human-rights/equality-and-non-discrimination/ . Acesso em: 18 dez. 2023.
https://www.un.org/ruleoflaw/thematic-ar...
). Para punir a discriminação direta, são adotadas regras que proíbem a discriminação em ambientes específicos, incluindo crédito e seguro, venda, aluguel e financiamento de habitação, seleção de pessoal e salários, acesso a espaços públicos e educação. Um exemplo disso é a Lei Antirracismo no Brasil, Lei n. 7.716 de 1989, com suas subsequentes atualizações, que pune a discriminação no acesso a transporte público e estabelecimentos comerciais (Brasil, 1989BRASIL. Lei n. 7.716, de 5 de janeiro de 1989. Define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. Diário Oficial da União, Brasília, 6 jan. 1989. Disponível em: Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L7716compilado.htm . Acesso em: 18 dez. 2023.
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/le...
). As distinções justificadas são exceções não arbitrárias, explicitamente admitidas por lei ou provadas em tribunal como objetivas e legítimas.

Alguns grupos, tradicionalmente alvos de discriminação, são expressamente listados como “grupos protegidos” pelas leis de direitos humanos nacionais e internacionais (Romei; Ruggieri, 2014ROMEI, Andrea; RUGGIERI, Salvatore. A Multidisciplinary Survey on Discrimination Analysis. The Knowledge Engineering Review, Cambridge, v. 29, n. 5, p. 582-638, 2014. Disponível em: Disponível em: https://www.cambridge.org/core/journals/knowledge-engineering-review/article/abs/multidisciplinary-survey-on-discrimination-analysis/D69E925AC96CDEC643C18A07F2A326D7 . Acesso em: 18 dez. 2023.
https://www.cambridge.org/core/journals/...
). Diferenciar pessoas pertencentes a esses grupos com o objetivo de excluí-las requer uma análise minuciosa das justificativas, dado que tal diferenciação é presumidamente inaceitável sob o ponto de vista legal. É importante ressaltar que os grupos protegidos não são categorias isoladas; eles podem operar simultaneamente, de forma composta ou interseccional (Collins; Khaitan, 2018COLLINS, Hugh; KHAITAN, Tarunabh (eds.). Foundations of Indirect Discrimination Law. Oxford: Hart Publishing, 2018.; Rios; Silva, 2015RIOS, Roger Raupp; SILVA, Rodrigo da. Discriminação múltipla e discriminação interseccional: aportes do feminismo negro e do direito da antidiscriminação. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, n. 16, p. 11-37, jan./abr. 2015. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0103-335220151602. Acesso em: 18 dez. 2023.
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
).

2.2. Discriminação indireta

O conceito de discriminação indireta e sua incorporação nos textos legais é relativamente recente. O caso “Griggs vs. Duke Power” (1971), nos EUA, foi pioneiro ao introduzir a questão da discriminação indireta, estabelecer precedentes legais e definir o conceito (The Editors of Encyclopaedia Britannica, 2022THE EDITORS OF ENCYCLOPAEDIA BRITANNICA. Griggs v. Duke Power Co. Britannica, [s.l.], 1o mar. 2022. Disponível em: Disponível em: https://www.britannica.com/event/Griggs-v-Duke-Power-Co . Acesso em: 18 dez. 2023.
https://www.britannica.com/event/Griggs-...
). Esse caso envolvia um processo seletivo que fazia uso de uma prova objetiva para aprovar ou não candidatos. A ação judicial argumentava que existia discriminação indireta contra grupos racializados, que tendiam a obter resultados mais baixos na prova devido ao histórico de baixa acessibilidade à educação entre a população negra do país. Além disso, na corte, foi apontado que a prova não tinha correlação com as atividades desempenhadas na vaga em questão.

A partir desse caso, legisladores começaram a considerar discriminações que se manifestam de maneiras distintas das discriminações diretas, mas que produzem os mesmos efeitos discriminatórios e segregacionistas. Muitas outras jurisdições replicaram essa ideia de discriminação indireta. Por exemplo, a Diretiva da União Europeia (UE) n. 2000/43/CE, de 29 de junho de 2000, aborda essa questão em seu art. 2o, inc. 2.a (Conselho da União Europeia, 2000CONSELHO DA UNIÃO EUROPEIA. Diretiva n. 2000/43/CE, de 29 de junho de 2000. Que aplica o princípio da igualdade de tratamento entre as pessoas, sem distinção de origem racial ou étnica. Luxemburgo, 29 jun. 2000. Disponível em: Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/ALL/?uri=CELEX%3A32000L0043 . Acesso em: 18 dez. 2023.
https://eur-lex.europa.eu/legal-content/...
). Além de incluir a discriminação deliberada e intencional contra grupos minoritários, essas legislações também focam nos efeitos adversos desproporcionais, independentemente da intenção discriminatória.

Em termos quase idênticos, o Equality Act 2000 do Reino Unido, na seção 19, declara que: “Uma pessoa (A) discrimina outra (B) se A aplicar a B uma disposição, critério ou prática discriminatória em relação a uma característica protegida relevante de B” (Reino Unido, 2010REINO UNIDO. Equality Act 2010. Londres, 2010. Disponível em: Disponível em: https://www.legislation.gov.uk/ukpga/2010/15/pdfs/ukpga_20100015_en.pdf . Acesso em: 18 dez. 2023.
https://www.legislation.gov.uk/ukpga/201...
). As controvérsias sobre uma lei de discriminação indireta estão situadas no paradoxo de sua formulação. Como pode uma regra prática que trata todos de maneira igual ser interpretada como uma regra de discriminação e tratamento discriminatório? E, para além disso, a presunção de um pressuposto moral universal que permeia a vida moral e pública pode ser uma ambição excessivamente onerosa para o setor privado.

Um dos argumentos a favor de uma lei de discriminação indireta é que esta serviria como um remédio legal para as áreas em que a discriminação direta não consegue alcançar e combater. Apesar da difícil conceituação, Collins (2018COLLINS, Hugh. Justice for Foxes: Fundamental Rights and Justification of Indirect Discrimination. In: COLLINS, Hugh; KHAITAN, Tarunabh (eds.). Foundations of Indirect Discrimination Law. Oxford: Hart Publishing, 2018. p. 249-278.) explora que: (i) a discriminação direta é causada por um indivíduo contra outro, enquanto a discriminação indireta é direcionada a um grupo específico; (ii) a discriminação direta envolve intenção, enquanto a discriminação indireta não necessariamente; (iii) a discriminação direta não pode ser justificada, já a discriminação indireta pode ser justificada se for um meio apropriado para alcançar um objetivo legítimo que pode ser comprovado. Outro ponto importante é a forma como a lei interpreta as duas discriminações no âmbito de sanção. A prova de discriminação direta é muito mais concreta do que a de discriminação indireta, o que impacta diretamente as medidas reparatórias para os danos causados (Collins, 2018COLLINS, Hugh. Justice for Foxes: Fundamental Rights and Justification of Indirect Discrimination. In: COLLINS, Hugh; KHAITAN, Tarunabh (eds.). Foundations of Indirect Discrimination Law. Oxford: Hart Publishing, 2018. p. 249-278.).

2.3. Discriminação algorítmica

A discussão sobre discriminação algorítmica ganhou profundidade quando a suposta neutralidade da internet (Rosa; Strieder, 2019ROSA, Suiane Ewerling da; STRIEDER, Roseline Beatriz. Não neutralidade da Ciência-Tecnologia: verbalizações necessárias para potencializar a constituição de uma cultura de participação. Linhas Críticas, Brasília, v. 25, e19701, jan./dez. 2019. Disponível em: Disponível em: http://educa.fcc.org.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1981-04312019000100409&lng=pt&nrm=iso . Acesso em: 17 dez. 2023.
http://educa.fcc.org.br/scielo.php?scrip...
) e dos algoritmos (Silva, 2022SILVA, Tarcízio. Racismo algorítmico: inteligência artificial e discriminação nas redes digitais. São Paulo: Edições Sesc SP, 2022.) foi questionada. Processar um volume considerável de dados - uma característica fundamental dos algoritmos - tem como missão específica chegar a prognósticos (Mendes; Mattiuzzo, 2019MENDES, Laura Schertel; MATTIUZZO, Marcela. Discriminação algorítmica: conceito, fundamento legal e tipologia. Direito Público, Porto Alegre, v. 16, n. 90, nov./dez. 2019., p. 43), inclusive a avaliação da capacidade de pagamento de crédito com base nas informações fornecidas pelos clientes.

A utilização de métodos estatísticos para avaliação de crédito, que se acreditava ser objetiva, apresenta o potencial de gerar resultados de avaliação de crédito (credit score) que embutem vieses presentes também em processos tradicionais de tomada de decisão, em razão das predefinições, feitas pelos controladores dos dados, de mecanismos para estabelecer causalidade e correlações (Mendes; Mattiuzzo, 2019MENDES, Laura Schertel; MATTIUZZO, Marcela. Discriminação algorítmica: conceito, fundamento legal e tipologia. Direito Público, Porto Alegre, v. 16, n. 90, nov./dez. 2019., p. 40).

Para abordar a relação entre discriminação e tecnologia, utilizamos a tipologia elaborada por Mendes, Mattiuzo e Fujimoto (2021MENDES, Laura Schertel; MATTIUZZO, Marcela; FUJIMOTO, Mônica Tiemy. Discriminação algorítmica à luz da Lei Geral de Proteção de Dados. In: MENDES, Laura Schertel et al. (coords.). Tratado de Proteção de Dados Pessoais. Rio de Janeiro: Forense, 2021. p. 421-446.), que considera ao menos quatro tipos de discriminação algorítmica: (i) discriminação por erro estatístico;6 6 Por discriminação por erro estatístico, os autores entendem erros “genuinamente estatísticos” aqueles relacionados ao desenho do algoritmo, como dados coletados incorretamente, problemas com códigos de algoritmos, falhas de contabilização de dados, etc. (Mendes; Mattiuzzo; Fujimoto, 2021, p. 430). (ii) discriminação pelo uso de dados sensíveis;7 7 Na categoria da discriminação pelo uso de dados sensíveis, os autores incluem o uso de informações sensíveis e dados protegidos na legislação, como escolhas religiosas (Mendes; Mattiuzzo; Fujimoto, 2021, p. 430). (iii) discriminação por generalização injusta;8 8 Para definir discriminação por generalização injusta ou correlação abusiva, os autores evidenciam situações nas quais há classificação de forma equivocada de certos grupos, por exemplo, usar o lugar de moradia em região em geral ligada à pobreza para avaliar o risco de crédito. Entendem que há generalizações injustas no exercício de probabilidades (Mendes; Mattiuzzo; Fujimoto, 2021, p. 430-431). e (iv) discriminação limitadora de direitos9 9 Na discriminação limitadora do exercício de direitos, os autores reforçam a possibilidade da discriminação na informação usada no algoritmo que afeta significativamente o exercício de um direito (Mendes; Mattiuzzo; Fujimoto, 2021, p. 431). (Mendes; Mattiuzzo; Fujimoto, 2021MENDES, Laura Schertel; MATTIUZZO, Marcela; FUJIMOTO, Mônica Tiemy. Discriminação algorítmica à luz da Lei Geral de Proteção de Dados. In: MENDES, Laura Schertel et al. (coords.). Tratado de Proteção de Dados Pessoais. Rio de Janeiro: Forense, 2021. p. 421-446., p. 438). Essa tipologia delineia como a discriminação algorítmica pode ocorrer não apenas devido a falhas estatísticas, como dados incorretos, mas também pelo uso inadequado de dados pessoais sensíveis que não deveriam influenciar o algoritmo. Além disso, inclui correlações errôneas ou imprecisas entre dados, como a relação entre endereço e capacidade de pagamento de crédito, e, por fim, o uso de tecnologias que restrinjam excessivamente o acesso a direitos.

3. Risco discriminatório no uso de dados

A discriminação por meio da utilização de dados pode ser categorizada como direta ou indireta. A discriminação direta ocorre quando categorias historicamente suspeitas, como raça e gênero, são utilizadas de maneira explícita para justificar diferenciações que resultam em práticas discriminatórias, por exemplo, recusar crédito a um cliente por ser negro. Entretanto, discriminações indiretas parecem neutras à primeira vista, mas geram tratamento ou impacto desproporcional em grupos historicamente discriminados, como discriminar beneficiários de auxílio social ou residentes de áreas específicas.

Tendo em vista a possibilidade de discriminação direta ou indireta no acesso ao crédito, faz-se necessário avaliar quais tipos de dados podem ser utilizados na sua concessão. Nesta seção, serão discutidas três categorias de dados a partir dos níveis de risco de discriminação: (i) risco baixo: dados a princípio de uso aceitáveis, ou seja, dados livres que não suscitam dúvidas sobre consequências discriminatórias; (ii) risco alto: dados de uso inaceitável, ou seja, que não podem ser utilizados, seja por força da lei, seja devido ao seu elevado potencial de risco discriminatório; e (iii) risco incerto: dados cujo uso se enquadra em uma zona cinzenta sobre o seu potencial discriminatório.

3.1. Risco baixo (dados a princípio aceitáveis)

No ordenamento jurídico brasileiro, os principais dados considerados para a concessão de crédito são os dados econômicos e financeiros que indicam a capacidade de cumprir as obrigações financeiras, com vistas a reduzir os riscos no mercado de crédito. A discricionariedade na concessão do crédito baseia-se na averiguação do risco financeiro envolvido na operação creditícia. Logo, em tese, seriam aceitáveis apenas dados diretamente relacionados à capacidade de pagamento com a devida diligência para não usar dados, de maneira direta ou por meio de avaliação de crédito de terceiros, que possam levar à discriminação, seja pela negação injustificada de crédito, seja pelo tratamento desfavorável direto ou indireto a pessoas negras.

Para ilustrar quais informações econômicas poderiam ser utilizadas, é interessante trazer possíveis classificações dos dados usados na definição dos scores de crédito. Instituições como o Serasa destacam os critérios fundamentais para a avaliação de risco na concessão de crédito, por exemplo “pagamentos de contas em dia, histórico de dívidas negativadas, relacionamento financeiro com empresas, dados cadastrais atualizados” (Serasa, [s.d.])SERASA. Serasa Experian, [s.l.], [s.d.]. Disponível em: Disponível em: https://empresas.serasaexperian.com.br/ . Acesso em: 18 dez. 2023.
https://empresas.serasaexperian.com.br/...
e falência da empresa no nome do solicitante. Além disso, outros modelos podem incorporar variáveis como utilização de serviços financeiros, solicitações de crédito, dívidas em aberto, histórico no cadastro positivo, cumprimento de obrigações do cartão de crédito, etc. (Serasa, [s.d.]SERASA. Serasa Experian, [s.l.], [s.d.]. Disponível em: Disponível em: https://empresas.serasaexperian.com.br/ . Acesso em: 18 dez. 2023.
https://empresas.serasaexperian.com.br/...
).

O Sistema de Concessão de Crédito (SCR) do Bacen é um importante instrumento utilizado pelas instituições financeiras para avaliar a capacidade de pagamento de seus clientes atuais e potenciais (Banco Central, [s.d.b]BANCO CENTRAL. Sistema de Informações de Créditos (SCR), [s.l.], [s.d.b]. Disponível em: Disponível em: https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/scr . Acesso em: 18 dez. 2023.
https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinan...
). Esse sistema mantém registros financeiros das pessoas junto às instituições financeiras, e sua consulta é condicionada à autorização prévia do cliente.

O objetivo do scoring é construir um histórico de cumprimento de obrigações de pagamento. No entanto, críticas frequentes incluem a falta de transparência na avaliação e na quantificação dos dados, assim como a sua efetiva correlação ao risco de crédito. Conforme estabelecido pela Súmula 550 do Superior Tribunal de Justiça (STJ), o consumidor tem o “direito de solicitar esclarecimentos sobre dados pessoais valorados e as fontes dos dados considerados no respectivo cálculo” (Brasil, 2015BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula 550, de 14 de outubro de 2015. A utilização de escore de crédito, método estatístico de avaliação de risco que não constitui banco de dados, dispensa o consentimento do consumidor, que terá o direito de solicitar esclarecimentos sobre as informações pessoais valoradas e as fontes dos dados considerados no respectivo cálculo. Diário da Justiça (DJe), 19 out. 2015.).10 10 Sobre os critérios de pontuação e direito do consumidor, consultar publicação do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC) (Por trás [...], 2022).

Porém, a metodologia de análise dos dados e a valoração constituem segredos da atividade comercial e não precisam ser reveladas, conforme os termos da decisão do Recurso Especial (REsp.) n. 1.419.697 (Brasil, 2014BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (2a Seção). Recurso Especial n. 1.419.697/RS. Recorrente: Boa Vista Serviços S/A. Recorrido: Anderson Guilherme Prado Soares. Relator: Min. Paulo de Tarso Sanseverino. Diário de Justiça Eletrônico (DJe), 17 nov. 2014. Disponível em: Disponível em: https://bdjur.stj.jus.br/jspui/bitstream/2011/114173/REsp1419697.pdf . Acesso em: 18 dez. 2023.
https://bdjur.stj.jus.br/jspui/bitstream...
), proferida pelo STJ e detalhada na próxima seção. Dependendo do peso e da metodologia do score na análise de crédito, pode surgir uma zona cinzenta em que o risco de discriminação é maior do que quando se usam dados diretamente econômicos e financeiros.

3.2. Risco alto (dados a princípio inaceitáveis)

A legislação brasileira impõe limites quanto aos dados que podem ser considerados na concessão de crédito, especialmente aqueles que são excessivos, sensíveis ou abusivos. Como será demonstrado a seguir, no entanto, o Direito brasileiro não oferece um detalhamento mais claro dos dados que são ou não aceitáveis na análise de crédito. O princípio de não discriminação, presente na LGPD, carece de concretude como guia para determinar o que de fato pode conduzir a um risco discriminatório.

3.2.1. Dados excessivos e sensíveis: violações ao CDC e à Lei do Cadastro Positivo

No sistema jurídico brasileiro, são três os diplomas normativos que merecem atenção: a Lei do Cadastro Positivo, o CDC e a LGPD.

A Lei de Cadastro Positivo (Lei n. 12.414/2011 [Brasil, 2011BRASIL. Lei n. 12.414/2011, de 9 de junho de 2011. Disciplina a formação e consulta a bancos de dados com informações de adimplemento, de pessoas naturais ou de pessoas jurídicas, para formação de histórico de crédito. Diário Oficial da União, Brasília, 10 jun. 2011. Disponível em: Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12414.htm . Acesso em: 18 dez. 2023.
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_a...
]) estabelece limites importantes. Em seu art. 3o, parágrafo 2o, permite o armazenamento de informações de adimplemento no cadastro, desde que sejam objetivas, claras, verdadeiras, exatas, completas, de fácil compreensão e necessárias para a avalição da situação econômica da pessoa. Além disso, a lei proíbe, conforme o art. 3o, parágrafo 3o, o uso de dados excessivos e sensíveis. Considera-se dado excessivo qualquer informação não vinculada à análise de crédito ao consumidor; e dado sensível abrange informações relacionadas à origem social e étnica, à saúde, à informação genética, à orientação sexual e às convicções políticas, religiosas e filosóficas. Em seu art. 1o, a Lei n. 12.414/2011 faz referência explícita ao CDC, reforçando que ambas as leis devem ser aplicadas de forma harmônica e coordenada. O CDC, por sua vez, em seu art. 43 e parágrafos seguintes, trata sobre banco de dados e cadastros de consumidores (Brasil, 1990BRASIL. Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 12 fev. 1990. Disponível em: Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078compilado.htm . Acesso em: 18 dez. 2023.
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/le...
).

No REsp. n. 1.419.697 (Brasil, 2014BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (2a Seção). Recurso Especial n. 1.419.697/RS. Recorrente: Boa Vista Serviços S/A. Recorrido: Anderson Guilherme Prado Soares. Relator: Min. Paulo de Tarso Sanseverino. Diário de Justiça Eletrônico (DJe), 17 nov. 2014. Disponível em: Disponível em: https://bdjur.stj.jus.br/jspui/bitstream/2011/114173/REsp1419697.pdf . Acesso em: 18 dez. 2023.
https://bdjur.stj.jus.br/jspui/bitstream...
), o STJ analisou a questão do scoring no Brasil e considerou que o sistema em si não representa uma ilegalidade. Entretanto, reconheceu que o consumidor tem o direito de saber os dados que fundamentam sua pontuação, devendo ser respeitados a transparência e os prazos (5 anos para cadastro negativo e 15 anos para histórico de crédito).

De acordo com essa decisão do STJ, as empresas não são obrigadas a divulgar a fórmula do cálculo ou o método matemático utilizado (segredo de atividade empresarial), porém devem fornecer os dados utilizados para a obtenção do resultado quando solicitados pelo consumidor. Com relação ao dano moral, foi estabelecido que a atribuição de nota não configura dano moral. Todavia, o uso excessivo de dados sensíveis e não pertinentes para atribuição dessa nota configura abuso e pode ensejar indenização por dano moral.

3.2.2. Dados abusivos: violação ao princípio de não discriminação na LGPD

A LGPD permite em seu art. 7o, X, o tratamento de dados pessoais não sensíveis para a proteção do crédito. No entanto, esse tratamento deve respeitar os demais princípios estabelecidos na legislação, em especial: (i) a transparência dos dados, como previsto nos arts. 18 e 19 da LGPD, garantindo ao titular dos dados o direito de acesso, correção, anonimização, entre outras medidas; (ii) a segurança dos dados, definida no art. 6o, VII, da LGPD, como “a utilização de medidas técnicas e administrativas aptas a proteger os dados pessoais de acessos não autorizados e de situações acidentais ou ilícitas de destruição, perda, alteração, comunicação ou difusão”; (iii) a não discriminação, proibindo uso discriminatório ilícito ou abusivo, como estabelece o art. 6o, IX, da LGPD; e (iv) a prevenção, que envolve a adoção de medidas para evitar danos decorrentes do processamento de dados pessoais, conforme o art. 6o, VIII, da mesma lei.

É importante notar que a legislação permite o tratamento de dados pessoais não sensíveis para efeitos de proteção de crédito (art. 7o, X, LGPD). No entanto, para dados pessoais sensíveis, definidos como “dado pessoal sobre origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural” (art. 5o, II, LGPD), não há previsão legal para uso na proteção de crédito. No caso de dados sensíveis, é exigido o consentimento específico do usuário para o tratamento, conforme estabelecido no art. 11 da LGPD.

A LGPD não se refere somente a atos ilegais, mas também ao abuso no armazenamento e no tratamento de dados. No entanto, no texto legal há uma zona cinzenta quanto ao que constitui exatamente esse abuso. Em particular no contexto do tratamento excessivo ou indevido de dados de pessoas, entende-se que há abrangência inclusive das conexões lógicas e jurídicas, embora a palavra “abuso” possa ter interpretações variadas. Segundo a reflexão de Pestana (2020PESTANA, Marcio. Os princípios no tratamento de dados na Lei Geral da Proteção de Dados Pessoais. Consultor Jurídico, [s.l.], 25 maio 2020. Disponível em: Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-mai-25/marcio-pestana-principios-tratamento-dados-lgpd . Acesso em: 18 dez. 2023.
https://www.conjur.com.br/2020-mai-25/ma...
), “se pretendesse assentá-lo na finalidade propriamente dita, o legislador teria enfatizado tal valor (vedação à abusividade) ao delimitar o conteúdo do princípio da finalidade, antes já examinado, não o destacando, apartadamente, como o fez, para o princípio da não discriminação”.

Nesse sentido, é fundamental verificar se existem instrumentos capazes de proteger os dados. Os arts. 47 e 49 da LGPD (Brasil, 2018BRASIL. Lei n. 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Diário Oficial da União, Brasília, 15 ago. 2018. Disponível em: Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13709.htm . Acesso em: 18 dez. 2023.
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_a...
) abordam claramente esse aspecto. Nesse contexto, é relevante mencionar as abordagens adotadas pelo sistema europeu. A General Data Protection Regulation (GDPR) (União Europeia, 2016UNIÃO EUROPEIA. Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho de 27 de abril de 2016 relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados e que revoga a Diretiva 95/46/CE (Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados). União Europeia, L 119, 4 maio 2016. Disponível em: Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/HTML/?uri=CELEX:32016R0679 . Acesso em: 8 jul. 2024.
https://eur-lex.europa.eu/legal-content/...
), em vigor na UE e que inspirou em grande medida a LGPD, tem menos princípios em comparação à lei brasileira. Em seu texto, apresenta seis aspectos: (i) licitude, lealdade e transparência (lawfulness, fairness and transparency); (ii) limitação das finalidades (purpose limitation); (iii) minimização dos danos (data minimisation); (iv) exatidão (accuracy); (v) limitação de armazenamento (storage limitation); e (vi) integridade e confidencialidade (integrity and confidentiality). Nenhum desses princípios faz menção explícita à discriminação, diferentemente do texto legal brasileiro.

Por outra perspectiva, a UE estabelece precedentes com leis antidiscriminação interpretadas como direitos fundamentais, assim como a proteção de dados. Em certas decisões, esses direitos convergem. No entanto, como argumentam Gellert et al. (2013GELLERT, Raphaël et al. A Comparative Analysis of Anti-Discrimination and Data Protection Legislations. In: CUSTERS, Bart et al. (eds.). Discrimination and Privacy in the Information Society Data Mining and Profiling in Large Databases. Heidelberg: Springer Berlin, 2013. p. 61-89.), direitos de antidiscriminação e de proteção de dados ainda não são entendidos de modo amplo como mutualmente reforçadores, devido à complexidade indireta e à necessidade de preservar a liberdade das instituições, em especial das privadas.

3.3. Risco incerto (zona cinzenta)

3.3.1. Dados que configuram como proxies para discriminação

Para considerar o risco incerto, isto é, dados que se encontram em uma zona de dúvida entre o permitido e o proibido, uma das abordagens é a implementação de proxies - dados secundários - que, isoladamente ou em conjunto a outros dados, possam de modo indireto discriminar certos grupos. A título de exemplo, a organização não governamental National Consumer Law Center (NCLC, 2019NATIONAL CONSUMER LAW CENTER (NCLC). Credit Invisibility and Alternative Data: Promises and Perils, jul. 2019. Disponível em: Disponível em: https://www.nclc.org/images/pdf/credit_reports/ib-credit-invisib-alt-data-july19.pdf . Acesso em: 18 dez. 2023.
https://www.nclc.org/images/pdf/credit_r...
), nos EUA, menciona critérios para a concessão de crédito que podem servir como proxies para discriminação indireta: a) dados de transações de contas bancárias;11 11 Existe o potencial de má utilização dos dados do histórico de transações bancárias, pois eles revelam preferências e hábitos de consumo, além de indicar o melhor momento para cobrança de dívidas. Portanto, é crucial que o compartilhamento desses dados seja limitado e que seus impactos sejam monitorados (NCLC, 2019, p. 2). b) histórico de aluguel;12 12 Dados sobre contratos de locação não podem penalizar os inquilinos (NCLC, 2019, p. 2). c) informações das concessionárias de gás e eletricidade;13 13 A utilização de informações sobre inadimplemento ou adimplemento atrasado de contas de consumo de gás e energia, sem dar a oportunidade de manifestação dos consumidores, pode ser prejudicial para os consumidores (NCLC, 2019, p. 2-3). d) histórico de crédito subprime;14 14 Pode ser problemática a utilização de informações de empréstimos salariais e outras formas de crédito subprime (NCLC, 2019, p. 3). e) dados de telecomunicações;15 15 Informações sobre adimplemento ou sobre contas de consumo junto a empresas de telecomunicações podem não levar em consideração que a falta de pagamento pode ter decorrido de questionamento de tarifas e sobretaxas (NCLC, 2019, p. 3). f) informações disponíveis em big data.16 16 Big Data pode incluir muitos tipos de dados que não são tão baseados em critérios financeiros, como perfis de mídia social e histórico de navegação na web, com dúvidas sobre fonte das informações. Big Data usado para crédito, emprego, seguro ou outros fins, geralmente, está coberto pelo Fair Credit Reporting Act, e os provedores devem cumprir essa lei. Se o Big Data for usado para crédito, aplica-se a Lei de Oportunidades Iguais de Crédito (NCLC, 2019, p. 3).

3.3.2. Dados embutidos em pontuações de crédito (scores)

Uma das formas de discriminação no acesso ao crédito é por meio da avaliação de crédito. O score de crédito utiliza estatísticas e modelos matemáticos para avaliar o risco de conceder recursos a um indivíduo. Esses modelos são elaborados para trabalhar com grande quantidade de clientes de forma eficiente, utilizando critérios predefinidos para avaliar a probabilidade de o tomador cumprir ou inadimplir suas obrigações de pagamento. As variáveis são pontuadas com base em análises estatísticas anteriormente estabelecidas sobre sua relevância para a determinação da adimplência. Ao final do processo, o cliente recebe uma nota (score) gerada a partir de seus próprios dados, que indica sua probabilidade de cumprir as obrigações creditícias.

Alguns argumentam que os scores de crédito são instrumentos opacos e suscetíveis a viés (bias) (Langenbucher, 2020LANGENBUCHER, Katja. Responsible A.I. Credit Scoring: A Legal Framework. European Business Law Review, v. 25, 2020. Disponível em: Disponível em: https://ir.lawnet.fordham.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=2076&context=faculty_scholarship . Acesso em: 18 dez. 2023.
https://ir.lawnet.fordham.edu/cgi/viewco...
). A não neutralidade desses métodos tem sido estudada em diversos mercados. Por exemplo, os resultados da pesquisa de Havard (2011HAVARD, Cassandra Jones. “On the Take”: The Black Box of Credit Scoring and Mortgage Discrimination. Public Interest Law Journal, [s.l.], v. 20, 2011, p. 241-287. Disponível em: Disponível em: https://scholarworks.law.ubalt.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1307&context=all_fac . Acesso em: 18 dez. 2023.
https://scholarworks.law.ubalt.edu/cgi/v...
) indicam que, no mercado imobiliário norte-americano, a utilização de credit score resulta em grande disparidade na concessão dos créditos. É interessante a conclusão da autora sobre a necessidade de aumentar a transparência, sugerindo que, com mais informações, os tomadores de crédito no sistema financeiro podem ter mais ciência das variáveis usadas para determinar suas pontuações de crédito e entender como as taxas de empréstimo ofertadas são calculadas (Havard, 2011HAVARD, Cassandra Jones. “On the Take”: The Black Box of Credit Scoring and Mortgage Discrimination. Public Interest Law Journal, [s.l.], v. 20, 2011, p. 241-287. Disponível em: Disponível em: https://scholarworks.law.ubalt.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1307&context=all_fac . Acesso em: 18 dez. 2023.
https://scholarworks.law.ubalt.edu/cgi/v...
, p. 287).

Cathy O’Neil (2016)O’NEIL, Cathy. Weapons of Math Destruction: How Big Data Increases Inequality and Threatens Democracy. Nova York: Crown, 2016. dedica um capítulo de seu livro Weapons of Math Destruction à questão da discriminação algorítmica. A autora argumenta que o principal parâmetro nos EUA para a avaliação de crédito é o sistema da empresa FICO, sediada na Califórnia. Esse sistema é utilizado em 90% das avaliações de crédito. A FICO permite que seus clientes solicitem relatórios detalhados explicando as razões por trás das avaliações de crédito. Além disso, divulga publicamente os critérios e os pesos utilizados na avaliação de crédito, que incluem histórico de pagamentos (35%), valores devidos (30%), extensão do histórico de crédito (15%), novos créditos (10%) e mix de crédito (10%) (FICO, [s.d.]FICO. What’s in my FICO® Scores?, [s.l.], [s.d.]. Disponível em: Disponível em: https://www.myfico.com/credit-education/whats-in-your-credit-score . Acesso em: 18 dez. 2023.
https://www.myfico.com/credit-education/...
). No entanto, há evidências de discriminação no uso do score implementado pela FICO (Rice; Swesnik, 2013RICE, Lisa; SWESNIK, Deidre. Discriminatory Effects of Credit Scoring on Communities of Color. Suffolk University Law Review, [s.l.], v. 46, p. 935-966, 2013. Disponível em: Disponível em: https://cpb-us-e1.wpmucdn.com/sites.suffolk.edu/dist/3/1172/files/2014/01/Rice-Swesnik_Lead.pdf . Acesso em: 18 dez. 2023.
https://cpb-us-e1.wpmucdn.com/sites.suff...
). Uma das principais preocupações apresentadas por O’Neil são os chamados e-scores, que são menos transparentes e suscetíveis a práticas discriminatórias.

Desse modo, há uma linha por vezes tênue entre a transparência dos dados pessoais econômicos e financeiros considerados na concessão de crédito e a fórmula usada para atribuir pesos a esses dados no processo decisório. Ademais, em contextos em que famílias negras historicamente enfrentam dificuldades no acesso ao crédito, esse histórico pode influenciar a análise de crédito, mesmo que esta se baseie apenas em dados referentes a obrigações de pagamento. Portanto, o risco associado ao uso do score não pode ser descartado.

Conclusão

Este artigo teve como objetivo geral abordar o acesso ao crédito e suas nuances discriminatórias, inserindo-se em um campo emergente na literatura jurídica brasileira. A concessão de crédito fica a critério das instituições financeiras e pode resultar em práticas discriminatórias, incluindo aquelas de natureza racial abordadas neste estudo. Por isso, sugere-se o conceito de “racismo creditício”, caracterizado pela repetição de práticas discriminatórias raciais no acesso ao crédito, assim como pela omissão ao enfrentamento do risco discriminatório.

Uma das contribuições centrais deste artigo é a exposição e a análise dos tipos de dados considerados na análise e na concessão de crédito, identificando os riscos de discriminação associados a esse processo. A classificação aqui adotada divide os riscos em baixos, altos e incertos, com o objetivo de mapear e organizar os principais desafios para promover alternativas de inclusão no mercado de crédito, reduzindo as possibilidades de discriminação.

Ao compreender o processo decisório de concessão de créditos e identificar os potenciais riscos de discriminação, torna-se evidente a importância de construir um caminho para que sejam minadas as situações discriminatórias, o que pode ser objeto de estudos futuros. Percebe-se que o Direito brasileiro trata dessa questão e busca combater o racismo creditício, embora de forma fragmentada, por meio de leis como o CDC, a LGPD e a Lei de Cadastro Positivo, as quais devem ser interpretadas com vistas a mitigar ou anular os riscos discriminatórios no acesso ao crédito.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Este artigo é resultado de uma consultoria remunerada. Essa consultoria não interferiu de maneira alguma na substância do artigo.
  • 2
    Por inclusão financeira, considera-se o acesso e o uso dos serviços e produtos financeiros oferecidos pelo sistema formal.
  • 3
    Não se ignoram os problemas que o acesso excessivo ao crédito, sem critérios para avaliação de capacidade financeira, pode gerar. O superendividamento, disciplinado na Lei n. 14.181/2021 (Lei do Crédito Responsável [Brasil, 2021aBRASIL. Lei n. 14.181, de 1o de julho de 2021. Altera a Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), e a Lei n. 10.741, de 1o de outubro de 2003 (Estatuto do Idoso), para aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e dispor sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento. Diário Oficial da União, Brasília, 2021a.]), no entanto, não é objeto deste texto.
  • 4
    O score de crédito utiliza estatística e modelos matemáticos para avaliar o risco na concessão de crédito a um indivíduo. Esses modelos para a avaliação do risco de crédito (o risco de o tomador do crédito cumprir ou inadimplir sua obrigação de pagar) são desenvolvidos para lidar com um grande número de clientes, proporcionando rapidez na decisão e utilizando critérios predefinidos para avaliar as informações. As técnicas estatísticas possibilitam a atribuição de pontuações a variáveis específicas, com base em análises anteriores sobre sua relevância para determinar a probabilidade de adimplência nas relações creditícias. Ao final do processo, o cliente recebe uma nota (score) gerada a partir de seus próprios dados, que indica a probabilidade de cumprimento ou não das obrigações financeiras (Langenbucher, 2020LANGENBUCHER, Katja. Responsible A.I. Credit Scoring: A Legal Framework. European Business Law Review, v. 25, 2020. Disponível em: Disponível em: https://ir.lawnet.fordham.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=2076&context=faculty_scholarship . Acesso em: 18 dez. 2023.
    https://ir.lawnet.fordham.edu/cgi/viewco...
    ).
  • 5
    A definição de “microagressões” e outras usadas neste texto não constam do documento do bureau, são classificações utilizadas pelos autores.
  • 6
    Por discriminação por erro estatístico, os autores entendem erros “genuinamente estatísticos” aqueles relacionados ao desenho do algoritmo, como dados coletados incorretamente, problemas com códigos de algoritmos, falhas de contabilização de dados, etc. (Mendes; Mattiuzzo; Fujimoto, 2021MENDES, Laura Schertel; MATTIUZZO, Marcela; FUJIMOTO, Mônica Tiemy. Discriminação algorítmica à luz da Lei Geral de Proteção de Dados. In: MENDES, Laura Schertel et al. (coords.). Tratado de Proteção de Dados Pessoais. Rio de Janeiro: Forense, 2021. p. 421-446., p. 430).
  • 7
    Na categoria da discriminação pelo uso de dados sensíveis, os autores incluem o uso de informações sensíveis e dados protegidos na legislação, como escolhas religiosas (Mendes; Mattiuzzo; Fujimoto, 2021MENDES, Laura Schertel; MATTIUZZO, Marcela; FUJIMOTO, Mônica Tiemy. Discriminação algorítmica à luz da Lei Geral de Proteção de Dados. In: MENDES, Laura Schertel et al. (coords.). Tratado de Proteção de Dados Pessoais. Rio de Janeiro: Forense, 2021. p. 421-446., p. 430).
  • 8
    Para definir discriminação por generalização injusta ou correlação abusiva, os autores evidenciam situações nas quais há classificação de forma equivocada de certos grupos, por exemplo, usar o lugar de moradia em região em geral ligada à pobreza para avaliar o risco de crédito. Entendem que há generalizações injustas no exercício de probabilidades (Mendes; Mattiuzzo; Fujimoto, 2021MENDES, Laura Schertel; MATTIUZZO, Marcela; FUJIMOTO, Mônica Tiemy. Discriminação algorítmica à luz da Lei Geral de Proteção de Dados. In: MENDES, Laura Schertel et al. (coords.). Tratado de Proteção de Dados Pessoais. Rio de Janeiro: Forense, 2021. p. 421-446., p. 430-431).
  • 9
    Na discriminação limitadora do exercício de direitos, os autores reforçam a possibilidade da discriminação na informação usada no algoritmo que afeta significativamente o exercício de um direito (Mendes; Mattiuzzo; Fujimoto, 2021MENDES, Laura Schertel; MATTIUZZO, Marcela; FUJIMOTO, Mônica Tiemy. Discriminação algorítmica à luz da Lei Geral de Proteção de Dados. In: MENDES, Laura Schertel et al. (coords.). Tratado de Proteção de Dados Pessoais. Rio de Janeiro: Forense, 2021. p. 421-446., p. 431).
  • 10
    Sobre os critérios de pontuação e direito do consumidor, consultar publicação do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC) (Por trás [...], 2022POR TRÁS da pontuação de crédito: conheça seus direitos. Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, [s.l.], [s.d.]. Disponível em: Disponível em: https://idec.org.br/ferramenta/por-tras-da-pontuacao-de-credito-conheca-seus-direitos#:~:text=A%20situa%C3%A7%C3%A3o%20%C3%A9%20comum%3A%20voc%C3%AA,pois%20seu%20score%20est%C3%A1%20baixo%E2%80%9D . Acesso em: 18 dez. 2023.
    https://idec.org.br/ferramenta/por-tras-...
    ).
  • 11
    Existe o potencial de má utilização dos dados do histórico de transações bancárias, pois eles revelam preferências e hábitos de consumo, além de indicar o melhor momento para cobrança de dívidas. Portanto, é crucial que o compartilhamento desses dados seja limitado e que seus impactos sejam monitorados (NCLC, 2019NATIONAL CONSUMER LAW CENTER (NCLC). Credit Invisibility and Alternative Data: Promises and Perils, jul. 2019. Disponível em: Disponível em: https://www.nclc.org/images/pdf/credit_reports/ib-credit-invisib-alt-data-july19.pdf . Acesso em: 18 dez. 2023.
    https://www.nclc.org/images/pdf/credit_r...
    , p. 2).
  • 12
    Dados sobre contratos de locação não podem penalizar os inquilinos (NCLC, 2019NATIONAL CONSUMER LAW CENTER (NCLC). Credit Invisibility and Alternative Data: Promises and Perils, jul. 2019. Disponível em: Disponível em: https://www.nclc.org/images/pdf/credit_reports/ib-credit-invisib-alt-data-july19.pdf . Acesso em: 18 dez. 2023.
    https://www.nclc.org/images/pdf/credit_r...
    , p. 2).
  • 13
    A utilização de informações sobre inadimplemento ou adimplemento atrasado de contas de consumo de gás e energia, sem dar a oportunidade de manifestação dos consumidores, pode ser prejudicial para os consumidores (NCLC, 2019NATIONAL CONSUMER LAW CENTER (NCLC). Credit Invisibility and Alternative Data: Promises and Perils, jul. 2019. Disponível em: Disponível em: https://www.nclc.org/images/pdf/credit_reports/ib-credit-invisib-alt-data-july19.pdf . Acesso em: 18 dez. 2023.
    https://www.nclc.org/images/pdf/credit_r...
    , p. 2-3).
  • 14
    Pode ser problemática a utilização de informações de empréstimos salariais e outras formas de crédito subprime (NCLC, 2019NATIONAL CONSUMER LAW CENTER (NCLC). Credit Invisibility and Alternative Data: Promises and Perils, jul. 2019. Disponível em: Disponível em: https://www.nclc.org/images/pdf/credit_reports/ib-credit-invisib-alt-data-july19.pdf . Acesso em: 18 dez. 2023.
    https://www.nclc.org/images/pdf/credit_r...
    , p. 3).
  • 15
    Informações sobre adimplemento ou sobre contas de consumo junto a empresas de telecomunicações podem não levar em consideração que a falta de pagamento pode ter decorrido de questionamento de tarifas e sobretaxas (NCLC, 2019NATIONAL CONSUMER LAW CENTER (NCLC). Credit Invisibility and Alternative Data: Promises and Perils, jul. 2019. Disponível em: Disponível em: https://www.nclc.org/images/pdf/credit_reports/ib-credit-invisib-alt-data-july19.pdf . Acesso em: 18 dez. 2023.
    https://www.nclc.org/images/pdf/credit_r...
    , p. 3).
  • 16
    Big Data pode incluir muitos tipos de dados que não são tão baseados em critérios financeiros, como perfis de mídia social e histórico de navegação na web, com dúvidas sobre fonte das informações. Big Data usado para crédito, emprego, seguro ou outros fins, geralmente, está coberto pelo Fair Credit Reporting Act, e os provedores devem cumprir essa lei. Se o Big Data for usado para crédito, aplica-se a Lei de Oportunidades Iguais de Crédito (NCLC, 2019NATIONAL CONSUMER LAW CENTER (NCLC). Credit Invisibility and Alternative Data: Promises and Perils, jul. 2019. Disponível em: Disponível em: https://www.nclc.org/images/pdf/credit_reports/ib-credit-invisib-alt-data-july19.pdf . Acesso em: 18 dez. 2023.
    https://www.nclc.org/images/pdf/credit_r...
    , p. 3).

Como citar este artigo

  • 19
    AMPARO, Thiago; PRADO, Viviane Muller. Racismo creditício no Brasil e nos EUA: risco discriminatório no acesso a crédito. Revista Direito GV, São Paulo, v. 20, e2422, 2024. https://doi.org/10.1590/2317-6172202422

Editores responsáveis

Catarina Helena Cortada Barbieri (Editora-chefe). três decisões editoriais, incluindo desk review.
Pedro Salomon Bezerra Mouallem (Editor-chefe). duas decisões editoriais, incluindo a decisão final.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    22 Set 2022
  • Aceito
    01 Mar 2024
Fundação Getulio Vargas, Escola de Direito de São Paulo Rua Rocha, 233, 11º andar, 01330-000 São Paulo/SP Brasil, Tel.: (55 11) 3799 2172 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revistadireitogv@fgv.br