Resumo
O artigo pretende navegar por alguns conceitos espinosanos presentes na Ética, no Tratado Teológico-político, bem como no Tratado Político, alinhavando argumentos e definições que se referem ao problema da fundação e manutenção do campo político. O objetivo principal é o de mostrar como os conceitos espinosanos se articulam para a solução da questão.
Palavras-chave: Afetos; Política; Espinosa
Abstract
The article brings some Spinoza's concepts that are present in the Ethics, as well as in the Theologico-political Treatise and in the Political Treatise, showing arguments and presenting definitions in the three works that are related to the problem of the foundation and maintenance of the political field. The main goal is to show how Spinoza's concepts relate one to each other to resolve the proposed question.
Keywords: Affects; Politics; Spinoza
1. Mapa
O artigo pretende navegar por alguns conceitos espinosanos presentes na Ética, no Tratado Teológico-político, bem como no Tratado Político, alinhavando argumentos e definições presentes nas três obras. Tais conceitos se referem ao problema da fundação e manutenção do campo político. A solução espinosana para esta questão é o que o artigo procura apresentar, em forma de ensaio. O método é o da análise minuciosa das fontes primárias, a saber, os três livros citados (em várias edições, tendo por base a de C. Gebhardt (1972)), confrontando os conceitos pertinentes à questão com o objetivo de apresentar um ensaio do que seja a solução espinosana ao problema proposto. Como textos de apoio às fontes primárias, comentadores da obra de Espinosa serão utilizados.
Para tratar do problema, os conceitos de homem, mente, imitação afetiva, socialidade, multidão, contrato, poder soberano, direito como potência e imperium (que em tradução precária poderia ser compreendido, com muitas ressalvas, por Estado) serão alinhavados a partir das obras de Espinosa acima citadas. De maneira mais desdobrada, procurar-se-á, primeiramente, explicitar a relação entre os conceitos de imitação afetiva e a formação de blocos de mentes. Tais blocos de mentes, que são blocos de homens e seus desejos em comum, levam a que os homens ajam neste ou naquele sentido. Desse fundamento afetivo comum, possível em razão da imitação do desejo do outro, forja-se a socialidade. Estes conceitos possibilitarão que se explique, num segundo momento, por meio das três obras de Espinosa acima citadas, não apenas a questão da socialidade, seu mecanismo, mas também como dos afetos e da imitação afetiva decorre a política.
Nesse ponto, o da construção do campo político em Espinosa, o intento é o de percorrer as teses espinosanas para mostrar a elaboração de um contratualismo que se funda na imitação dos afetos e nos blocos de mentes daí advindos. Ou seja, o objetivo é, no interior do problema maior do contratualismo, próprio do período em que Espinosa escreveu, explicar os passos da concepção espinosana para a formação do campo político. Pode-se dizer, neste plano introdutório, que o que há no autor é um “contratualismo” - assim entre aspas - que o faz original no dezessete e em face da tradição anterior.
O conceito de multidão e o de imperium serão também articulados para explicitar o funcionamento do campo político segundo o autor. Trata-se de abordagem que diverge da tradição. Em razão da necessidade de amplo espaço para detalhar os conceitos espinosanos, não será possível, neste artigo, contrapor as teses de Espinosa às de outros autores. Apenas se esboçará, em um dado movimento do texto, uma comparação com Hobbes, com o intuito de indicar, por contraste, as inovações espinosanas na esfera política.
Fica para outra ocasião, pelo motivo acima, uma análise minuciosa da potência das teses espinosanas para o direito atual e para a reflexão acerca da política nos tempos contemporâneos. Tais ligações entre Espinosa e autores contemporâneos, bem como com as teses contemporâneas, demandariam articulações que ainda estão em fase de elaboração e de pesquisa.
O objetivo principal do artigo é, pois, o de mostrar como os conceitos espinosanos de homem, mente, afetos, imitação dos afetos, direito como potência, multidão, imperium, poder soberano e contrato se articulam em sua obra. O problema da fundação e manutenção do campo político é resolvido, à maneira espinosana, pela articulação dos referidos conceitos. Eis uma hipótese que o artigo apresenta e procura defender em forma de ensaio.
Atravessa a argumentação do artigo a hipótese de que as três obras citadas se somam, não havendo qualquer contradição entre elas. O que existe é complementação de argumentos. As diferenças que se apresentam ocorrem em função dos temas divergentes e peculiares a cada uma das obras - as ações humanas para a Ética, a relação entre teologia, filosofia e política no Tratado Teológico-político, e o tema da política (formas de Estado, criação e manutenção da cidade, poder soberano, etc.) no Tratado Político.
Por fim, no item 5, o artigo procura tratar de questão que decorre das acima postas, clássica na filosofia política, a saber, a dos regimes políticos (ou, pela pena de Espinosa, a dos gêneros de estado civil) e de como a solução espinosana passa pelos conceitos de multidão, imperium, direito como potência e afetos.
Passa-se, a seguir, aos caminhos do mapa acima apresentado.
2. Formar blocos de mentes
O conceito de imitação afetiva se funda na Proposição 27 da Ética III (E III P 27 pp. 195-197)1. Este conceito é importante para a filosofia política espinosana, pois há relação entre mimetismo afetivo e os conceitos de multidão e cidade - esta uma hipótese que será desdobrada a seguir.
A imitação afetiva gera 'blocos de mentes' orientadas num mesmo sentido, seja por meio da comiseração, afeto derivado da tristeza, seja por meio da emulação, afeto derivado da alegria, bem como por meio das várias derivações afetivas daí decorrentes - benevolência, apreço ou reconhecimento, indignação, etc. (E III P 22 Esc p. 191 e E III P 27 Esc p. 197). A imitação do desejo do outro, que por sua vez é desejo de algo, gera comportamentos sociais, coletivos, os quais não são deliberações de vontades livres, mas decorrências do próprio funcionamento do maquinário afetivo. Blocos de mentes orientadas para cá ou para lá são socialidades de maior ou menor potência, e é este mecanismo, de ponta a ponta natural e de ponta a ponta afetivo, que será o fundamento e o cimento da socialidade e, por conseguinte, da cidade.
O conceito de mimese afetiva, acima esboçado, possibilitará trazer à tona uma tese importante. Na Ética se apresenta, ainda que de modo incipiente e lacônico, uma elaboração explícita acerca da política (E IV P 37 Esc 2 pp. 309-311). Tal elaboração está em acordo com teses do Teológico-político, sobretudo no que se refere ao conceito de um “contratualismo” que se reelabora cotidianamente, numa tensão entre poder soberano, ao qual se cede potência, e os membros da cidade, que têm as potências individuais garantidas pelo direito civil. Este, por seu turno, é posto pela potência do soberano e fundado na lei universal segundo a qual entre dois bens se escolhe o maior e entre dois males o menor. Esta lei da natureza humana se apresenta, no funcionamento da cidade, por meio do par afetivo medo-esperança, afetos estes que são fundadores, bem como explicativos da manutenção constante do poder soberano. Com efeito, a esperança de um bem maior faz que os homens cedam parte de sua potência ao poder soberano, o qual edita leis que garantem o exercício das potências individuais. Porém, tal lei universal da natureza humana, segundo o Teológico-político, quando apresentada na Ética IV, no momento da introdução da política no texto espinosano, não explicita ainda um conceito que terá fundamental importância na política e que aparecerá abundantemente2 no Tratado político (doravante Político), a saber, o conceito de multidão.
Isso não implica que haja contradição entre os três textos espinosanos que explicitamente tratam da política (TTP, Ética, TP), ou mesmo que haja uma falta conceitual na Ética por não conter o conceito de multidão3, ou por não operar com tal conceito. A hipótese deste artigo é a de que os objetos diversos das obras explicam a ausência ou presença do conceito, sua maior ou menor importância na economia desta ou daquela obra específica. De fato, o objeto explícito, o tema por excelência, da Ética, é o campo das ações humanas, que Espinosa explicitará em cinco partes, mostrando desde o fundamento do real, a tese da substância única e do imanentismo, na parte I, até a noção de beatitude, passível de ser alcançada pelo sábio, na parte V. Para isso, passa-se pela noção de afeto e de sua natureza, na parte III, bem como se envereda pela noção de servidão humana e força dos afetos, na parte IV, sem deixar de passar pelo tema da natureza e origem da mente, na parte II. Na parte IV, a política irrompe, e os conceitos de mérito e demérito, bem como o de cidade (civitas) e as noções de justiça aí implicadas, se apresentam como o momento lacônico de teses políticas no texto da Ética. E nada há a estranhar nesse laconismo. Afinal, o tema é a ética, não a política, ainda que os fundamentos afetivos da política, a antropologia espinosana, seja longamente analisada na Ética III, e o texto desta seja recuperado no Político, até mesmo explicitamente. O que importa, entretanto, para este artigo, é a ideia de que o desdobramento completo do conceito de multidão - fundamental para o problema da fundação e manutenção do campo político na acepção espinosana - poderá ser melhor compreendido à luz da Ética e de seu maquinário conceitual referente aos afetos. Do mesmo modo, o momento da Ética em que Espinosa fala da constituição do campo político (E IV P 37 Esc 2 pp. 309-311), bem como as passagens do Teológico-político em que fala da lei universal inscrita firmemente na natureza humana (TTP XVI p. 237) poderão ser melhor compreendidos à luz do conceito de multidão.
Tendo como pano de fundo esse quadro geral, passa-se a mostrar como os conceitos de mimese afetiva, próprios da Ética III, bem como o conceito de multidão, próprio sobretudo do Político, são conceitos que se articulam e possibilitam um melhor entendimento das teses políticas de Espinosa. O conceito de multidão dará o tom mais original do pensamento político espinosano ao resolver, pelo viés dos afetos e de sua lógica, a questão da fundação e da manutenção do corpo político, bem como a questão da importância da política como instância garantidora da alegria como afeto predominante na civitas. De fato, quanto mais alegria no corpo político, em forma de maior potência dos membros que o constituem, maior será, por assim dizer, a eficácia da cidade no que se refere à sua razão de existência. O limite inverso disso, dirá Espinosa, não se poderá chamar civitas, mas solidão (TP V 4 p.45).
3. Como num jogo de espelhos: a multitudo
André Santos Campos resume bem a questão do surgimento do corpo político em Espinosa a partir da vivência afetiva dos homens, ou seja, da antropologia espinosana (CAMPOS, 2008, p. 275-276). Se o que há de comum na experiência dos homens é a vivência afetiva, que pode os unir ou os tornar inimigos, por um lado, por outro lado há a experiência histórica. Esta, ao que indica o autor, aponta para uma superação desse paradoxo. Isso porque os homens, de acordo com a experiência histórica, são observados sempre vivendo em comunidades de cooperação, sem as quais a preservação de cada um, deixados a si mesmos, seria impossível. Assim, sendo os homens afetivos de ponta a ponta, e dado este quadro histórico, como justificar, pergunta o autor (CAMPOS, 2008, p. 275-276), “[...] a formação de laços humanos de cooperação sem a intervenção direta de princípios racionais pelos agentes cooperantes?” Ou, em outras palavras (CAMPOS, 2008, p. 276):
[...] se a imitação dos afetos tende a explicitar o comportamento natural passional dos indivíduos num 'estado de natureza' que jamais se abandona, como fundamentar pela mesma imitação dos afetos a passagem necessária a um plano de cooperação inter-humana, que é o veículo indispensável à performatividade na existência do conatus [esforço para perseverar no ser] de cada um?
A resposta espinosana passa, na interpretação proposta neste artigo, pelos conceitos de imitação dos afetos e de multidão. Ou seja, pela união de ao menos dois textos espinosanos fundamentais, o Político e a Ética, bem como de teses presentes em alguns capítulos do Teológico-político.
Que se recapitule a Proposição da Ética que trata da imitatio afetiva. “Por imaginarmos que uma coisa semelhante a nós e que não nos provocou nenhum afeto é afetada de algum afeto, seremos, em razão dessa imaginação, afetado de um afeto semelhante [similis].” (E III P 27 p. 195). O conhecimento imaginativo ou por imagens é o primeiro ponto a ser notado nesta proposição. De fato, uma percepção na mente de um homem de algo que afeta esta mente é o que Espinosa designa pela expressão “por imaginarmos”. É do conhecimento do primeiro gênero que se trata aqui, isto é, o conhecimento imaginativo, o mesmo que percepção, para usar uma linguagem contemporânea. De fato, na demonstração da Proposição 27, Espinosa afirma que se a “[...] natureza de um corpo exterior é semelhante à de nosso corpo [...]” (E III P 27 Dem p. 195), por conseguinte, “[...] a ideia do corpo exterior que imaginamos [...]” (E III P 27 Dem p. 195) acarretará uma afecção de nosso corpo semelhante à do corpo exterior. Isto é, a imagem que tenho na mente acarreta em mim um afeto similar ao afeto que o ser semelhante imaginado sente.
Espinosa, na sequência, constata que se trata, nesse caso, de affectum imitatio (E III P 27 Esc p. 195). Em suma, o imaginar pode gerar um caminho do desejo que vai no mesmo sentido do desejo do outro. O que o outro imagina, por ser imaginado por alguém, faz que este alguém sinta algo similar (simili affectu - E III P 27 p.194) ou semelhante ao que o outro sente. O desejo de um homem se move, ou o move, portanto, no mesmo sentido do desejo do outro. Esse o traço geral, ou o mecanismo geral, da imitação afetiva. Ocorre que ela terá uma importância social e política fundamental, visto que para Espinosa os afetos constituem a tensão ontológica ou de potências que funda e mantém a civitas. Eis o ponto a ser ampliado a seguir.
Vários afetos são movimentados nas demonstrações, corolários e escólios da proposição 27 da Ética III. Todos decorrem do conceito fundante de imitação afetiva. Espinosa escreve, pois, já na primeira demonstração, que, do mesmo modo que imaginar uma coisa semelhante, afetada de algum afeto, leva quem imagina a experienciar afeto semelhante, o oposto pode ocorrer. Isto é, no caso de se odiar uma coisa semelhante aos humanos, o afeto que os afetará será o afeto contrário. Recorre Espinosa à Proposição 23 da Ética III (E III P 23 p. 191) para confirmar esta posição. Afirma, de acordo com esta proposição, que quem imagina que aquilo que odeia é afetado de tristeza, se alegrará, bem como quem imagina que aquilo que odeia é afetado de alegria, se entristecerá. O primeiro escólio da proposição 27, por conseguinte, traz a tese de que a imitação dos afetos pode - como não poderia deixar de ser dada a primariedade dos três afetos (desejo, alegria e tristeza) (E III P 11 Esc p. 179) - se referir à tristeza ou à alegria. Quando referida à tristeza, é comiseração (commiseratio). De fato, imaginar o sofrimento do outro leva a que se sofra também. Porém, quando a imitação é a do desejo do outro, é desejar o que o outro deseja, o que se tem é a emulação (aemulatio). E Espinosa usa a expressão “[...] o qual se produz em nós por imaginarmos que outros [alios], semelhantes a nós, têm esse mesmo desejo.” (E III P 27 Esc da 1ª Dem p. 195). Alios, ou seja, “outros”, semelhantes entre si, tendo o mesmo desejo, leva tais semelhantes a desejar esta mesma coisa. Aí está o comportamento por excelência que institui o coletivo: a imitação do desejo alheio por emulação. Espinosa ainda trata de outros afetos derivados da imitação, e que provocam esse comportamento coletivo, esse bloco de mentes num sentido ou noutro. O amor (E III P 27 Cor 1 p. 195), o esforço para livrar quem nos causou compaixão de sua situação de desgraça ou infelicidade (miseria) (E III P 27 Cor 3 p. 195), bem como a benevolência (benevolentia), aqui entendida como uma derivação da compaixão, ou seja, um apetite ou desejo surgido da comiseração. Por fim, Espinosa ainda deriva do mecanismo da imitação afetiva dois afetos. Um, o reconhecimento, que é o amor que se sente por alguém que fez um bem a um terceiro (E III P 22 Esc p. 191). O outro, que tem importância para a política, a indignação, que é o “[...] ódio a quem fez o mal a um outro.” (E III P 22 Esc p. 191).
Eis, em suas linhas mestras, o mecanismo de imitação afetiva que leva ao comportamento coletivo, fundante da socialidade e da cidade, instâncias indispensáveis à concretização do direito natural de cada membro da cidade (TP II 15 p. 19).
O passo seguinte, dado esse pano de fundo, é o desdobramento do conceito que une a Ética ao Político, bem como explica passagens do Teológico-político, a saber, o conceito de multidão (multitudo).
O final do capítulo I do Político (TP I 7 p. 10) anuncia uma tese que está diretamente de acordo com a Ética III. Espinosa afirma nesta ocasião, em primeiro lugar, que os homens, onde quer que se juntem, formam costumes e um estado civil. Em segundo lugar, no mesmo parágrafo, afirma que as causas e fundamentos do imperium não decorrem de ensinamentos da razão. Devem “[...] deduzir-se da natureza ou condição comum dos homens [ex hominum communi natura seu conditione deducenda sunt].” (TP I 7 p. 10; G III p. 276). A condição comum dos homens, ou a antropologia espinosana, está desenvolvida na Ética III, momento em que o autor trata da origem e da natureza dos afetos.
No primeiro passo deste item 3, a afetividade humana foi focada no seu aspecto de imitação. O que leva, segundo Espinosa, aos blocos de mentes que vão num ou noutro sentido. Em uma palavra, a tese é a de que os homens podem seguir o desejo do outro (ou dos outros) por imaginar o afeto que está no outro e passar a ter um afeto similar - trata-se da emulação. A condição comum dos homens é sua dinâmica afetiva. Não casualmente, no Político, Espinosa explicita, já nas primeiras linhas do capítulo I, esta condição comum, ao afirmar que a afetividade ou o estar sob os afetos é próprio dos homens. O aspecto da afetividade logo acima explicado, a saber, a mimese afetiva, com afirmado, é a condição para que haja comportamentos em conjunto, comportamentos comuns. Como esse estado de coisas, isto é, a imitação afetiva, devém multidão e devém imperium (Estado, em tradução precária)?
Isto é o que Espinosa descreve como projeto a ser desdobrado no capítulo seguinte à afirmação acima indicada, do final do capítulo I, e o capítulo II do Político tratará, de início, do tema apontado. A questão que se apresenta a Espinosa, pois, é a de saber como se constitui e se mantém o imperium4. Afinal, como aponta o texto do Político (TP I 7 p. 10), os homens formam costumes e estados civis.
O conceito de mimese afetiva será utilizado por Espinosa para explicar esta união de homens, sem que o conceito, porém, seja explicitado, no Político, tal qual fora na Ética III. Procurar-se-á extraí-lo do texto do Político. Isto porque, em uma hipótese do presente artigo, os afetos fundam a política e a mantêm. Um importante parágrafo em que o conceito de afetividade - e mais especificamente de imitação - está pressuposto nas análises espinosanas é o de número 10 do capítulo 2 do Político:
Tem um outro sob seu poder quem o detém amarrado, ou quem lhe tirou as armas e os meios de se defender ou de se evadir, quem lhe incutiu medo ou quem, mediante um benefício, o vinculou de tal maneira a si que ele prefere fazer-lhe a vontade a fazer a sua, e viver segundo o parecer dele a viver segundo o seu. Quem tem um outro em seu poder sob a primeira ou a segunda destas formas, detém só o corpo dele, não a mente; mas quem o tem sob a terceira ou a quarta forma fez juridicamente seus [sui juris fecit (G III p. 280)], tanto a mente como o corpo dele, embora só enquanto dura o medo ou a esperança; na verdade, desaparecida esta ou aquela, o outro fica sob jurisdição de si próprio. (TP II 10 p. 17).
Espinosa trata, no referido parágrafo, de potência, ou seja, de estar sui juris ou alterius juris (sob sua própria jurisdição ou sob a jurisdição de outrem, respectivamente), como afirma em passagem anterior ao parágrafo citado (TP II 9 p. 16). O que está em jogo é estar sob a potência - ou seja, sob o direito - de si mesmo ou sob a potência de outrem, uma vez que jus sive potentia (TP II 5 p. 12 - G III p. 277). Dois casos dão ao detentor do direito o corpo do outro. São os dois primeiros, em que o outro está sob o poder daquele que o amarrou ou daquele que tirou os meios de se defender ou de fugir. Detém, entretanto, o corpo e a mente de um homem aquele que incute neste o medo ou, mediante um benefício, faz que este prefira abrir mão do próprio desejo imediato para ter acesso a um bem maior. Aquela lei indicada no Teológico-político, tão firmemente inscrita nos homens, (TTP XVI p. 237), e repetida na Ética IV (E IV P 37 Esc 2 p. 311), segundo a qual entre dois bens se escolhe o maior e entre dois males o menor, é o que Espinosa aponta neste excerto. E tal poder sobre um outro, fundado nesta lei, opera a mesma lógica já apontada no TTP e na Ética, isto é, a do afeto medo-esperança fundando o 'estar sob', ou seja, fundando o ato de estar sob jurisdição de outrem. Desaparecida a esperança que funda a obediência ao poder de outrem, ou desaparecido o medo, desaparece o direito do outro sobre a mente e corpo deste ou daquele homem. Cada homem volta, assim, a estar sui juris, ou seja, num estado pré-civil ou de natureza, no qual os direitos naturais são abstrações (TP II 15 p. 19).
As concessões quanto ao direito natural (iure suo naturali cedant - E IV P 37 Esc 2 p. 309), de que fala Espinosa na Ética IV, fazem parte da mesma lógica acima apontada. Ao fazer, num momento na história e cotidianamente, a cessão do direito natural ao poder soberano, na esperança de garantir a existência mesma do direito natural, cada homem transfere potência ao poder soberano, dá a esta instância poder para fazer que as leis por ele editadas sejam cumpridas. Ou seja, cada membro da cidade, em parte - pois não se cede toda a potência (TTP XVII p. 250) -, passa a estar sob a jurisdição (sui juris) do poder soberano, sob sua potência. Há, ontologicamente fundada, uma tensão entre potências. O soberano, de acordo com a lógica exposta no excerto citado (TP II 10 p. 17), detém mais poder que cada membro da cidade isoladamente na medida em que pode, por ameaças, fazer cumprir as leis. Mas este é apenas um lado da moeda, pois os membros da cidade cumprem a lei também na esperança de que todos a cumpram, inclusive o próprio poder soberano, garantindo-se a paz no corpo social. Quando Espinosa afirma que alguém - ou algo - tem sobre outrem poder, sublinha, no caso do poder sobre a mente e o corpo, que são os afetos esperança e medo que garantem tal relação. E esta relação cessa findos o medo e a esperança. Ou seja, os membros da cidade, por, simultaneamente, temerem e esperarem garantias do poder soberano da cidade, mantêm uma relação de submissão ao soberano que é, ao mesmo tempo e paradoxalmente, sua (dos membros da cidade) garantia de exercício da potência enquanto indivíduos, isto é, enquanto homens. Entretanto, se trata aqui do medo da lei (CHAUI, 2011, pp. 173-191; p. 174 especialmente), não do medo animal anterior a qualquer instituição. Um medo que é possibilitador, paradoxalmente, da alegria e da potência dos membros da cidade (AURÉLIO, 2000, p. 334). Por outro lado, o poder soberano somente subsiste enquanto tem como fundamento de sua potência a própria potência dos desejos dos membros da cidade, sob a forma de multidão, a qual alimenta o poder soberano, sem a qual o poder soberano não possui qualquer potência, ou seja, qualquer direito. Por isso Espinosa poderá dizer, acerca do imperium monárquico, por exemplo, a título de conclusão do capítulo VII do Político, “[...] que a multidão pode conservar sob um rei uma liberdade bastante ampla, desde que consiga que a potência do rei seja determinada somente pela potência da mesma multidão e mantida sob a guarda desta.” E conclui (TP VII 31 p. 85): “Foi esta a única regra que segui ao lançar os fundamentos do estado [imperium] monárquico.”
Porém, como os desejos, a princípio isolados e tumultuadamente contrários uns aos outros, como afirmado em E IV P 37 Esc 2 (p. 309), devêm multidão? A hipótese deste artigo vai pelo seguinte veio: a mimese dos afetos esperança e medo, por parte dos membros da cidade em face do poder soberano, através da emulação, será o conceito necessário para que se entenda a passagem do Político que complementa o excerto do parágrafo 10 do capítulo II (TP II 10 p. 17) e que pode ser uma chave para a compreensão desta transformação. A passagem é a seguinte (TP II 13 p. 18): “Se dois se põem de acordo e juntam forças, juntos podem mais, e consequentemente têm mais direito sobre a natureza do que cada um deles sozinho; e quanto mais assim estreitarem relações, mais direito terão todos juntos.” Analisa-se, a seguir, esta passagem à luz do excerto acima citado (TP II 10 p. 17). O objetivo é mostrar como surge aí o conceito de afeto e, mais precisamente, a necessidade da ideia de imitar o afeto do outro para que tal união subsista.
O acordo somente ocorre, de forma completa, segundo Espinosa, com o uso da razão (E IV P 37 Esc 2 p. 309 e P 35 Cor 1 p. 303). Mas os homens raramente a usam, e estão submetidos aos afetos, que os põem em divergência (E IV P 37 Esc 2 p. 309). Porém, não obstante estarem em desacordo, simultaneamente sabem que “[...] o homem é um Deus para o homem.” (E IV P 35 Esc p. 303), e por isso a experiência mostra que dificilmente os homens vivem uma vida solitária, e em geral vivem em sociedade, pois daí advêm vantagens (E IV P 35 Esc p. 305). Entretanto, como sabem disso e por que vivem em sociedade, já que são, essencialmente, desejos em conflito?
O parágrafo 13 do capítulo II do TP parece se fundar nisso que se pode chamar de convenientia ou 'astúcia da razão', ou seja, a razão que, sub-repticiamente, se serve da esperança “[...]para dar força operante à potência racional das noções comuns.” (CHAUI, 2011, p. 182).
Dessa maneira, como dois se põem de acordo e juntam forças? Ora, por meio de uma operação, via afeto esperança, operação esta fundada na noção de convenientia, que põe no mundo afetivo as noções comuns da razão. Por outras palavras, a esperança de uma potência maior, que faz que dois se juntem e possam mais, se funda nesta convenientia operando na natureza, a qual explicita um acordo que não se mostra em todas as suas facetas, que não se mostra diretamente pela razão, mas indiretamente, por meio de um afeto alegre, a esperança. Esse é - eis uma hipótese - um pano de fundo constituído pela astúcia da razão, a qual, no plano afetivo, se apresenta por meio da emulação, por parte de vários homens, dos afetos medo-esperança, culminando na cessão de potência a uma instância responsável por criar e manter a civitas, ou seja, o poder soberano, do qual emana o direito civil.
Por outras palavras, os homens imitam, por emulação, a esperança uns dos outros para se unirem e buscarem os benefícios, a utilidade desta união. Quando isto se tornar tão complexo a ponto de se necessitar de uma instância detentora da potência da cidade (o poder soberano), o par esperança-medo continua operando e sustentando, pela via da emulação, a potência deste poder, ao qual se deu o poder de editar leis. Tais leis são respeitadas pelo medo da punição e na esperança de se ter paz e não guerra, de se viver uma vida digna, ou seja, com potência individual tendente ao máximo, com alegria como afeto predominante. E ainda mais: o par afetivo medo-esperança será transmutado, pelas instituições da cidade, em segurança (securitas), afeto mais estável e garantidor do exercício dos direitos naturais individuais na civitas. Na verdade, o afeto esperança se transmuta em segurança na medida em que a cidade, por meio do funcionamento das instituições, é capaz de diminuir a dúvida, nos cidadãos-súditos, quanto ao futuro. A cidade dever ser capaz de forjar este imaginário de segurança, o qual deve estar sempre presente nas mentes dos membros da cidade como uma espécie de futuro-antecipado-em-forma-de-imagem-de-segurança. Somente instituições políticas da civitas são capazes de gerar tal imaginário de alegria em cada membro do corpo político, imaginário este que retroalimenta a própria força da cidade.
Porém, do ponto de vista da lógica dos afetos como emanação de uma conveniência (convenientia), própria da natureza, como se dá esta união de dois ou mais homens que devém multidão? Como resultado, precisamente, desta conveniência de fundo - ou 'astúcia da razão' - operando com base nas propriedades comuns e se apresentando como noções comuns às mentes, há a imitação afetiva do desejo do outro. Por outras palavras, a conveniência, espécie de razão com 'r' minúsculo (em contraposição a uma razão do acordo pleno - o agir em plenitude em acordo com a razão, o que acarretaria o fim do desacordo entre os desejos (E IV P 35 Cor 1 p. 303)), faz que os homens imitem os afetos uns dos outros no sentido da esperança comum e da segurança comum. Isto é, a mesma esperança que um homem sente ao se unir a um segundo é sentida por este segundo, simultaneamente, e assim sucessivamente, de modo que se tem um comportamento em bloco fundado num mesmo afeto, como num jogo de espelhos em que o comportamento de um é o mesmo do outro em razão da imitação afetiva. O mesmo se processa quanto ao afeto segurança, ainda mais estável e objetivo último da cidade. Apenas assim se pode explicar como funciona o que Espinosa expôs na passagem citada, ou seja, “Se dois se põe de acordo e juntam forças [si duo simul conveniant et vires jungant (G III p.281)], juntos podem mais [...]; e quanto mais assim estreitarem relações, mais direito terão todos juntos.” (TP II 13 p. 18). O convir é sempre uma manifestação da razão, pois apenas pela razão os homens entram em acordo (E IV P 35 Cor 1 p. 303), ainda que por vias afetivas, pois o fundamento, aqui, é a emulação da esperança e da segurança do outro, uma forma, também, de conveniência. Conveniência talvez mais fraca do que se os homens se guiassem sempre pela razão, mas conveniência ainda assim. No texto latino, pela edição de Gebhardt, como se vê acima, há a ideia da simultaneidade e da conveniência (simul conveniant). O convir - esta 'astúcia da razão' ou razão de fundo - se dá pelo comum, pelo que une, ainda que por vias afetivas - e em geral por vias afetivas -, por uma espécie de regramento ou lógica que atravessa a natureza e a natureza humana. Uma conveniência, no sentido de uma lógica de operação da natureza mesma, que funda a imitação, via emulação, dos afetos esperança e segurança e, de outro lado, a emulação do medo da lei. Tais afetos, espelhados em múltiplos homens por emulação afetiva, levam ao comportamento que Espinosa designará pelo termo “[...] como que por uma só mente [una veluti mente ducuntur].” (TP II 16 p. 19). Não por acaso, portanto, escreve, no final do parágrafo 7 do capítulo III do Político, que “[...] esta união de ânimos [animorum unio G III p. 287] não pode de maneira alguma conceber-se, a não ser que a cidade se oriente maximamente [maxime intendat - G III p. 287] para o que a sã razão ensina ser útil a todos os homens.” (TP III 7 p. 29). Espinosa não estabelece, aqui, que a cidade é fundada na razão, mas aponta para a pertinência da hipótese da 'astúcia da razão' (como o que emana do comum) ao afirmar que a união de ânimos, típica da multidão, não teria sentido se a cidade não se orientasse - isto é, não fosse 'no sentido de' - para o útil ensinado pela razão. Há, portanto, uma conveniência ou razão de fundo que fundamenta a concórdia via afetos alegres, ou pela via de afetos tristes que possibilitam afetos alegres, como é o caso do medo civil da punição da lei que faz que haja um mínimo de obediência às leis editadas pelo poder soberano e assim se chegue a um afeto alegre estável, a saber, a segurança. A convenientia é, nesse caso, também uma astúcia da política. Isto é, apenas a política é capaz de transmutar o medo da lei, afeto triste, em securitas, afeto alegre.
Tese, portanto, diversa, em muitos aspectos, da hobbesiana, explicitando-se a distância entre ambas as filosofias políticas. Desenvolve-se, abaixo, brevemente, a concepção hobbesiana de multidão e sua relação com os conceitos de representação, transferência, pessoa natural e pessoa artificial. Tal movimento argumentativo destacará a inovação espinosana, no que tange ao conceito de multidão - atrelado, como visto, ao conceito de imitatio afetiva -, em face daquele elaborado por Hobbes5.
O capítulo 16 do Leviatã é o local em que Hobbes conceitua multidão6. Afirma que “Dado que a multidão naturalmente não é uma, mas muitos, eles não podem ser entendidos como um só, mas como muitos autores, [...]” (Leviatã I 16 p. 137). Como unir o múltiplo? A solução hobbesiana se distancia da espinosana. Com efeito, afirma Hobbes que (Leviatã I 16 p. 137) “Uma multidão de homens é transformada em uma pessoa quando é representada por um só homem ou pessoa [ou por uma assembleia de homens, como afirma em Leviatã II 17 p. 144], de maneira a que tal seja feito com o consentimento de cada um dos que constituem essa multidão.”
Como, entretanto, pode Hobbes afirmar que muitos passam a ser um? A sequência do texto esclarece (Leviatã I 16 p. 137): “Porque é a unidade do representante, e não a unidade do representado, que faz que a pessoa seja una. E é o representante o portador da pessoa, e só de uma pessoa. Esta é a única maneira como é possível entender a unidade de uma multidão.”
A tese da unidade da multiplicidade em Hobbes não passa pelos mecanismos afetivos, mas pelos conceitos de pessoa, representação e transferência. O problema, pois, é o de saber como o múltiplo se torna uno. Há, como afirmou Hobbes no excerto citado acima, unidade do representante. De fato, o representante, através do conceito de persona, age como se fosse o representado, como se fosse o autor. Age em seu lugar. O pacto, que faz que a multiplicidade de homens transfira seu direito natural a um homem - ou a uma assembleia de homens (Leviatã II 17 p. 144) - forma a persona fictícia, o ser artificial que, como representante, está presente em-lugar-de, e a multiplicidade, por esta ficção, se torna una, com uma vontade. Forma-se assim o Estado (commonwealth ou civitas)7. O autor afirma, com efeito (Leviatã I 16 p. 136), “[...] que poucas coisas são incapazes de serem representadas por ficção”. O sentido da palavra persona, Hobbes a retira dos gregos, significando o mesmo que rosto (prósopon), conforme disposto no Leviatã (Leviatã I 16 p. 135). E a pessoa é definida como (Leviatã I 16 p. 135) “[...] aquele cujas palavras ou ações são consideradas quer como suas próprias quer como representando as palavras ou ações de outro homem [...]”, sendo de dois tipos, ou natural, ou artificial e, neste último caso, quando se representa as ações ou palavras de outro (persona artificial). Quando, pois, os homens transferem seus respectivos direitos naturais ao um da assembleia ou de um homem, autorizam, pelo mecanismo da representação e pelo conceito de pessoa, todas as suas ações: (Leviatã II 17 p. 144) “Feito isto [afirma Hobbes], à multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado [commonwealth], em latim civitas”. O conceito de multidão em Hobbes encontra, desse modo, sua unidade em uma commonwealth por meio dos conceitos de transferência, representação e pessoa (LAZZERI, 1998, p. 282). Tese, portanto, que pouco se assemelha à espinosana.
Novamente a Espinosa. O que é, então, a multidão, a qual transfere potência ao poder soberano e lhe dá vida e potência? A multidão é a potência da multiplicidade dos desejos (sob a forma de esperanças e receios) articulados pelo que têm em comum, via emulação afetiva (AURÉLIO, 2000, p. 275). Os parágrafos 16 e 17 do capítulo II do Político articulam o conceito de multidão aos de poder soberano, direito civil e cidade como corpo inteiro do imperium. É o que se passa a analisar.
Após afirmar que o direito natural de cada um, no estado natural, é “[...] nulo e consiste mais numa opinião que numa realidade [...]” (TP II 15 p. 19), Espinosa afirma, no mesmo parágrafo, que (TP II 15 p. 19)
[...] o direito de natureza, que é próprio do gênero humano [jus naturae, quod humani generis proprium est], dificilmente pode conceber-se a não ser onde os homens têm direitos comuns e podem, juntos, reivindicar para si terras que podem habitar e cultivar, fortificar-se, repelir toda a força e viver segundo o parecer comum de todos eles.
Ou seja, o direito natural, tal qual Espinosa afirmara na Carta 50 a Jelles (Ep 50 p. 308-309), se mantém e é efetivo apenas no estado civil. Não há, com efeito, abolição do direito natural. Como isso ocorre?
No parágrafo 16, seguinte, Espinosa utiliza um termo que dá todo o tom do conceito de multidão e aproxima tal conceito das análises acima tecidas acerca da imitação afetiva. Afirma Espinosa que onde os homens têm direitos comuns “[...] e todos são conduzidos como que por uma só mente [una veluti mente ducuntur - G III p. 281] [...]” (TP II 16 p. 19), é correto afirmar que cada membro do corpo político tem tanto menos direito em face da potência dos demais membros do corpo político (TP II 16 p. 19). Claramente Espinosa afirma que onde há direitos comuns, o que existe é uma condução de corpos e mentes num mesmo sentido, o que, de acordo com o parágrafo 13 (TP II 13 p. 18), faz que haja aí uma potência comum de desejos. Tal condução, indicada pelo termo “como que por uma só mente”, se dá apenas em razão da emulação dos afetos alheios, o que redunda em blocos de mentes, em blocos de potência. Sendo assim, o homem enquanto indivíduo isolado, neste contexto de socialidade, tem menos direito que o bloco de indivíduos que se conduzem uns de acordo com os demais, pela mesma esperança e pelo mesmo receio. Por isso Espinosa afirma, no mesmo parágrafo, que este indivíduo, enquanto ente isolado em face dos demais, não tem direito para além da potência que o direito comum lhe concede. O direito comum enquadra o comportamento do membro que o contrapõe, aquele que quer subverter o comum. O jogo de espelhos da imitatio afetiva, aqui, tem papel de sustentar o direito comum depois de este ser imposto pelo soberano. Na esperança de ter segurança, todos se mantêm unidos quanto ao comum, manifesto no direito comum, espelhando-se uns nos outros por meio da emulação da esperança, da segurança e do medo da punição da lei comum, rechaçando o comportamento que não espelha a potência coletiva. Por isso o que há, neste parágrafo, quando do uso do termo “como que por uma só mente”, é a manifestação do plano afetivo próprio aos humanos fazendo que o maquinário político se sustente com a potência do que é comum a todos os membros do corpo político.
4. Multitudo e imperium: questão de potência
Na sequência do parágrafo 16, acima indicado (TP II 16 p. 19), Espinosa dá nome aos conceitos que utilizou, costurando-os entre si. Afirma:
Esse direito [jus] que se define pela potência da multidão [quod multitudinis potentia definitur] costuma chamar-se estado [imperium]. E detém-no absolutamente quem, por consenso comum [ex communi consensu], tem a incumbência da república, ou seja, de estatuir, interpretar e abolir direitos, fortificar as urbes, decidir sobre a guerra e a paz, etc.. (TP II 17 p. 20).
Eis uma importante passagem do Político que articula uma miríade de conceitos fundamentais para a compreensão da filosofia política de Espinosa.
O primeiro ponto de destaque, no excerto é a definição do direito pela potência da multidão. O imperium, na concepção espinosana, não vem de uma decisão racional dos homens em assembleia, não decorre de ensinamentos da razão, num sentido forte do termo - pois se todos os homens agissem pela razão, o que se teria é acordo certo, sem necessidade da política (E IV P 35 Cor 1 p. 303) -, mas decorre, afetivamente e por potência, do comum nos homens, dos homens em multidão. A potência da multidão opera pela lógica da emulação afetiva, isto é, blocos de desejos, e portanto de potências, que vão num sentido ou noutro por meio dos mesmos afetos - uma simultânea mistura de esperança do melhor e medo do pior, com vistas à segurança, afeto que, se espelhado em todos os membros da multidão entre si, dá estabilidade aos conatus individuais. A multidão é este espelhamento de todos em cada um e de afetos comuns em todos, um agir de mentes individuais e de corpos “como se fossem uma só mente”, ainda que isto tenha grande instabilidade caso se considerem médios e longos períodos de duração. O estado ou imperium - que tem a cidade como seu corpo (TP III 1 p. 25) - é, então, o direito definido, delimitado, alimentado, fundado pela multidão. Eis outro ponto de destaque, uma vez que a multidão é um conceito que pressupõe desejos comuns num mesmo sentido, ações de um bloco de mentes como se fossem uma só. Um terceiro ponto a se destacar no excerto é: quem detém absolutamente (absolute tenet) o direito de editar direitos, ou a potência de editar leis cujo fundamento mesmo é a potência da multidão, tem, de acordo com Espinosa, a incumbência da república. Quem tem esta incumbência? O poder soberano, que por consenso comum passa a ter tal função. Qual é esta função, esta incumbência? A de criar, interpretar e abolir direitos, fortificar a potência da urbe, ou seja, do espaço geográfico da cidade, decidir sobre a guerra com outras cidades ou sobre a paz, entre outras funções. Mas o passo fundamental do texto espinosano é precisamente o de mostrar o entrelaçamento entre os conceitos de direito, potência, multidão, imperium, consenso comum, república e cidade. E explicitar uma tensão entre dois polos. De um lado, a multidão, com seus desejos pulsando o comum e alimentando o poder soberano, aquele que, por consenso comum da mesma multidão, tem as funções da república. De outro, o poder soberano que faz as leis e as faz cumprir, mas sempre respeitando o que é comum e a natureza comum dos homens.
Da tensão entre estas duas esferas de potência, a fonte do direito do imperium, ou seja, a multitudo, e o poder soberano escolhido para levar à frente a república, o comum, advém a função da cidade, que é a de garantir o direito natural dos homens que nela vivem. Tal constatação impõe limites à tensão multidão versus soberano, uma vez que o soberano não pode elaborar leis que contrariem a potência da multidão que lhe dá, precisamente, a potência para existir. De fato, como afirma Espinosa, retomando o parágrafo 15 do capítulo II do Político, o direito do imperium ou dos poderes soberanos, “[...] não é senão o próprio direito de natureza [...].” (TP III 2 p. 25). Este direito se determina - eis o ponto chave - pela potência da multidão, não de cada um (TP III 2 p. 25). O conceito de imitatio logo aparece no momento em que Espinosa estabelece que a multidão se conduz “[...] como que por uma só mente [una veluti mente ducitur - G III p. 284] [...].” (TP III 2 p.25). Com efeito, para se conduzir como que por uma só mente, é preciso que o comportamento de cada membro do corpo da multidão seja a emulação do desejo do outro, simultaneamente, fazendo que haja ações num mesmo sentido, numa mesma direção.
5. Gêneros do estado civil e distribuição da potência
Até este momento do texto, a questão da relação entre os conceitos de potência da multidão, mimetismo afetivo, direito, imperium, consenso comum, poder soberano e república foi analisada. Resta, entretanto, analisar um ponto que resvala para uma questão clássica da filosofia política, a saber, a questão dos regimes políticos. Ou, para usar os termos de Espinosa, a questão dos gêneros de estado civil.
Novamente, em Espinosa, na medida em que todo o rol conceitual foi modificado, o que existe é, também neste ponto, o que se poderia chamar de uma reformulação conceitual. Esta reformulação, é claro, decorre dos conceitos acima analisados. Procurar-se-á, a seguir, articular os conceitos já vistos com a proposta espinosana para a questão dos modos pelos quais a potência da multidão se organiza em formas de estado civil e segundo quais critérios.
Espinosa afirma, como já analisado acima, que o direito definido pela potência da multidão costuma ser chamado de imperium (TP II 17 p. 20). Este ponto é retomado no capítulo 3 do Político para que a questão dos regimes seja colocada pela chave da distribuição da potência (BOVE, 2012, p. 17). Escreve Espinosa logo no início do referido capítulo (TP III 1 p. 25):
Diz-se civil a situação de qualquer estado [imperii cujuscunque status dicitur civilis G III 284]; mas ao corpo inteiro do estado [imperii] chama-se cidade, e aos assuntos comuns do estado [et communia imperii negotia G III 284], que dependem da direção de quem o detém, chama-se república. Depois, chamamos cidadãos aos homens na medida em que, pelo direito civil, gozam de todas as comodidades da cidade, e súditos na medida em que têm de submeter-se às instituições ou leis da cidade.
Os conceitos explicitados neste excerto foram analisados acima à luz da questão da imitação dos afetos, mostrando como a lógica do estar sui juris ou alterius juris tem estreita relação tanto com a lei do mal menor e do bem maior, quanto com a imitação da esperança e do temor alheios, pela via da emulação afetiva. O conceito de multidão demanda os conceitos de jus e de imitatio afetiva. Ocorre que tais conceitos deságuam nos gêneros de estado civil, passagem que vem logo a seguir à acima citada. Escreve Espinosa, após o excerto citado, agora derivando daqueles conceitos o dos gêneros de estado (TP III 1 p. 25):
Finalmente, dão-se três gêneros do estado civil [Denique status civilis tria dari genera G III p. 284], a saber, o democrático, o aristocrático e o monárquico [...]. Agora, antes de começar a tratar de cada um deles em separado, demonstrarei primeiro aquelas coisas que pertencem ao estado civil em geral, à cabeça das quais vem o direito soberano da cidade, ou dos poderes soberanos.
Espinosa dedicará, a seguir, alguns capítulos do Político à análise do estado monárquico, bem como outros à análise do estado aristocrático. Detalhará, igualmente, o modo de funcionamento de cada um desses gêneros de estado no sentido de mostrar como eles devem se constituir e se manter de maneira que sejam mais estáveis e garantam da melhor maneira o direito natural dos súditos. No mesmo sentido, detalhará as instituições aptas a cada um dos tipos de estado civil, e quais as que melhor operam, bem como a maneira de funcionamento de cada instituição em função do regime em que está em operação. Não se analisará o detalhamento das regras que Espinosa estabelece para que cada regime melhor funcione. Apenas no que se refere ao regime democrático será feita uma análise que tangenciará a questão das instituições. Isso porque interessa ao presente artigo, antes, mostrar como a questão da potência e dos afetos da multidão acaba sendo o que há de substrato ou fundamento para qualquer dos regimes. Este o ponto que será desdobrado a seguir.
À questão dos regimes, pois. O último capítulo do Tratado político, dedicado ao regime democrático, restou incompleto (reliqua desiderantur - o resto falta - G III p. 306; TP XI 4 p. 140). Espinosa faleceu antes de completá-lo. Entretanto, algumas considerações acerca desse tipo de estado poderão ajudar a esclarecer como a questão da distribuição da potência está na base dos raciocínios da filosofia política espinosana para a definição dos gêneros de estado civil.
Procurou-se mostrar, nos itens acima, que o poder do soberano - ou direito do imperium - é o direito de natureza expresso, ou seja, determinado, pela potência da multidão, conforme Espinosa indica no Político (TP III 2 p. 25). Ao fazê-lo, procurou-se explicitar a presença da lógica dos afetos, assim como de sua imitação, para a constituição da multitudo e para que esta transfira potência ao poder soberano e o mantenha, bem como, consequentemente, mantenha o imperium.
Porém, Espinosa fala, ainda assim, em gêneros do estado civil. O que os caracteriza e os define, dada a lógica afetiva e de potência na confecção do imperium? Espinosa indica três gêneros do estado civil: o democrático, o aristocrático e o monárquico (TP II 17 p. 20; TP III 1 p. 25). Afirma, também, que a potência da multidão, que define o direito, chama-se imperium (TP II 17 p. 20). Isto se dá pela lógica dos afetos, na hipótese deste artigo. Quem detém este direito por completo, absolutamente? Aquele que, por consenso comum (communi consensu G III p. 282), tem a incumbência da república (curam reipublicae ex communi consensu habet G III 282), que é a de estatuir, interpretar, abolir direitos, etc.. E o que define o tipo de estado? Espinosa afirma que é precisamente aquele ou o quê fica com a incumbência da república que define o tipo de imperium.
Se a incumbência da república pertencer a um conselho que é composto pela multidão comum (communi multitudine componitur G III p. 282), o estado é democrático. Se o conselho for composto por alguns eleitos, trata-se de aristocracia. Se o imperium, isto é, a incumbência da república, estiver nas mãos de um, o estado é monárquico. Portanto, ao que indicam os textos, os critérios dos tipos de estado civil em Espinosa apenas formalmente passam pela questão do número de governantes. Por outro lado, não se duvida que a questão do número dos que detêm o poder de dizer o direito importa. E o prova o fato de que Espinosa se refere aos números, à quantidade - todos, alguns, um - dos que têm a incumbência da república ao tratar dos gêneros de estado civil, como mostrado no Político (TP II 17 p. 20). Mas o que sustentará a potência do imperium não é o número dos que têm a incumbência da república, mas a potência da multidão. O que de fato sustentará a potência da cidade, por meio da potência da multidão, é o acesso dessa potência aos conselhos ou ao conselho supremo - no caso da existência de outros conselhos.
Assim, se todos têm acesso ao conselho, se todos podem vir a fazer parte dele (ou seja, os membros da multidão comum), tem-se por conseguinte a democracia. A democracia não parece ser, pois, o governo de todos simplesmente. Ela está mais próxima de ser, ao que indicam os textos, a possibilidade de todos virem a compor o conselho, segundo regras instituídas de acesso a este mesmo conselho. Em outras palavras, as regras de acesso ao conselho, num estado democrático, possibilitam que todos que compõem a multidão comum, segundo regras de idade ou pertencimento à cidade, venham a tomar parte dele e venham a exercer o poder soberano, que tem a incumbência da república. E a potência desse conselho será, assim, a expressão da potência da multidão comum.
No Teológico-político, Espinosa afirmara que o que caracteriza o regime democrático é a sociedade instituída sem contradição com o direito natural (TTP XVI p. 239). Ou seja, cada indivíduo deve “[...] transferir para a sociedade toda a sua própria potência, de forma que só aquela detenha, sobre tudo e todos, o supremo direito de natureza, isto é, a soberania suprema, à qual todos terão de obedecer, ou livremente, ou por receio da pena capital.” (TTP XVI pp. 239-240). E conclui: “O direito de uma sociedade assim chama-se Democracia, a qual, por isso mesmo, se define como a união de um conjunto de homens que detêm colegialmente o pleno direito a tudo que estiver em seu poder.” (TTP XVI p. 240). Mais à frente, Espinosa concluirá que a democracia é o regime mais natural, o que mais se aproxima da liberdade que a natureza reconhece a cada um (TTP XVI p. 242).
As instituições que seriam as mais adequadas a este tipo de estado civil certamente Espinosa desdobraria no Político, a obra inacabada. É o que indica o projeto apresentado na Ep.84, reproduzido pelos editores das OP (Opera Posthuma) como prefácio ao Político (TP Pref p. 3). Mas talvez algumas hipóteses possam ser levantadas a partir do que há no capítulo XI do TP. O que significa, pois, nesse sentido, dizer que o conselho é composto pela multidão comum? O que seria a democracia para o TP?
Inicialmente cabe afirmar que a hipótese deste artigo é a de que não há aqui contradição entre as teses do Teológico-político, em seu capítulo XVI, em momento acima citado, quando é tratada a democracia, e o Político. Quando Espinosa escreve, no Teológico-político, que a democracia é o regime o que mais se aproxima da liberdade que a natureza reconhece a cada um (TTP XVI p. 242), trata-se da natureza de conatus de cada homem como parte da natureza, como intensidade de potência, na natureza naturada, da sustância única. Ou seja, entende Espinosa, nesta passagem, cada homem como potência para perseverar no ser, tese decorrente da ontologia espinosana e de sua noção de substância como potência e dos homens como modos finitos de intensidade dessa mesma potência. E é claro que na democracia, na medida em que um maior número de homens detém colegialmente o direito a tudo (TTP XVI p. 240), um maior número será o responsável, como potência, pelas regras que todos deverão obedecer. Em uma palavra, o maior número poderá compor a instância instituidora do direito (das leis civis) que todos deverão obedecer. Nesse sentido a democracia, no Teológico-político, é definida como o regime mais natural. É uma questão de potência do maior número definindo quais serão as regras para todos. Daí que seja o regime que mais se aproxima do estado de natureza e do direito de natureza de cada homem. Não, entretanto, no sentido do direito natural como abstração (TP II 15 p. 19), mas no sentido de exercício da potência natural, via poder soberano, na medida em que o maior número pode ocupar tal poder e instituir as regras comuns - ter as incumbências da república. Assim se está mais próximo da natureza humana no sentido de que cada homem quer governar e não ser governado. Na democracia, esta máxima, decorrente da natureza humana - querer governar e não ser governado -, mais se aproxima de sua realização, pois o maior número decide as regras que serão aplicadas a todos.
No Tratado político talvez se tenha apenas maior clareza quando ao modo como isto se instrumenta no regime democrático. Que se trata de questão de potência da multidão na definição de qualquer regime uma passagem da análise espinosana da monarquia deixa claro. É a seguinte (TP VII 31 p. 85): “Concluímos, assim, que a multidão pode conservar sob um rei uma liberdade bastante ampla, desde que consiga que a potência do rei seja determinada somente pela potência da mesma multidão e mantida sob a guarda desta.” Mas a conclusão é ainda mais clara acerca do critério da potência da multidão como sendo o critério do regime do estado civil (TP VII 31 p. 85): “Foi esta a única regra que segui ao lançar os fundamentos do estado monárquico”.
De volta à democracia. Que se a analise sob a ótica do último capítulo do Tratado político. Ao que indicam os parágrafos restantes (quatro), são vários os gêneros possíveis de estado democrático, segundo Espinosa (TP XI 3 p. 138). Mas todos parecem passar pelo critério de que os membros da multidão comum, segundo regras aceitas por ela mesma, possam ou não participar do conselho supremo e ter acesso a cargos públicos na cidade. É o que diz Espinosa no parágrafo 1 do capítulo XI. De fato, afirma Espinosa, todos cujos pais sejam cidadãos, ou que tenham nascido no solo pátrio, ou que são beneméritos da república, ou aqueles a quem a lei, por outros motivos, manda atribuir o direito de cidade, poderão ter “[...] o direito de voto no conselho supremo e de aceder por direito a cargos de estado [...].” (TP XI 1 p. 137). Ou seja, ao que indica o texto, o critério inicial é o de poder votar no conselho supremo e o de poder ter acesso a cargos do imperium. A questão é quem pode ter acesso a estas ações e cargos. Como dissera o parágrafo 17 do capítulo II, a democracia se caracteriza por ter um conselho cuja composição é feita pela multidão comum. O capítulo XI apenas indica que as regras para que essa participação ocorra podem ser várias - ter pais cidadãos, nascer em solo pátrio, etc.. Em suma, o critério é institucional.
Mas a questão da potência logo aparece no texto no parágrafo 3 do capítulo XI. Espinosa lá escreve que não tratará de cada um dos gêneros, mas apenas daquele onde têm direito de voto e de aceder a cargos do imperium os que estão obrigados somente às leis da cidade e aqueles que estão sui juris. Ora, estar sui juris é o mesmo que ter direito e potência, não estar sob o poder de outrem. O primeiro critério mostra que se quer dar ao conselho potência de quem pertence ao imperium. Se ele é a potência da cidade, deve ter potência para fazer leis que tenham potência. Portanto, o conselho perderia em potência caso fosse formado por membros estrangeiros. Ainda, há outro critério: estar sui juris. Isto exclui, segundo Espinosa, mulheres e servos, que estão sob o direito dos homens e dos senhores, respectivamente.
Independentemente da questão polêmica da exclusão das mulheres8 da possibilidade de compor o conselho que definirá a potência da cidade, pois definirá suas leis, o que parece ser comum é a exclusão da possibilidade de participação daqueles que não podem levar potência ao conselho, o que poderia indicar diminuição da potência do conselho e, consequentemente, do poder soberano.
O ponto que interessa ressaltar neste item 5, na esteira do que vem sendo afirmado sobre a filosofia política de Espinosa até o momento, mas agora para tratar espinosanamente da questão dos tipos de estado civil, é que o critério definidor do tipo de estado civil, segundo Espinosa, se funda na ontologia, o que liga a política ao livro I da Ética. Tanto o estado monárquico quanto o estado democrático - as duas pontas da linha de distribuição da potência da multidão no conselho supremo - se fundam na potência de seus membros, isto é, dos componentes do conselho cujos membros têm a potência definida pela multitudo mesma. No regime monárquico, com efeito, Espinosa define como critério de seu bom funcionamento, de sua estabilidade, a potência do rei ser fundada e mantida pela potência da multidão (TP VI 31 p. 85). No estado civil democrático, no mesmo sentido, o critério para votar no conselho e aceder a cargos do imperium, ao menos segundo o Político de modo explícito (TP XI 3 pp. 138-139), passa pelo conceito de potência dos que serão membros. De fato, só pode votar e aceder a cargos públicos quem está sui juris - excluindo-se servos, filhos, pupilos e mulheres, todos sob o argumento de que não estariam sui juris. Ou seja, o critério é sempre o da potência, e assim os fios da ontologia da Ética I, dos afetos da Ética III e dos conceitos políticos do Teológico-político e do Político permanecem atados.
6. Conclusão
Pode-se concluir, a partir dos conceitos acima analisados, que Espinosa procura fundar o campo político, bem como explicar sua manutenção ao longo do tempo, por meio da articulação sui generis de alguns conceitos peculiares à sua obra, especialmente as três ora trabalhadas (Ética, TTP e TP). Tais conceitos, que articulados entre si solucionam o problema proposto segundo a hipótese lançada neste artigo, são os seguintes: afetos, imitação afetiva, direito como potência, multidão, tensão entre poder soberano e multidão, imperium, cidade.
A imitação afetiva faz que os desejos em dispersão se espelhem uns nos outros e formem desejos-em-conjunto, o que foi nomeado no artigo como blocos de mentes orientadas, levando à prática de ações neste ou naquele sentido.
Assim, a socialidade, em Espinosa, não se funda na racionalidade dos homens, ou melhor, no uso exclusivo da razão. Não há um cálculo eminentemente cognitivo para a criação de laços de cooperação entre os humanos, nem para a fundação da cidade por meio de um contrato resultante de vontades livres.
É a lei do bem maior entre dois bens e do mal menor entre dois males o critério da formação dos laços. E o fiel da balança é sempre a satisfação do desejo de cada homem, o exercício de sua potência de modo real. Fica então a pergunta: como orientar num sentido comum desejos dispersos? Uma razão de fundo, ou astúcia da razão (CHAUI, 2011, p. 182), é o que se manifesta entre os homens quando a esperança vence o medo - afetos, portanto - e a segurança vence o desespero. Com efeito, se todos os homens agissem com o uso exclusivo da razão, não haveria necessidade da política para forjar acordos, pois os homens já estariam em acordo pelo uso da razão (E IV P 37 Esc 2 p. 309 e P 35 Cor 1 p. 303). A astúcia da razão, uma razão com 'r' minúsculo, se apresenta, segundo a hipótese de Chaui (2011, p. 182), pela predominância de tais afetos alegres na cidade (esperança e principalmente sua fixação em forma de segurança). Isso é o que o desejo busca, e o faz por imitação afetiva, pois apenas assim o direito natural, como potência que é (jus sive potentia), poderá se realizar como algo efetivo, real, não como abstração (TP II 15 p. 19).
Ora, para que isso ocorra, como visto, é preciso que a dispersão de desejos, por meio da lei do bem maior e do mal menor, bem como da imitação dos afetos, venha a ser multidão, isto é, desejos alinhados no sentido do comum. Essa mesma multidão transfere potência (direito) ao poder soberano para que este dê à cidade e seus membros suas leis. Tais leis também se sustentam pela potência da multidão. Por isso as leis da cidade, criadas pelo poder soberano, devem forjar um imaginário nas mentes dos homens que seja de futuro-em-forma-de-esperança-e-segurança, ou seja, manifestações de afetos alegres. Caso as leis forjadas pelo soberano não sejam capazes de criar este imaginário nas mentes dos homens, elas perdem potência e a cidade pode se dissolver. A tensão positiva poder soberano versus multidão vem a ser, neste caso, conflito. Aí passam a existir desejos em confronto, direitos naturais em contraste. Portanto, potência em torno de um grau zero em cada homem, direitos naturais como abstração (TP II 15 p. 19), dispersão da cidade, fim da positividade da tensão multidão versus poder soberano e união, por meio do afeto indignação em face do soberano, da multidão, o que leva ao fim do corpo político. Trata-se, neste caso, da morte de um específico corpo político.
Portanto, a fundação e manutenção do campo político em Espinosa se dão ao longo do tempo, afetivamente, e não em um momento, por meio do uso da razão e da vontade livre.
Após o longo movimento argumentativo acima desenhado, nos itens 1 a 5, pode-se concluir, também, que Espinosa apresenta uma filosofia política que rompe tanto com a tradição filosófica de seu tempo quanto com a anterior. Mesmo para as análises contemporâneas, os conceitos espinosanos se apresentam muito inovadores. A inserção dos conceitos de afeto, imitação afetiva, direito como potência e multidão como fundadores e instituintes constantes do campo político (do poder do soberano e da cidade, corpo inteiro do imperium) leva, segundo Espinosa, à solução da questão do fundamento da cidade. Mas não apenas. Abre horizontes de alta voltagem conceitual para as discussões políticas e jurídicas contemporâneas. A análise das ideias lançadas neste último parágrafo fica, entretanto, para outra ocasião.
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1
As obras de Espinosa que serão mencionadas se encontram na edição crítica de Carl Gebhardt (ESPINOSA. Spinoza Opera. Ed. de Carl Gebhardt. Heidelberg: Carl Winter, 4 vols, 1972 [1ª ed. 1925]). Quando citada a edição de Gebhardt, citar-se-á: G, seguido do tomo em romano e da página em arábico. As traduções consultadas são as seguintes: ESPINOSA. Ética. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. ESPINOSA. Tratado Político. Tradução, introdução e notas de Diogo Pires Aurélio. São Paulo: M. Fontes, 2009. ESPINOSA. Tratado Teológico-político. Tradução, introdução e notas de Diogo Pires Aurélio. São Paulo: Martins Fontes, 2003. Para a E e o TP, usar-se-á a seguinte abreviação: para a Ética E, seguido da parte em romano, D para definições, Def af para definição dos afetos, A para axiomas, Dem para demonstrações, P para proposições, Cor para corolários, Ap para apêndices, L para lemas, Esc para escólios, Post para postulados, Explic para explicações. Um numeral arábico indicará o número de cada um desses itens. Após, a página em arábico. Para o TP, numeral romano indica o capítulo e numeral arábico indica o parágrafo. Após, a página em arábico. Para o TTP, numeral romano indica o capítulo. Após, a página em arábico. Assim se procede para facilitar a consulta a qualquer edição das obras de Espinosa, mesmo que seja à custa do não cumprimento estrito das regras de citação da ABNT.
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2
O termo multidão, sob suas várias formas na sintaxe latina (multitudo, multitudinem, multitudinis, etc.), aparece 69 vezes no Político. A pesquisa foi feita na edição de Gebhardt, versão eletrônica - ver referências bibliográficas, ao final.
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3
Sobre a inexistência do conceito na Ética, afirma Aurélio o que segue: (AURÉLIO, 2009, p. VII-LXVII) "A multidão é uma palavra que irrompe (...) nas páginas do TP. Até aí, ela comparecera, por junto, somente umas 14 vezes sob a pena de Espinosa, estando, inclusive, completamente ausente da Ética. Pelo contrário, no último tratado, que é um dos mais breves textos do autor, a palavra encontra-se algumas dezenas de vezes" (p. XXIV). Complementando a informação de Aurélio, 69 vezes no TP, como afirmado na nota acima.
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4
O imperium é conceito comumente traduzido por Estado ou estado. Optou-se por manter o termo em latim, pois se trata de algo diverso do conceito de estado. Para dizer de modo simples e direto: trata-se do direito definido pela potência da multidão (TP II 17 p. 20). A cidade, por sua vez, pode ser definida como corpo inteiro do imperium (TP III 1 p. 25). Esse ponto poderia ser objeto de artigo à parte.
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5
Para as obras de Hobbes, The English Works of Thomas Hobbes. Edição de W. Molesworth, indicada na Referência Bibliográfica, ao final. Utilizou-se também, para fins de cotejamento de passagens, no que se refere ao Leviatã, as edições de Gaskin (Oxford University Press) e de R. Tuck (Cambridge University Press), indicadas na Referência Bibliográfica, ao final. No que se refere ao Leviatã, Parte em Romano e capítulo em Arábico (da edição de Os Pensadores, que foi utilizada e cotejada com as acima citadas). Para Do Cidadão, capítulo em Romano, parágrafo em arábico, da edição de Howard Warrender, citada na Referência Bibliográfica, ao final. Para Os Elementos da Lei Natural e Política , Parte em Romano, capítulo em Romano, parágrafo em arábico, ed. da Ícone editora, com tradução de Fernando Dias Andrade, citada na Referência Bibliográfica, ao final. Exemplo: Leviatã I 6 p. 63. Do Cidadão I 2 p. 42. Elementos I VII 2 p. 48.
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6
Hobbes define, igualmente, multidão como multiplicidade de vontades de pessoas naturais em Do Cidadão VI 1 p. 91. Também define multidão, diferenciando-a de povo (este entendido como unidade na e pela persona artificial), em: Do Cidadão XII 8 pp. 151-152.
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7
No texto original, editado por Gaskin, Leviatã II 17 p. 114.
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8
Pode-se entender que a questão das mulheres na democracia está posta muito laconicamente no capítulo XI do Político. Isso porque Espinosa, provavelmente, não teve tempo de desdobrar a questão em itens subsequentes, uma vez que faleceu antes de completar o texto do Político. Numa leitura literal, sem refinamentos e cotejo com as demais obras, Espinosa parece realmente excluir, por natureza, as mulheres do governo democrático. Mas esta afirmação coloca o Espinosa do final do Político em contradição com o Espinosa da Ética e do Teológico-político. Parece que a tese da exclusão pura e simples das mulheres realmente não se coaduna com o restante da obra do autor. Para um estudo clássico acerca do tema, ver MATHERON, 2011, p. 287-304.
Referências bibliográficas
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- BOVE, Laurent. La stratégie du conatus. Paris: J. Vrin, 2012.
- CAMPOS, André Santos. Ius sive potentia. Individuação jurídico-política na filosofia de Spinoza. Tese (doutorado). Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Lisboa, 2008.
- CHAUI, M. “Medo e esperança, guerra e paz”. In: Desejo, paixão e ação na Ética de Espinosa. São Paulo: Cia das Letras, 2011, pp. 173-191.
- _______. Seminário Tratado político X e XI. Reunião do Grupo de Estudos Espinosanos na FFLCH USP. São Paulo, 25 de junho de 2013 (mimeo).
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- _______. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado Eclesiástico e Civil. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Abril Cultural, 1997 (Coleção Os Pensadores).
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- LAZZERI, Christian. Droit, pouvoir et liberté: Spinoza critique de Hobbes. Paris: PUF, 1998.
- MATHERON, Alexandre. “Femmes et serviteurs dans La démocratie spinoziste”. In: _______. Études sur Spinoza et lês philosophies de l'âge classique. Lyon: ENS Éditions, 2011, pp. 287-304.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Jul 2017
Histórico
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Recebido
21 Jul 2016 -
Aceito
17 Out 2016