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“Mais Marx, menos Mises”: uma leitura crítica da chamada nova direita

ROCHA, Camila. Menos Marx, mais Mises: o liberalismo e a nova direita no Brasil. São Paulo: Todavia, 2021

Com o mote fartamente explorado nas redes sociais - menos Marx, mais Mises -, Camila Rocha chama a atenção dos interessados por Política para a leitura de seu livro por usá-lo no título, qual seja, “Menos Marx, mais Mises: o liberalismo e a nova direita no Brasil”. Lançado em 2021 pela Editora Todavia, a obra traz a público o resultado de sua pesquisa de doutoramento no qual a autora se propôs a apresentar as origens da nova direita a partir da reunião de dados coletados por cinco anos, com destaque às entrevistas com militantes declaradamente de direita.

Escrito em primeira pessoa, o livro reconta seu percurso de pesquisa, seus achados e suas percepções sobre os muitos atores (e poucas atrizes) do cenário político brasileiro que foi sendo tomado na última década pela direita. Declarando-se ideologicamente orientada à esquerda, ela fez um “mergulho etnográfico na nova direita” (ROCHA, 2021ROCHA, Camila. Menos Marx, mais Mises: o liberalismo e a nova direita no Brasil. São Paulo: Todavia, 2021., p. 15) e destacou que sua intenção para a realização da pesquisa foi “apontar para a relevância da atuação de uma militância organizada em diversos grupos políticos e entidades civis no processo que culminou na formação de um amálgama ideológico inédito no Brasil: o ultraliberalismo-conservador” (ROCHA, 2021, p. 175, grifo nosso).

Com uma escrita qualificada e envolvente, a autora parte dos documentos históricos do Instituto Liberal por ser considerado “o think tank voltado para a difusão do ideário pró-mercado mais antigo do Brasil” (ROCHA, 2021ROCHA, Camila. Menos Marx, mais Mises: o liberalismo e a nova direita no Brasil. São Paulo: Todavia, 2021., p. 12), fundado pelo empresário canadense, Donald Stewart.

Tendo como perspectiva a Constituição da República de 1988 e considerando-a “um pacto democrático progressista” (ROCHA, 2021ROCHA, Camila. Menos Marx, mais Mises: o liberalismo e a nova direita no Brasil. São Paulo: Todavia, 2021., p. 17), a autora qualifica a direita como nova por entender que os polos direita e esquerda atuantes no período de redemocratização1 1 Para esse período histórico, a autora assume as considerações de Sérgio Abranches no sentido de que a política se organiza em “um arranjo de governabilidade específico que prevê a necessidade de governar a partir da manutenção de grandes coalizações políticas, o chamado ‘presidencialismo de coalizão’” (ROCHA, 2021, p. 18). foram impactados por acontecimentos políticos, como a Operação Lava Jato e o surgimento de grupos não necessariamente vinculados a partidos políticos.

A Constituição de 1988, ao ampliar direitos, diz a autora, abriu espaço para o tensionamento entre os grandes grupos políticos - esquerda e direita - uns pleiteando a sua realização - os chamados progressistas de esquerda - outros exigindo redução das políticas públicas - os chamados liberais2 2 A autora faz uma classificação sobre a direita, indicando pontos concordantes e dissonantes entre as muitas vertentes e as resume em: neoliberais, os adeptos da obra de Hayek, os ultraliberais, os anarcocapitalistas (ROCHA, 2012, p. 26) e os pró-mercado, quando menciona, de maneira geral, atores que influenciaram a recepção do neoliberalismo no Brasil. Ela identifica que foi Adolpho Lindenberg, primo e discípulo de Plinio Correa de Oliveira da Tradição, Família e Propriedade (TFP), por ter incentivado a tradução de “O caminho da servidão” de Hayek, em 1946, quem abriu as portas para a chegada do neoliberalismo no Brasil. Além dele, a autora reconhece outros intelectuais e empresários como porta-vozes dessa corrente teórica, tais como: Eugênio Gudin, que participou da nona reunião da Sociedade Mont Pèlerin, Paulo Ayres Filho, fundador de Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), Miguel Reale, professor da Faculdade de Direito da USP e ligado à Sociedade Convívio de cunho católico, e Henry Maksoud, precursor da divulgação de ideias neoliberais para além dos circuitos fechados. . A direita, até então muito associada aos militares, sofreu um refluxo com a redemocratização e precisou dar alguns passos atrás para não ser constantemente chamada de autoritária. Ela destaca que para manter certo afastamento do longo período de ditadura empresarial-militar3 3 A autora usa a expressão ditadura para referir-se ao período 1964-1985. No entanto, dada a articulação entre militares e civis para a destituição de governo legitimamente eleito e a instauração de medidas que favoreceram as frações burguesas nacionais e internacionais, convém nomeá-la de ditadura empresarial-militar (MELO, 2012). , tanto políticos de direita como seus ideólogos e simpatizantes passaram a se autonomearem como de “centro”.

Para ela, é nos estertores do regime empresarial-militar, que institutos com inclinação à direita são fundados: o Instituto Liberal é fundado no Rio de Janeiro, em 1983, e o Instituto de Estudos Empresariais (IEE), no ano seguinte, pelos irmãos William e Winston Ling4 4 Responsável por apresentar Paulo Guedes a Jair Bolsonaro. , no Rio Grande do Sul. Ou seja, enquanto o Brasil se redemocratizava o liberalismo ia sendo retirado do armário, tomando a forma neoliberal e expandindo a atuação de seus think tanks, a ponto de, em 1993, a reunião da Sociedade Mont Pèlerin acontecer no Rio de Janeiro.5 5 É interessante o quanto a atuação desses institutos vai se espraiando e formando outros grupos. A autora traz, como exemplo, o financiamento por parte do Instituto Liberal de São Paulo dos gibis da Turma da Mônica com temas sobre cidadania e uma parceria entre Instituto Atlântico, outro think tank pró-mercado, e a Força Sindical com a distribuição de cartilhas ilustradas por Ziraldo, nas quais temas como privatização da Previdência eram tratados (ROCHA, 2021). Vê-se, desse modo, que a autora parte do Instituto Liberal, no Rio de Janeiro, mas consegue mapear os vasos comunicantes entre os institutos e atores voltados para a defesa do liberalismo e do livre mercado no Brasil.

A ascensão do Partido dos Trabalhadores (PT) ao governo federal, partido historicamente associado à esquerda, fez com que os liberais voltassem à cena. Aqui cabe um adendo crítico importante: apesar de a obra analisada dar sinais de que algumas políticas públicas dos governos petistas possuem vieses neoliberais, a autora mantém a associação do partido com a esquerda. Seria, então, um neoliberalismo progressista?6 6 Cabe mencionar que Hayek, um dos fundadores do neoliberalismo, defende renda mínima aos menos favorecidos. Sobre neoliberalismo e política social, especificamente, o Programa Bolsa Família, cf. Faleiros e Pilão (2019).

A autora identifica que foi ainda durante o primeiro mandato do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, em razão da Ação Penal 470, conhecida como Mensalão, que a direita deixou de se retrair e passou a se posicionar publicamente como tal. Por exemplo, em 2006, o surgimento do Movimento Endireita Brasil, liderado por Ricardo Salles, que foi Secretário de Meio Ambiente (2016-2017) do então governador paulista, Geraldo Alckmin, e Ministro do Meio Ambiente (2019-2021), no governo de Jair Bolsonaro.

A autora destaca, ainda, que no decorrer da primeira década do século XXI, a figura de Olavo de Carvalho foi se tornando cada vez mais pronunciada a ponto de vender milhares de livros e cursos e passando à referência teórica de diversos grupos de direita. Tudo isso, com o impulso veloz do incremento da tecnologia e o aumento do uso das redes sociais que, a seu ver, passou a interferir na dinâmica da organização desses institutos e think tanks, pois, de uma organização centralizadora no modo de agir, aqueles que se colocam pró-mercado passam a se organizar descentralizadamente, usando a comunicação virtual para divulgação e angariação de recursos, materiais e humanos.

A eleição de Dilma Rousseff, a constituição da Comissão Nacional da Verdade e as jornadas de junho de 2013 foram pontos fundamentais para a sedimentação e robustecimento da chamada nova direita. Os discursos pró-mercado presentes nas ruas convergiram, se amalgamaram fortemente e fizeram tanto barulho que os pleitos progressistas tiveram dificuldade em serem ouvidos.

Jair Bolsonaro e seus filhos passam a ser mais conhecidos e a falar abertamente sobre suas agendas, destacadamente sobre a política de choque, ou seja, como lembrado pela autora, Flávio Bolsonaro entende que é necessário “criar fato, chamar a atenção, chocar sobre determinados assuntos para que isso tenha espaço na imprensa e a população como um todo tenha acesso a essa discussão” (ROCHA, 2021ROCHA, Camila. Menos Marx, mais Mises: o liberalismo e a nova direita no Brasil. São Paulo: Todavia, 2021., p. 135). Vê-se que, a observação da autora é bastante pertinente, pois, desde então, a família Bolsonaro vem, diuturnamente, pautando os meios de comunicação e a oposição, a reboque, responde reagindo, não agindo. Existe uma lógica militar nessa postura da família Bolsonaro e de seus apoiadores não explorada neste livro que, ao contrário, é muito bem trabalhada por Piero Leirner (2020LEIRNER, Piero de Camargo. O Brasil no espectro de uma guerra híbrida: militares, operações psicológicas e Política em uma perspectiva etnográfica. 1. ed. São Paulo: Alameda, 2020.).

A reeleição de Dilma Rousseff esquentou os ânimos, tanto nas ruas quanto nas redes sociais, e nomes como Carla Zambelli (NasRuas), Marcello Reis (Revoltados Online), Paulo Batista (Raio Privatizador), Rogério Chequer e Colin Buterfield (Movimento Vem pra Rua) e claro, o Movimento Brasil Livre (MBL), que catapultou várias figuras para a política nacional como Fábio Ostermann, Kim Kataguiri e Arthur do Val, passaram a ser nacionalmente conhecidos, agindo por meio das redes sociais e organizando manifestações presenciais e on-line. Esses atores passam a autointitularem-se defensores do povo ou participantes de um genuíno movimento popular, o que daria a entender que as ruas foram invadidas espontaneamente pelos cidadãos e cidadãs em defesa dos interesses da sociedade civil.

Mesmo com divergências importantes entre esses grupos, a autora defende que é dessa conjuntura que a nova direita se difundiu no cenário político, levando Jair Bolsonaro, Wilson Witzel (RJ) e Romeu Zema (MG) a serem eleitos, mesmo nunca tendo ocupado cargo no Poder Executivo. A esses especificamente nomeados pela autora, acresce-se os inúmeros parlamentares (deputados estaduais e federais assim como vereadores e prefeitos no processo eleitoral de 2020) que carregam patentes militares e/ou religiosas. A aposta dela é que a Constituição de 1988 - como marco de redemocratização - abriu espaços “para manifestações de atores políticos marginais dos mais diversos, incluindo grupos de direita” (ROCHA, 2021ROCHA, Camila. Menos Marx, mais Mises: o liberalismo e a nova direita no Brasil. São Paulo: Todavia, 2021., p. 176, grifo nosso).

Assumindo o caráter marginal e espontâneo dos indivíduos para organizar os movimentos sociais, a autora finaliza com a indagação - “por que ultraliberais e conservadores que se declararam a favor dos princípios republicanos e democráticos apoiaram Bolsonaro?” (ROCHA, 2021ROCHA, Camila. Menos Marx, mais Mises: o liberalismo e a nova direita no Brasil. São Paulo: Todavia, 2021., p. 177) -, abrindo espaço para alguns apontamentos necessários.

Convém iniciar com o referencial do livro, ou o que parecer ser, ao menos. Ainda que a autora aborde as instituições, ela trata fundamentalmente de indivíduos, não sendo possível falar que trabalha com sujeitos históricos ou classes sociais. Por ser centrado no indivíduo, dá a entender que a autora tem uma perspectiva liberal de análise, o que, em si, não é demérito.

Dito isso, cabe indicar um outro ponto: em vista da perspectiva liberal, a autora não traz determinantes fundamentais para a análise da política brasileira. Fica ausente da obra a inserção do Brasil no sistema capitalista; estão fora as determinações econômicas, tanto universal quanto as particulares da sociedade brasileira.

O Brasil é uma formação socioeconômica articulada a outras formações socioeconômicas, está umbilicalmente relacionado ao modo de organização do trabalho, internacionalmente considerado. É um país que ocupa posição de destaque entre as quinze maiores economias do mundo na mesma medida em que se alastra a desigualdade socioeconômica. Existe um processo de conformação das relações sociais que articula economia e política e que leva ao surgimento da chamada nova direita descrita no livro e à eleição de determinadas figuras vinculadas à extrema-direita, como Jair Bolsonaro. Esse processo de múltiplas determinações não está presente na obra sob comento.

Sob a perspectiva liberal, a autora crê e quer nos fazer crer na espontaneidade dos personagens, em suas movimentações políticas, em suas participações na organização das manifestações e na mudança de rota da política nacional que ela nomeia de nova direita.

Está no livro a reconstrução histórica da origem do Instituto Liberal do Rio de Janeiro que foi fundado e mantido por um canadense com forte networking em outros países. Está no livro a relação de intelectuais com a Sociedade Mont Pèlerin que, sabidamente, está vinculada com políticos dos países centrais. É conhecida a política intervencionista estadunidense na América Latina e, no caso do Brasil, vale rememorar a criação do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) e do Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) (ALBERTI, 2020ALBERTI, Raphael. Um espião silenciado: a queda de um agente duplo da sacada de seu apartamento e a atuação de organizações anticomunistas no pré-1964. Recife: CEPE, 2020.). Não há espontaneidade; mas estratégia bem articulada. Ademais, Leirner (2020LEIRNER, Piero de Camargo. O Brasil no espectro de uma guerra híbrida: militares, operações psicológicas e Política em uma perspectiva etnográfica. 1. ed. São Paulo: Alameda, 2020.) demonstra a influência no Brasil dos Estados Unidos a partir de meados dos anos 2000, principalmente, após a Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (MINUSTAH). Diante disso, pergunta-se: seria mesmo espontâneo esse movimento da velha/nova direita?

A República foi erigida pelas mãos dos militares que se mantiveram, a depender do momento histórico, mais ou menos protagonistas; nunca saíram de cena (MORAES, COSTA, OLIVEIRA, 1987MORAES, João Quartim de. COSTA, Wilma Peres. OLIVEIRA, Eliézer Rizzo de. A tutela militar. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987.; COSTA, 1996; FERRAZ, 1998FERRAZ, Francisco César Alves. Relações entre civis e militares no Brasil: um esboço histórico. Revista História & Ensino. Londrina, v. 4, p. 115-137. 1998. Disponível em: https://www.uel.br/revistas/uel/index.php/histensino/article/view/12500. Acesso em: 010 jul.2021.
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; FERNANDES, 1976FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976.) e retirá-los da análise aproxima a obra da vertente teórica liberal. Leirner (2020LEIRNER, Piero de Camargo. O Brasil no espectro de uma guerra híbrida: militares, operações psicológicas e Política em uma perspectiva etnográfica. 1. ed. São Paulo: Alameda, 2020.) mostra a profunda articulação dos militares com os Forças Armadas dos Estados Unidos, o projeto de refundar o Estado brasileiro, destruindo o projeto social-democrata da Constituição de 1988 e o quanto a eleição de Jair Bolsonaro foi forjada dentro das Forças Armadas brasileiras. Essa observação é importante, nesta oportunidade, porque Leirner (2020) articula parte da constituição estrutural da sociedade brasileira - os militares - com a política nacional. A ausência dessa mediação na obra analisada permite que a conclusão da autora seja no sentido da existência de uma nova direita, a partir de movimento espontâneos. Esse é um dos pontos problemáticos de seu trabalho, pois a chamada nova direita está intimamente relacionada a velhos atores, antigas instituições e, claro, à burguesia autocrática brasileira.

Sob a perspectiva da Constituição de 1988, seria progressista7 7 É digno de nota a observação de Mészáros (2004) ao consultar o processador de texto “WordStar”. Nele o autor húngaro encontra alguns sinônimos para o verbete liberal, quais sejam: tolerante, pródigo, excessivo, profuso e, veja só, progressista. Sendo sinônimos, progressistas e liberais, pode-se afirmar que a nova direita estudada na obra “Menos Marx, mais Mises...” pertence ao mesmo campo dos progressistas. o grupo que a defende e sustenta a sua plena realização; enquanto a nova (velha) direita seria o grupo que se contrapõe a ela e almeja a redução de direitos. Independentemente de qual lado, vê-se que a autora tem como medida o tanto de direitos a ser defendido, a dimensão de direitos positivados inseridos no ordenamento jurídico. De qualquer maneira, mais ou menos direitos, é o Estado quem medeia as relações e esta instituição é a forma política do capital (MASCARO, 2013MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013.).

O campo progressista está em defesa dos direitos, e, como reforça Alysson Mascaro, é um campo “que vê nas instituições a salvaguarda das relações sociais e, fundamentalmente, a salvaguarda do capital” (MASCARO, 2002MASCARO, Alysson Leandro. Nos extremos do Direito: novas obras sobre Schmitt e Pachukanis. Revista Lua Nova. N. 57. 2002. p. 135-141. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ln/a/P9PyDv9PHTbQCKZKjmDTDCh/?lang=pt&format=html. Acesso em: 20 jul.2022.
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, p. 135). Mesmo a radicalidade à direita dos sujeitos pertencentes ao espectro nova direita também não prescindem do Estado; ao invés, exigem mais Estado para repressão e para regulação de seus interesses e dos de seus financiadores. É, na verdade, o Estado mediando a luta de classes: qual a medida de proteção social que o capital será capaz de oferecer aos trabalhadores por meio do Estado? Essa resposta depende da análise da particularidade de cada formação social bem como do momento histórico do sistema capitalista e, fundamentalmente, de suas crises.

Daí, mais uma vez, a ausência de outras determinações na obra analisada dá espaço para o resultado da pesquisa apresentado - a consideração do surgimento de uma nova direita -, pois deixa de fora outras referências teóricas mais à esquerda como o próprio referenciado no título do livro, Karl Marx, que daria a noção de totalidade necessária para compreensão do objeto da autora. Nas palavras de Marx:

na produção social da própria vida, os homens contraem relações determinadas, necessárias e independentes de sua vontade, relações de produção estas que correspondem a uma etapa determinada do desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. A totalidade dessas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual levanta uma superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem formas sociais determinadas da consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo em geral da vida social, político e espiritual. (MARX, 1982MARX, Karl. Para uma crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, 1982., p. 25).

É da articulação das determinações que se alcança a análise de determinado objeto, é considerando as estruturas de uma dada sociedade que a apreende e é nesse e desse processo que se pode afirmar que algo é novo ou está superado8 8 István Mészáros tratando da modernidade, entende que há suposta superação naquilo que se trata como pós-modernidade e destaca que a agudização das contradições do mundo social leva alguns pensadores a se colocar numa interminável sucessão de “construções ideológicas que metamorfoseiam verbalmente, sob um novo e dessocializado rótulo começando como ‘pós-’ [...] tão logo sua versão anterior tenha perdido a credibilidade” (MÉSZÁROS, 2004, p. 72). Dito de outra forma, tão logo sua versão anterior tenha evidenciado as contradições e as determinações de dada sociedade capitalista acresce-se ‘pós’ ou ‘neo’ sem que de fato as estruturas anteriores tenha sido superadas. Enquanto estiver presente um modo de produção, suas determinações estarão presentes e, assim, no caso do capitalismo a determinação em última instância ainda é a contradição capital e trabalho. . O que, talvez, possa ser considerado novo na sociedade brasileira é a agudização da exploração do trabalho e o desmonte dos direitos sociais (como obrigação do Estado em relação aos cidadãos) elencados na Constituição da República, mas os sujeitos que mantém esse estado de coisas são os mesmos: as frações da burguesia nacional em articulação com as frações das burguesias internacionais, destacadamente, dos países centrais associadas as demais instituições, como as Forças Armadas.

A horizontalidade e a suposta espontaneidade, na verdade, escamoteia a centralização da organização dos institutos liberais. Por exemplo, vale citar o papel das grandes empresas de comunicação articuladas aos militares e aos grupos políticos de direita contra o avanço de direitos sociais. Não há novo enquanto houver o mesmo modo de produção e de reprodução; haverá, apenas, o velho repaginado com, no máximo, vestes atualizadas.

Sobre Brasil, especificamente sobre a recepção do ideário liberal, Florestan Fernandes diz que “o liberalismo possui nítido caráter instrumental” (1976FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976., p. 35), pois existe a continuidade - na descontinuidade - de práticas políticas e econômicas tradicionais patrimonialistas numa conjunção entre arcaico e moderno bastante particular. Ainda que o Brasil tenha vencido o estatuto colonial bem como escravocrata, essa superação é formal, ou seja, o seu substrato material, social e moral perpetua-se e serve de alicerce para construção da sociedade nacional.

É da estrutura da formação social e econômica brasileira um liberalismo formal fincado no conservadorismo e na tradição, o velho permanece no novo numa continuidade descontínua. Ademais, as Forças Armadas são coautoras desse processo tendo passado, ao longo do século XX, por um fortalecimento organizacional e político que as fez “sustentáculo e ponto de coesão do sistema político” (FERRAZ, 1998FERRAZ, Francisco César Alves. Relações entre civis e militares no Brasil: um esboço histórico. Revista História & Ensino. Londrina, v. 4, p. 115-137. 1998. Disponível em: https://www.uel.br/revistas/uel/index.php/histensino/article/view/12500. Acesso em: 010 jul.2021.
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, p. 121).

O que se vê, na década de 2010, é aquilo que Florestan Fernandes nomeou de contrarrevolução permanente e preventiva que pode se dar “a quente” ou “a frio”, ou seja, em alguns momentos dependendo da conjuntura política e econômica, até admite-se governos progressistas com ampliação de direitos à classe trabalhadora, mas desde que a superexploração do trabalho e sua sobreapropriação - a dependência em todos os níveis - se mantenham. A contrarrevolução preventiva não é somente o avesso da revolução, é aquilo que a obstaculiza e, no caso do Brasil, preserva intacta a estrutura da dominação burguesa autocrática.

A compreensão de que a Constituição cidadã estabelece um novo modo de organizar a economia e a política brasileiras fica em xeque, pois, o que de fato ocorreu foi uma transição transada (FERNANDES, 2010FERNANDES, Florestan. Circuito Fechado: quatro ensaios sobre o poder institucional. São Paulo: Globo, 2010.) com a inserção do dúbio art. 1429 9 “Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.” . É o que se pode nominar de continuidade descontínua, da existência do velho no novo ou, ainda, da permanência nas impermanências institucionais e políticas brasileiras.

A Operação Lava Jato e o surgimento de movimentos sociais à direita como o MBL demonstram a relação entre indivíduos situados socialmente - magistrados, procuradores, estudantes e profissionais liberais - articulados com militares e/ou empresas nacionais e/ou internacionais (LEIRNER, 2020LEIRNER, Piero de Camargo. O Brasil no espectro de uma guerra híbrida: militares, operações psicológicas e Política em uma perspectiva etnográfica. 1. ed. São Paulo: Alameda, 2020.; AGÊNCIA PÚBLICA, 2015).

Rodrigo Castelo, tratando do novo desenvolvimentismo, se apropria de termo cunhado por György Lukács - decadência ideológica - para demonstrar que o “caráter vulgar [...] do liberalismo residiu precisamente no ocultamento das contradições provenientes da esfera de produção, limitando-se ao estudo no nível das aparências” (CASTELO, 2012, p. 618). Tratar do tema da direita brasileira, escamoteando as contradições sociais e históricas é abandonar o debate sobre Brasil e a aclimatação do ideário liberal no processo de consolidação do capitalismo dependente brasileiro. Desse modo, é com mais Marx e menos Mises que se apreende e explica a sociedade de brasileira.

As transformações das últimas décadas, principalmente, no incremento do uso das tecnologias não significam que há uma nova direita e, desse modo, apesar de o livro sob comento ser bem escrito, articulado e os institutos liberais constituírem interessante objeto fenomênico, a fragmentação liberal presente na análise afasta o leitor de uma compreensão estrutural, coesa e profunda de Brasil.

Referências

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  • ALBERTI, Raphael. Um espião silenciado: a queda de um agente duplo da sacada de seu apartamento e a atuação de organizações anticomunistas no pré-1964. Recife: CEPE, 2020.
  • CASTELO, Rodrigo. O novo desenvolvimentismo e a decadência ideológica do pensamento econômico brasileiro. Serviço Social & Sociedade, São Paulo, v. 112, p.613-636, 2012a. Bimestral. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-66282012000400002 Acesso em: 31 ago. 2017.
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  • COSTA, Wilma Peres. El estado brasileño en el siglo XIX y la “cuestión platina”. Ciclos en la historia, la economía y la sociedad. Buenos Aires/Argentina. V. 6. p. 65-84, 1996. Disponível em: http://bibliotecadigital.econ.uba.ar/download/ciclos/ciclos_v6_n11_03.pdf Acesso em: 20 fev.2021.
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  • FALEIROS, Juliana Leme. PILÃO, Valéria. Programa Bolsa Família: reflexões acerca de suas condicionalidades e o neoliberalismo. In: Valéria Pilão; Cleci Elisa Albiero; Rui Valese; Dorival da Costa. (Org.). Políticas sociais e formação profissional: debates e críticas. 1ed. São Paulo: Fontenelle, 2019, p. 184-201.
  • FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976.
  • FERNANDES, Florestan. Circuito Fechado: quatro ensaios sobre o poder institucional. São Paulo: Globo, 2010.
  • FERRAZ, Francisco César Alves. Relações entre civis e militares no Brasil: um esboço histórico. Revista História & Ensino. Londrina, v. 4, p. 115-137. 1998. Disponível em: https://www.uel.br/revistas/uel/index.php/histensino/article/view/12500 Acesso em: 010 jul.2021.
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  • MELO, Demian Bezerra de. Ditadura civil-militar”?: controvérsias historiográficas sobre o processo político brasileiro no pós-1964 e os desafios do tempo presente. Espaço Plural, Cascavel, v. 13, n. 27, p. 39-53, 2012. Disponível em: http://e-revista.unioeste.br/index.php/espacoplural/article/view/8574/6324 Acesso em: 05 abr. 2020.
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    Para esse período histórico, a autora assume as considerações de Sérgio Abranches no sentido de que a política se organiza em “um arranjo de governabilidade específico que prevê a necessidade de governar a partir da manutenção de grandes coalizações políticas, o chamado ‘presidencialismo de coalizão’” (ROCHA, 2021ROCHA, Camila. Menos Marx, mais Mises: o liberalismo e a nova direita no Brasil. São Paulo: Todavia, 2021., p. 18).
  • 2
    A autora faz uma classificação sobre a direita, indicando pontos concordantes e dissonantes entre as muitas vertentes e as resume em: neoliberais, os adeptos da obra de Hayek, os ultraliberais, os anarcocapitalistas (ROCHA, 2012, p. 26) e os pró-mercado, quando menciona, de maneira geral, atores que influenciaram a recepção do neoliberalismo no Brasil. Ela identifica que foi Adolpho Lindenberg, primo e discípulo de Plinio Correa de Oliveira da Tradição, Família e Propriedade (TFP), por ter incentivado a tradução de “O caminho da servidão” de Hayek, em 1946, quem abriu as portas para a chegada do neoliberalismo no Brasil. Além dele, a autora reconhece outros intelectuais e empresários como porta-vozes dessa corrente teórica, tais como: Eugênio Gudin, que participou da nona reunião da Sociedade Mont Pèlerin, Paulo Ayres Filho, fundador de Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), Miguel Reale, professor da Faculdade de Direito da USP e ligado à Sociedade Convívio de cunho católico, e Henry Maksoud, precursor da divulgação de ideias neoliberais para além dos circuitos fechados.
  • 3
    A autora usa a expressão ditadura para referir-se ao período 1964-1985. No entanto, dada a articulação entre militares e civis para a destituição de governo legitimamente eleito e a instauração de medidas que favoreceram as frações burguesas nacionais e internacionais, convém nomeá-la de ditadura empresarial-militar (MELO, 2012MELO, Demian Bezerra de. Ditadura civil-militar”?: controvérsias historiográficas sobre o processo político brasileiro no pós-1964 e os desafios do tempo presente. Espaço Plural, Cascavel, v. 13, n. 27, p. 39-53, 2012. Disponível em: http://e-revista.unioeste.br/index.php/espacoplural/article/view/8574/6324. Acesso em: 05 abr. 2020.
    http://e-revista.unioeste.br/index.php/e...
    ).
  • 4
    Responsável por apresentar Paulo Guedes a Jair Bolsonaro.
  • 5
    É interessante o quanto a atuação desses institutos vai se espraiando e formando outros grupos. A autora traz, como exemplo, o financiamento por parte do Instituto Liberal de São Paulo dos gibis da Turma da Mônica com temas sobre cidadania e uma parceria entre Instituto Atlântico, outro think tank pró-mercado, e a Força Sindical com a distribuição de cartilhas ilustradas por Ziraldo, nas quais temas como privatização da Previdência eram tratados (ROCHA, 2021ROCHA, Camila. Menos Marx, mais Mises: o liberalismo e a nova direita no Brasil. São Paulo: Todavia, 2021.). Vê-se, desse modo, que a autora parte do Instituto Liberal, no Rio de Janeiro, mas consegue mapear os vasos comunicantes entre os institutos e atores voltados para a defesa do liberalismo e do livre mercado no Brasil.
  • 6
    Cabe mencionar que Hayek, um dos fundadores do neoliberalismo, defende renda mínima aos menos favorecidos. Sobre neoliberalismo e política social, especificamente, o Programa Bolsa Família, cf. Faleiros e Pilão (2019FALEIROS, Juliana Leme. PILÃO, Valéria. Programa Bolsa Família: reflexões acerca de suas condicionalidades e o neoliberalismo. In: Valéria Pilão; Cleci Elisa Albiero; Rui Valese; Dorival da Costa. (Org.). Políticas sociais e formação profissional: debates e críticas. 1ed. São Paulo: Fontenelle, 2019, p. 184-201.).
  • 7
    É digno de nota a observação de Mészáros (2004MÉSZÁROS, István. O poder da ideologia. Tradução Paulo Cezar Pinheiro. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004.) ao consultar o processador de texto “WordStar”. Nele o autor húngaro encontra alguns sinônimos para o verbete liberal, quais sejam: tolerante, pródigo, excessivo, profuso e, veja só, progressista. Sendo sinônimos, progressistas e liberais, pode-se afirmar que a nova direita estudada na obra “Menos Marx, mais Mises...” pertence ao mesmo campo dos progressistas.
  • 8
    István Mészáros tratando da modernidade, entende que há suposta superação naquilo que se trata como pós-modernidade e destaca que a agudização das contradições do mundo social leva alguns pensadores a se colocar numa interminável sucessão de “construções ideológicas que metamorfoseiam verbalmente, sob um novo e dessocializado rótulo começando como ‘pós-’ [...] tão logo sua versão anterior tenha perdido a credibilidade” (MÉSZÁROS, 2004MÉSZÁROS, István. O poder da ideologia. Tradução Paulo Cezar Pinheiro. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004., p. 72). Dito de outra forma, tão logo sua versão anterior tenha evidenciado as contradições e as determinações de dada sociedade capitalista acresce-se ‘pós’ ou ‘neo’ sem que de fato as estruturas anteriores tenha sido superadas. Enquanto estiver presente um modo de produção, suas determinações estarão presentes e, assim, no caso do capitalismo a determinação em última instância ainda é a contradição capital e trabalho.
  • 9
    “Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.”

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2024

Histórico

  • Recebido
    26 Out 2022
  • Aceito
    08 Dez 2022
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