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Pluralismo Jurídico: O Estado e as Autoridades Tradicionais de Angola

Legal Pluralism: the State and Traditional Authorities of Angola

Resumo

O presente artigo tem como objetivo discutir o pluralismo jurídico em Angola através da compreensão das dinâmicas de relação entre as categorias dos direitos oficiais e dos direitos ocultos, enquanto fontes do Direito angolano. Servimo-nos do conceito de Epistemologias do Sul de Boaventura de Sousa Santos e dos estudos pós-colonias de Sergio Costa e Guilherme Leite Gonçalves para corroborar a crítica de Étienne Le Roy à monolatria da cultura ocidental. Para tanto, estabelecemos contato direto com a autoridade tradicional do Reino do Bailundo, em Angola. Adotamos, ainda, a perspectiva afrocêntrica, que coloca o africano como sujeito da história, não como objeto.

Palavras-chave:
Pluralismo Jurídico; Angola; Autoridades Tradicionais

Abstract

This article aims to discuss legal pluralism in Angola by understanding the dynamics of the relationship between the categories of official rights and hidden rights as sources of Angolan law. We use the concept of Southern Epistemologies of Boaventura de Sousa Santos and the post-colonial studies of Sergio Costa and Guilherme Leite Gonçalves to corroborate Étienne Le Roy's critique of the monolatry of Western culture. To this end, we have established direct contact with the traditional authority of the Kingdom of Bailundo in Angola. We also adopt the Afrocentric perspective, which places the African as the subject of history, not as an object.

Keywords:
Legal Pluralism; Angola; Traditional Authorities

Introdução1 1 Sou grandemente grato à Moisés Kandjeke pela amizade, pois ela me permitiu a mobilidade e isentou-me do castigo da solidão, em duas manhãs de cacimbo, quando da minha excursão ao campo na Ombala do M’Balundu. Kapoco, Fernando dos Anjos.

Angola é um país da África Austral que sofreu duas terríveis guerras, primeiro contra o império colonial português (1961-1974), que se impôs ali por 500 anos, e depois uma guerra fratricida (1975-2002), se somadas são 41 anos bélicos. Situa-se na parte Ocidental da África Austral, com uma superfície de 1.246.700 km quadrados, possui 1.650 km de fronteira marítima. Confina ao Norte com a República do Zaire e República Popular do Congo, a Leste com as Repúblicas do Zaire e da Zâmbia e a Sul com a Namíbia.

Falar de pluralismo jurídico em Angola implica o enfrentamento de uma temática maior, que tem a ver com a forma como o Estado angolano está estruturado. Embora o Estado se declare, constitucionalmente, Democrático de Direito, há suficientes indícios a lhe negar essa condição. Dito de outro modo, um Estado tanto mais conviverá lado a lado com as várias fontes de Direito existentes em sua nação quanto mais plural for. No caso de Angola, o Estado é um Estado-partido: o Movimento Popular para a Libertação de Angola - MPLA.2 2 MPLA é o partido político de Angola que governa o país desde que ele se tornou independente de Portugal, em 1975. O MPLA surgiu no final da década de 1950 e teve como um dos seus mais notórios líderes António Agostinho Neto. Depois deste, teve mais dois presidentes. O seu sucessor, José Eduardo dos Santos (1979-2017), que esteve no poder por 38 anos e o atual Presidente da República João Lourenço (2017-), que ainda aguarda, após diversas protelações, sucedê-lo na presidência do MPLA, o que tem constituído a atual bicefalia no seu da política do país.

Em um conhecido periódico angolano se podia ler a seguinte manchete: “o Povo angolano é o MPLA. O MPLA é o Povo angolano”. Tal máxima, maniatada no sangue da nação angolana, mistura-se com sua própria identidade. Mas ela é verdadeira? Se o povo angolano é, realmente, o MPLA, então, quem, ou o que é o povo que apoia a Frente Nacional para a Libertação de Angola - FNLA ou a União Nacional para a Independência Total de Angola - UNITA?3 3 A FNLA, anteriormente chamada de UPA - União das Populações de Angola, constitui, desde 1992, um partido político, tendo sido um dos movimentos nacionalistas angolanos atuantes na guerra colonial (também conhecida como guerra da libertação) que durou entre 1961 a 1974. A UNITA - União Nacional para a Independência Total de Angola, nasceu em 1966 de uma dissidência da FNLA. É o segundo maior partido político de Angola e o maior partido de oposição ao atual regime. Entretanto, semelhante ao MPLA, a UNITA também só teve dois líderes desde a sua fundação, Jonas Malheiro Savimbi, seu fundador, morto em 02-02-2002, e Isaias Samakuva, seu atual presidente Não-angolanos?

Essa parece constituir a primeira dificuldade com a qual alguém que se proponha a entender o pluralismo jurídico em Angola tem que lidar, pois, conferir legitimidade jurídica e política às outras fontes de Direito, equivale a transferir parcela do poder do Estado-partido-MPLA àqueles que não se identificam com a ideologia do MPLA. É possível se afirmar que, hoje, boa parte de toda memória política, social e histórica do país é partidarizada, de modo que os heróis nacionais se confundem com os heróis do MPLA. Assim, os heróis tombados que lutaram em nome de Angola através da UNITA ou da FNLA, ao longo do processo de libertação nacional, não são sequer lembrados como angolanos, já que suas lutas não ocupam nenhum capítulo no manual oficial da História de Angola, o que só vem a corroborar a velha verdade, segundo nos adverte Ecléa Bosi (BOSI, 2003BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: Lembranças de Velhos. 10a Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.: 19), de que a história é sempre aquela contada pelos povos vencedores, isto é, a memória não é oprimida apenas porque lhe foram roubados suportes materiais, nem só porque o velho foi reduzido à monotonia da repetição, mas também porque uma outra ação, mais daninha e sinistra, sufoca a lembrança: a história oficial celebrativa, cujo triunfalismo é a vitória do vencedor a pisotear a tradição dos vencidos. Dessa maneira, as lembranças pessoais e grupais são invadidas por outra história, por uma outra memória que rouba das primeiras o sentido, a transparência e a verdade.

As Autoridades Tradicionais angolanas estão, assim como os outros partidos políticos diversos do MPLA e outros grupamentos da sociedade civil, nesse espaço de negação, nesse não-espaço. Neste sentido, falta em Angola a verdadeira Constituição, aquela que está “inscrita na alma e no coração de cada mulher e de cada homem, um projeto político coletivo de um verdadeiro Estado que se limite a ser algo mais que a mera soma das suas partes” (FONSECA, 2016FONSECA, Jorge Carlos de Almeida. Magistratura de Influência: pela Cidadania e por uma Cultura de Constituição. Cabo Verde: Sorate-Artes Gráficas, 2016.: 23). Uma Constituição que representa apenas a manifestação de vontade do MPLA não poderá jamais representar o todo ou a maioria. No limite, trata-se da falta de um projeto de nação capaz de harmonizar as vontades, os sonhos e desejos de todos.

Metodologia

Pelas razões acima expostas optamos por epistemologias alternativas à dominante. Escolhemos epistemologias que partem do princípio de que o mundo é epistemologicamente diverso e que essa diversidade representa um enorme enriquecimento das capacidades humanas, além de conferirem inteligibilidade e intencionalidade às experiências sociais. Essa pluralidade epistemológica implica no reconhecimento de conhecimentos rivais dotados de critérios diferentes de validade, que tornam visíveis e críveis espectros muito mais amplos de ações e de agentes sociais. A essa diversidade epistemológica alguns denominam de “epistemologias do Sul”. O Sul, nesse sentido, é concebido metaforicamente como um campo de desafios epistêmicos, que procuram reparar os danos e impactos históricos causados pelo capitalismo na sua relação colonial com o mundo (SANTOS; MENESES, 2009SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula. Prefácio e Introdução. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (org.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2009. pp. 7-19: 12).

Defendemos, portanto, uma pluralidade epistemológica que dê espaço para o diverso, para o outro, não só porque o atual governo angolano atende prioritariamente a interesses e conveniências da elite política do MPLA, mas também porque a história das antigas colônias está marginalizada nas academias do mundo todo, nas quais vige uma epistemologia que se pretende universal.

Utilizamos, assim, a teoria e a filosofia da afrocentricidade como ferramenta analítica para os Estudos Africanos, que levanta a questão do conhecimento do ponto de vista do povo Africano como sujeito da sua própria história. A afrocentricidade é, nesse sentido, “um modo de pensamento e ação no qual a centralidade dos interesses, valores e perspectivas africanos predominam. Em termos teóricos é a colocação do povo africano no centro de qualquer análise de fenômenos africanos” (ASANTE, 2014ASANTE, Molefi Kete. Afrocentricidade: a teoria de mudança social. Trad. Ana Monteiro-Ferreira, Ama Mizani & Ana Lúcia. Philadelphia: Afrocentricity, 2014: 3), em contraposição ao domínio epistemológico eurocêntrico, que se pretende universal, neutro e soberano.

O colonialismo, dessa forma, é também uma forma de dominação epistemológica, uma relação extremamente desigual de saber-poder que conduziu à supressão de muitas formas de saber próprias dos povos e nações colonizados, relegando muitos outros saberes para um espaço de subalternidade. Assim, Boaventura de S. Santos e Maria P. Meneses questionam por que razão, nos dois últimos séculos, a epistemologia dominante eliminou da reflexão epistemológica o contexto cultural e político da produção e reprodução do conhecimento? Além disso, quais foram as consequências de uma tal descontextualização? E, por fim, haverá epistemologias alternativas? À guisa de resposta, a epistemologia dominante é uma epistemologia contextual que assenta na diferença cultural do mundo moderno cristão ocidental e na diferença política do colonialismo e capitalismo, reivindicando uma pretensão de universalidade, mediante o uso da força com que a intervenção política, econômica e militar do colonialismo e do capitalismo modernos se impuseram aos povos e culturas não-ocidentais e não-cristãos. Como consequência dessa intervenção, descredibilizaram-se e suprimiram-se todas as práticas sociais de conhecimento que contrariassem os interesses que ela servia, gerando uma perda de auto-referência não apenas gnoseológica, mas sobretudo ontológica, que coloca os dominados numa relação de subalternidade, ou seja, saberes inferiores próprios de seres inferiores, primordialmente caracterizada pela violência e massacre de outras gramáticas de compreensão do mundo, o chamado epistemicídio (SANTOS; MENESES, 2009SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula. Prefácio e Introdução. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (org.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2009. pp. 7-19: 10).

Nesta perspectiva, de supostos saberes “subalternos”, não se concede apenas voz àquelas e àqueles que foram privados dela. É mais do que isso. É participar do esforço para prover outra gramática, outra epistemologia, outras referências que não aquelas que aprendemos a ver como as “verdadeiras” e, até mesmo, as únicas dignas de serem aprendidas e respeitadas (PELÚCIO, 2012PELÚCIO, Larissa. Subalterno quem, cara pálida? Apontamentos às margens sobre pós- colonialismos, feminismos e estudos queer. Revista Contemporânea ISSN: 2236-532X v. 2, n. 2 p. 395-418 Jul.–Dez. 2012. Disponível em: http://www.contemporanea.ufscar.br/index.php/ contemporanea/article/viewFile/89/54> Acesso: 14 jul. 2017.
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: 398-399). É neste sentido que demos voz ao ator e ao saber do representante da Autoridade Tradicional do M’Balundu, mediante entrevista, com intuito de compreender a organização dessa instância da justiça angolana e as dinâmicas que regem sua atuação em face das demandas comunitárias por justiça e as limitações que lhe são imposta pela justiça concorrente, a estatal.

Hoje, a visualização da diversidade cultural e epistemológica do mundo é, ela própria, mais diversa e, por isso, mais convincente para públicos mais amplos e diversos. Todavia, o fim do colonialismo político, enquanto forma de dominação que envolve a negação da independência política de povos e/ou nações subjugados, não significou o fim das relações sociais extremamente desiguais que ele tinha gerado. O colonialismo continuou sobre a forma de colonialidade de poder e de saber, para usar a expressão de Anibal Quijano (SANTOS; MENESES, 2009SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula. Prefácio e Introdução. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (org.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2009. pp. 7-19: 11-12). Portanto, o modelo europeu e norte-americano não é universal. É, antes, geográfica e localmente situado. Ao se conceder o direito exclusivo como único modelo válido de gestão racional do mundo globalizado, que parte de um local específico (Europa e EUA) e vai se mundializando à força, esconde, obviamente, a existência, de outras racionalidades, e são racionalidades, que, se ouvidas, permitiriam a melhor apreensão, compensação e, sobretudo, melhor convívio planetário (PIZA & PANSARELLI, 2012PIZA, Suze de Oliveira; PANSARELLI, Daniel Sobre a Descolonização do conhecimento: a invenção de outras epistemologias. Estudos de Religião, v. 26, n. 43 .25-35. 2012. ISSN Impresso: 0103-801X - Eletrônico: 2176-1078. Disponível em: http://www.bibliotekevirtual.org/revistas/ Metodista-SP/ER/v26n43/v26n43a02.pdf> Acesso em: 14 mar. 2017.
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: 30). Portanto, torna-se uma exigência de nosso tempo falar em epistemologias, não mais no singular.

A ideia central é a de que o colonialismo, para além de todas as dominações pelas quais é conhecido, foi também uma dominação epistemológica, uma relação extremamente desigual de saber-poder que conduziu à supressão de muitas formas de saber próprias dos povos e/ou nações colonizados. As epistemologias do Sul são o conjunto de intervenções epistemológicas que denunciam essa supressão, valorizam os saberes que resistiram com êxito e investigam as condições de um diálogo horizontal entre conhecimentos. A esse diálogo entre saberes chamamos “ecologias de saberes” (SANTOS; MENESES, 2009SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula. Prefácio e Introdução. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (org.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2009. pp. 7-19: 13).

A maioria dos povos africanos colonizados enfrenta dificuldades de criação de sua epistemologia jurídica própria, pois tal como a religião (europeia) foi imposta, assim também o foi o Direito (europeu e do EUA), sempre sob a justificativa de assegurarem um estado futuro melhor, com fundamento em noções como “superação de deficiências”, “progresso” ou “desenvolvimento”, das quais decorrem a legitimidade e a adesão global a estes instrumentos jurídicos, mediatizada pela dicotomia bem/mal, ou seja, pelo código da moral. Do ponto de vista filosófico, esta concepção de direito moralmente universalizada remete ao modelo iluminista do humanismo e do racionalismo, desenvolvido na história ocidental. A concepção moderna de democracia, e também de direito, é produto desta Razão, moralmente universalizada: enquanto o racional caracterizava-se pelo bem e pelas luzes, o irracional era identificado com o mal e o obscurantismo. Se essa Razão era necessária, não havia alternativas. Era, portanto, a única justiça possível. A razão justa precisava de uma política justa para se autoafirmar como Justiça. Essa universalização do discurso jurídico (iluminista) ainda se mantém como técnica de recolonização das práticas jurídicas e sociais do Sul global. (GONÇALVES, 2015GONÇALVES, Guilherme Leite. O Iluminismo no Banco dos Réus: Direitos Universais, Hierarquias Regionais e Recolonização. Rev. direito GV, v. 11, n. 1, p. 277-293, 2015: 278-282)

De outro lado, os estudos pós-colonias não constituem uma matriz teórica única, homogênea, mas heterogênea, que apresentam em comum o esforço de esboçar, pelo método da desconstrução dos essencialismos, uma referência epistemológica crítica às concepções dominantes de modernidade. Iniciada por aqueles autores da diáspora negra ou migratória (oriundos de países pobres que vivem na Europa Ocidental e na América do Norte), a perspectiva pós-colonial teve, na crítica literária, sobretudo na Inglaterra e nos EUA, a partir dos anos 1980, suas áreas pioneiras. Depois disso, expande-se geograficamente e para outras disciplinas. Homi Bhabha, Edward Said, Gayatri Chakravorty Spivak ou Stuart Hall e Paul Gilroy tornam-se referências recorrentes. Esses estudos partem da crítica de que o processo de produção do conhecimento científico privilegia modelos e conteúdos da cultura nacional dos países europeus, reproduzindo a lógica da ação colonial, já que o que se definiu como centro é parâmetro para qualificar os processos de transformação das sociedades “não-ocidentais”. O “pós”, portanto, não é simplesmente cronológico, mas uma reconfiguração do campo discursivo e das relações hierárquicas (COSTA, 2006COSTA, Sérgio. Dois Atlânticos: teoria social, anti-racismo, cosmopolitismo. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2006.: 83-84).

Em face do padrão “moderno”, as especificidades das sociedades “não ocidentais” passam a figurar como ausência e incompletude. A metodologia da comparação implícita e o tipo de narrativa histórica de boa parte da sociologia moderna fazem com que tudo o que é diverso no “resto do mundo” seja decodificado como um ainda não existente, uma falta a ser compensada por meio de uma intervenção social: dominação colonial, ajuda ao desenvolvimento, intervenção humanitária, etc. Interessa, por isso, abordar aqui o pós-colonial como forma de “desconstrução” da polaridade West/Rest, que se perpetua mesmo depois de extinto o colonialismo como modo de orientar a produção do conhecimento e a intervenção política. Assim, ao invés de reivindicar a posição de representante do subalterno que “ouve” a voz desses, o intelectual pós-colonial busca entender a dominação colonial como cerceamento da resistência através da imposição de uma episteme que o desqualifica e, assim, o silencia. O pós colonialismo deve promover precisamente a desconstrução desses essencialismos, diluindo, criticamente, as fronteiras culturais legadas tanto pelo colonialismo quanto pelas lutas anticoloniais. A desconstrução da dicotomia West/Rest passa, primeiramente, pela reinterpretação da história moderna. Com efeito, a releitura pós-colonial da história moderna, busca reinserir, reinscrever o colonizado na modernidade, não como o outro do Ocidente, sinônimo do atraso, da falta, mas como parte constitutiva essencial daquilo que foi construído discursivamente como moderno. Isso implica desconstruir a história hegemônica da modernidade, evidenciando as relações materiais e simbólica entre o “Ocidente” e o “resto do mundo” de sorte a mostrar que esses termos correspondem a construções mentais sem correspondência empírica imediata. (COSTA, 2006COSTA, Sérgio. Dois Atlânticos: teoria social, anti-racismo, cosmopolitismo. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2006.: 87-90).

Metodologicamente, como já afirmado, realizamos, na pessoa do coautor desta pesquisa, contato direto com as Autoridades Tradicionais de Angola, em particular com o Reino do Bailundo, com o fito de dar voz ao saber local e subalternizado em conformidade com o arcabouço teórico-metodológico aqui adotado, isto é, as noções de Afrocentricidade e de Epistemologia do Sul, bem como os estudos pós-coloniais. Além disso, para fazer jus à importância da tradição oral vigente na África negra e para registrá-la, pois ela é “a biblioteca, o arquivo, o ritual, a enciclopédia, o tratado, o código, a antologia poética e proverbial, o romanceiro, o tratado teológico e a filosofia (...). O presente vive do passado” (ALTUNA, 2014ALTUNA, Raul Ruiz de Asúa. Cultura Tradicional Bantu. 2ª Ed. Portugal: Paulinas, 2014: 38). Em nossa análise, combinamos de um lado o modus operandi da justiça comunitária (não só assistimos a um julgamento tradicional mas também formulamos perguntas, por meio de entrevista junto ao vice-rei, sobre o que se julga normalmente, quem julga as acusações de feitiçaria, como as julga, que regras são usadas, quem são as vítimas, quais são suas penas, como as executam, qual é a organização do tribunal, se há limitações impostas pelo Estado sobre matéria a julgar, sobre penas a aplicar, sobre regras a usar, se há possibilidade de interposição de recursos, quais são as fases do julgamento, se há publicidade, qual sua duração, se as partes estão insatisfeitas com a justiça comunitária e se recorrem à justiça do Estado, etc.) e de outro lado a justiça estatal (no caso específico de acusações de feitiçaria). No que toca ao acesso às fontes da justiça estatal, tivemos certas restrições, haja vista a existência de uma máquina burocrática que impede que informações públicas sejam de fato de acesso público. Para ter acesso a uma decisão do Tribunal Provincial do Huambo sobre crimes de acusação de feitiçaria foi preciso enviar um ofício de autoridade brasileira, no caso um docente da Universidade de São Paulo e Juiz Federal, para que se obtivesse a expressa autorização. Obtida a autorização, somente após exaustivas duas semanas, durante as quais o coautor da pesquisa esteve presente todos os dias no tribunal, é que foi autorizada a vista de dois processos. Interessante observar que ao visitar o Tribunal Tradicional em busca de uma entrevista, que foi efetivamente realizada junto à autoridade tradicional responsável, o coautor não enfrentou nenhuma espécie de burocracia, salvo o procedimento de praxe, que consistiu na entrega de um valor monetário (simbólico) para manifestar respeito e honra ao Vice-rei, responsável por responder suas (longas) perguntas.

Fundamentos do pluralismo jurídico em Angola

O pluralismo jurídico pode ser abordado a partir de diversos campos de estudo: do direito, da sociologia e da antropologia do direito. Em Direito, pluralismo jurídico quer dizer: a) a existência simultânea, no seio de uma mesma ordem jurídica, de regras de direito diferentes que se aplicam a situações idênticas; b) a coexistência de pluralidade de ordens jurídicas distintas estabelecendo ou não relação de direito entre si. Em sociologia do direito, significa a coexistência de pluralidade de quadros ou sistemas de direito no seio de uma determinada unidade de análise sociológica (sociedade local, nacional, mundial). Por último, sob o prisma da teoria antropológica: a) à pluralidade dos grupos sociais correspondem sistemas jurídicos múltiplos compostos que seguem relações de colaboração, coexistência, competição ou negação, onde o indivíduo é um ator do pluralismo jurídico, já que ele se determina em função de suas vinculações múltiplas a essas redes sociais e jurídicas; b) no plano político, relativiza-se a tendência do Estado de se apresentar, através da primazia da lei, como a fonte principal ou exclusiva do direito; c) no plano metodológico, há a necessidade de pesquisar as manifestações do direito fora dos domínios onde a teoria clássica das fontes do direito os situa (ROULAND, 1999: 589-590). Este último constitui o campo adotado pelo presente estudo.

Atualmente, a maioria dos Estados da África negra vive em situação de pluralismo jurídico. O direito oficial, o das codificações calcadas nos modelos europeus, é o dos grupos dirigentes. A maioria da população vive segundo outros direitos, ora consuetudinários, ora recentes, ignorados ou parcialmente reconhecidos pelo direito oficial. Os juristas europeus costumam qualificar de anárquica essa situação (ROULAND, 2003ROULAND, Norbert. Nos confins do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003.: 78). Independente dessa qualificação, o fato é que durante o processo colonial iniciado nos finais do século XV, e com seu apogeu no século XIX, deu-se um processo de coexistência normativa que resultou no fenômeno do pluralismo jurídico do continente africano, chamado de pluralismo jurídico colonial (FEIJÓ, 2012FEIJÓ, Carlos. A coexistência Normativa entre o Estado e as Autoridades Tradicionais na Ordem Jurídica Plural Angolana. Tese (Doutorado em Direito Público). Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. Coimbra: Almedina, 2012.: 100).

Apesar da heterogeneidade nos respectivos processos de construção e consolidação dos estados africanos, com pluralidade de modelos de desenvolvimento político e administrativo implementados desde suas independências, alguns fenômenos em comum foram se estabelecendo entre esses estados, como uma tendência de consolidação de sistemas fortemente centralizados e estatizados em torno de regimes políticos de partido único voltados para estratégias patrimonialistas de apropriação de recursos por parte das elites dirigentes (FLORÊNCIO, 2010FLORÊNCIO, Fernando. “Pluralismo Jurídico e Estado Local em Angola: um olhar crítico a partir do estudo de caso do Bailundo”. Departamento de Ciências da Vida Universidade de Coimbra, 2010. Disponível em: <https://www.uc.pt/en/cia/publica/AP_artigos/ AP28.05_fernandoflorencio> Acesso em: 18 mar. 2017.
https://www.uc.pt/en/cia/publica/AP_arti...
: 95-96). No caso de Angola, o poder político há mais de 40 anos é propriedade privada de uma pequena elite partidária marcada por um centralismo exacerbado, por uma cultura antidemocrática, autoritária e violenta, que se perpetua no poder, não obstante ser péssima serventuária do erário público. Mais do que tudo isso, há um movimento, ainda bastante contínuo, de partidarização do país, de modo que ser cidadão só tem relevância caso seja cidadão, não do país, mas de um partido específico, o MPLA. Assim, urge que o poder em Angola seja distribuído, devolvido aos verdadeiros proprietários, os Bantu, isto é, seres humanos, pessoas, homens, mulheres, povo, na medida que ocupam o centro da pirâmide vital constitutiva das comunidades negras Bantu a que Angola faz parte (ALTUNA, 2014ALTUNA, Raul Ruiz de Asúa. Cultura Tradicional Bantu. 2ª Ed. Portugal: Paulinas, 2014: 62-65).

Angola vive um longo período de “transição para uma democracia”, iniciada na década de 1980/1990, com “a abertura” para novos atores sociais, como partidos políticos, organizações cívicas, associações, sindicatos independentes, etc., e, ao mesmo tempo, com a consolidação de “velhos” atores, como as igrejas e as autoridades tradicionais (FLORÊNCIO, 2010FLORÊNCIO, Fernando. “Pluralismo Jurídico e Estado Local em Angola: um olhar crítico a partir do estudo de caso do Bailundo”. Departamento de Ciências da Vida Universidade de Coimbra, 2010. Disponível em: <https://www.uc.pt/en/cia/publica/AP_artigos/ AP28.05_fernandoflorencio> Acesso em: 18 mar. 2017.
https://www.uc.pt/en/cia/publica/AP_arti...
: 96-97). Nesse contexto, o pluralismo jurídico pode ser um dentre os vários instrumentos possíveis para permitir um diálogo plural entre esses atores sociais, para a realização constante e urgente da democracia em Angola, porquanto ele é a negação da concepção de um Estado como centro único do poder político e fonte exclusiva de toda produção do Direito. Dessa forma, significa uma multiplicidade de manifestações ou práticas normativas num mesmo espaço sócio-político, integradas por conflitos ou consensos, podendo ser ou não oficial, tendo a sua razão de ser nas necessidades existenciais, materiais e culturais (WOLKMER, 2001WOLKMER, António Carlos. Pluralismo Jurídico: fundamento para uma nova cultura no Direito. 3a Ed. São Paulo: Alfa Omega, 2001.: 15-16). Ou seja, o pluralismo jurídico permite-nos visualizar, a partir do postulado básico da antropologia jurídica, que “as regras são feitas a partir de bases sociais e econômicas e precisam ser vistas em seu conteúdo social e que as burocracias jurídicas formais são apenas algumas dentre as diversas instituições que podem aplicar sanções aos indivíduos” (SHIRLEY, 1987SHIRLEY, Robert Weaver. Antropologia jurídica. São Paulo: Saraiva, 1987: 12-13). Uma Outra concepção de pluralismo jurídico “estabelece a pluralidade como a base das relações sociais a partir da pressuposição da multiplicidade de pertenças dos membros de uma sociedade a coletividades mais ou menos institucionalizadas” (VILLAS BÔAS FILHO, 2014Juridicidade: uma abordagem crítica à monolatria jurídica enquanto obstáculo epistemológico. Revista da Faculdade de Direito da USP, vol. 109, p. 281-325, 2014.: 308).

José Eduardo Faria nos permite vislumbrar outras facetas do pluralismo jurídico ao descrever o processo de transnacionalização dos mercados, a mobilidade quase ilimitada alcançada pela circulação de capitais privados, o extraordinário desenvolvimento das telecomunicações e a compressão do tempo e do espaço por elas propiciado como um processo multifacetado e contraditório que evolui e retrocede em ciclos, com novas dinâmicas que a globalização imprime nos processos produtivo, de comercialização, distribuição, investimento na economia, bem como as consequências e limitações que este processo traz para o Estado e suas instituições. (FARIA; KUNTZ, 2002FARIA, José Eduardo; KUNTZ, Rolf. Qual o futuro dos direitos? Estado, mercado e justiça na reestruturação capitalista. São Paulo: Max Limonad, 2000.: 59-69).

Essa substituição do Estado-nação pelo mercado gera no plano social um abismo entre o que o Estado pode fazer e o que deveria fazer, no plano institucional causa um enfraquecimento dos atributos da soberania: supremacia, incondicionalidade, inalienabilidade, indivisibilidade, centralidade e unidade, e no jurídico, enormes limitações estruturais no direito positivo e nas instituições judiciais. Uma dessas limitações é a redução de parte significativa de sua jurisdição, já que as fronteiras geográficas são superadas pela expansão das tecnologias de informação, produção, redes de comunicação e de transportes, pela nova estrutura empresarial e pela justaposição e cruzamento de novos centro de poder. E quanto maior é a velocidade desse processo, mais o direito positivo e os tribunais se revelam incapazes de superar suas deficiências de funcionalidade e rendimento, sendo, por esse motivo, atravessados no seu papel de garantidor do controle de legalidade por justiças paralelas e normatividades justapostas: aquelas emergentes de espaços infra-estatais e as justiças e normatividades que têm sido forjadas em espaços supra-estatais e/ou supra-nacionais. No primeiro caso, estão florescendo os mais variados procedimentos negociais, mecanismos informais e órgãos para-estatais de resolução de conflitos, sob a forma de técnicas e esquemas de mediação, conciliação, arbitragem, auto-composição de interesses e auto-resolução de divergências e até mesmo da imposição da lei do mais forte nas áreas periféricas inexpugnáveis sob o controle do crime organizado e do narcotráfico (constituindo esta última um direito marginal que, na prática, revela-se um contra-direito). No segundo caso, destacam-se, por exemplo, os “International Commercial Terms” e as diretrizes sobre comércio via Internet estabelecidos pela Câmara de Comercio Internacional de Paris; os modelos de direito contratual e legislação internacional sobre o reconhecimento da assinatura digital no comercio eletrônico propostos pela United Nations Commission on International Trade Law; e os princípios de uniformização dos contratos comerciais de venda internacional de bens formulados pelo International Institute for the Unification of Private Law, de Roma. Neste contexto, em que o protagonismo das relações internacionais já não é mais exclusivamente nem dos Estados nem das organizações inter-governamentais, duas outras normatividades também se expandem de modo veloz: Lex Mercatoria e Direito da Produção. Como conseqüência, isto faz do comércio intra-firmas uma importante fonte autônoma de princípios normativos, regras, procedimentos e códigos de conduta corporativa - ou seja, uma fonte de produção privada de direitos, sob a forma de processos auto-fundados e capazes de se autoalimentar continuamente. Outra limitação estrutural do direito positivo tem a ver com o fato de suas normas padronizadoras, editadas com base nos princípios da impessoalidade, da generalidade, da abstração e do rigor semântico e organizadas sob a forma de um sistema supostamente unitário, lógico, fechado, hierarquizado, coerente e postulado como isento de lacunas e antinomias, são ineficientes diante de uma pluralidade de situações sociais, econômicas, políticas e culturais cada vez mais funcionalmente diferenciadas, marcadas por uma crescente singularidade dos conflitos, fruto de fatos multifacetados e heterogêneos. Além disso, sua morosidade processual é incompatível com a rapidez dos novos padrões e paradigmas do mercado global (FARIA; KUNTZ, 2002: 70-78). Ou seja, “um sistema jurídico que não acompanha o passo das mudanças econômicas pode causar sofrimento e destruição intermináveis antes de ser alterado voluntariamente ou pela força” (SHIRLEY, 1987SHIRLEY, Robert Weaver. Antropologia jurídica. São Paulo: Saraiva, 1987: 76).

Como consequência dessas limitações e pressionado por crises sucessivas, o Estado vai sendo obrigado a substituir as normas abstratas, gerais e impessoais por normas cada vez mais particularizantes, específicas, e “finalísticas” - aquelas editadas com base em critérios, determinantes e propósitos de natureza material, sejam econômicos, financeiros, políticos, sociais, etc. O resultado é a perda progressiva tanto do controle da coerência lógica quanto da racionalidade sistêmica de suas próprias leis. Como também é desafiado pela multiplicação das fontes materiais de direito, de tal modo que este ordenamento jurídico é submetido a uma competição com outros ordenamentos normativos para-estatais, de alcance infra, inter ou supra-estatais, o direito estatal acaba atingindo os limites de sua soberania real ou substantiva, ainda que preserve a soberania formal, exaurindo assim o paradigma jurídico em torno do qual estruturou suas instituições e procedimentos judiciais (FARIA; KUNTZ, 2002: 80). Nas palavras de Carlos Feijó: “Diferentes contextos sociais configuram e traduzem os diferentes modus vivendi das respectivas comunidades, que podem concretizar diferentes regras de conduta jurídica” (FEIJÓ, 2012FEIJÓ, Carlos. A coexistência Normativa entre o Estado e as Autoridades Tradicionais na Ordem Jurídica Plural Angolana. Tese (Doutorado em Direito Público). Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. Coimbra: Almedina, 2012.: 91).

Se segundo Robert W. Shirley (1987SHIRLEY, Robert Weaver. Antropologia jurídica. São Paulo: Saraiva, 1987: 38), “o direito é um conjunto de regras primárias, desenvolvidas para permitir que uma sociedade funcione, para solucionar disputas entre grupos e entre indivíduos, e também uma série de normas secundárias para cercear aqueles que ameaçam a ordem social sob controle”, com o estudo de José E. Faria, mencionado acima, percebemos que com a imbricação do mercado na vida social das pessoas em particular e do Estado de forma geral, esses diferentes contextos não são apenas exclusivos ao Estado enquanto fonte jurídica única, mas, igualmente, para-estatais, inter-estatais e supra-estatais. Ou seja, hoje com o processo de transnacionalização da economia, essas disputas não estão mais apenas circunscritas ao espaço territorial do Estado-nação, e essas normas não têm como única fonte o Estado-nação e não se destinam só a cidadãos correspondentes a eles, mas a um quase cidadão mundial/global, como demonstrado acima.

Ao nível infra-estatal, entretanto, não se pode ignorar esses diversos contextos sob pena de descurar que a justiça é sempre local, que existem vários estados no Estado angolano. É, pois, em resultado da coexistência, nem sempre pacífica, nem sempre coerente, nem sempre verdadeiramente conflitual, ainda que com a potencialidade para a conflituosidade cada vez mais complexa, que nasce a questão da admissibilidade normativa de um pluralismo jurídico das diversas fontes de legitimidade normativa e respectivos aparelhos organizativos (FEIJÓ, 2012FEIJÓ, Carlos. A coexistência Normativa entre o Estado e as Autoridades Tradicionais na Ordem Jurídica Plural Angolana. Tese (Doutorado em Direito Público). Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. Coimbra: Almedina, 2012.: 93).

O pluralismo jurídico é aqui considerado como uma ferramenta de análise para a compreensão do quadro de convivência normativa (direitos oficiais do Estado e direitos oficiosos ou ocultos das autoridades tradicionais, conforme mobilizados abaixo por Norbert Rouland), visando fins maiores: a implementação de um verdadeiro movimento participativo e democrático que deve se dar, dentre outras formas, a partir da autonomia do poder local. Ele surge, assim, da possibilidade de tensão normativa e de opções alternativas de aplicação da norma a casos concretos. Por essa razão, o pluralismo é tido como expressão e fonte, simultaneamente, de uma sociedade aberta, heterogênea de interesses e tolerante às diferenças, encontrando no dissenso, enquanto manifestação de uma cultura de reconhecimento e valorização da diversidade e do contraditório, a sua essência (FEIJÓ, 2012FEIJÓ, Carlos. A coexistência Normativa entre o Estado e as Autoridades Tradicionais na Ordem Jurídica Plural Angolana. Tese (Doutorado em Direito Público). Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. Coimbra: Almedina, 2012.: 388).

Uma tal ordem jurídica plural pode, como sustenta N’Gunu Tiny (apudFEIJÓ, 2012FEIJÓ, Carlos. A coexistência Normativa entre o Estado e as Autoridades Tradicionais na Ordem Jurídica Plural Angolana. Tese (Doutorado em Direito Público). Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. Coimbra: Almedina, 2012.: 116-117), caracterizar-se pelos seguintes elementos-chave: 1º) Existência de relações não hierárquicas entre as ordens coexistentes; 2º) A ordem plural é uma ordem de interação das ordens coexistentes; 3º) Em caso de conflito, a solução passa pela conjugação (isto é, um mútuo ajustamento, através de um processo de acomodação) e não pela exclusão; 4º) As ordens coexistentes devem convergir para dinâmicas de interação; 5º) O reconhecimento deve ser compatível com os valores democráticos e não um “cheque em branco”; 6º) A conformidade de um determinado fato com o seu sistema original não o invalida em caso de desconformidade vis-à-vis a outra ordem coexistente, quando muito poderá determinar o seu afastamento, não tutela ou inadmissibilidade; 7º) Os conflitos decorrentes da relação de coexistência pluralista são inevitáveis, dado que concorrem para uma multiplicidade de valores fundamentais que requerem soluções ou tratamentos diferentes e, muitas vezes, em tensão conflitual; 8º) Trata-se de um processo aberto, que varia no tempo e em função das sociedades que o origina.

O pluralismo jurídico é parte integrante do pluralismo social. Isso é claramente verificado nos modelos jurídicos e legislativos europeus, incorporados pelos países africanos, porém, com modificações. Os sistemas jurídicos, desiguais, compõem-se de referências ao passado e de uma modernidade alternativa. Os direitos que formam o conjunto de direitos antigos são: a) tradicionais e b) consuetudinários. Os primeiros são aqueles que os autóctones praticavam antes da colonização européia. Os direitos consuetudinários, por sua vez, só aparecem com o período de administração colonial, quando se prescreve a redação dos costumes, operação que os transforma em profundidade, submetendo-os às categorias jurídicas ocidentais. O direito local resulta em geral de mecanismos de reinterpretação de instituições estatais: o Estado pós-colonial cria entidades novas, que os autóctones compreendem e fazem funcionar à maneira deles, que não é forçosamente a prevista pela administração. O fenômeno é frequente em matéria de reformas agrárias, onde se nota o reaparecimento, por iniciativa dos camponeses, de antigos modos de exploração da terra e de regulamentação dos litígios agrários. Os direitos populares (que também existem nas sociedades ocidentais) ocupam uma área extensa, pelo menos tão grande quanto a do direito estatal, mas difícil de explorar em razão de seu caráter não oficial. Categoria máxima do pluralismo jurídico, eles se formam por fora das instâncias estatais, tanto em zona urbana quanto rural. Afastam-se igualmente com bastante frequência dos direitos tradicionais e de suas soluções herdadas do passado, pois são essencialmente inovadores. Lição para os partidários do “tudo-Estado”: o direito oriundo do povo não é somente aquele que ele tira do passado, mas um direito que ele sabe inventar tão bem quanto o legislador moderno. Aliás, essas diferentes categorias de direito não são estanques. Estados africanos, aliás, mesclam disposições oriundas do direito estatal e dos direitos tradicionais ou consuetudinários, prova de que estes últimos também podem modificar o primeiro (ROULAND, 2003ROULAND, Norbert. Nos confins do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003.: 185-187).

Desta feita, o pluralismo jurídico reconhece a existência de outras ordens jurídicas dentro do mesmo espaço nacional. Ele se coloca, dessa forma, no âmbito de coexistência de diferentes formas de ordenação normativa e de regulação de conflitos sociais, estatais e não-estatais, dentre as quais se pode sublinhar os regimes jurídico-normativos das sociedades tradicionais, ou se quisermos adotar a feliz expressão de Norbert Rouland, o conjunto de direitos antigos, a que se inserem as autoridades tradicionais, inseridos num grupo maior: o de direitos ocultos.

Porém, segundo Fernando Florêncio (2010FLORÊNCIO, Fernando. “Pluralismo Jurídico e Estado Local em Angola: um olhar crítico a partir do estudo de caso do Bailundo”. Departamento de Ciências da Vida Universidade de Coimbra, 2010. Disponível em: <https://www.uc.pt/en/cia/publica/AP_artigos/ AP28.05_fernandoflorencio> Acesso em: 18 mar. 2017.
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: 97-98), “a coabitação de diferentes ordens e regulações jurídicas pode causar problemas à unidade do Estado e até mesmo à sua legitimação. Isso se deve ao fato de o pluralismo jurídico poder ser colocado em confronto, ao nível local, com o direito estatal, como uma fonte concorrente de direito consuetudinário”. Entretanto, como demonstraremos abaixo, divergimos nesse ponto de Fernando Florêncio, pois as autoridades tradicionais têm jogado um relevante papel não só como intermediários das comunidades que lideram em face de um Estado que não abrange todo o território nacional no cumprimento de suas funções precípuas, ao nível local, mas sobretudo elas têm sido concorrentes do Estado, no quadro do pluralismo jurídico em sua versão forte, na condição de reguladores das ordens jurídicas locais e administradores da justiça ao nível local.

O ressurgimento das autoridades tradicionais na África subsariana a partir dos anos 1990 relaciona-se diretamente com a crise dos Estados africanos independentes, expressa numa profunda incapacidade em controlarem e gerirem partes significativas dos seus territórios e das suas populações (FLORÊNCIO, 2008_______,”Autoridades tradicionais vaNdau de Moçambique: o regresso do indirect rule ou uma espécie de neo-indirect rule?” Análise Social, vol. XLIII (2.o), 2008, 369-39. Disponível em: http://analisesocial.ics.ul.pt/documentos/1218639600E2kPR9qf1Wh58IK2.pdf>. Acesso em: 24/11/2017.
http://analisesocial.ics.ul.pt/documento...
: 370). Ou seja, as autoridades tradicionais suprem, em grande medida, as insuficiências e falibilidades dos Estados Africanos pós-independências.

É possível se falar em pelo menos dois modelos de acomodação das autoridades tradicionais: 1) o monista/integração: no qual as autoridades fazem parte da administração pública (indirect rule) formalmente ou não; 2) o dualista/ou de reconhecimento: onde elas são reconhecidas como representantes e líderes das suas próprias comunidades, ou seja, como uma instituição autônoma do estado local. As fontes de legitimação das autoridades tradicionais variam consoante o tipo de modelo adotado, no modelo monista ela se liga ao aparelho administrativo estatal, enquanto que no modelo dualista ela deriva diretamente das populações subordinadas. Mas, em ambos os modelos, a relação entre o Estado e as autoridades tradicionais é sempre encarada de um prisma hierárquico de subordinação dos segundos aos primeiros, isto é, nenhum dos modelos expressa uma verdadeira visão pluralista da relação. Neste sentido, os sistemas legais costumeiros devem subordinar-se e conformar-se sempre com o Direito estatal e com as normas constitucionais. (FLORÊNCIO, 2010FLORÊNCIO, Fernando. “Pluralismo Jurídico e Estado Local em Angola: um olhar crítico a partir do estudo de caso do Bailundo”. Departamento de Ciências da Vida Universidade de Coimbra, 2010. Disponível em: <https://www.uc.pt/en/cia/publica/AP_artigos/ AP28.05_fernandoflorencio> Acesso em: 18 mar. 2017.
https://www.uc.pt/en/cia/publica/AP_arti...
: 100)

O entendimento de pluralismo jurídico de Fernando Florêncio, do qual discordamos, remonta à sua versão fraca, que é composto, segundo Norbert Rouland (2003ROULAND, Norbert. Nos confins do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003.: 158-159), de mecanismos jurídicos diferentes que se aplicam à situações idênticas. Já a sua versão forte inspira-se na ideia de que os diferentes grupos sociais se colocam diante de múltiplas ordens jurídicas. As consequências dessas versões diferem. A primeira reverte em vantagem do direito estatal: nela o pluralismo em geral se reduz a manifestações de autonomia toleradas, reguladas ou incentivadas por ele. Vale mais então falar de pluralismo de mecanismos jurídicos do que de pluralismo jurídico, o qual pressupõe a existência e o encontro de múltiplas ordens jurídicas. A versão forte pode redundar em choques, e abre portas para sistemas que podem se afastar ou se atrair. Assim como Rouland, nós também guardamos preferência e afinidade à versão forte.

Além disso, a versão fraca de pluralismo jurídico a que Fernando Florêncio adere, se subjaz ao entendimento hegemônico e ocidental de Direito que dá primazia a uma ordem jurídica oficial (a estatal) em detrimento das oficiosas ou ocultas (dentre elas, a tradicional) de maneira autoritária e antidemocrática, que nós veementemente criticamos aqui. E sobretudo desvirtua às cosmogonias africanas para as quais:

(...) tudo é pensado em termos de instâncias múltiplas, especializadas e interdependentes. Assim, em tais culturas, em vez da “monologia” que caracteriza a tradição jurídica ocidental, haveria uma “polilogia” (polylogie) determinante na organização da sociedade e de sua juridicidade. o movimento de organização seria proveniente do interior do grupo a partir de visões animistas que remetem a uma concepção de ordenação endógena e não exógena. Por conseguinte, elas apresentam um modo de articulação das normas que é substancialmente distinto do arranjo presente nas sociedades ocidentais. Na concreção específica da juridicidade em tais contextos não prevalece, tal como ocorre no Ocidente, a dimensão normativa que se expressa em “Normas Gerais e Impessoais”, e sim o que Le Roy denomina de “Modelos de Condutas e de Comportamentos” (MCC) e “Sistemas de Disposições Duráveis” (SDD). O autor também designa essas três categorias descritivas de “macronormas”, “mesonormas” e “micronormas”, respectivamente. (VILLAS BÔAS FILHO, 2014Juridicidade: uma abordagem crítica à monolatria jurídica enquanto obstáculo epistemológico. Revista da Faculdade de Direito da USP, vol. 109, p. 281-325, 2014.: 301-302; 2015VILLAS BÔAS FILHO, Orlando. A regulação jurídica para além de sua forma ocidental de expressão. Direito & Práxis, v. 6, n. 12, 2015, p. 159-195.: 179)

Para outra crítica ao Direito do Estado a que Fernando Florêncio privilegia em suas análises, tomemos a de Boaventura de Sousa Santos, que ao se referir a modernidade ocidental, afirmou que “não se trata de uma paradigma sócio-cultural global ou universal, mas sim de um paradigma local que se globalizou com êxito, um localismo globalizado” (SANTOS, 2000SANTOS, Boaventura de Sousa. A Crítica da Razão Indolente: contra do desperdício da experiência. Porto: Afrontamento, 2000.: 18). Ainda, se quisermos, podemos nos aproprias das ideias de Étienne Le Roy, expostas por Orlando Villas Bôas Filho (2014Juridicidade: uma abordagem crítica à monolatria jurídica enquanto obstáculo epistemológico. Revista da Faculdade de Direito da USP, vol. 109, p. 281-325, 2014.: 310; 2015: 178), que considera que a visão de mundo (cosmogonia) ocidental engendra uma “nomologia” (nomologie), uma “ciência da regra”, e o “culto à lei” como características próprias de nossa tradição jurídica que, entretanto, não aparecem nas demais, uma vez que as cosmogonias que as orientam são distintas. Ou seja, a cultura ocidental é marcada por uma representação de mundo unitarista ou monológica que Le Roy, em trabalhos mais recentes, passou a qualificar de monolatria.

Antes de adentrarmos propriamente na temática das autoridades tradicionais, seu conceito, suas funções e seu enquadramento jurídico no quadro legal angolano, importa fazer um excerto sobre a maneira como as sociedades locais, com suas ordens jurídica e política igualmente locais, foram subalternizadas pelo colonialismo e suas ordens política e jurídica pretensamente universais. Não obstante essa subalternização histórica das autoridades tradicionais pelo colonialismo, mesmo após a independência o Estado-MPLA continua a estabelecer uma relação com as autoridades tradicionais, marcada pela manipulação, instrumentalização e violência simbólica, quase como uma reinvenção da gramática colonial, como veremos adiante.

Estado eurocêntrico versus Estado afrocêntrico

O colonialismo instalado em Angola fundamentou-se na tese e no princípio da vocação civilizacional, a de que indígenas e suas “culturas” deveriam ser progressiva e seletivamente assimilados na civilização portuguesa. Entretanto, enquanto tal não sucedesse, os indígenas deveriam ser mantidos e respeitados nas suas culturas e costumes. É assim que toda a produção legislativa desse período (finais do séc. XIX) acentuou a existência de dois tipos de sociedade dentro do mesmo espaço colonial: a sociedade colonizadora (branca e européia) e as sociedades indígenas (gentias e nativas) (FLORÊNCIO, 2010FLORÊNCIO, Fernando. “Pluralismo Jurídico e Estado Local em Angola: um olhar crítico a partir do estudo de caso do Bailundo”. Departamento de Ciências da Vida Universidade de Coimbra, 2010. Disponível em: <https://www.uc.pt/en/cia/publica/AP_artigos/ AP28.05_fernandoflorencio> Acesso em: 18 mar. 2017.
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: 101).

O primeiro destes estados/sociedade vige no continente Africano, em geral, e em Angola, em particular, desde a colonização. Este é um Estado social, cultural e político que dá primazia aos valores, hábitos e costumes europeus em detrimento dos elementos básicos e fundamentais da cultura local. Este estado é fruto de um processo de assimilação colonial. O segundo estado/sociedade, pelo contrário, vigeu, e ainda vige, desde antes da colonização e depois dela, com o incremento das independências em 1975. Importa, pois, ressaltar que o estado no qual se insere o pluralismo jurídico está presente desde sempre no ethos cultural e social dos povos africanos e se compromete a salvaguardar seus valores locais. Este segundo estado é, portanto, fruto de um pluralismo social inerente às sociedades africanas, no geral, e à sociedade angolana, em particular.

A distinção entre estes dois estados/sociedades aprofundou-se legislativamente na década de 1930 com a publicação de quatro documentos fundamentais do colonialismo português, com especial incidência para o Estatuto Político, Civil e Criminal dos Indígenas da Guiné, Angola e Moçambique, publicado em 1929; a Constituição da República, de 1933; o Ato Colonial, de 1933; a Carta Orgânica e a Lei da Reforma Administrativa Ultramarina, ambas publicadas também em 1933. O Ato Colonial (Decreto 18.570), no título II sobre os indígenas, por exemplo, defendeu a existência de regulamentações e de direitos especiais para os indígenas não assimilados e a observância dos seus usos e costumes (FLORÊNCIO, 2010FLORÊNCIO, Fernando. “Pluralismo Jurídico e Estado Local em Angola: um olhar crítico a partir do estudo de caso do Bailundo”. Departamento de Ciências da Vida Universidade de Coimbra, 2010. Disponível em: <https://www.uc.pt/en/cia/publica/AP_artigos/ AP28.05_fernandoflorencio> Acesso em: 18 mar. 2017.
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: 102).

A clara divisão entre estas duas sociedades se assentava na divisão entre cidadãos e indígenas, os primeiros com direitos e deveres definidos pela legislação da metrópole, e os segundos regidos pelo direito costumeiro e administrados por autoridades tradicionais aliadas do poder colonial. Quer o direito costumeiro, quer as autoridades tradicionais, deveriam servir os interesses coloniais (ARAÚJO, 2008ARAÚJO Sara. Acesso à justiça e pluralismo jurídico em Moçambique. Resolução de litígios no bairro «Jorge Dimitrov». Disponível em: http://www.egov.ufsc.br/portal/conteudo/acesso-%C3%A0-justi%C3%A7a-e-pluralismo-jur%C3%ADdico-em-mo%C3%A7ambique-resolu%C3%A7%C3%A3o-de-lit%C3%ADgios-no-bairro-%C2%ABjorge>, Acesso em: 22/11/2017.
http://www.egov.ufsc.br/portal/conteudo/...
: 5).

As sociedades afrocêntricas e suas instituições de poder político tiveram que se sujeitar ao Estatuto Político, Civil e Criminal dos Indígenas da Guiné, Angola e Moçambique, que as enquadraram política e administrativamente por meio do princípio da separação entre “indígenas” e “não indígenas”. Esse processo acarretou uma dupla subordinação, política e jurídica, das populações ou sociedades “indígenas”. Essa subordinação é claramente notada na administração da justiça aos “indígenas”, por ser um critério evidente da soberania e importante instrumento de consecução dos fins do Estado.

O vulgarmente chamado Estatuto do Indigenato, que adotou o sistema de indirect rule, limitou as sociedades africanas, do ponto de vista político e jurídico, ao seu modelo tradicional de vida, ou seja, segundo os seus usos e costumes. Este modelo assumiu abertamente a duplicidade política e jurídica da sociedade colonial. Nele, as populações “indígenas” estavam impossibilitadas de se integrar de forma plena na sociedade colonial, uma vez que estavam obrigadas a continuar a reproduzir modelos tradicionais de organização social. As autoridades tradicionais são, por um lado, a garantia da continuidade desse modelo de organização e, por outro, a “ponte” institucional entre esses dois universos, colonizados/colonizadores, bem como velavam pela subordinação dos colonizados ao Estado português. Esse duplo papel é institucionalizado em 1933 com estabelecimento da Reforma Administrativa Ultramarina, Decreto Lei 23.229, de 15/11, que define a integração das autoridades tradicionais no aparelho administrativo colonial. Definindo e institucionalizando o modelo de relacionamento entre o Estado colonial e as autoridades tradicionais (FLORÊNCIO, 2010FLORÊNCIO, Fernando. “Pluralismo Jurídico e Estado Local em Angola: um olhar crítico a partir do estudo de caso do Bailundo”. Departamento de Ciências da Vida Universidade de Coimbra, 2010. Disponível em: <https://www.uc.pt/en/cia/publica/AP_artigos/ AP28.05_fernandoflorencio> Acesso em: 18 mar. 2017.
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: 101-103).

No capítulo dos deveres e das funções das autoridades tradicionais, destacam-se os seguintes pontos: 1) a obrigação de obedecer fielmente às autoridades administrativas portuguesas (Artigo 99.º, § 1.º); 2) dar publicidade às ordens da Administração (Artigo 99.º, § 2.º); 3) manter a ordem na sua regedoria (Artigo 99.º, § 3.º); 4) fornecer homens para a polícia e o exército, sempre que solicitado (Artigo 99.º, § 4.º); 5) informar a Administração sobre qualquer ocorrência extraordinária na regedoria, como crimes, falecimentos, doenças endêmicas, comércio ilegal e demarcações de terrenos (Artigo 99.º, § 5.º); 6) participar e registrar casamentos, nascimentos e óbitos (Artigo 99.º, § 6.º); 7) impedir o comércio e a fabricação de bebidas alcoólicas e venenos (Artigo 99.º, § 7.º); 8) impedir a prática de feitiçaria e adivinhações (Artigo 99.º, § 9.º - salientamos); 9) prender criminosos ou suspeitos e entregá-los às autoridades administrativas (Artigo 99.º, § 14.º); 9) incitar as populações a praticar o tipo de agricultura que a Administração aconselhar (Artigo 99.º, § 16.º). No que respeita às atribuições de manutenção da ordem, é proibido às autoridades tradicionais a competência de julgar qualquer tipo de crimes, mas apenas as de prender os suspeitos e relatar os fatos à administração (Artigo 99.º, § único). As autoridades tradicionais podiam também pedir à Administração a expulsão dos seus territórios dos indivíduos perturbadores da ordem pública (Art. 100.º) (FLORÊNCIO, 2010FLORÊNCIO, Fernando. “Pluralismo Jurídico e Estado Local em Angola: um olhar crítico a partir do estudo de caso do Bailundo”. Departamento de Ciências da Vida Universidade de Coimbra, 2010. Disponível em: <https://www.uc.pt/en/cia/publica/AP_artigos/ AP28.05_fernandoflorencio> Acesso em: 18 mar. 2017.
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: 104-105).

Importante ressaltar que o modelo do indirect rule, de governo indireto, descrito na literatura colonial britânica, que tem em sua origem o respeito pelas tradições e costumes das sociedades tradicionais africanas, na verdade nunca foi integralmente aplicado, dado que as administrações coloniais sempre governaram de modo mais ou menos coercivo e manipulador (LOMBARD apudFLORÊNCIO, 2010FLORÊNCIO, Fernando. “Pluralismo Jurídico e Estado Local em Angola: um olhar crítico a partir do estudo de caso do Bailundo”. Departamento de Ciências da Vida Universidade de Coimbra, 2010. Disponível em: <https://www.uc.pt/en/cia/publica/AP_artigos/ AP28.05_fernandoflorencio> Acesso em: 18 mar. 2017.
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: 105). Nesse sentido, o termo serve essencialmente para descrever uma forma de governo na qual a potência colonial usa os sistemas políticos tradicionais africanos como os alicerces mais baixos do sistema administrativo. Deste modo, em face da ausência de recursos significativos, humanos e econômicos, e da falta de legitimidade das administrações coloniais, o sistema de indirect rule permitiu aos estados coloniais controlar os territórios e as populações africanas através do recurso, controle e manipulação das suas autoridades políticas africanas. É precisamente neste quadro que as instituições políticas tradicionais africanas assumem um papel de relevo. Elas constituem, paradoxalmente, a salvaguarda da continuidade do modelo de organização “indígena” e do modelo de administração colonial, e a intermediação institucional entre esses dois universos. No que diz respeito às atribuições jurídicas e, sobretudo, no caso dos julgamentos, as autoridades tradicionais foram fundamentais. Em Angola, como em Moçambique, estes tribunais existiam em todos os escalões da estrutura das autoridades tradicionais. No caso do Bailundo, todas as autoridades tradicionais, nomeadamente os olossekulu, os olossoma e o osssoma inene, possuíam os seus tribunais tradicionais, que funcionavam em sistema hierárquico, à semelhança do que sucedia no período pré-colonial (FLORÊNCIO, 2010FLORÊNCIO, Fernando. “Pluralismo Jurídico e Estado Local em Angola: um olhar crítico a partir do estudo de caso do Bailundo”. Departamento de Ciências da Vida Universidade de Coimbra, 2010. Disponível em: <https://www.uc.pt/en/cia/publica/AP_artigos/ AP28.05_fernandoflorencio> Acesso em: 18 mar. 2017.
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: 105-106).

As funções jurídicas e políticas das autoridades tradicionais, impostas pelo atual pluralismo jurídico não são novas. O que talvez possa haver de novo seja a premente necessidade de estes novos atores sociais participarem ativa, dialógica e dialeticamente no já retrógado processo de democratização de África, na administração da justiça e no alargamento dos espaços de exercício da cidadania por meio da participação da sociedade civil. O processo de democratização de África não pode se restringir à “propriedade privada” do poder político, de regimes políticos aparentemente democráticos, mas substancialmente autoritários e despóticos.

Conceito de Autoridade Tradicional

No sistema político e jurídico atual de Angola, marcado por significativa concentração do poder, as autoridades tradicionais no geral e a do M’Balundu em particular cobram um conjunto de tarefas, tais como: controle e distribuição do fundo fundiário comunitário e dos lugares sagrados; controle do assentamento das populações deslocadas durante o conflito; mobilização das populações dos quimbos (aldeias) para os programas estatais nas áreas da saúde e educação; recenseamento da população; registro de nascimentos e óbitos; coleta de certos impostos municipais; licenças de caça e pesca; licenças de atividades comerciais (FLORÊNCIO, 2010FLORÊNCIO, Fernando. “Pluralismo Jurídico e Estado Local em Angola: um olhar crítico a partir do estudo de caso do Bailundo”. Departamento de Ciências da Vida Universidade de Coimbra, 2010. Disponível em: <https://www.uc.pt/en/cia/publica/AP_artigos/ AP28.05_fernandoflorencio> Acesso em: 18 mar. 2017.
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: 115).

Uma vez conquistada a independência em 1975, e com a consequente implementação do sistema de partido único, com base na ideologia comunista marxista-leninista, o Estado angolano voltou-se para a concentração do poder nas mãos do Estado-partido. Porém, desde o final da década de 1980 e a partir de 1992, com a realização das primeiras eleições multipartidárias, outros atores sociais foram incorporados, inclusive as autoridades tradicionais. Tal necessidade surge, dentre outros fatores, da incapacidade de o Estado abranger e estender seus serviços para as zonas mais recônditas do país.

Em 2010, encontravam-se registradas em Angola 31.845 autoridades tradicionais representativas do poder tradicional, das quais: 21 reis e rainhas; 1081 grandes sobas; 10.319 sobas e 19.704 sekulos. A este número somam-se 41.557 ajudantes. Elas têm uma organização chamada clã. Cada clã comporta, pelo menos, entre 200 a 300 pessoas submetidas à liderança da respectiva autoridade tradicional que, enquanto tal, realiza tarefas administrativas.

Apesar disso tudo, há uma dificuldade na delimitação do que se entende por “autoridades tradicionais”, “poder local” ou “autoridades locais”. Os equívocos de designação são evidentes no modo como se formulam perguntas e respostas sobre o assunto. Sugere-se, no entanto, que só se deveria falar de “autoridade tradicional” quando se tratar de titulares de antigas chefias ou dignatários principais de antigos Estados africanos, mesmo se na maior parte dos casos lhes restar pouco poder, autoridade ou legitimidade. Noutras ocasiões, nomeadamente nos círculos das ONGs e igrejas, predomina a referência a “autoridades tradicionais” como representantes de “comunidades locais” geralmente de reduzidas dimensões (grupo de aldeias ou bairros), com o papel manifesto e visível nas relações sociais concretas. A sua legitimidade decorre da prática social conferida por observadores externos (NETO, 2002NETO, Maria da Conceição. Fórum Constitucional, realizado em 20-22 de março de 2002, na província do Huambo, pelo National Democratic Institute, Fundação Friedrich Ebert, pela Universidade Católica de Angola e ADRA. Disponível em: <http://library.fes.de/pdf-files/bueros/ angola/hosting/neto.pdf> Acesso: 10/09/2016.
http://library.fes.de/pdf-files/bueros/ ...
: 2-3).

Em Moçambique como em Angola, o Estado-Frelimo e o Estado-MPLA respectivamente, conferiram às autoridades tradicionais poderes com uma grande carga simbólica, como o poder de usar fardamento e símbolos da República, de receber um subsídio pela sua participação na cobrança de impostos e de participar das cerimônias oficiais (FERNANDES, 2007FERNANDES, Tiago Matos. “Descentralizar é fragmentar? Riscos do pluralismo administrativo para a unidade do Estado em Moçambique”. Revista Crítica de Ciências Sociais, 77, Junho 2007: 151-164. Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, 2007. Disponível em: https://rccs.revues.org/795>, Acesso em: 23/11/2017.
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: 157).

A relativa incorporação das autoridades tradicionais à máquina estatal angolana gerou uma forte dependência financeira que retirou autonomia e independência suficientes das autoridades tradicionais para o estabelecimento de uma relação horizontal com o Estado. Como consequência, o modelo/sistema jurídico pluralista ficou prejudicado, assim como o processo de democratização do país. Ocorreu, assim, um processo de instrumentalização das autoridades tradicionais por forças estatais, administrativas e partidárias, que visava torná-las meros auxiliares e intermediários do Estado em sua capacidade de dominação, controle e organização da população. Esta instrumentalização partidária fez com que as autoridades tradicionais prestassem serviços para o partido com uma recompensa inferior ao valor prestado (ORRE, 2009ORRE, Aslak. Fantoches e Cavalos de Troia? Instrumentalização das Autoridades Tradicionais em Angola e Moçambique. Cadernos de Estudos Africanos Oline, 2009 Disponível em: https:// cea.revues.org/190> Acesso em: 10/7/2017.: 143-149). Todavia, deve-se ressaltar “a capacidade das autoridades tradicionais em manipular a relação com o Estado em seu favor, de acordo com o contexto específico” (FLORÊNCIO, 2010FLORÊNCIO, Fernando. “Pluralismo Jurídico e Estado Local em Angola: um olhar crítico a partir do estudo de caso do Bailundo”. Departamento de Ciências da Vida Universidade de Coimbra, 2010. Disponível em: <https://www.uc.pt/en/cia/publica/AP_artigos/ AP28.05_fernandoflorencio> Acesso em: 18 mar. 2017.
https://www.uc.pt/en/cia/publica/AP_arti...
: 104).

Durante a entrevista que nos foi cedida pelo vice-rei da Ombala do M’Balundu, ao responder a pergunta sobre que penas são aplicadas, afirmou-nos que a “Corte não tem cadeia porque a cadeia não serve para nada, pois muitas vezes o Estado prende num dia e solta noutro, por isso cobramos multa aos culpados dos crimes”. A noção de juridicidade de Étienne Le Roy (VILLAS BÔAS FILHO, 2014Juridicidade: uma abordagem crítica à monolatria jurídica enquanto obstáculo epistemológico. Revista da Faculdade de Direito da USP, vol. 109, p. 281-325, 2014.: 294) implica o caráter obrigatório de um ato ou de uma relação, ou seja, a possibilidade de imposição de sanção (sanctionnabilité), qualquer que seja a autoridade garantidora desde que ela seja passível de ser mobilizada. Isso significa que há diversos tipos de sanção que repousam sobre fundamentos distintos e complementares e que, consequentemente, o Estado não é a única instância dotada de autoridade para sancionar.

Num outro momento da nossa conversa, o vice-rei da Ombala do M’Balundu nos disse que a Ombala não possui um aparato policial, ao contrário do que Robert W. Shirley (1987SHIRLEY, Robert Weaver. Antropologia jurídica. São Paulo: Saraiva, 1987: 53) nos faz lembrar ao distinguir comunidade de Estado: este mostra maior complexidade e o requisito essencial para a sua existência é a presença de uma força policial profissional para fazer cumprir as decisões dos juízes e árbitros.

A flexibilidade, a celeridade, a informalidade, a oralidade e a capacidade de resolver problemas são elementos que jogam papel fundamental na justiça tradicional e os verificamos quando assistimos ao julgamento, ao contrário dos processos estatais de matriz europeia marcados pela formalidade, pela morosidade, pela escrita, pela procedimentalidade e pela burocracia. “Aqui, a proposta extremamente simples é que um sistema de direito é evoluído quando tem legitimidade, apoio popular, não de todos, mas do maior número possível de pessoas, haja vista a natureza complexa do mundo moderno e da sociedade industrial [tecnológica, robótica, rede, etc.]. […] Talvez o direito mais desenvolvido não seja necessariamente o mais complexo nem o mais positivista” (SHIRLEY, 1987SHIRLEY, Robert Weaver. Antropologia jurídica. São Paulo: Saraiva, 1987: 76-77).

Noutro momento da nossa conversa com o vice-rei, quando questionamos sobre a possibilidade de as partes recorrerem ao tribunal tanto tradicional quanto estatal, em resposta disse-nos: “(…) há casos em que as famílias saem insatisfeitas e a tendência é que, epá, as coisas não terminam por aqui, sobretudo, o lado que acha que todo peso recaiu sobre ele, tentam recorrer ao Tribunal [do Estado]”.

As teses de Marcelo Neves sobre o transconstitucionalismo se mostram úteis aqui, pois o modelo transconstitucional rompe com o dilema “monismo/pluralismo”. A pluralidade de ordens jurídicas implica, na perspectiva do transconstitucionalismo, a relação complementar entre identidade e alteridade: a identidade é rearticulada a partir da autoridade, mediante “conversação” ou “diálogo”. Porém, tendo em conta que toda “conversação” entre cortes carrega em si o potencial da disputa. O problema é como solucionar essas disputas sem a imposição top down na relação entre ordens. Ou seja, não cabe falar de uma estrutura hierárquica entre ordens: a incorporação recíproca de conteúdos implica uma releitura de sentido à luz da ordem receptora. Que haja uma reconstrução de sentidos, que envolve uma certa reconstrução do outro e uma autodesconstrução: tanto conteúdos de sentido do “outro” são desarticulados (falsificados) e rearticulados internamente, quanto conteúdos de sentido originários da própria ordem são desarticulados (falsificados) e rearticulados em face da introdução do “outro”. (NEVES, 2012NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2012.: XXV e 117-118)

A instrumentalização, referida acima, compromete a existência de outros sistemas de autofinanciamento das autoridades tradicionais, o que as torna reféns permanentes do Estado. Ela é tão séria a ponto de fazer com que símbolos e insígnias do partido Estado-MPLA venham a ser mais difundidos e conhecidos pelos cidadãos em locais recônditos do que os símbolos e insígnias do próprio Estado angolano. As multas e taxas relativas ao julgamento tradicional são a única fonte de arrecadação de receita, uma fonte irrisória, e não é capaz de criar a desvinculação da dependência financeira do Estado-MPLA. Por outro lado, a agricultura poderia servir de fonte de receitas, pois ela poderia permitir a produção de muito mais do que se necessita para consumo próprio e poderia gerar um excedente na produção de alimentos que poderia ser destinado à alimentação de outras pessoas. O incremento da produtividade agrícola, portanto, poderia implicar um maior desenvolvimento cultural e material (SHIRLEY, 1987SHIRLEY, Robert Weaver. Antropologia jurídica. São Paulo: Saraiva, 1987: 29). Além disso, o Estado poderia conferir às Autoridades Tradicionais, no âmbito do processo de autarquização corrente no país, a adjudicação e a faculdade para elas mesmas arrecadarem determinados impostos municipais, sobretudo em razão da necessidade de uma melhor exequibilidade do bem-estar das comunidades, dada a falibilidade do Estado-MPLA no cumprimento de suas funções e seu alcance reduzido junto a muitas dessas comunidades que se encontram em lugares recônditos do país.

Assim, conceituar o que seja autoridade tradicional implica olhar para o exercício de certo poder em um nível local. A expressão “autoridade tradicional” designa uma instituição que compreende indivíduos e instituições de poder político que regulam a organização do modelo de reprodução social das sociedades tradicionais. Tal definição exclui os indivíduos que detêm um poder meramente informal ou de influência no poder político como os adivinhos, fazedores de chuva, curandeiros, profetas, feiticeiros, etc. (FLORÊNCIO, 2003As Autoridades Tradicionais Vandau, Estado e Política Local em Moçambique. 2003. Tese (Doutoramento em Estudos Africanos, Especialidade de Política e Relações Internacionais em África) - Instituto Universitário de Lisboa, Lisboa, 2003. Disponível em: https://repositorio.iscte.pt/bitstream/10071/12208/1/As_Autoridades_Tradicionais_Vandau.pdf > Acesso em: 22/11/2017.
https://repositorio.iscte.pt/bitstream/1...
: 49).

No relatório-síntese apresentado por Américo Kwononoka, de 6 de maio de 2002, seis províncias de Angola, Bengo, Kuando Kubango, Kuanza Norte, Lunda Norte, Lunda Sul e Moxico, apontaram o que cada uma considerava como autoridade tradicional. Resumidamente, afirmou-se que a autoridade tradicional representa algo de sagrado (Ussoma Ukola = o poder é sagrado) e é o homem (ou o Soba ou Osoma, Muvene ou Muvingana, Ohamba) conhecedor da tradição (dos antigos) e que orienta, coordena, controla e vela pelos interesses das populações, mediando relações entre os indivíduos da sua jurisdição, enquanto administrador do povo. Têm, ainda, funções de juiz supremo, detém o poder político, econômico, religioso e vela pela paz do seu território e pelo bem das suas populações, uma vez que é o responsável máximo pela resolução dos conflitos da comunidade que representa (FEIJÓ, 2012FEIJÓ, Carlos. A coexistência Normativa entre o Estado e as Autoridades Tradicionais na Ordem Jurídica Plural Angolana. Tese (Doutorado em Direito Público). Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. Coimbra: Almedina, 2012.: 31).

Autoridades Tradicionais como uma instituição que transcende os seus membros: competências e funções

As autoridades tradicionais compõem aquilo que designamos como herança histórica nacional, na medida em que elas encontram sua gênese e legitimação no período pré-colonial, no estado afrocêntrico, no qual detinham o poder efetivo sobre as respetivas populações enquanto entidades sociopolíticas. Porém, com o esforço de codificação dos “usos e costumes indígenas” feito pela política colonial portuguesa, baseado num modelo de assimilação institucional, sociocultural e civilizacional, a autonomia delas foi diminuindo, porque passaram a ser integradas na administração colonial (FEIJÓ, 2012FEIJÓ, Carlos. A coexistência Normativa entre o Estado e as Autoridades Tradicionais na Ordem Jurídica Plural Angolana. Tese (Doutorado em Direito Público). Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. Coimbra: Almedina, 2012.: 13).

Maria da Conceição Neto, ao descrever as funções das autoridades tradicionais no período pré-colonial e colonial, aponta que os papéis ou funções que essas chefias exerciam eram de intermediários com os antepassados, competindo-lhes fazer respeitar as leis consuetudinárias e as boas relações com o mundo sobrenatural, de modo que não faltasse chuva, fertilidade da terra, do gado e das pessoas e, portanto, a prosperidade:

Se fossem incapazes, deveriam ser substituídos, voluntária ou compassivamente […]. No Estado colonial, entretanto, essas funções se alteram substancialmente, uma vez que as autoridades tradicionais foram reconhecidas apenas na medida em que se sujeitassem ao papel de auxiliares da administração colonial e a sua atuação fosse do superior interesse desta […]. A leitura da legislação dessa época deixa muito claro que as autoridades foram utilizadas e forçadas a exercerem papéis submissos e humilhantes, tendo perdido a essência de seu poder tradicional, a não ser na esfera do simbólico, como cerimônias rituais, desde que a conversão ao Cristianismo as não proibisse, e de um papel ocasional de juízes em matérias deixadas à sua competência, tudo a despeito de sua autoridade amplamente reconhecida pela população. Dentre essas funções, podemos citar as seguintes: papel de controlo e policiamento, de angariamento de mão-de-obra, de incitamento a determinadas culturas, de denúncia dos que contestassem o regime. Na prática, as chamadas “autoridades gentílicas” se deparavam com um incontestável paradoxo, qual seja, se cumprissem o papel que a Administração portuguesa lhes destinava, seriam odiadas pelo seu povo; se recusassem cumpri-lo, seriam punidas por essa Administração, com prisões ou castigos físicos e degradantes, e, eventualmente, destituídas (NETO, 2002: 5-8).

Para a referida autora, no entanto, as autoridades tradicionais, no ordenamento jurídico angolano moderno, constituem-se em respeitáveis conselheiros, mas não detentores de poderes políticos, que só às instituições da República possuem (NETO, 2002: 10). Sua opinião se funda no fato de as autoridades tradicionais representarem uma classe aristocrática incompatível com as conquistas do Estado democrático de Direito, do governo republicano e do princípio da igualdade. Uma visão mais moderada das autoridades tradicionais, por outro lado, ressalta a necessidade de uma interação entre as culturas ocidentais e africanas, com a aquisição da ciência e da técnica ocidentais sem a perda de seus valores culturais, tais como: a hospitalidade, a fraternidade, o sistema de parentesco, a relação ecológica com natureza, etc. Uma atitude profícua, nesse sentido, é a de estabelecer um diálogo entre os valores da cultura africana e os valores da cultura tecnocientífica moderna, ao mesmo tempo em que se combatem os defeitos de ambas. Modernizar as culturas africanas, mas sem as ocidentalizar, porque seria aliená-las (MUCALE, 2013MUCALE, Ergimino Pedro. Afrocentricidade: complexidade e liberdade. Moçambique: Paulinas, 2013: 218). Nessa mesma linha de entendimento, Carlos Feijó vê a compatibilidade das autoridades tradicionais com a democracia e com o constitucionalismo liberal. Ela se constrói, segundo o autor:

... ampliando o entendimento jurídico do que são as instituições do poder modernas, introduzindo nelas elementos que permitam configurar situações de coexistência institucional normativa sem que daí decorram violações inadmissíveis de normas e de princípios consensuais e genericamente aceites pelo Direito. Para além de que a natureza dinástica e sagrada do poder não é, em si mesma, incompatível com a ideia de Estado de Direito ou de Constituição […] (FEIJÓ, 2012FEIJÓ, Carlos. A coexistência Normativa entre o Estado e as Autoridades Tradicionais na Ordem Jurídica Plural Angolana. Tese (Doutorado em Direito Público). Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. Coimbra: Almedina, 2012.: 378).

Especialmente no caso dos países africanos, o enquadramento administrativo das autoridades tradicionais também deve ser animado pelas suas próprias referências. Ainda que exemplos e modelos europeus ou ocidentais contenham lições nobres e essenciais ao aprofundamento da democracia e do Estado de Direito, cada experiência constitucional deve “encapsular”, ela mesma, as necessidades e as peculiaridades dos seus contextos históricos, políticos e sociológicos, sob pena de copiarem e trasladarem modelos de organização jurídica sem que os pressupostos se reputem corretos (FEIJÓ, 2012FEIJÓ, Carlos. A coexistência Normativa entre o Estado e as Autoridades Tradicionais na Ordem Jurídica Plural Angolana. Tese (Doutorado em Direito Público). Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. Coimbra: Almedina, 2012.: 381). Tal seria contrário à perspectiva afrocêntrica que aqui adotamos.

No que toca à função jurisdicional das autoridades tradicionais, o Supremo Tribunal de Justiça angolano, no Proc. nº 79 definiu essas autoridades como “entidades que integram e dirigem as respectivas comunidades, sendo respeitadas, por entre outras virtudes e poderes, por serem pessoas com autoridade para decidirem sobre a questão de natureza feiticista”, isto é, o STJ angolano considera que é conatural às autoridades tradicionais a existência de competências consuetudinárias ligadas ao sobrenatural. Considera ainda que é dever da autoridade tradicional - de acordo com as regras consuetudinárias - pronunciar-se sobre as questões que lhe são submetidas, uma vez que “atingida a comunidade não há como a autoridade tradicional se manter indiferente ou mesmo afastada do problema considerado comum” (FEIJÓ, 2012FEIJÓ, Carlos. A coexistência Normativa entre o Estado e as Autoridades Tradicionais na Ordem Jurídica Plural Angolana. Tese (Doutorado em Direito Público). Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. Coimbra: Almedina, 2012.: 42).

Um estudo feito pela United Nations Development Programme (UNDP) em 2003, produziu uma lista de funções públicas exercidas pelos Sobas: gestão do uso e distribuição da terra; gestão de assuntos comunitários como trabalho agrícola e atividade comercial; gestão de assuntos de habitação e distribuição geográfica de residências; controle da população e fornecimento de dados para censos e estatísticas, e recrutamento militar; estabelecimento de normas sociais e jurídicas; juízes e mediadores em casos de litígios locais, “mediadores com os antepassados e espíritos; reforço e promoção da construção e manutenção de infra-estruturas públicas; orientação da população sobre informações e decisões governamentais; negociação com os agentes externos (Estado, ONG, negociantes, partidos, etc.), inclusive sobre os recursos naturais; ser porta-vozes das comunidades; guardiões da tradição, estabelecer a ligação com os antepassados; assumir os aspectos mágico-religiosos e práticas de feitiçaria; gerir a vida comunitária no tocante a divisão do trabalho: caça, agricultura, sistemas de troca, etc. (ORRE, 2009ORRE, Aslak. Fantoches e Cavalos de Troia? Instrumentalização das Autoridades Tradicionais em Angola e Moçambique. Cadernos de Estudos Africanos Oline, 2009 Disponível em: https:// cea.revues.org/190> Acesso em: 10/7/2017.: 158-159; PACHECO, 2012PACHECO, Fernando. Autoridades Tradicionais e Estruturas Locais de Poder em Angola: Aspectos Essenciais a Ter em Conta na Futura Administração Autárquica. Ciclo de Palestras sobre Descentralização e o Quadro Antárquico em Angola, organizado pela Fundação Friedrich Ebert, Luanda, 12/3/02. Disponível em: http://library.fes.de/pdf-files/bueros/angola/hosting/pacheco.pdf > Acesso em: 15/07/2017.
http://library.fes.de/pdf-files/bueros/a...
: 8-9).

Enquadramento jurídico das autoridades tradicionais no atual sistema normativo de Angola

A África tem todo o direito de reivindicar, desde que respeitada a sua diversidade cultural, princípios da vida política como qualquer outro local do mundo. Princípios como a igualdade dos cidadãos perante a lei, separação dos poderes, eleições periódicas, deveriam ser equacionados e integrados na filosofia e na prática política dos Estados africanos. É necessário, portanto, que as antinomias e contradições sejam extirpadas, de modo que a Constituição e a lei sirvam de baliza para a definição de quais são os deveres e direitos, atribuições e competências, legitimidade e poder das autoridades tradicionais. Portanto, as dicotomias analíticas formal/informal, oficial/não oficial, moderno/tradicional referindo-se à relação entre poder do Estado e o poder das autoridades tradicionais devem ser superadas. Porém, é preciso que essa relação não continue a ser como é hoje, hierárquica e vertical.

Lembremos que o pluralismo jurídico não recorta conjuntos estáticos: ilumina direitos vivos. Adotemos duas distinções. 1) a divisão de direitos oficiais/direitos oficiosos (ocultos). O Ocidente obedece a uma tradição unitária e costuma pôr sua confiança no direito para reger as relações sociais: por isso os direitos oficiais firmam nele sua preeminência, até mesmo seu exclusivismo. A África negra, de sua parte, aceita mais facilmente o pluralismo jurídico que rege sempre a condição da maior parte de seus habitantes. 2) a distinção relativa à origem das regras que constituem os direitos oficiais e ocultos. Contrariamente ao que se poderia crer, o direito oficial nem sempre é direito recebido/importado e os direitos ocultos, direito autóctone. A riqueza do pluralismo jurídico provém do fato de ele poder combinar diferentemente as duas distinções, direitos oficiais/ocultos, direitos recebidos/autóctones. Notemos que um mesmo conjunto de normas pode mudar de cores, como um camaleão. Observemos também que a dinâmica direito recebido/direito autóctone não funciona necessariamente em benefício do primeiro, como a tradição de imperialismo jurídico eurocêntrica nos convida frequentemente a acreditar. O direito oficial pode muito bem modificar-se com a inclusão de direitos autóctones (ROULAND, 2003ROULAND, Norbert. Nos confins do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003.: 194-196).

A partir de 1975, com a Primeira República, Angola manteve um sistema de poder e de centralização administrativa. Somente em 2002, com o cessar da guerra civil, é que se inicia um período de implementação de um sistema descentralizado do poder administrativo (MIGUEL, 2014MIGUEL, Justina Carlos. O Poder Local Público e as Autoridades Tradicionais em Angola: caso particular do Cunene. Dissertação (Mestrado em Gestão Autárquica) - Escola de Educação, Gestão, Engenharia, Aeronáutica e Design do Instituto Superior de Educação e Ciências, Cunene: 2014 Disponível em: https://comum.rcaap.pt/bitstream/10400.26/8596/1/disserta%C3%A7%C3%A3o.pdf >. Acesso em: 25/11/2017.
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: 12). Em 2010, com a Terceira República marcada pela promulgação da Constituição, é que as autoridades tradicionais ganham o prestígio que merecem, pelo menos a nível constitucional, pois é a primeira vez que elas são mencionadas textualmente na Constituição. De lá para cá, ainda se espera uma efetiva descentralização administrativa e a inclusão de novos atores na disputa do poder político. O que se pretende é, portanto, combater o mal da burocracia e o formalismo excessivo, advindos da detenção do poder de tomada de decisão do poder central em detrimento do poder local, este mais próximo dos cidadãos e, portanto, conhecedor dos seus problemas e demandas mais imediatos. É neste contexto que estão inseridas as autarquias locais, as autoridades tradicionais, associações e organizações não-governamentais. Embora o surgimento do Estado angolano independente reconheça a existência de tais autoridades tradicionais, ele não o faz como poderes autônomos representativos do poder local:

... ao se evidenciar que os detentores do poder estatal angolano independente emulavam com particular semelhança as práticas observadas no período colonial. […] Sob essa prática, no novo Estado independente, e também à imagem e semelhança da “tradição” colonial, nomeia-se, copia-se e “inventam-se” autoridades tradicionais. Na verdade, a realidade pós-colonial como que se assumiu como uma irônica síntese histórica de um passado essencialmente movido por uma narrativa assimilacionista ou de pluralismo pragmático e período transitório para um monismo permanente (FEIJÓ, 2012FEIJÓ, Carlos. A coexistência Normativa entre o Estado e as Autoridades Tradicionais na Ordem Jurídica Plural Angolana. Tese (Doutorado em Direito Público). Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. Coimbra: Almedina, 2012.: 14-15).

Conquanto questionadas a legitimidade, as funções, a autonomia, o poder de decisão e as modelagens jurídicas necessárias à sua coexistência jurídico-formal no seio da ordem jurídica instituída e organizada pelo Estado, as autoridades tradicionais são geralmente aceitas pela comunidade nacional. Isso pode ser explicado em razão delas gozarem de uma legitimidade que lhes é outorgada enquanto intermediários reconhecidos pelo Estado e, portanto, – em termos weberianos – da autoridade legal-racional que a instrumentalização administrativa lhes confere. Além disso, as autoridades tradicionais modernas gozam de duas fontes de autoridade e legitimidade. Uma vem da população e sua tradição, de baixo. A outra fonte, de cima, do Estado que a reconhece legalmente e a ela devolve poderes administrativos (ORRE, 2009ORRE, Aslak. Fantoches e Cavalos de Troia? Instrumentalização das Autoridades Tradicionais em Angola e Moçambique. Cadernos de Estudos Africanos Oline, 2009 Disponível em: https:// cea.revues.org/190> Acesso em: 10/7/2017.: 146-147).

A relação que as autoridades tradicionais estabelecem com o Estado, sobretudo na relação que estabelece com as comunidades que lideram, no entanto, traz o problema da nomeação “instrumentalizável” pelo Estado. Daí o desafio: tornar o fenômeno colonial e pós-colonial de reconhecimento oficial da autoridade tradicional “com linhagem, verdadeiramente autóctone ” (ORRE, 2009ORRE, Aslak. Fantoches e Cavalos de Troia? Instrumentalização das Autoridades Tradicionais em Angola e Moçambique. Cadernos de Estudos Africanos Oline, 2009 Disponível em: https:// cea.revues.org/190> Acesso em: 10/7/2017.: 150).

O enquadramento jurídico que defendemos em relação às autoridades tradicionais é crítico da concentração e centralização administrativas, que pressupõem o processo ativo de instrumentalização, além de um escalonamento hierárquico em que as autoridades tradicionais são meros órgãos administrativos subalternos e inferiormente situados em face do poder central e hierárquico do Estado-MPLA, que desvirtua a perspectiva afrocêntrica e pluralista que aqui adotamos.

O Reconhecimento infraconstitucional das autoridades tradicionais de Angola

O reconhecimento das autoridades tradicionais se deu em vários pontos da legislação infraconstitucional: no Código Civil da República de Angola, artigo 348º, no qual se reconhece a aplicabilidade do direito consuetudinário local ou estrangeiro para a resolução da lide jurídica, quando invocado por uma das partes do litígio a quem se incube fazer prova da sua existência e do seu conteúdo, ou ainda pelo conhecimento oficioso do tribunal quando nenhuma das partes o tenha alegado; na Lei de Terras nº 9/04, de 9 de novembro de 2004, em que se estipula, em seu art. 9º, o respeito e a proteção dos direitos fundiários das comunidades rurais (comunidades tradicionais) e inclusive aqueles que se fundam nos usos e costumes. O nº 1 do art. 82º desse dispositivo legal outorgou às autoridades tradicionais o poder de dirimir internamente litígios sobre terrenos rurais comunitários. Porém, tal competência não é absoluta, na medida em que se uma das partes não concordar com a resolução do litígio poderá levá-lo aos tribunais; no Decreto nº 53/07, de 28 maio, herdeiro de vários decretos anteriores e que desde o Decreto Conjunto nº 37/92, de 21 de agosto, trata do ajustamento do subsídio mensal atribuído ao Soba grande e às restantes categorias de autoridades tradicionais e auxiliares: o Soba e o Sekulo, ajudante do soba grande e o ajudante do soba; na Lei nº 7/2010, que estabelece o regime jurídico da administração local do Estado: governo provincial, a administração municipal e a administração comunal, encontramos a presença das autoridades tradicionais embora nada se diga quanto à sua realidade social e normativa bem como quanto às suas competências ou atribuições para além de consultivas nos assuntos que tenham a ver com as respectivas populações; no Código de Conduta Eleitoral, aprovado pela Resolução nº 10/05 de 4 de julho, dentre outros agentes eleitorais, que prevê as autoridades tradicionais como agentes eleitorais, impondo-lhes uma série de deveres de conduta (FEIJÓ, 2012FEIJÓ, Carlos. A coexistência Normativa entre o Estado e as Autoridades Tradicionais na Ordem Jurídica Plural Angolana. Tese (Doutorado em Direito Público). Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. Coimbra: Almedina, 2012.: 157-172).

O reconhecimento acima não pode, na prática, limitar o poder e a legitimidade das autoridades tradicionais, seja pela limitação da autonomia local pela dependência financeira destas ao Estado ou por meio de recebimento de subsídios. Há que se criar uma fonte financeira autônoma para as autoridades tradicionais legítimas e as neochefias (a estas deve ser dado o verdadeiro estatuto, de funcionários dos Estado e reintegradas ao Estado) (FEIJÓ, 2012FEIJÓ, Carlos. A coexistência Normativa entre o Estado e as Autoridades Tradicionais na Ordem Jurídica Plural Angolana. Tese (Doutorado em Direito Público). Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. Coimbra: Almedina, 2012.: 166-167). A instrumentalização partidária é, sem sombra de dúvida, um dos grandes empecilhos para a total independência das autoridades tradicionais, enquanto manifestação da autonomia local. A respeito, adverte Aslak Orre:

Partidarização dos sobas – pressão para ser membro do partido MPLA; sobas que não cooperam com o enaltecimento do partido e do Estado ou na sua propaganda podem sofrer várias consequências: ameaças, espancamento, retirada de subsídios e privilégios ou substituição. Um campo de batalha propagandista muito em discussão é a bandeira ostentada ao lado da residência do soba. Muitas vezes é a bandeira do MPLA (em lugar da bandeira nacional); a ostentação de bandeiras de outros partidos não é tolerada; colaboração direta de alguns sobas na intimidação e perseguição de indivíduos da oposição política, ou a inviabilização de suas atividades; exclusão de autoridades tradicionais descendentes de linhagens notáveis a favor de membros do MPLA; sobas associados com a UNITA (durante a guerra) são ignorados ou ameaçados; sobas do MPLA fornecem informação (intelligence) ao partido ou à administração local sobre as atividades da oposição partidária, ou de pessoas a ela associadas; sobas muitas vezes prestam contas ao secretário local do partido MPLA, e não apenas à administração local. Caso o administrador de um município seja da UNITA (como consequência dos acordos para o Governo de Unidade e Reconciliação Nacional), o administrador adjunto seria do MPLA. Nestes casos pode haver pressão sobre o soba/regedor para articular as suas atividades principalmente com o adjunto (ORRE, 2009ORRE, Aslak. Fantoches e Cavalos de Troia? Instrumentalização das Autoridades Tradicionais em Angola e Moçambique. Cadernos de Estudos Africanos Oline, 2009 Disponível em: https:// cea.revues.org/190> Acesso em: 10/7/2017.: 162).

Na verdade, trata-se de uma reatualização do modelo de administração de indirect rule que presidiu a Reforma Administrativa Ultramarina, e que vigorou no país durante praticamente todo o tempo colonial. Feita uma análise realista dos diplomas que vieram regular a articulação das autoridades oficiais com as autoridades tradicionais, pode concluir-se que, à semelhança do ocorrido no tempo colonial, o objetivo da administração central foi novamente o de as autoridades tradicionais desempenharem o papel de representantes do Estado no âmbito local, e só muito residualmente o papel de provedores dos interesses das comunidades junto da administração local (FERNANDES, 2007FERNANDES, Tiago Matos. “Descentralizar é fragmentar? Riscos do pluralismo administrativo para a unidade do Estado em Moçambique”. Revista Crítica de Ciências Sociais, 77, Junho 2007: 151-164. Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, 2007. Disponível em: https://rccs.revues.org/795>, Acesso em: 23/11/2017.
https://rccs.revues.org/795>...
: 158).

As Autoridades Tradicionais na Constituição da República de Angola (CRA) de 2010

A CRA define as autoridades tradicionais no seu art. 224º como “entidades que personificam e exercem o poder no seio da respectiva organização político-comunitária tradicional”. Trata-se, pois, em termos de regime jurídico, de uma pessoa coletiva: a comunidade local tradicional, com personalidade jurídica de Direito Público. Ela reconhece ainda o poder tradicional em seu art. 213, nº 2, como uma das manifestações da autonomia local (poder local angolano) por respeito ao seu peso histórico, social, cultural, político e jurídico no desenvolvimento e afirmação global da administração local autônoma em Angola. Por conseguinte, tal reconhecimento institucional coloca as referidas autoridades, originariamente alheias ao Estado, com autonomia em face deste. Todavia, ainda há muito que fazer. Isso porque não existem autarquias locais com órgãos representativos e eleitos pelas respectivas populações e, no caso das autoridades tradicionais, só agora se efetuou o reconhecimento constitucional formal do poder tradicional, sem que se tenha no plano material procedido à ruptura ideológica e material resultante desse reconhecimento. Esse quadro evidencia uma falta de adequação ao novo quadro constitucional, ainda apresentando um elevado grau de centralização, embora mitigada através de algumas iniciativas administrativas descentralizadoras.

Para Carlos Feijó, por exemplo, o respeito pela autonomia local tradicional pode influir, positivamente, na solução de outros problemas como o da concórdia nacional, da estabilidade política, das especificidades regionais e das questões étnicas. A autonomia local tradicional pode ser, segundo Carlos Feijó: “um fator de reconciliação nacional e o modo como se tratar deste assunto pode em muito contribuir para a desejada estabilidade, o equilíbrio de poder e o fim da exclusão de grupos sociais” (FEIJÓ, 20012: 21).

Esse processo de reconhecimento e “reaparecimento” das autoridades tradicionais se deu por toda África, com a transição do regime de partido único para o sistema de multipartidarização, processo conhecido como transição para a democracia, impulsionado por certa falibilidade, fragilidade e insuficiência do modelo de Estado (de matriz europeia) ali presente. Segundo Feijó, tal reaparecimento materializou-se de acordo com três tendências, por ver vezes convergentes:

A primeira desponta ou “emerge” de um movimento de “baixo para cima” através da associação e cooperação da sociedade civil, como nos casos do Congo, Uganda, Gana, Zâmbia, Ruanda, Chad, Benin e Costa do Marfim. A segunda decorre do exercício do poder administrativo a nível local pelas autoridades tradicionais de modo informal mas não à margem do Estado, na cobrança de impostos, policiamento e administração da justiça. São casos nesta tendência a Serra Leoa, a Namíbia, Somália, Moçambique e também o Congo. A terceira é consequência de formas de criação formal e oficial - de “cima para baixo” - através da incorporação das autoridades tradicionais nas estruturas administrativas do país, em resultado de um reconhecimento legal da sua influência como importantes “atores” locais. Estão nestes casos: o Gana, a África do Sul, Moçambique, Angola, Zimbabué, Somalilândia, Camarões e o Níger (FEIJÓ, 2012FEIJÓ, Carlos. A coexistência Normativa entre o Estado e as Autoridades Tradicionais na Ordem Jurídica Plural Angolana. Tese (Doutorado em Direito Público). Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. Coimbra: Almedina, 2012.: 25).

No caso de Angola, entretanto, sua grande diversidade cultural e étnica impede a uniformização do Direito tradicional ou consuetudinário, uma vez que as autoridades tradicionais simbolizam estruturas sociais e políticas que personificam o diverso mosaico cultural de Angola, maneiras diversas de pensar, sentir e viver o jurídico, não obstante os princípios da unidade e da indivisibilidade territorial apregoados pelos arts. 3º e 8º da CRA, serem fundamentos do Estado angolano (FEIJÓ, 2012FEIJÓ, Carlos. A coexistência Normativa entre o Estado e as Autoridades Tradicionais na Ordem Jurídica Plural Angolana. Tese (Doutorado em Direito Público). Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. Coimbra: Almedina, 2012.: 49). Ou seja, há vários direitos consuetudinários locais e não um corpus juris comum ou unificado.

Para além da coexistência entre a ordem jurídica estadual e a ordem jurídica consuetudinária, existem várias ordens jurídicas consuetudinárias resultantes dos diversos agrupamentos sociais que regem a vida social pelas tradições, usos e costumes mantidos e acatados pelas autoridades tradicionais. Apesar de se poder aludir a uma ordem jurídica consuetudinária, ela não deve ser vista como um sistema estadual monolítico ou singular, mas complexo e plural, constituído pelas inúmeras ordens jurídicas identitárias de cada um dos agrupamentos culturais. Assim como são diversos os grupamentos entnolinguísticos, são, igualmente, os grupamentos normativo-jurídicos (FEIJÓ, 2012FEIJÓ, Carlos. A coexistência Normativa entre o Estado e as Autoridades Tradicionais na Ordem Jurídica Plural Angolana. Tese (Doutorado em Direito Público). Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. Coimbra: Almedina, 2012.: 51).

Reconhecimento e validade do costume na CRA/2010

O art. 7º da CRA, de 2010, reconhece a validade e a força jurídica do costume que não seja contrário à Constituição nem atente contra a dignidade da pessoa humana. O reconhecimento do costume e, consequentemente, das autoridades tradicionais enquanto sujeitos que emprestam vida aos costumes e tradições é, de um lado, declaratório, pois não afeta a configuração ontológica do ente reconhecido; e, por outro, constitutivo, porquanto resulta da reconfiguração qualitativa e ex novo das autoridades tradicionais, qualificando-as como um ente jurídico-público (FEIJÓ, 2013: 394-395). Assim, de acordo com a Constituição, o costume e a lei ficam em pé de igualdade: nenhum é superior ao outro; ambos devem subordinação à Constituição e à dignidade da pessoa humana.

Dentre as várias implicações e consequências da paridade entre lei e costume, destacam-se as de conflitos de normas, por exemplo, os suscitados pelos costumes contra legem, completamente normal em contextos sociais e jurídicos de pluralidade como é o caso de Angola. Cabe, pois, o emprego de meios e mecanismos de se chegar a soluções fundamentadas, numa perspectiva plural, que se harmonizem com a ordem jurídica vigente, sem desmerecer o costume enquanto realidade sociológico-antropológica anterior ao Estado e ao Direito. De outra parte, em face da equiparação de status normativo entre o costume e a lei, há que se atentar também para a situação da lei que ofende o costume. Aliás, a partir de uma perspectiva pluralista, nada impede que uma lei seja considerada “contra costume”, caso ela tenha como propósito, velado ou expresso, subjugar, modificar ou extinguir o costume. Nesse sentido, é a própria Constituição que ordena que os poderes públicos e privados respeitem os valores e normas consuetudinárias “que não sejam conflitantes com a Constituição nem com a dignidade da pessoa humana” (FEIJÓ, 2012FEIJÓ, Carlos. A coexistência Normativa entre o Estado e as Autoridades Tradicionais na Ordem Jurídica Plural Angolana. Tese (Doutorado em Direito Público). Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. Coimbra: Almedina, 2012.: 401).

O segundo critério para a validade do costume, a dignidade da pessoa humana, é o fundamento de qualquer Estado moderno, de modo que ela se encontra na base e no ápice de qualquer ordem jurídica, de qualquer ação política e de qualquer medida socioeconômica que o Estado venha a empreender. Não se trata mais do império do Estado em favor do Estado, mas, antes e acima de tudo, do império da pessoa humana e de sua dignidade, decorrentes da sua simples pertença à humanidade. A dignidade da pessoa humana, na lição de Gomes Canotilho, significa o reconhecimento do homo noumenon, isto é, do indivíduo como limite e fundamento do domínio político da República. Nesse sentido, a República é uma organização política que serve o cidadão e não o contrário. Ademais, ressalta Canotilho, a dignidade da pessoa humana exprime a ideia de comunidade constitucional inclusiva, pautada pelo multiculturalismo mundividencial, religioso ou filosófico, o contrário de “verdades” ou “fixismos” políticos, religiosos ou filosóficos (CANOTILHO, 1998CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 1998.: 219).

Neste sentido, a Constituição e a Dignidade Humana passam a ser limites para a atuação das demais ordens jurídicas existentes no espaço territorial, porém, como se viu, segundo a CRA, o costume e a lei se encontram no mesmo patamar hierárquico. Assim, se a lei não é hierarquicamente superior ao costume e este, de seu turno, não é inferior à lei, não faz sentido que um deles faça controle de validade e legitimidade do outro, senão que ambos em igual medida façam controle um do outro. Por isso mesmo, o único limite para a atuação das autoridades tradicionais quando da administração da justiça junto da sua comunidade será a salvaguarda da vida e da dignidade humana. As autoridades da Ombala do M’Balundu respeitam-nas de acordo com as informações que o Vice-Rei nos transmitiu:

A Corte está para regular os casos. E quanto a alguns regulamentos que também têm paralelo com aquilo que são as leis do Estado é não matar o feiticeiro. Essas orientações que a Corte dá à família-vítima estão de acordo com essas regras do Estado. Sim, depois ficam de acordo mesmo porque temos orientado que todos nós somos, pertencemos ao Estado, e ninguém pode resolver os problemas por mãos próprias, conforme a lei do Estado diz. Aliás, a Corte não usa cadeia, talvez se usasse cadeia era colocar o feiticeiro, um que eliminou se calhar 5 membros de uma família, iria à cadeia mas não, só é lhe orientar para resolver o problema dessa família mas também tem o segundo passo que talvez em um ano tem sido só dois ou três, é remover aquilo (o feitiço) que esse feiticeiro tem, esse tem sido o passo mais difícil porque não tem nada a ver com a Corte, tem a ver com ele próprio ou com a família acusada (...), tem que ser um quimbandeiro igual ou maior que ele para remover aquilo que ele tem. Algumas regras do Estado causam algum constrangimento porque nós (...), tem sido o fenômeno da atualidade as famosas “talas”, quer dizer, nós quando vemos alguém a sofrer uma doença daquela, sobretudo essas atuais, que a pessoa fica mesmo de osso. Ontem enterramos um senhor, lá no Bié, também adoeceu de tala, essa parte toda dos pés ficou mesmo osso até que chegou na barriga, a barriga inflamou, até que morreu. E quando olhamos mesmo que o causador é este, a vontade da corte era também eliminar essa pessoa porque depois ele vai mostrando aquele lado, de que o fulano que morreu sou eu, quer dizer, depois já o quimbandeiro é que vem a destrunfá-lo, que esse na lista dele já tem mais de 15 pessoas que morreram. […] E a ideia da Corte era essa pessoa não existir mais. Porque alguns grandes feiticeiros não usam, os tais mesmos de ponta não usam assim algo físico. [...] Na visão da Corte, o ideal era que tivesse total autonomia para dizer quem é o culpado e qual é a a pena mais adequada para o mesmo. Nós lamentamos tanto alguém que eliminou tantas pessoas, ainda é lhe manter em vida, não sei daqui a quantos meses vai voltar a prejudicar umas quantas pessoas, e, normalmente, é um elemento da família. Às vezes a Corte orienta a família: “família faz esforço, ajuntem algum valor e vamos tirar o feitiço desse camarada, é lhe desmontar para ver se fica mesmo zero”. Possivelmente ele é desmontado mas ele recorre mais a outra fonte, então é bom, ele que tem esse lado de querer ter sempre essas coisas para prejudicar os outros, então que não viva mais no seio da família (Entrevista com o Vice-Rei da Ombala do M’Balundu, 01/2017, na província do Huambo/Bailundo).

Notam-se as tensões entre as diversas ordens jurídicas, entre aquilo que o Estado quer impõe a todos e aquilo que é o modus operandi das comunidades locais, seus valores e costumes, bem como a forma como estas lidam com os conflitos sociais e comunitários. Visivelmente em contradição flagrante com as imposições do Estado, já que elas se constituem fontes jurídicas diversas da do Estado. Impõe-se, nesse contexto, considerar a colisão entre duas perspectivas diversas de direitos, procurando não “fazer injustiça” mediante a imposição de uma, a da ordem dos mais fortes, à outra, a da ordem dos mais fracos. De um lado está o direito à autonomia coletiva, do outro o direito à autonomia individual (NEVES, 2012NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2012.: 226). Daí, a busca de “pontes de transição” ser fundamental. O que caracteriza o transconstitucionalismo entre ordens jurídicas é, portanto, ser um constitucionalismo relativo a (solução de) problemas jurídico-constitucionais que se apresentam simultaneamente a diversas ordens. […] Quando questões de direitos fundamentais ou de direitos humanos submetem-se ao tratamento jurídico concreto, perpassando ordens jurídicas diversas, a “conversação” constitucional [e entre as ordens oficiais e ocultas] é indispensável (NEVES, 2012NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2012.: 128-129).

A Autoridade Tradicional Ovimbundu

Antes de caraterizar a autoridade tradicional Ovimbundu, da qual pertence a Ombala do M’Balundu, importa ressaltar que, atualmente, os ofeka (do Estado ou da Nação) ovimbundu estendem-se entre as províncias do Bié, Huambo, Benguela e sul do Kuanza-Sul. As outras estruturas para além dos ofeka e Osongo ou Olosongo são ymbo ou ovambo (i.e., aldeias), as ovisenge (terras para a atividade produtiva: caça ou agricultura) e as alunda (patrimônio cultural em memória dos antepassados e terras de reserva). A chefia pertence à linhagem que a comunidade reconhece com autenticidade de sangue e maior antiguidade no local em causa. O Usoma (poder tradicional) constitui um séquito estruturado do topo à base em responsabilidades territoriais demarcadas da seguinte forma: a) Osama Inene (equivalente europeu a rei), que governa ao nível da Ofeka; b) O Sekulo, que é atualmente concebido como Soma do Ymbo (aldeia); c) O Soma do Osongo, que é patriarca e chefe do Osongo; d) O Soma da Ombala governa a Ombala, que compreende a capital do Estado e é o centro político do Ovambo (conjunto de agrupamentos populacionais) (FEIJÓ, 2012FEIJÓ, Carlos. A coexistência Normativa entre o Estado e as Autoridades Tradicionais na Ordem Jurídica Plural Angolana. Tese (Doutorado em Direito Público). Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. Coimbra: Almedina, 2012.: 57-59).

Quando da entrevista que o Vice-Rei da Ombala do M’Balundu gentilmente cedeu a um dos co-autores deste texto, foi pedido, dentre outras coisas, que falasse da estrutura e constituição da Corte que representa. Em resposta disse:

A Corte se chama “Mutue Elombe”, é constituída por 35 ministros do Rei. Se hoje vemos o atual governo conforme é constituído, a cópia vem dos nossos ancestrais. A partir do século XV, onde a figura máxima é o Rei e tem a segunda figura que é o Vice-Rei e depois seguem os ministros. Tem o Soba Ngambole, esse tem o trabalho de (...) empossar um rei, é o homem que empossa um Soba dentro de uma comunidade (…). Nesse momento, se for no Estado é quem empossa o Presidente da República. Seria o Juiz do Tribunal Supremo. Depois temos o Soba Muekalia que é a proteção do rei. Há muita gente que odeia rei, sobretudo, a família, a família está em primeiro lugar, (...) não quer ver o homem lá, depois vêm os amigos e alguns Sobas que talvez se mostrem insatisfeitos com o trabalho dele, então tem que ter este homem no lado tradicional para que todo mal que vem (...) de uma maneira que ninguém vê, ele consegue determinar que “ó homem, você está sendo perseguido, faz isso, faz isso, faz isso, faz isso”. Depois encontramos o Soba Kassoma, ya, esse é o único homem orientado a visitar o Rei, de manhã, ao acordar, para ver se o Rei passou bem (...), é a ele que o Rei dá orientação para dizer à Corte para fazer isso ou a fazer aquilo ou se haverá uma reunião. Depois tem o Soba Muechalo, esse é o homem do protocolo, antes do julgamento, ele é que orienta se há bebida, se as cadeiras estão em dia, se a porta está em dia, se tudo está em dia. Depois tem o homem das comunicações que é o Soba Ndalo, esse é o ministro das comunicações, é o homem que faz circular as informações sempre que há um caso que é necessário reportar para os demais sobas ou aos demais reis, então, é este homem enviado para comunicar. E depois tem o Soba Kessongo, o homem que manda todas as forças militares, porque a Ombala também tem polícias. Ya, tem polícias, então é esse que orienta esta equipa. No total são 35, alguns não (...) vêm muito bem na memória, mas tenho aí num apontamento com as funções, então, são esses que fazem a Corte do Rei. Neste momento não temos os 35 completos, salvo 10 (...) devido essas confusões dos tempos de guerra aqui, só vêm para fazer os trabalhos dessa função e cada um vem da sua linhagem, ya: o Rei vem das linhagens dos Reis, o Soba Ngambole vem da linhagem dos Ngamboles, o Muekalia vem da linhagem dos Muekalias, que são mesmo homens que preservam a tradição, o Kessongo vem mesmo da linhagem dos Kessongos, então, cada ministro, cada soba vem da sua linhagem e se é que ele morre, lá mesmo no quimbo (aldeia) dele, onde ele saiu, é encontrar mais alguém para fazer parte da Corte. […] Mas esses 10 que estão presentes, estamos a conseguir gerir devido mesmo esses pequenos movimentos que fazemos, a cobrança de cada julgamento, esses 5 mil, 6 mil kwanzas. Há quem, por vezes, o outro lhe deve 1 milhão, esse 1 milhão quando a Ombala exigir para que devolvam o mais rápido possível, então aí sai uma taxazinha, essa taxa é que ajuda esses mais velhos e não só, tem aqueles casos das multas né, também é outro caso que não perguntaram se alguém viola a mulher do outro quanto é que se paga ya...estamos ainda a falar sobre a Corte então, e a Corte é composta por 35 mas nesse momento estamos a trabalhar com 10 e neste momento a Ombala tem um projeto piloto do Presidente da República estamos à espera que depois da inauguração serão reservadas 35 vagas para os Sobas da Corte, no Centro do Palácio do Rei, 4 Jangos (locais de resolver os problemas), 1 Jango maior de reuniões. É… está sendo construído... escola também já terminou, uma escola de 12 salas, tudo isso à pedido do Rei, 1 hospital para a Ombala, arruamento… nesse momento só falta é apetrechamento, apedrejar as residências e o palácio, e o Presidente fazer a inauguração. […] Senão eles (os ministros da Corte) existem mesmo, todos estão por ali, as suas aldeias são identificadas, ya, mas para ir buscar e manter eles aqui é necessário um pequeno subsídio para manter a vida e essas multas que nós cobramos não são suficientes, ou seja, porque os casos ou os julgamentos também não são todos os dias, nós temos julgamentos de terça, quinta e sábado. Hoje teremos porque sábado não houve, ya, e aí, sobretudo, com essa fase da crise os problemas também diminuíram (Entrevista com o Vice-Rei da Ombala do M’Balundu, 01/2017).

Percebe-se claramente que cada membro da Corte advém da sua própria linhagem, talvez para que o mistério e o poder mágico inerentes a cada linhagem não se percam, com a transição do poder, para uma geração mais nova. Outra razão tem a ver, talvez, com a própria natureza da passagem do poder político, religioso e mágico concernente a essas comunidades.

Notas Conclusivas

Buscamos, neste trabalho, compreender o lugar do pluralismo jurídico em Angola e as dinâmicas subjacentes entre os direitos oficiais e dos direitos ocultos ou oficiosos, dos quais as autoridades tradicionais se incluem. O Estado-MPLA desde 1975 tem concentrado em si todo o poder político e jurídico, deixando os demais atores sociais (partidos políticos, ONGs, igrejas, inclusive autoridades tradicionais, etc.) no não-espaço, no espaço de negação. Tímidas tentativas de descentralização administrativa só confirmam a regra. O ressurgimento das autoridades tradicionais na década de 1990 está inteiramente ligado às insuficiências e falibilidades dos Estados africanos independentes e pós-coloniais, em parte porque foi um modelo de Estado europeu não fundado nos valores e interesses africanos (Afrocentricidade) e também porque os serviços prestados pelo Estado dificilmente se estendiam aos lugares recônditos do país. Assim, cooptadas para servirem a interesses do Estado (indirect rule), as autoridades tradicionais de Angola foram instrumentalizadas pelo Estado-MPLA, administrativa, partidária e financeiramente, o que macula o modelo de ordens jurídicas plurais, estabelecendo-se uma relação de hierarquia e verticalidade, de cima para baixo. O fenômeno da instrumentalização repercute direta e negativamente na relação entre as autoridades tradicionais e as comunidades e, consequentemente, no processo de democratização do país.

Apesar do fenômeno da instrumentalização, as autoridades tradicionais desempenham um conjunto de funções fundamentais para as comunidades, como guardiães da cultura africana, juízes e mediadores em casos de litígios locais, mediadores com os antepassados e espíritos, gestão do uso e distribuição da terra, etc. Essas funções são tão antigas quanto os próprios estados afrocêntricos, pelo que o pluralismo jurídico está maniatado ao pluralismo social. A sociedade angolana possui diversas ordens jurídicas, além da ordem jurídica estatal. Há uma ordem jurídica consuetudinária não homogênea, resultado de comunidades locais, que refletem diversos modos de pensar e sentir o jurídico. Se de um lado essa diversidade e heterogeneidade pode colocar em perigo a unidade do Estado, de outro lado, ela cria um poderoso instrumento para um efetivo movimento participativo e comunitário, tão caros à cultura africana.

A ordem jurídica consuetudinária existe desde sempre no plano sociológico, apesar de seu reconhecimento infraconstitucional e constitucional tardio. No plano infraconstitucional, foi realizado em diversos dispositivos legais, tais como o Código Civil, a Lei das Terras de 2004, o Decreto nº 53/07, de 28 maio, herdeiro de vários decretos anteriores, desde o Decreto Conjunto nº 37/92, de 21 de agosto, a Lei nº 7/2010, e o Código de Conduta Eleitoral, aprovado pela Resolução nº 10/05 de 4 de julho. No plano constitucional, a CRA de 2010, equiparou a lei e os costumes, estabelecendo como seus limites o respeito à vida e a dignidade humana. Com a equiparação da lei e dos costumes é possível haver lei contra costume, quando aquela de forma vedada tende a expurgar do sistema jurídico um costume. Por fim, pretendemos demonstrar que a autoridade tradicional ovimbundu, estruturada por 35 ministros (mas que por limitações de recursos financeiros só possuem 10 deles), se pautam pelos limites estabelecidos pela Constituição, ainda que isso não impeça as tensões entre as diversas ordens jurídicas, oficiais e ocultas.

  • 1
    Sou grandemente grato à Moisés Kandjeke pela amizade, pois ela me permitiu a mobilidade e isentou-me do castigo da solidão, em duas manhãs de cacimbo, quando da minha excursão ao campo na Ombala do M’Balundu. Kapoco, Fernando dos Anjos.
  • 2
    MPLA é o partido político de Angola que governa o país desde que ele se tornou independente de Portugal, em 1975. O MPLA surgiu no final da década de 1950 e teve como um dos seus mais notórios líderes António Agostinho Neto. Depois deste, teve mais dois presidentes. O seu sucessor, José Eduardo dos Santos (1979-2017), que esteve no poder por 38 anos e o atual Presidente da República João Lourenço (2017-), que ainda aguarda, após diversas protelações, sucedê-lo na presidência do MPLA, o que tem constituído a atual bicefalia no seu da política do país.
  • 3
    A FNLA, anteriormente chamada de UPA - União das Populações de Angola, constitui, desde 1992, um partido político, tendo sido um dos movimentos nacionalistas angolanos atuantes na guerra colonial (também conhecida como guerra da libertação) que durou entre 1961 a 1974. A UNITA - União Nacional para a Independência Total de Angola, nasceu em 1966 de uma dissidência da FNLA. É o segundo maior partido político de Angola e o maior partido de oposição ao atual regime. Entretanto, semelhante ao MPLA, a UNITA também só teve dois líderes desde a sua fundação, Jonas Malheiro Savimbi, seu fundador, morto em 02-02-2002, e Isaias Samakuva, seu atual presidente

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2019
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2019

Histórico

  • Recebido
    16 Jan 2018
  • Aceito
    12 Set 2018
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