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A jurisprudência como categoria social: multiplicações de Deleuze...

Jurisprudence as a social category: multiplications of Deleuze...

Resumo

Em duas entrevistas reunidas em Pourparlers, Gilles Deleuze afirmava que a jurisprudência seria a verdadeira filosofia do direito. Ao mesmo tempo em que declarava a prescindibilidade dos juízes, Deleuze advogava que a prática jurisprudencial fosse atribuída a “grupos de usuários”, assinalando aí o ponto em que se passaria do direito à política. Essas teses sugerem a possibilidade de adotar a noção deleuziana de jurisprudência como categoria social. Prolongando essa hipótese, este ensaio questiona se e como a jurisprudência poderia constituir uma categoria do pensamento social, promovendo uma interação deformante entre os campos da filosofia, da teoria social e do direito, especialmente a partir do realismo jurídico de Oliver Wendell Holmes Jr., e das reinterpretações de Laurent de Sutter, das descrições etnográficas de Bruno Latour sobre o direito e das teses de Gilles Deleuze sobre a sua filosofia.

Palavras-chave:
Jurisprudência; Social; Deleuze

Abstract

In two interviews gathered in Pourparlers, Gilles Deleuze stated that jurisprudence must would be proclaimed as the genuine philosophy of law. By advocating its delivrance to “groups of users”, and assigning there the turning point of law into politics, Deleuze have asserted also that judges would be expendable savants. Those caustic theses suggest that the deleuzean apprehension of jurisprudence may be adoptable as a category of social thinking. This essay develops this hypothesis examining if and how may jurisprudence be held as a concept for social thinking by promoting a deforming interaction between the fields of Philosophy, Social Theory and Law. That interaction benefits mainly from the legal realism by Oliver Wendell Holmes Jr., and the innovative interpretations advanced by Laurent de Sutter in that matter, as well as from the ethnographic descriptions on Law, by Bruno Latour, and also from Gilles Deleuze’s theses on Law and Philosophy.

Keywords:
Jurisprudence; Social; Deleuze

Introdução

Este ensaio discute a jurisprudência como categoria social. Para tanto, explora e desenvolve as teses que Gilles Deleuze (2008_____. Conversações (1972-1990)”. São Paulo: Editora 34, 2008.) propôs em duas entrevistas reunidas em Pourparlers. Em resumo, nelas Deleuze afirma a jurisprudência como a efetiva filosofia do direito, que procede por singularidades. No entanto, se comparada às definições técnicas correntes, a noção deleuziana de jurisprudência é incomum. Em primeiro lugar, porque pressupõe uma desarticulação entre a prática jurisprudencial e os juízes; em segundo, porque postula a possibilidade de atribuir a jurisprudência a grupos de usuários, produzindo, aí, uma passagem do direito à política.1 1 Neste texto - embora a repitamos algumas vezes a fim de manter a integridade de sentido das teses de Deleuze -, não nos ocuparemos em elucidar a menção que Deleuze faz sobre a passagem do direito à política. Ela exigiria uma exploração mais detida do conceito de grupo de usuários. Antes, propomos situar problematicamente o conceito de jurisprudência a partir de Deleuze como uma categoria do pensamento social - o que constitui a condição transcendental para passar do direito à política. No entanto, a própria menção a uma “passagem do direito à política” permite evitar, de uma só vez, dois erros corriqueiros sobre as relações entre direito e política: o primeiro, clássico de uma vulgata positivista à qual nem mesmo Kelsen (2011, p. 393-394) atribuía crédito, que consiste em imaginar que o direito possa ser, em todo caso, isolado da política, fruto de um puro ato de conhecimento. O segundo, decorre de uma reação hiperbólica contra o primeiro, e tende a reduzir o direito a uma província da política, ou do poder, subtraindo toda e qualquer autonomia ao campo jurídico. Cf, nesse aspecto, os comentários de (Sutter, 2019, p. 151-152) e (Latour, 2002a, p. 290) sobre o tema.

Esse conjunto de teses, aparentemente anódinas e isoladas no corpus da obra de Deleuze, encerra um potencial analítico pouco explorado pelos intérpretes (Corrêa, 2018CORRÊA, M. D. C. O real do direito: sobre a filosofia do direito de Gilles Deleuze. Rev. Direito, Estado e Sociedade. Rio de Janeiro, n. 53, 2018, p. 182-205. Disponível em: <https://revistades.jur.puc-rio.br/index.php/revistades/article/view/892>. Acesso em 04 Fev 2020.
https://revistades.jur.puc-rio.br/index....
, p. 203-204), e sugere a possibilidade de adotar a noção deleuziana de jurisprudência como uma categoria inerente ao social. Propomos explorar o potencial analítico dessas teses não apenas desdobrando-as exegeticamente a partir da obra de Deleuze, mas articulando-as a uma série de pistas convergentes e heterogêneas, que permitem reposicionar em termos pragmáticos questões que abordagens clássicas, essencialistas, formalistas e positivistas formularam a respeito dessa categoria. Isso implica que problemas como “O que é a jurisprudência?”, ou “O que são os juízes?”, sejam propostos, reinterpretados e descartados a partir de uma série de movimentos teóricos que buscam desenvolver as teses de Deleuze sobre a jurisprudência em campos heterogêneos à sua filosofia, como o Direito e a Teoria Social, produzindo, entre eles, uma interação deformante.

Essa tripla mediação se vale da exploração dos pontos de contato entre: (1) o realismo jurídico dissidente de Oliver Wendell Holmes Jr. (2014); (2) das reinterpretações e deslocamentos notáveis de Laurent de Sutter (2014_____. “Défense et illustration du réalisme juridique”. In: HOLMES JR., O. W. (2014). La voie du droit. Paris: Dalloz, 2014, p. 01-28., 2018a e 2018b); (3) das relações entre jurisprudência e instituição, no próprio Deleuze (2008_____. Conversações (1972-1990)”. São Paulo: Editora 34, 2008.); e (4) dos recentes avanços de Teorias Sociais que parecem ir ao encontro da Filosofia e da prática, como encontramos, por exemplo, em La fabrique du droit, de Bruno Latour (2002aLATOUR, B. La fabrique du droit: une ethnographie do Conseil d’État. Paris: La Découverte, 2002a., 2002b e 2007).2 2 Este ensaio propõe uma leitura o mais liberta possível das alternativas já imaginadas pela maior parte dos comentadores contemporâneos que se dedicaram a elucidar o sentido da filosofia do direito de Deleuze, ou mesmo a dar gravidade institucional ao conceito deleuziano de jurisprudência. Seguindo um gesto filosófico que talvez comprazesse ao próprio Deleuze, consistente em chegar “[...] pelas costas de um autor [...] lhe fazendo um filho, que seria seu, e no entanto seria monstruoso” (Deleuze, 2008, p. 14), o ensaio evita, metodicamente, realizar qualquer esforço para definir “o estado da arte” relativo a esta discussão. Que ele não possa ser negligenciado, estamos de inteiro acordo, e tomamos a liberdade de remeter o leitor aos trabalhos de Sutter (2019, p. 147-157) e Corrêa (2018), que se ocuparam em reconstituir a cena teórica da filosofia do direito deleuziana dos anos 2000 em diante. A conjugação de autores tão heterogêneos decorre de um reencontro entre a Teoria Social e a Filosofia - ao qual procuramos agregar, também, um reencontro com o Direito - que remonta à microssociologia de Gabriel Tarde (2001TARDE, G. Creencias, deseos, sociedades. Buenos Aires: Cactus, 2001., 2007), e recebe transcrições distintas e criativas nas obras recentes de Frédéric Lordon (2013LORDON, F. La société des affects: pour un estructuralisme des passions. Paris: Les Éditions du Seuil, 2013.) e Sérgio Tonkonoff (2017TONKONOFF, S. From Tarde to Deleuze and Foucault: The infinitesimal revolution. Cham: Palgrave Macmillan, 2017.).

Mais do que um material para uma demonstração exegética, as teses de Deleuze funcionam como um centro móvel. Ao seu redor, procuramos construir uma interação deformante e progressiva entre as áreas da Filosofia, da Teoria Social e do Direito que permita deslocar as questões essencialistas sobre a jurisprudência ou os juízes, e avaliar como Deleuze poderia pretender desarticular a jurisprudência de seu uso axiomático e dos juízes, bem como enunciar o principal efeito dessa desconexão: converter a jurisprudência em uma categoria do social.

Essa desarticulação se beneficia do encontro entre as intuições de Oliver Wendell Holmes Jr., que afirmava que os juízes adotam formas lógicas para decisões que frequentemente implicam uma tomada de posição inconsciente e inarticulada a respeito de temas sociais e políticos candentes; por outro, desdobra a reflexão de Michel Foucault (2011FOUCAULT, M. Microfísica do poder. 29. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2011.) sobre o papel dos intelectuais em uma economia política da verdade. Essa desarticulação ainda situa o duplo papel que os juízes desempenham - como juristas-notáveis e como cientistas-peritos - em uma economia política da verdade que, através da administração da justiça, produz uma enclosure cuja função é neutralizar a jurisprudência como um processo social. Anulados, os juízes passam a ser “o inconsciente ritual dos usuários”, as meras personagens conceituais, e os representantes acidentais, em dada formação social, da jurisprudência como um processo coletivo separado do campo social pelo monopólio hermenêutico, técnico e político exercido pelos juízes.3 3 Monopólio que, em outros termos, Jacques Derrida descreveu em Mal de arquivo, recordando a parentalidade etimológica entre arkhê, arkheîon, arconte e arquivo, na antiguidade grega: “Aos cidadãos que detinham e assim denotavam o poder político, reconhecia-se o direito de fazer ou de representar a lei. Levada em conta sua autoridade publicamente reconhecida, era em seu lar, nesse lugar que era a casa deles [...] que se depositavam então os documentos oficiais. Os arcontes foram os seus primeiros guardiões. Não eram responsáveis apenas pela segurança física do depósito e do suporte. Cabiam-lhes também o direito e a competência hermenêutica. Tinham o poder de interpretar os arquivos.” (Derrida, 2001, p. 12-13).

Com apoio em trilhas conceituais não inteiramente desenvolvidas por Alexandre Lefebvre (2008LEFEBVRE, A. The image of law: Deleuze, Bergson, Spinoza. Stanford: Stanford University Press, 2008.), esse trabalho negativo torna pensável a relação entre a jurisprudência e a leitura que Deleuze propõe do conceito humano de instituição como uma criação coletiva - um sistema de meios artificiais para satisfazer instintos ou tendências. Isso prefigura a jurisprudência como um conjunto de práticas e operações a ser apossado por grupos de usuários - ponto em que, segundo Deleuze, passaríamos do direito à política.

Da tendência de interação entre a Teoria Social e a Filosofia, diagnosticada segundo premissas não-compartilhadas nas obras de Tarde, Lordon, Tonkonoff e Latour, selecionamos algumas das conclusões etnográficas deste último para produzir, no corpus de uma versão antígena das Ciências Sociais canônicas, uma nova afinidade eletiva: entre a tese latouriana, de que o direito implica um construcionismo do social, uma técnica esotérica que produz associações entre textos, pessoas e coisas, e a tese deleuziana da jurisprudência como verdadeira filosofia do direito.

Essa nova afinidade eletiva permitirá sobrepor, ainda uma vez, os campos do Direito, da Teoria Social e da Filosofia, reforçando as desarticulações precedentes entre jurisprudência e administração da justiça, e redesenhando positivamente o direito como uma técnica de composição por associação. Como prática associacionista, o direito prepararia uma matéria social e poderia ensaiar, através dessa nova versão da jurisprudência, e de seus usos revolucionários, recomposições inesperadas do corpo político, produzindo ativamente - na vizinhança das singularidades e de seus problemas específicos - os grupos de usuários capazes de se apossarem da jurisprudência como processo coletivo de criação.

1 O que é a jurisprudência?

Uma imagem clássica do pensamento define a jurisprudência como um conjunto de decisões tomadas por comitês de especialistas, os juízes, ou formadas por seu hábito decisório. Tanto seu uso técnico e jurídico nos países de tradição romano-germânica (Kelsen, 2011KELSEN, H. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2011., p. 263 e Bobbio, 2010BOBBIO, N. Teoria geral do direito. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010., p. 301), quanto sua interpretação sociológica mais prosaica (Latour, 2002aLATOUR, B. La fabrique du droit: une ethnographie do Conseil d’État. Paris: La Découverte, 2002a., p. 149), se não adotam de maneira restritiva a expressão “jurisprudência” como equivalente de uma “coleção de decisões judiciais”, ou como o efeito do hábito institucional que a produz, incorporam ou subentendem essas acepções com frequência. A seguir essa imagem clássica do conceito, derivada de pressupostos não-compartilhados entre a Ciência Jurídica e a Teoria Social mais tradicionais, uma resposta prática e realista à questão “O que é a jurisprudência?” seria “A jurisprudência é aquilo que os juízes fazem”.

Isto é, a jurisprudência seria definida, por um lado, como o efeito de uma série de hábitos decisórios institucionalizados e agrupados em unidades formais, lógicas ou de sentido e, por outro, como um conjunto de decisões que calcificam esses hábitos em tendências prospectivas de interpretação e decisão que, embora não sejam sempre unívocas, promovem uma acomodação isomórfica constante, e tendem a um equilíbrio geral, de tipo homeostático (Latour, 2002aLATOUR, B. La fabrique du droit: une ethnographie do Conseil d’État. Paris: La Découverte, 2002a., p. 200).

Tão essencial a essa definição de jurisprudência como coleção de decisões, casos decididos ou arestos, ou quanto o “imenso capital de experiências que resultam em um texto” (Latour, 2002aLATOUR, B. La fabrique du droit: une ethnographie do Conseil d’État. Paris: La Découverte, 2002a., p. 58), são os atores que os operam e conformam, os juízes. O pressuposto para que séries mais ou menos homogêneas de decisões possam ser conjugadas em uma coleção de casos decididos que possa ser selada como “jurisprudência” é que elas tenham sido compostas por atores institucionalizados, por “comitês de sábios” (Deleuze, 2008_____. Conversações (1972-1990)”. São Paulo: Editora 34, 2008., p. 210). Trata-se de especialistas em uma determinada técnica social, reconhecidos como portadores e práticos de um certo saber capaz de exprimir-se como poder.

A assinatura judicante, a aposição da marca do ator autorizado a decidir, é tão essencial quanto a própria decisão, em si mesma apócrifa. É o selo que transforma um acúmulo contingente de palavras desprovidas de maiores consequências em necessidade. O que a etimologia da palavra “jurisprudência” (do latim, iurisprudentia) permitiria descobrir sob a superfície dos seus usos modernos é a própria realidade do direito como um conjunto de operações que têm, finalmente, menos a ver com a legislação do que com “um saber técnico sem o qual lei alguma poderia esperar surtir efeitos” (Sutter, 2018aSUTTER, L. de. Après la loi. Paris: Presses Universitaires de France, 2018a., p. 70).

Um antigo juiz da Suprema Corte americana definia o direito como um corpus de “dogmas ou de predições sistemáticas” (Holmes Jr., 2014, p. 04). Isso permitia conceituar o direito - material, e também produto da atividade de juristas e juízes - como “As profecias relativas às decisões que de fato tomarão as cortes e os tribunais, e nada mais [...]” (Holmes Jr., 2014, p. 09). Esse conceito realista, pragmático e materialista captava o direito não mais como um sistema formal de legislação, mas como a predição esotérica de uma atividade judicial efetiva.

O direito seria um conjunto de profecias sobre o que os juízes fazem, ou farão, mobilizando três funcionamentos correlatos: (1) o direito está ligado a um poder de comandar atribuído às autoridades públicas cujo fundamento seria a soberania, e no qual a sua possível arbitrariedade contaria menos que a sua lógica específica (Holmes Jr., 2014, p. 02 e 17); (2) o direito consistiria em uma operação preditiva ou oracular capaz de profetizar as consequências futuras da adoção de certas ações ou omissões pelos jurisdicionados, em função das decisões dos tribunais (Holmes Jr., 2014, p. 03-04); (3) o direito seria um corpus sistemático, lógico e geral de predições sobre as decisões que serão efetivamente adotadas nas cortes e tribunais, organizado de forma axiomática e dedutiva (o que não quer dizer matemática), e baseada no acúmulo histórico de decisões (Holmes Jr., 2014, p. 04 e 19). Uma teoria geral do direito resultaria, portanto, da elevação dessas predições oraculares ao seu mais alto grau de generalização, compreendendo as regras mais fundamentais e as ideias mais gerais (Holmes Jr., 2014, p. 38).

As definições realistas que Holmes Jr. dava ao direito deslocavam o cânone acadêmico forjado por figuras célebres, como Christopher Columbus Langdell, então professor da Harvard University, e que resultava em “[...] tratar o direito como um conjunto de dogmas racionais, que encontravam no formalismo lógico seu modelo, e em uma espécie de rigor moral, seu fundamento” (Sutter, 2014_____. “Défense et illustration du réalisme juridique”. In: HOLMES JR., O. W. (2014). La voie du droit. Paris: Dalloz, 2014, p. 01-28., p. 04). Definir, como Holmes Jr., o direito por um agenciamento complexo entre poder e autoridade, futurição e predição oracular, associando-os de forma sistêmica à prática efetiva das cortes e dos tribunais era desafiar o formalismo lógico predominante. Significava reconhecer que a linguagem das decisões judiciais era, essencialmente, a linguagem da lógica, mas era também, ao mesmo tempo, o invólucro para “algo muito diferente disso” (Holmes Jr., 2014, p. 18).

Segundo Holmes Jr., o sistema jurídico não poderia ser deduzido matematicamente de um axioma geral. Sob o formalismo jurídico, que não ofereceria aos juízes e jurisdicionados nada além de uma perigosa ilusão de certeza, “se dissimula um juízo quanto à importância e o valor relativos de fundamentos legislativos contraditórios - um juízo, é verdade, frequentemente inarticulado e inconsciente, e que, no entanto, constitui a base e o nervo de todo processo” (Holmes Jr., 2014, p. 19), dando a ver que “É possível dar a qualquer conclusão uma forma lógica” (Holmes Jr., 2014, p. 19).

O realismo de Holmes Jr., no entanto, está longe de ser um irracionalismo vago. Em primeiro lugar, porque afirmar o caráter inconsciente do juízo que decide sobre “fundamentos legislativos contraditórios”, operando a realidade em que as leis se exprimem, não equivale a afirmar a sua irracionalidade. Em segundo lugar, porque mais irracional e perigoso, como ele adverte, é emprestar ao direito uma dedutibilidade lógico-formal pela qual as suas operações não poderiam ser completamente explicadas. Por fim, porque se a lógica formal é um modo de exercer um juízo racional, ela não contém, nem esgota, todas as formas de racionalidade e pode, como Holmes Jr. argumenta, servir de invólucro para juízos, como os do direito, que admitem uma “outra lógica” cujos contornos é preciso estabelecer.

Ao abandonar o formalismo jurídico e suas transcrições sociológicas reducionistas, o realismo jurídico permitia descobrir sob a jurisprudência muito mais do que uma simples coleção de casos ou de hábitos de juízo calcificados. Descobríamos o direito como o entrelaçamento do poder, das predições oraculares, de um exercício teórico, geral e sistemático de futurição e das atividades reais dos juízes nas cortes e nos tribunais. Tudo, no realismo jurídico, orbita ao redor do que os juízes fazem, ligando a atualidade a uma memória prospectiva, e decidindo casos como operadores de um saber-poder.

O que a imagem clássica da jurisprudência como coleção de casos decididos não permite definir, todavia, é “o que fazem os juízes?”. Ao abandonar a definição da jurisprudência como coleção de casos, imaginando que ela possa ser compreendida não como um repertório de casos decididos, mas como um conjunto de operações técnicas e oraculares que envolvem saber, poder, predição e futurição, é possível descartar tanto a pergunta “o que é a jurisprudência?” quanto a resposta “a jurisprudência é o que os juízes fazem”. Se invertêssemos os termos, de modo mais funcional e pragmático, e menos ontológico, as perguntas, talvez melhor colocadas, passariam a ser: “O que são os juízes?”; “O que faz a jurisprudência?”.

A partir desse deslocamento perspectivo, seria possível imaginar a jurisprudência como um processo desarticulado dos seus atores institucionais, os juízes? Na expressão cáustica de Deleuze (2008_____. Conversações (1972-1990)”. São Paulo: Editora 34, 2008., p. 210), “um comitê de sábios, comitê moral e pseudocompetente” a quem não se deveria confiar a jurisprudência (Deleuze, 2008, p. 209)? Responder a esse problema, impensável nos termos do formalismo jurídico e da Ciência do Direito, como das sociologias de inspiração “positivista” ou “institucionalista” (Hall e Taylor, 2003HALL, p. A., TAYLOR, R. C. R. As três versões do neo-institucionalismo. Rev. Lua Nova, São Paulo , n. 58, 2003, p. 193-223. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-64452003000100010&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 04 Fev 2020.
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), é a condição para situar adequadamente outras afirmações de Deleuze, como a de que a jurisprudência - a verdadeira filosofia do direito - deveria ser confiada a “grupos de usuários”, não a juízes.

2 O que são os juízes?

O que são os juízes? Personagens conceituais que operam a jurisprudência, não já como um processo social, mas como uma enclosure de saber-poder capaz de produzir efeitos no campo social. Em uma entrevista de 1977 intitulada Verdade e poder, Michel Foucault (2011FOUCAULT, M. Microfísica do poder. 29. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2011., p. 10-11) elegia “o homem de justiça”, “o homem da lei”, o “jurista-notável”, como o modelo e a origem do intelectual universal em sentido político. Foucault o apresentava como “o homem que reivindicava a universalidade da lei justa, eventualmente contra os profissionais do direito” (Foucault, 2011, p. 10); “[...]o escritor, o portador de significados e de valores em que todos podem se reconhecer” (Foucault, 2011, p. 11), em detrimento de um modelo de intelectual específico que só viria a se desenvolver a partir da Segunda Guerra Mundial.

Ao opor o intelectual universal - “escritor genial [...] que empunha os valores de todos” (Foucault, 2011FOUCAULT, M. Microfísica do poder. 29. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2011., p. 11) -, fundado no modelo do jurista-notável, e o intelectual específico, baseado no protótipo do “cientista-perito”, o que Foucault deixava escapar é o fato de que os juristas e os magistrados foram, pelo menos desde Roma, personagens nos quais essas duas figuras se confundiam (Sutter, 2018aSUTTER, L. de. Après la loi. Paris: Presses Universitaires de France, 2018a., p. 70). Não é do jurista-notável que os intelectuais universais extraem a generalidade de sua economia política da verdade, mas do próprio caráter expansivo da lei e da soberania que os juristas operam localmente na condição de cientistas-peritos. A lei e a soberania conferem o modelo de uma universalidade que, para ser eficaz, precisa ser constantemente atualizada por juristas, prudentes, técnicos ou práticos da lei no limiar sempre singular dos casos. Assim, os juízes são tanto os intelectuais específicos, técnicos setoriais que operam a universalidade da lei sobre o material contingente dos casos concretos, quanto intelectuais universais, “gênios escritores” da Necessidade como obra máxima da soberania.

Para definir o papel do intelectual, Foucault (2011FOUCAULT, M. Microfísica do poder. 29. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2011., p. 13) dizia ser necessário olhar menos para os valores universais de que ele é portador, e mais para a relação entre a posição específica que um intelectual ocupa e a função geral que ele desempenha em uma economia política da verdade. Como os juízes e os juristas, estes peritos dos universais, se engajam nesse circuito de verdade? Especialmente, quando se considera que sua economia política dá forma a um regime de saber-poder, que depende de um “conjunto de procedimentos regulados para a produção, a lei, a repartição, a circulação e o funcionamento dos enunciados” (o saber); mas, também, “está circularmente ligada a sistemas de poder, que a produzem e apoiam, e a efeitos de poder que ela induz e que a reproduzem”? (Foucault, 2011, p. 14).

Oliver Wendell Holmes Jr. reconhecia que sob a axiomática dedutiva do formalismo jurídico, e para além de invólucro lógico das conclusões adotadas em processos, o nervo e a base da jurisprudência estavam ligados a um juízo frequentemente inarticulado e inconsciente quanto “à importância e ao valor relativos de fundamentos legislativos contraditórios” (Holmes Jr., 2014, p. 19). E é precisamente nesse juízo aversivo, inarticulado e inconsciente, sob as infinitas camadas de proposições lógicas e deduções axiomáticas, que encontraríamos “o verdadeiro fundamento de todo julgamento” (Holmes Jr., 2014, p. 23).

Para Holmes Jr., esse juízo coincidia com uma tomada de posição dos juízes sobre questões controversas e candentes; isto é, decisões fundamentais sobre “os méritos sociais que justificam as regras que [os juízes e os juristas] elaboram” (Holmes Jr., 2014, p. 23-24). Eis o que são os juízes: cientistas-peritos que apropriam, com exclusividade, e segundo um regime técnico de saber local e poder universal, a jurisprudência como processo social, mantendo-a inconsciente (ou forcluída), inarticulada, aversiva à própria operação jurídica. Em outras palavras, juiz é todo aquele que neutraliza a jurisprudência como processo social ao convertê-la em uma enclosure de saber-poder4 4 Em junho de 1971, no contexto de uma discussão com militantes maoístas sobre um projeto de tribunal popular para julgar a polícia, Foucault duvidava que a justiça popular pudesse se exprimir nos termos formais de um tribunal. Pelo contrário, afirmava que “o tribunal não é a expressão natural da justiça popular mas, [...] tem por função histórica reduzi-la, dominá-la, sufocá-la, reinscrevendo-a no interior de instituições características do aparelho de Estado” (Foucault, 2011, p. 39). , uma operação de especialistas e de oligarcas, que terminará confundida com uma coleção de casos decididos, isomórficos, tendentes a certo equilíbrio homeostático.

Assim, a administração da justiça, frequentemente confundida com o processo que dá origem à jurisprudência como coleção de casos decididos, revela por dissimulação um caráter excessivo (Sutter, 2018b_____. Post-tribunal. Renzo Piano Building Workshop et l’île de la cité judiciaire. Éditions B2: Rennes, 2018b., p. 67), que se manifesta em relação à lei e aos fatos, mas também em relação ao próprio saber-poder axiomático, lógico e formal que organiza a jurisprudência como um corpus de “resultados” do que os juízes fazem com seu saber-poder de jurisperitos.

Como na experiência romana da iurisprudentia, o funcionamento prático e real do direito estaria mais próximo de uma casuística sutil e antagonista da lei (Sutter, 2018aSUTTER, L. de. Après la loi. Paris: Presses Universitaires de France, 2018a., p. 77; Thomas, 2011THOMAS, Y. Les opérations du droit. Paris: Gallimard/Seuil, 2011., p. 25-26), do que da universalidade natural ou normativa que o juízo procura atualizar em uma dada situação de fato. Os arestos, segundo Holmes Jr. (2014, p. 04), “recobriam a quase-totalidade do corpus do direito, e não constituíam mais do que a sua reformulação para o presente”; isto é, cada caso, uma vez decidido, seria como uma amálgama singular que manifestava, sob a forma de um “resumo da totalidade do direito” (Sutter, 2018b, p. 67), a ordem de princípios da qual a decisão de um caso emana. Mas que ordem de princípios seria esta que o saber-poder dos juízes atualiza localmente, na “singularidade concreta” de cada caso (Sutter, 2009, p. 98), atestando a sua pertença a uma economia política da verdade operada pelos jurisperitos?

Ao comentar o caráter cosmético do ato de julgar, Laurent de Sutter fornece uma pista que pode ser encontrada em outros termos no realismo de Oliver Wendell Holmes Jr. A administração da justiça, segundo ele, exibe uma natureza neutra, na medida em que “cada julgamento não passa da forma oficial dos prejuízos da comunidade que ele pretende defender, e que deseja alcançar grande amplitude, através do desdobramento de um dispositivo administrativo” (Sutter, 2018b, p. 82).

Quando Holmes Jr. (2014, p. 23-24) aponta o caráter inarticulado, inconsciente e aversivo, para os juristas, de quaisquer considerações sobre os méritos sociais das regras que suas decisões elaboram, é porque percebe que os juízes não cessam de “tomar posição em questões controvertidas e candentes”. Isso não se deve ao fato de os juristas ignorarem a dimensão social dos casos, mas ao fato de se saberem os operadores e técnicos de uma economia política da verdade cuja função é neutralizar cosmeticamente a jurisprudência como um processo social.

O que a administração técnica da justiça e o julgamento de casos pela enclosure judicial neutraliza, torna inconsciente, inarticulada e aversiva, é a jurisprudência já não mais como coleção de casos decididos, mas como processo social, cuja prática heterônoma arriscaria bascular certa economia política da verdade de que os juízes participam. Sob esse ponto de vista, os juízes nada mais são do que personagens conceituais (Deleuze, Guattari, 2007_____., _____. O que é a filosofia? São Paulo: Editora 34, 2007., p. 85-86) disfarçadas de atores e causas eficientes da jurisprudência. Não passam de tipos psicossociais, representantes do negativo e marcadores dos perigos do tipo específico de criação coletiva que seu saber-poder exerce neutralizando.

Os juízes não cessam de emular e descrever os movimentos de um plano de imanência do qual creem serem os autores (a jurisprudência como coleção de casos decididos, como resumo atualizado de um conjunto de preconceitos sociais cosmeticamente disfarçados de princípios), quando, em verdade, não passam de propriedades da jurisprudência; isto é, do processo social que, por ser essencialmente criativo e apócrifo, exige a assinatura dos magistrados como operadores técnicos de sua neutralização política em um regime de verdade.

3 O que faz a jurisprudência?

Quando Deleuze afirma, por um lado, que a jurisprudência, e não a lei ou as leis, é “verdadeiramente criadora de direito” (Deleuze, 2008, p. 209), e que ela não deveria ser confiada aos juízes, mas “a grupos de usuários” (Deleuze, 2008, p. 210), estabelece as condições transcendentais para passar do direito à política.

Ainda que a jurisprudência não seja imediatamente política, as operações que a caracterizam como um processo de “criações coletivas” exigem realizar uma associação impensável nos termos da “justiça administrada”: entre a jurisprudência - genuína “filosofia do direito, [que] procede por singularidades” (Deleuze, 2008_____. Conversações (1972-1990)”. São Paulo: Editora 34, 2008., p. 191) - e o campo social; exige, ainda, ressituar suas personagens conceituais: não mais os juízes, as cortes e os tribunais, tampouco a “administração da justiça”, mas “os grupos de usuários”, envolvidos em acidentes, realidades contingentes, problemas jurídicos específicos e atuais, ou em casos singulares que não autorizam a interferência dos universais compreensivos da lei ou do a priori abstrato dos direitos.

A jurisprudência parece remeter a um processo social articulado em torno de toda uma nova gramática que, sendo a do direito, já não pode ser a dos direitos, das suas subjetivações universais e a priori, a do juízo ou a dos tribunais. Com a noção deleuziana de jurisprudência estamos, portanto, muito mais próximos do “novo direito” com que sonhara Foucault (2011FOUCAULT, M. Microfísica do poder. 29. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2011., p. 190): “antidisciplinar e [...] liberado do princípio de soberania”.

Ao deslocarmos a questão inicial, “o que é a jurisprudência?”, para “quem são, e o que fazem, os juízes?”, a jurisprudência deixa de ser a resposta para a pergunta “O que fazem os juízes?”. Com a progressiva desarticulação entre a jurisprudência e suas personagens conceituais, os juízes se tornam menos que os atores da jurisprudência; tornam-se seus representantes, os marcadores de movimentos imanentes de um processo conceitual, social e criador que os envolve.

Persiste, no entanto, um trabalho breve e negativo a ser feito a esse respeito. A jurisprudência só pode aparecer como uma atividade autônoma, e como uma categoria do social, na medida em que seja desassociada tanto das suas personagens conceituais (os juízes), quanto da atividades que elas desempenham (o julgamento). Desinstitucionalizar a jurisprudência, desarticulando-a tanto dos seus atores quanto das atividades que eles realizam, permitirá que exploremos a relação entre instituição e jurisprudência em um sentido novo e insuspeito, a partir da interpretação que Deleuze faz dessa categoria em David Hume. Isso é o que permitirá produzir uma abertura capaz de religar a jurisprudência ao campo social.

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Entre os intérpretes da filosofia do direito de Deleuze, Alexandre Lefebvre (2008LEFEBVRE, A. The image of law: Deleuze, Bergson, Spinoza. Stanford: Stanford University Press, 2008.) talvez tenha sido quem foi mais longe na problematização da noção de jurisprudência. Exceto pelo fato de que, ao encontrar em Deleuze uma crítica da lei confundida com o direito, e também uma crítica do julgamento, Lefebvre reindexa a jurisprudência ao exercício do juízo sob os auspícios de uma renovada teoria do julgamento (Lefebvre, 2008, p. 173-190).

Para ser compreendida como intrinsecamente criativa, a noção deleuziana de jurisprudência aparece associada a três premissas conceituais, que definem com precisão “o que faz a jurisprudência” e em que consiste o processo social ou a criação coletiva que recebe esse nome.

Quando Deleuze fala de jurisprudência - eis o centro do argumento de The image of law nesse particular -, “[...] ele parece ter em mente um sistema de case law, que cria o direito a partir de seus encontros concretos e das controvérsias dos litigantes [...]” (Lefebvre, 2008LEFEBVRE, A. The image of law: Deleuze, Bergson, Spinoza. Stanford: Stanford University Press, 2008., p. 56). Assim, a jurisprudência, como a filosofia do direito, “aprecia o caso, isto é, a singularidade jurídica, como o elemento fundamental e o princípio do direito” (Lefebvre, 2008, p. 58). Nesses termos, Deleuze não teria aversão ao julgamento, mas ao seu dogmatismo abstrato, a seu universalismo transcendente em relação aos casos concretos.

Essas são as premissas para que Lefebvre possa lançar uma nova versão do juízo, antidogmática e baseada na “necessidade transcendental de encontros singulares” (Lefebvre, 2008, p. 87). Nesses termos, a jurisprudência aparecerá associada: (1) ao conceito de instituição, em David Hume; (2) ao conceito de encontro, de Baruch Espinosa e Marcel Proust; e, mais tarde, (3) à noção de problema, de Henri Bergson, situada na nova repartição entre a contingência e a necessidade que se opera nos encontros concretos.

O projeto de Lefebvre consiste em produzir uma afinidade eletiva entre Deleuze, Bergson e Espinosa da qual deriva uma crítica à imagem dogmática da lei e do julgamento. Seu resultado consiste em propor uma teoria da decisão, ou do julgamento (adjudication), renovada, que termina por reindexar a jurisprudência ao juízo.

Para responder “o que faz a jurisprudência?”, poderíamos seguir de perto a descrição conceitual que Lefebvre promove. Há, no entanto, uma alternativa que consiste em desenvolver a noção de jurisprudência a partir de uma pista conceitual que Lefebvre decide não seguir - pelo menos, não até o fim. Ao descrever as relações entre jurisprudência e instituição na obra de Deleuze, Lefebvre opta por paralisar o movimento de análise precisamente no ponto em que ele lhe dá acesso a uma oposição útil ao desenvolvimento de uma teoria do julgamento emancipada da imagem dogmática da lei: a oposição entre instituição/jurisprudência e lei/direitos, derivada da leitura que Deleuze faz da noção humeana de instituição.

O problema em não levar essa oposição às suas últimas consequências resulta no estabelecimento de uma relação de identidade entre jurisprudência, instituição e julgamento; identidade que Deleuze nunca adotou. Pelo contrário, Lefebvre (2008LEFEBVRE, A. The image of law: Deleuze, Bergson, Spinoza. Stanford: Stanford University Press, 2008., p. 56) mesmo reconhece que Deleuze “jamais define o que ele compreende por jurisprudência”, e todo problema está em entender a jurisprudência como instituição, e a instituição como “invenção de direitos” (Lefebvre, 2008, p. 55). Essas intuições autorizam que a relação entre os conceitos de jurisprudência e instituição seja pensada em si mesma, divergindo de uma teoria do julgamento ou da criação de direitos como objetivo estabilizador do processo social, agonístico e movente que a jurisprudência implica.

Em 1953, Deleuze estabelecia em Empirismo e subjetividade uma “oposição entre lei e instituição que ele nunca abandonará” (Lefebvre, 2008LEFEBVRE, A. The image of law: Deleuze, Bergson, Spinoza. Stanford: Stanford University Press, 2008., p. 53); ao mesmo tempo, essa é precisamente a leitura em que Lefebvre (2008, p. 54) decide não prosseguir. Dela, no entanto, retira-se a oposição entre uma versão germinal da sociedade, que Deleuze representa como “criativa, inventiva, positiva”, e outra da lei, que Deleuze diz ser negativa, na medida em que “limita o dano que os sujeitos podem causar uns aos outros” (Lefebvre, 2008, p. 54).

Isso origina duas versões da instituição: uma, social; isto é, referenciada por uma dinâmica de problemas atuais e soluções criadoras, concretas e positivas; outra, legal, referenciada por limitações estacionárias de soluções pré-formadas, estabelecidas a priori, baseadas em direitos abstratos e negativos. No entanto, essas não são apenas duas versões da instituição, mas do social como problema ao qual as instituições apresentam respostas sempre artificiais, promovendo a integração das versões parciais e excludentes em que o social se reparte.

A primeira versão do social corresponde precisamente a “uma imagem abstrata e falsa da sociedade”, que a define “de maneira apenas negativa” e vê nela apenas “um conjunto de limitações de egoísmos e interesses” (Deleuze, 2001, p. 34); a outra versão, humenana, é a que a “compreende como um sistema positivo de empreendimentos inventados” (Deleuze, 2001, p. 34). Com efeito, em Hume, essa dissociação é atravessada pelo problema muito moderno da natureza humana, cuja definição oscilava entre a descoberta recente do egoísmo engendrado no fogo das economias europeias, pós-feudais e pré-capitalistas, e a paciente reafirmação neoarcaica da sociabilidade natural, forjada no ouro da tradição aristotélica.

Em Deleuze, porém, esse pano de fundo já não é o da natureza humana, mas o da instituição, das criações coletivas e da sua artificialidade, uma vez que “o estado de natureza já é desde sempre algo muito distinto de um simples estado de natureza” (Deleuze, 2001, p. 34). As primeiras alianças entre seres humanos - sexuais, filiais - movem-se pela simpatia natural. No entanto, são justamente tais simpatias que, em associações mais vastas que as familiares, podem entrar em contradição. O problema propriamente social a que as instituições devem responder com seus artifícios é o de evitar que os interesses, as paixões e as simpatias - todo um sistema natural de tendências - se contradigam no mais alto grau; isto é, neguem-se pela violência.

A resposta que Deleuze encontra em Hume, retomada dois anos mais tarde em Instintos e instituições (1955), passa pela estruturação coletiva de sistemas de meios capazes de produzir uma síntese entre uma tendência e o objeto que a satisfaz (Deleuze, 2006, p. 31). Sua premissa não é a da positividade externa ao social (própria das teorias da lei), ou da negatividade interna ao social (característica das teorias do contrato); ele admite, antes, que as necessidades e o seu negativo permanecem fora do social, e que o social - um empreendimento coletivo, positivo, criativo - caracteriza-se por instituir “meios originais de satisfação” das tendências (Deleuze, 2006, p. 29-30).

As instituições são os efeitos de criação coletiva muito distantes da afirmação da lei como negatividade e do social como limitação. Em relação às tendências e simpatias, as instituições são invenções de sistemas de meios que permitem a sua satisfação oblíqua, a sua ampliação libertada das contradições naturais nas quais, não fossem as instituições, as tendências e simpatias se destruiriam em violência (Deleuze, 2001, p. 39). Por isso, Deleuze pôde afirmar ainda muito cedo que “o homem não tem instintos, ele faz instituições. [...] é um animal em vias de despojar-se da espécie” (Deleuze, 2006, p. 31).

O conceito de instituição social coloca em xeque precisamente a cisão entre a natureza animal do homem e o artifício propriamente humano em que a sua naturalidade se desenvolve. Na interpretação que Deleuze produz do conceito humeano de instituição, tudo se passa como se as instituições sociais, a sua artificialidade inventiva, fossem toda a natureza humana.

A instituição satisfaz as tendências por meios que não lhes pertencem, que lhes são oblíquos, indiretos, transformados, sublimados. Esses são os termos em que se constitui, para Deleuze, “O mais profundo problema sociológico”: se as instituições sociais não podem ser explicadas pela tendência, ou pela utilidade, “qual é esta outra instância da qual dependem diretamente as formas sociais da satisfação das tendências”? (Deleuze, 2006, p. 30).

Sua resposta parece reverberar a própria ideia de jurisprudência, uma vez emancipada das suas personagens conceituais (os juízes) e libertada da sua economia política da verdade (os juízos, os julgamentos): “A instituição social remete-nos a uma atividade social constitutiva de modelos dos quais não somos conscientes [...]. Neste sentido, o padre, o homem ritual”, o juiz, acresceríamos nós, “é sempre o inconsciente do usuário” (Deleuze, 2006DELEUZE, G. A ilha deserta e outros textos. Textos e entrevistas (1953-1974). São Paulo: Iluminuras, 2006., p. 30). Isso parece nos abandonar praticamente no mesmo ponto em que o realismo jurídico de Holmes Jr. nos deixava, ao afirmar que “um juízo, é verdade, frequentemente inarticulado e inconsciente [...], constitui a base e o nervo de todo processo” (Holmes Jr., 2014, p. 19).

A noção humeana de instituição contribui, por um lado, para confirmar o que, por vias heterogêneas e heterônomas, concluíamos a respeito da possibilidade de desarticular o conceito de jurisprudência das suas personagens conceituais, os juízes. Talvez se possa considerar a jurisprudência como um processo social sem ator; um processo em que a necessidade de um ator só pode ser formulada nos termos do problema, acidental e contingente, que constitui os seus atores por contágio. Por outro lado, a noção de instituição favorece a compreensão da jurisprudência como uma “atividade social constitutiva de modelos dos quais não somos conscientes” (Deleuze, 2006DELEUZE, G. A ilha deserta e outros textos. Textos e entrevistas (1953-1974). São Paulo: Iluminuras, 2006., p. 30).

Um processo construtivo, positivo, dinâmico; um empreendimento criativo, coletivo e artificial - e, nesse contexto, dizer artificial é dizer social - cuja natureza é criar um sistema de meios capazes de produzir uma síntese oblíqua entre a tendência e o objeto que a satisfaz, sublimando-a nos termos deslocados dessa mesma síntese. Essa definição parece antecipar de maneira incompleta as tendências intrinsecamente sociais da jurisprudência, ao mesmo tempo em que deixa em aberto a única pergunta que pode atestar a validade dessa hipótese: “O que faz a jurisprudência”?

4 Multiplicações de Deleuze

Explorar o conceito de jurisprudência como categoria do social requer que se produza um tríplice encontro entre a Filosofia, a Teoria Social e a Teoria do Direito. Trata-se de um encontro que poderia se situar no limiar de uma Teoria Social renegada e alternativa que, a exemplo dos trabalhos de Gabriel Tarde - um jurista de formação -, foi considerada “metafísica demais” ou “psicológica demais” pelos adversários que encampavam a versão positivista, metódica, holística, macrofísica e totalista do social entre os séculos XIX e XX (Tonkonoff, 2017TONKONOFF, S. From Tarde to Deleuze and Foucault: The infinitesimal revolution. Cham: Palgrave Macmillan, 2017., p. 06-10). Atualmente, esse encontro se estende tanto na própria Teoria Social, com Bruno Latour e sua Actor-Network-Theory, que reconhece em Tarde um de seus precursores sombrios (Latour, 2007, p. 25-27), como na filosofia que a obra de Tarde catalisa.

Situada em outro campo, estruturalista e de inspiração bourdieusiana, encontraríamos a proposta de Frédéric Lordon (2013LORDON, F. La société des affects: pour un estructuralisme des passions. Paris: Les Éditions du Seuil, 2013.), que busca estabelecer uma nova aliança entre a Filosofia e as Ciências Sociais a fim de reconfigurar o pensamento social a partir de sua apreensão afetiva. Lordon a projeta como um “estruturalismo das paixões”.

Seus procedimentos estão longe de ser pós-estruturais, como provaria a leitura nada benévola que Lordon (2013LORDON, F. La société des affects: pour un estructuralisme des passions. Paris: Les Éditions du Seuil, 2013., p. 48-50) dedicou a Qu’est-ce que la philosophie?, de Deleuze e Guattari. Nela, Lordon sustenta que ao reservarem à filosofia a atividade de criar conceitos, e à ciência, a de enunciar funções, Deleuze e Guattari teriam sido hipócritas ao afirmar a inexistência de hierarquia entre a Filosofia e as Ciências. O conceito, segundo Lordon (2013, p. 50), não seria exclusivo da Filosofia, e as Ciências Sociais, “extraídas da filosofia” (Lordon, 2013, p. 48), não estariam fadadas ou reduzidas às funções e suas proposições.

O erro escolar de Lordon está em supor que Deleuze e Guattari fizeram do conceito uma província da filosofia compreendida como meio disciplinar; ou que Deleuze e Guattari tenham feito das funções os monopólios das ciências disciplinares. Ao definir a filosofia, a ciência e a arte por seu procedimento específico, não se trata de reduzir o conceito à filosofia, a função à ciência, a sensação à arte, como Lordon dá a entender, mas de demonstrar que a criação de conceitos, funções e sensações, independentemente dos quadros disciplinares em que ocorram, definem as tarefas específicas de três operações não-isomórficas e comunicantes, que, ao “rasgar o firmamento” e “mergulhar no caos” (Deleuze, Guattari, 2007, p. 260), permanecem criadoras traçando planos sobre ele.

Apesar dessas grandes distâncias, Lordon parece, ainda assim, favorecer em termos estruturalistas, e a partir de premissas não-tardianas, um movimento equivalente ao que Gabriel Tarde e seus herdeiros divergentes - como Foucault, Deleuze, Latour - produziram: “a possibilidade de um entrelaçamento [das ciências sociais] com a filosofia” (Lordon, 2013, p. 33). Seu estruturalismo das paixões parece correr ao encontro dessa possibilidade assumindo premissas que, distantes de Tarde, são, ao menos em termos vetoriais, compartilhadas por ele. Ao afirmar que “toda coisa é uma sociedade, todo fenômeno é um fato social”, “Todas as ciências parecem destinadas a se tornarem ramos da sociologia” (Tarde, 2007, p. 81).

Enquanto a microssociologia de Gabriel Tarde pode ser considerada uma herdeira da monadologia de Leibniz (Latour, 2002b_____. Gabriel Tarde and the end of the social. In: Patrick Joyce (Ed). The Social in Question. New Bearings in History and the Social Sciences. London: Routledge, London, 2002b, p. 117-132., p. 120), a sociologia dos afetos que Lordon propõe inspira-se, por um lado, na abertura de Pierre Bourdieu (2003BOURDIEU, P.. Méditations pascaliennes. Paris: Seuil, 2003.) à metafísica, e na ética espinosana dos encontros e dos afetos, por outro. Com todas as distâncias que os separam, a sociologia estruturalista de Lordon, a microssociologia de Tarde, e o pensamento pós-estrutural de Foucault, Deleuze ou Latour, em níveis conceituais distintos, testemunham uma partilha desigual de influências como as de Espinosa ou Leibniz, em relação de aberta ruptura com o cartesianismo. Não é casual que Bruno Latour, como resultado de uma etnografia do Conselho de Estado Francês, apresente o direito como uma “genuína sociologia”; isto é, como uma operação “que secreta uma forma original de pôr em relação contextual pessoas, atos e escritos” (Latour, 2002a, p. 278).

O que parece tocar Latour profundamente, ao falar de direito, também subsidia o câmbio perspectivo que permitiria à sociologia tradicional abandonar sua posição de cegueira voluntária e de pobreza descritiva, sempre reconduzida a noções compreensivas que pouco explicam o funcionamento efetivo do direito como um processo de associações entre elementos heterogêneos que formalizam um contexto de ação - o que, em Latour, é o mesmo que dizer “social”. Com efeito, quando os sociólogos se põem a falar de direito, suas operações permanecem frequentemente reduzidas a noções “de poder, de estrutura, de hábitos, de tradições, de mentalidades” (Latour, 2002a, p. 279), e colocam entre parênteses suas operações reais, que consistem em “traçar caminhos que permitem mobilizar de maneira efetiva a totalidade [da construção da sociedade]” (Latour, 2002a, p. 279).

Há, portanto, um “trabalho do direito” que, no âmbito do tribunal administrativo cujas práticas Latour descreve, não pode ser explicado completamente nem em termos de poder, como derivaria de uma apreensão sintética da sociologia bourdieusiana, nem em termos de forma, como suporia a epistemologia jurídica (Latour, 2002a, p. 152-153).

As práticas sinuosas do direito, os conjuntos de ajustes infinitamente pequenos, as microtensões e inversões de sentido, a superficialidade em que parecem se efetuar seus movimentos próprios (homeostáticos ou aberrantes) entregam-nos, a partir dos elementos efetivos da prática jurisprudencial, o que antes aparecia como um pressuposto inconsciente no realismo de Oliver Wendell Holmes Jr.

“O que faz o direito?” Latour (2002aLATOUR, B. La fabrique du droit: une ethnographie do Conseil d’État. Paris: La Découverte, 2002a., p. 280) afirma que o direito faz relação, “faz associação entre elementos, tece o social”, produz “um tipo de associação” que se “mistura com tudo”. Eis o que torna lícito concluir, por vias etnográficas e concretas, que “o direito é, já, o social, a associação; [...] ele trabalha por si mesmo mais social que a noção de sociedade de que, de outra parte, ele não é sequer distinto, na medida em que ele a trabalha, a petrifica, a agencia, a desenha, a imputa, a responsabiliza e a envolve” (Latour, 2002a, p. 281).

No entanto, ainda que o direito possa ser descrito como um processo que produz o social, associações de um certo tipo, o direito e o social não se equivalem. O direito permanece autônomo em relação ao social precisamente na medida em que envolve, a seu modo, a totalidade do social, a partir de técnicas esotéricas que permitem que pequenas inovações subvertam a ordem usual das coisas (Latour, 2002aLATOUR, B. La fabrique du droit: une ethnographie do Conseil d’État. Paris: La Découverte, 2002a., p. 292). Por outro lado, o direito tampouco se confunde com a política, na medida em que ele não funda, e não pode fundar, a composição do corpo político, ou a circuitaria de poder e soberania, em que sua capacidade de coagir se sustenta (Latour, 2002a, p. 290).

O que resulta do cruzamento entre essas duas proposições? A primeira, latouriana, que afirma o direito como uma sociologia efetiva, uma série de técnicas esotéricas que operam o social, sem se confundir com ele (a matéria operada) ou com a política (sua condição, mas também seu efeito operável); a segunda, deleuziana, em que a jurisprudência se afigura a verdadeira filosofia do direito, que procede por singularidades?

Por um lado, a jurisprudência se torna uma filosofia das operações de uma técnica social “que se mistura com tudo”. Desarticulada de suas personagens conceituais (os juízes), destinada a grupos de usuários, a jurisprudência é a condição transcendental da passagem do direito à política. Isto é, permite passar da operação que tece o social a suas condicionalidades e a seus efeitos; permite unir as técnicas esotéricas do direito, que efetuam grandes subversões às custas de pequenas inovações, à recomposição do corpo político - em que pequenas subversões operam grandes inovações.

O que caracteriza o campo social, segundo Deleuze, não é a contradição entre forças, nem as relações estratégicas de resistência-poder, mas suas linhas de fuga: “linhas objetivas que atravessam uma sociedade. [...] o primado de uma sociedade”, prossegue Deleuze (2016, p. 134), “é que nela tudo foge, tudo se desterritorializa”. O direito não cessa de tecer e destecer relações, operar associações locais, ligar escritos, pessoas e coisas. Sua técnica é ao mesmo tempo social, ou associativa (uma verdadeira sociologia), profética, ou premonitória (uma verdadeira teoria geral), e esotérica ou inventiva (uma ontologia efetiva).5 5 Como, aliás, Giorgio Agamben parece reconhecer, não apenas ao dizer que “[...] a religião, a magia e o direito - e, com eles, todo o campo do discurso não-apofântico até hoje relegado à obscuridade - regem, em realidade, secretamente o funcionamento de nossas sociedades que se querem laicas e seculares” (Agamben, 2013, p. 48); mas ao definir o direito como parte de uma “ontologia do comando”, distinta da ontologia da asserção apofântica, mas não por isso desprovida de relações com ela. Cf. (Agamben, 2013, p. 40). O movimento das operações do direito arrasta sempre um agenciamento dessas três dimensões.

No cruzamento real entre uma formação social dada, instituições estáveis e suas inovações ou fugas - que não passam de “pontas de desterritorialização dos agenciamentos de desejo” (Deleuze, 2016_____. Dois regimes de loucos. Textos e entrevistas (1975-1995)”. São Paulo: Editora 34, 2016., p. 132) que operam o social -, o direito tece o social que foge por todos os lados seguindo duas tendências: por um lado, através do juízo, da crítica e da institucionalidade pré-formada de suas personagens conceituais, o direito trama axiomas; tece o social como um bloco de formações binárias, hierárquicas e unificadoras.

Por outro, operando a jurisprudência como instituição, através de personagens conceituais não-preformadas ou institucionalizadas (os grupos de usuários), o direito “quebra formas, marca rupturas”, mas também, reconstrói as formas quebradas, “o conteúdo que estará necessariamente em ruptura com a ordem das coisas” (Deleuze, Guattari, 2003_____., GUATTARI, F. Kafka: para uma literatura menor. Lisboa: Assírio & Alvim, 2003., p. 57-58). É seguindo a tendência do direito que se opera como instituição, não como juízo, que se pode compreender a jurisprudência como atividade que produz misturas associativas que desconectam e reconectam o social.

O que faz, pois, a jurisprudência na condição de verdadeira filosofia do direito, que procede por singularidades? Desarticulada de suas personagens conceituais (os juízes), mas também de seu axioma de pensamento (o juízo), a jurisprudência tece o social como fuga e prepara a matéria social que precede uma recomposição do corpo político.

Isso evita uma série de enganos muito comuns, entre eles: o que consiste em imaginar que os sujeitos de direito preexistam aos processos sociais reais de experimentação jurisprudencial que os engendram; ou o equívoco que consiste em gerar uma identificação entre o direito e a lei, ou entre o direito e os direitos, como se eles fossem inteiramente exteriores à matéria social que preparam, sob a forma da axiomática ou da sua desterritorialização em uma nova forma.

A jurisprudência constitui por ruptura e reconstituição: (1) a verdadeira filosofia do direito, que procede por singularidades; (2) uma técnica associativa que prepara uma matéria social (os grupos de usuários, que não preexistem à jurisprudência, mas resultam da sua experimentação ativa nos agenciamentos coletivos de desejo); (3) uma saída para a recomposição de um corpo político, através de usos políticos do direito.

Se levarmos a sério a afinidade eletiva entre o realismo de Holmes Jr., a noção deleuziana de instituição e a leitura latouriana da prática do direito, que “se mistura com tudo”, veremos que o direito e a jurisprudência admitem dois tipos de investimento pelo desejo. Há um uso axiomático e judicioso da jurisprudência, aquele que fazem os juízes, e que se vale de um movimento crítico, de limitação e de parada do social. Os juízes estão sempre a julgar, e a tecer o social pela via da crítica, como se dissessem que estamos indo longe demais ou depressa demais. No entanto, se o direito se mistura com tudo, se as sinuosidades de sua prática real destramam e retecem o social, tirando de pequenas inovações as maiores subversões, é porque a jurisprudência também admite um uso revolucionário.

Misturado com tudo, o direito implica que “funcionário de justiça [seja] toda a gente” (Deleuze, Guattari, 2003_____., GUATTARI, F. Kafka: para uma literatura menor. Lisboa: Assírio & Alvim, 2003., p. 89). O uso axiomático da jurisprudência é um antiprocesso; implica um movimento de parada, o exercício do juízo e da crítica como operações de hipóstase (Deleuze, Guattari, 2003, p. 93). Já o uso revolucionário da jurisprudência reencontra o direito como operação que trama o social, engendra grupos de usuários, estabelece subjetivações em relação a problemas singulares, produz desmontagens locais dos axiomas e potencializa linhas de fuga objetivas que definem um movimento de aceleração do social em ruptura com as suas formas estacionárias e decantadas.

O uso revolucionário da jurisprudência engendra a experimentação de um aceleracionismo jurídico. Ele permite redescobrir, como Deleuze e Guattari (2003_____., GUATTARI, F. Kafka: para uma literatura menor. Lisboa: Assírio & Alvim, 2003., p. 90-92) propuseram a respeito de Kafka: (1) que se o direito se mistura com tudo, e se toda a gente é funcionária de justiça, é porque a justiça é desejo, mesmo quando ela é experimentada sob as formas fascisto- ou capitalofílicas dos desejos de dinheiro, poder, repressão ou burocracia (Deleuze, Guattari, 2003, p. 99-101); (2) que a jurisprudência implica “o esquartejamento de toda justificação transcendental. Não há nada a julgar no desejo; o próprio juiz”, como também decorre do realismo de Holmes Jr., “é inteiramente moldado pelo desejo. A justiça é apenas o processamento imanente do desejo” (Deleuze, Guattari, 2003, p. 92). E eis, aí, todos os seus perigos - contra os quais Deleuze e Guattari jamais cessaram de nos prevenir -, mas também toda a sua potência.

O desejo investe tanto o uso axiomático quanto o uso revolucionário da jurisprudência. Ele se encontra tanto do lado da perversão autoral dos juízes e sua crítica, quanto da aceleração das linhas de fuga do campo social e seus grupos de usuários. O que faz a jurisprudência é operar o social por ruptura-continuidade, desmontagem-remontagem, maquinação abstrata e concreta, julgar e fazer existir (Deleuze, 1997_____. Crítica e clínica. São Paulo: Editora 34, 1997., p. 153); é preparar a matéria social que antecipa uma recomposição do corpo político, novos regimes que ligam escritos, pessoas e coisas.

As Ciências Sociais e do Direito parecem ter tornado seu o uso axiomático da jurisprudência. No entanto, o que as práticas sinuosas do direito testemunham - mesmo as que se encontram sujeitas ao mais profundo desejo de axioma, poder, burocracia ou dinheiro -, é que estas só se estabelecem ao preço de esmagar os possíveis de seus usos revolucionários. Essa é a premissa que permite afirmar que a justiça é um “contínuo do desejo com limites movediços e continuamente deslocados” (Deleuze, Guattari, 2003_____., GUATTARI, F. Kafka: para uma literatura menor. Lisboa: Assírio & Alvim, 2003., p. 92). O juízo, a crítica, o axioma, o poder e a burocracia é que passam a ter de ser explicados em termos de desejo e do processo imanente que ele agencia sob o nome de “jurisprudência”.

Considerações finais

Quando Deleuze propôs que deveríamos considerar a jurisprudência como a verdadeira filosofia do direito, ligou a esse enunciado três outras proposições: (1) a jurisprudência procederia por singularidades; (2) ela não deveria ser confiada aos juízes, mas entregue a grupos de usuários; (3) nesse ponto, passaríamos do direito à política.

Deleuze jamais define o que compreende por jurisprudência, mas é possível deduzir que a tese principal (“a jurisprudência é a verdadeira filosofia do direito”) contém uma proposição tanto sobre a jurisprudência quanto sobre a filosofia do direito. Quando unida a suas três teses suplementares, percebe-se que a tese principal não apenas afirma a identidade entre jurisprudência e filosofia do direito, mas liberta, com um único gesto, a jurisprudência como “teoria da prática do direito” (portanto, uma filosofia) e, também, a filosofia do direito como “uma prática teórica da jurisprudência” (portanto, uma técnica social específica).

Entretanto, tão importante quanto arrancar duas diferenças conceituais por meio da produção de uma identidade apenas aparente entre jurisprudência e filosofia do direito, é situar como essa proposição se desenvolve em outras três, e que, ao pressuporem a jurisprudência como uma filosofia técnica, e como uma técnica filosófica que opera associações por singularidades, produz uma tensão imediata entre a jurisprudência, o campo social e a experimentação política. Esse turbilhão conceitual exige um trabalho negativo e outro positivo, no encontro progressivo que liga a prática do direito, a teoria social e a filosofia.

O realismo pragmatista de Oliver Wendell Holmes Jr. e a especulação transcendental de Laurent de Sutter acerca do direito permitiram repropor a questão “O que é a jurisprudência?”. Ela resultou no descarte da imagem clássica do pensamento jurídico e sociológico que, não raro, reduzem a jurisprudência ora a um conjunto de casos decididos, ora a um conjunto de hábitos dos juízes ao decidirem casos. Pensada como uma categoria do social, essas duas imagens da jurisprudência, originadas pelo formalismo jurídico e pela sociologia de inspiração positivista, efetuavam nos seus campos epistêmicos o que os juízes realizam na administração da justiça: capturavam a jurisprudência apenas como uma prática de saber-poder, no recesso de uma economia política da verdade.

A resposta dada à questão, tanto pela Teoria do Direito quanto pela Sociologia, era “A jurisprudência é o que os juízes fazem”. Deslocando a questão original, propusemos investigar aquela que comumente aparecia como seu pressuposto. Se a jurisprudência é o que os juízes fazem, então “O que são os juízes?”. Essa pergunta só poderia ser respondida investigando seu pressuposto pragmático: “O que fazem os juízes?”. Levamos ao limite a resposta de Holmes Jr., que afirmava que o que os juízes efetivamente fazem é decidir sobre questões sociais controversas e candentes, mas sempre apoiados em tomadas de posição inconscientes. Isto é, a assinatura que os magistrados apõem nas decisões é a marca neutralizadora de um processo social que permanece inconsciente e apócrifo.

Essa conclusão parcial permitia, por um lado, inverter as posições geralmente admitidas: o juiz não apenas não é o autor da jurisprudência, mas “a jurisprudência faz o juiz”; isto é, em relação à jurisprudência, o juiz não passa da personagem conceitual de um processamento social imanente que corresponde à jurisprudência. Isso altera permanentemente a posição dos juízes em relação a este processo.

Como personagens conceituais, os juízes deixam de ser os autores para se tornarem as próteses de um processo social que os envolve; por outro lado, os juízes são os atores que promovem a neutralização e a enclosure desse processamento imanente; são, como uma afinidade eletiva entre Foucault, Deleuze e Guattari permitiria supor, as personagens conceituais que, na sua dupla função de juristas-notáveis e cientistas-peritos, mantêm os movimentos da jurisprudência ligados a uma economia política da verdade e às estruturas de poder e soberania.

Produz um novo giro perceber que os juízes não fazem jurisprudência, mas é a jurisprudência, capturada no interior de uma economia política da verdade a ser atuada, que exige os juízes como signatários de um processo de criação coletivo e apócrifo. As perguntas “O que é a jurisprudência?”, “O que são os juízes?”, não só nos envolviam em falsos-problemas como exigiam respostas artificiais, parciais, demandando novas desarticulações. Embora tenha sido possível desarticular a jurisprudência de sua imagem clássica ou dos juízes, faltava propor em termos positivos “O que faz a jurisprudência?”.

Essa pergunta exigia uma nova desarticulação, em relação às categorias do julgamento, do juízo e da crítica. Para fazê-lo, seguimos cuidadosamente as proposições de Alexandre Lefebvre, identificando, por um lado, o ponto em que o autor reconverte a jurisprudência em uma atividade ligada ao juízo e, por outro, um caminho conceitual interrompido, que liga a jurisprudência, em Deleuze, à noção humeana de instituição.

Radicalizar essa afinidade conceitual entre jurisprudência e instituição permitia perceber os contornos sociais da jurisprudência como um processo de criações coletivas, como uma síntese ao mesmo tempo positiva e artificial entre instintos e instituições, e também como um sistema de meios oblíquos de satisfação de tendências sustentadas por aquele que Deleuze, como em um ritornelo de Tarde, afirmava ser o mais profundo problema sociológico: o desejo.

Com essa ressonância, a jurisprudência e a instituição deixavam de ser meras representações do social para se tornarem criações artificiais, coletivas e inconscientes, que nos levavam de volta não só ao pragmatismo de Holmes Jr., como à possibilidade de definir a jurisprudência como categoria social a partir de um tríplice encontro.

Esse encontro se produz lentamente. Em primeiro lugar, a partir de fissuras no interior da própria Teoria Social, que parecem celebrar novas núpcias com a Filosofia. Essas fissuras foram diagnosticadas e prolongadas segundo vias muito divergentes, e a partir de pressupostos não-compartilhados, por autores como Gabriel Tarde, Sérgio Tonkonoff, Frédéric Lordon e Bruno Latour. Apesar das distâncias que os separam, suas obras brandem uma constante tendencial, tão polêmica quanto fértil: a necessária aliança entre as Ciências Sociais, a sua Teoria, e a Filosofia.

A interação entre a tese de Bruno Latour - o direito como sociologia efetiva - e a de Gilles Deleuze - a jurisprudência como verdadeira filosofia do direito - permitiu um passo a mais. No enlace entre o direito, a Teoria Social e a Filosofia, propor os contornos positivos da jurisprudência pensada como categoria social.

Por um lado, a etnografia de Latour permitia endereçar o direito como um conjunto de técnicas esotéticas, misturadas com tudo, para construir o social; por outro, a filosofia de Deleuze permitia distinguir a jurisprudência da administração da justiça, com suas operações de enclosure e neutralização, para defini-la como uma técnica associativa que prepara uma matéria social, mas também antecipa saídas e fugas para uma recomposição do corpo político que a ultrapassa.

Na tríplice aliança entre direito, Teoria Social e Filosofia, a jurisprudência só pode ser compreendida como uma categoria do social na medida em que ela implica um construcionismo social, e prepara operações de passagem à política. Para tanto, porém, é preciso desarticular a jurisprudência de sua imagem clássica, da autoria dos juízes, da economia política da verdade operada por assinaturas de enclosure e neutralização e, finalmente, das atividades do julgamento, do juízo e da crítica, que prefiguram seus usos axiomáticos.

A jurisprudência pode ser investida duplamente pelo desejo, de forma axiomática ou revolucionária. Essencialmente, ela pode operar sob a forma do julgar ou do fazer existir. Isso permite rearticular a jurisprudência como um construcionismo social que atua por ruptura e por reconstituição, sempre na vizinhança das singularidades, dos problemas e de uma casuística coletiva.

Ela mantém a sua autonomia em relação a outros processos sociais e em relação à política na dupla condição de uma técnica associativa que prepara uma matéria social (os grupos de usuários, que não preexistem à jurisprudência, mas resultam da sua experimentação ativa), e de uma saída para a recomposição de um corpo político, através de usos políticos do direito.

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  • 1
    Neste texto - embora a repitamos algumas vezes a fim de manter a integridade de sentido das teses de Deleuze -, não nos ocuparemos em elucidar a menção que Deleuze faz sobre a passagem do direito à política. Ela exigiria uma exploração mais detida do conceito de grupo de usuários. Antes, propomos situar problematicamente o conceito de jurisprudência a partir de Deleuze como uma categoria do pensamento social - o que constitui a condição transcendental para passar do direito à política. No entanto, a própria menção a uma “passagem do direito à política” permite evitar, de uma só vez, dois erros corriqueiros sobre as relações entre direito e política: o primeiro, clássico de uma vulgata positivista à qual nem mesmo Kelsen (2011KELSEN, H. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2011., p. 393-394) atribuía crédito, que consiste em imaginar que o direito possa ser, em todo caso, isolado da política, fruto de um puro ato de conhecimento. O segundo, decorre de uma reação hiperbólica contra o primeiro, e tende a reduzir o direito a uma província da política, ou do poder, subtraindo toda e qualquer autonomia ao campo jurídico. Cf, nesse aspecto, os comentários de (Sutter, 2019_____. Deleuze, a prática do direito. Ponta Grossa: Editora UEPG, 2019., p. 151-152) e (Latour, 2002aLATOUR, B. La fabrique du droit: une ethnographie do Conseil d’État. Paris: La Découverte, 2002a., p. 290) sobre o tema.
  • 2
    Este ensaio propõe uma leitura o mais liberta possível das alternativas já imaginadas pela maior parte dos comentadores contemporâneos que se dedicaram a elucidar o sentido da filosofia do direito de Deleuze, ou mesmo a dar gravidade institucional ao conceito deleuziano de jurisprudência. Seguindo um gesto filosófico que talvez comprazesse ao próprio Deleuze, consistente em chegar “[...] pelas costas de um autor [...] lhe fazendo um filho, que seria seu, e no entanto seria monstruoso” (Deleuze, 2008, p. 14), o ensaio evita, metodicamente, realizar qualquer esforço para definir “o estado da arte” relativo a esta discussão. Que ele não possa ser negligenciado, estamos de inteiro acordo, e tomamos a liberdade de remeter o leitor aos trabalhos de Sutter (2019_____. Deleuze, a prática do direito. Ponta Grossa: Editora UEPG, 2019., p. 147-157) e Corrêa (2018CORRÊA, M. D. C. O real do direito: sobre a filosofia do direito de Gilles Deleuze. Rev. Direito, Estado e Sociedade. Rio de Janeiro, n. 53, 2018, p. 182-205. Disponível em: <https://revistades.jur.puc-rio.br/index.php/revistades/article/view/892>. Acesso em 04 Fev 2020.
    https://revistades.jur.puc-rio.br/index....
    ), que se ocuparam em reconstituir a cena teórica da filosofia do direito deleuziana dos anos 2000 em diante.
  • 3
    Monopólio que, em outros termos, Jacques Derrida descreveu em Mal de arquivo, recordando a parentalidade etimológica entre arkhê, arkheîon, arconte e arquivo, na antiguidade grega: “Aos cidadãos que detinham e assim denotavam o poder político, reconhecia-se o direito de fazer ou de representar a lei. Levada em conta sua autoridade publicamente reconhecida, era em seu lar, nesse lugar que era a casa deles [...] que se depositavam então os documentos oficiais. Os arcontes foram os seus primeiros guardiões. Não eram responsáveis apenas pela segurança física do depósito e do suporte. Cabiam-lhes também o direito e a competência hermenêutica. Tinham o poder de interpretar os arquivos.” (Derrida, 2001, p. 12-13).
  • 4
    Em junho de 1971, no contexto de uma discussão com militantes maoístas sobre um projeto de tribunal popular para julgar a polícia, Foucault duvidava que a justiça popular pudesse se exprimir nos termos formais de um tribunal. Pelo contrário, afirmava que “o tribunal não é a expressão natural da justiça popular mas, [...] tem por função histórica reduzi-la, dominá-la, sufocá-la, reinscrevendo-a no interior de instituições características do aparelho de Estado” (Foucault, 2011, p. 39).
  • 5
    Como, aliás, Giorgio Agamben parece reconhecer, não apenas ao dizer que “[...] a religião, a magia e o direito - e, com eles, todo o campo do discurso não-apofântico até hoje relegado à obscuridade - regem, em realidade, secretamente o funcionamento de nossas sociedades que se querem laicas e seculares” (Agamben, 2013, p. 48); mas ao definir o direito como parte de uma “ontologia do comando”, distinta da ontologia da asserção apofântica, mas não por isso desprovida de relações com ela. Cf. (Agamben, 2013, p. 40).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Out 2021
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2021

Histórico

  • Recebido
    05 Fev 2020
  • Aceito
    19 Ago 2020
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