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Vozes de uma dor sem nome: necropolítica e maternidade no Brasil

BRITO, Maíra de Deus. Não, ele não está. Curitiba: Appris, 2018
Cabô, vinte anos de idade
Quase vinte e um
Pai de um, quase dois
E depois das 20horas
Menino, volte pra casa!
Cabô
Ô Neide, cadê menino?
Cabô, quinze anos de idade
Incompletos seis
Eram só 6 horas da tarde
Cabô, cadê menino?
Quem vai pagar a conta?
Quem vai contar os corpos?
Quem vai catar os cacos dos corações?
Quem vai apagar as recordações?
Quem vai secar cada gota
De suor e sangue
Cada gota de suor e sangue
Cabô
(Luedji Luna)

Necropolítica. A dor da maternidade interrompida, ressignificada no luto e(m) luta. Amor e militância. As reais vítimas da guerra às drogas. A seletividade do processo penal, tão denunciada pelas Criminologias Críticas, tem cor e classe no Brasil: é negra e periférica. Suas vítimas secundárias, as famílias, têm cor, gênero e classe: são as mães negras da periferia.

Não, ele não está”, escrito pela jornalista e pesquisadora em Direitos Humanos Maíra de Deus Brito, é fruto de sua dissertação de Mestrado em Direitos Humanos, defendida na Universidade de Brasília (UnB) em 2018. Brito dá voz a duas mulheres-mães-negras1 1 Usamos, aqui, a interseccionalidade citada no livro, quando se referencia a categoria utilizada por Vilma Reis (2005): “jovens-homens-negros” (BRITO, 2018, p. 90). : Ana Paula e Aparecida. Ambas perderam seus filhos, Johnatha e Luciano, respectivamente, assassinados, no Rio de Janeiro. Johnatha foi morto com um tiro pelas costas, próximo à sua casa. Luciano também foi morto a tiros e enterrado como indigente.

Nos dois casos, o sistema de justiça criminal imputa às vítimas a categoria de “traficantes” - no caso de Johnatha, a versão dos policiais é a do “auto de resistência”: teria havido “troca de tiros”, resultando na morte da vítima; na realidade, só foram encontrados os tiros no corpo de Johnatha. No caso de Luciano, o fato de ele estar vestindo “boné e camiseta vermelhos” indicaria a sua ligação ao Comando Vermelho.

Sua mãe nega que ele tivesse qualquer uma das duas peças de vestuário indicadas pela polícia, e o uso de uma roupa para indicar participação em organização criminosa parece infantil, se não fosse letal. Os inquéritos dos homicídios de ambos não foram conduzidos como a Constituição Federal e o Código de Processo Penal determinam; testemunhas nunca ouvidas, provas não colhidas. Aqui fica a primeira reflexão a esta pesquisadora em Ciências Criminais, já um tanto consciente do que as Criminologias Críticas nos ensinam, reconhecendo a importância das teorias da raça: e se as vítimas fossem brancas, moradoras da Zona Sul? O desfecho seria o mesmo? Quais são os limites de atuação do Estado? Quem pode e quem não pode esperar por respostas institucionais?

As Criminologias Críticas brasileiras, há tempos, vêm denunciando a seletividade do sistema penal, mas utilizando, sempre que possível, as questões de classe para compreendê-la e criticá-la. Tal perspectiva possui ampla inspiração nos estudos de Alessandro Baratta, que influenciaram o pensamento criminológico brasileiro (MARTINS, 2014MARTINS, Fernanda. A sustentação de um discurso crítico criminológico na Revista de Direito Penal e Criminologia (1971-1983). Revista Direito e Práxis, v. 5, n. 9, 2014, pp. 118-149.). O pensamento criminológico crítico no Brasil, assim, foi muito mais influenciado pelas matrizes europeias do que pelas latino-americanas, o que causa incompreensões teóricas até hoje (LEAL, 2017LEAL, Jackson da Silva. Criminologia da Libertação: construção da criminologia critica latino-americana como teoria crítica do controle social e a contribuição desde o Brasil. 1. ed. Belo Horizonte: D' Plácido, 2017.). A opção pela revelação das questões de classe dialoga com a matriz marxista e, também, é bastante cômoda para a literatura colonial. Reflexões que entendem que as questões sobre o racismo já estão incluídas na crítica sobre a classe produzem efeito contrário: ao invés de denunciar o racismo, tornam-no menor, menos relevante. Como entende Felipe Freitas (2016FREITAS, Felipe da Silva. Novas perguntas para a Criminologia Brasileira: poder, racismo e direito no centro da roda. Cadernos do CEAS, Salvador, n. 238, p. 488-499, 2016., p. 493),

Assim como em outros campos do conhecimento, o saber criminológico (crítico) brasileiro manteve-se pouco permeável às contribuições do pensamento negro, do pensamento feminista ou de outros grupos sociais subalternizados e seguiu trabalhando com a ideia de classe como macro categoria explicativa dos fenômenos no âmbito da justiça criminal, dos processos de criminalização e das dinâmicas de seleção do sistema punitivo.

Criminólogas e criminólogos críticos, após a produção de Ana Luiza Pinheiro Flauzina (2006), passaram a refletir mais sobre a raça como elemento estrutural da violência no Brasil. Corpos negros, desde a abolição formal da escravidão, não são tratados como pessoas, mas divididos em duas categorias: os que podem ser usados como força de trabalho - forçado ou extremamente precarizado - ou os corpos matáveis. A biopolítica de Foucault encontra a necropolítica de Mbembe. No Rio de Janeiro, bio e necropolítica encontram as vozes das mães de Manguinhos, das mães de todas as regiões em guerra com o Estado.

Luciano foi sepultado como indigente. Usuário de drogas, costumava ficar dois ou três dias sem voltar para casa; mais tempo se passou e Aparecida soube que o filho estava morto com um telefonema da polícia2 2 “Eu soube da morte dele de uma forma muito cruel. Recebi uma ligação da polícia perguntando por ele e quando respondi que era a mãe dele quem estava falando, do outro lado da linha, disseram: seu filho morreu” (Aparecida, in BRITO, 2018, p. 70). . Aparecida não teve a oportunidade de dar a Luciano um enterro decente, de receber a informação sobre a morte de um ente tão querido com respeito, de viver seu luto desde o início. A vida de seu filho e a sua experiência de luto são roubadas pelo Estado. Em uma passagem do livro, se diz que a experiência de perder um filho é uma dor sem nome que, infelizmente, se tornou cotidiano para mulheres negras periféricas do Brasil. Refletindo que os responsáveis por essa dor - quer no momento da sua execução, quer na informação sobre a morte, quer no desfecho de um sepultamento como indigente - são representantes do Estado brasileiro, esse sofrimento ganha uma dimensão de injustiça que nenhuma pessoa branca é capaz de medir.

Achille Mbembe explica:

O Estado pode, por si mesmo, se transformar em uma máquina de guerra. Pode, ainda, se apropriar de uma máquina de guerra ou ajudar a criar uma. As máquinas de guerra funcionam por empréstimo aos exércitos regulares, enquanto incorporam novos elementos bem adaptados ao princípio de segmentação e desterritorialização. Tropas regulares, por sua vez, podem prontamente se apropriar de certas características de máquinas de guerra (MBEMBE, 2019, p. 54-55).

O Estado brasileiro é uma máquina de guerra, dirigida aos jovens, negros e pobres periféricos. Há duas escolhas estatais: a morte ou a prisão. Os dados da população carcerária brasileira não permitem outra conclusão senão a de que estamos em uma guerra civil, com 59.041 homicídios por ano (BRASIL, 2019). Essa dor sem nome, esse luto sem começo ou fim, a ausência de proteção ou de confiança no Estado resultam na criação de espaços de solidariedade entre mães negras. Ana Paula Oliveira - que pediu expressamente para ser identificada no livro de Maíra Brito - é militante do grupo “Mães de Manguinhos”, que tem por objetivo apoiar as mães de vítimas do Estado e denunciar a injustiça nas investigações das mortes de seus filhos, lutando pelo direito à vida da juventude negra, pobre, favelada e periférica (FIOCRUZ, 2019). Ana Paula entende que, apoiando outras mães, está se apoiando também. Aparecida, por sua vez, não se reconhece como militante, mas compreende que estar próxima de outras mulheres que perderam seus filhos na guerra urbana do Rio de Janeiro é mais reconfortante.

O livro de Brito também levanta a reflexão sobre o “papel da vítima” para o sistema de justiça criminal, articulando a Teoria Crítica da Raça. A “mãe de vítima” que recebe uma resposta adequada do Estado, sobre o homicídio de seu filho, é branca, rica, conhecida; a mulher negra, periférica, desconhecida e intencionalmente invisibilizada, é tratada com ofensas, desprezo e desconfiança quando acessa algum espaço público do sistema de justiça - delegacia ou tribunais. E aqui, mais uma vez, Felipe Freitas nos provoca em relação ao campo criminológico crítico:

O reconhecimento dos negros como “vítimas” não foi acompanhado do processo de reconhecimento dos negros como sujeitos, o que gera um entrave que interdita a assunção de uma crítica criminológica que seja verdadeiramente revolucionária (FREITAS, 2016FREITAS, Felipe da Silva. Novas perguntas para a Criminologia Brasileira: poder, racismo e direito no centro da roda. Cadernos do CEAS, Salvador, n. 238, p. 488-499, 2016., p. 496).

A mulher-mãe-negra, vítima da violência estatal, precisa se preocupar com a reputação do seu filho morto para obter alguma resposta do sistema de justiça: é necessário provar que era um trabalhador, um estudante, uma pessoa honesta. A vítima branca não precisa reivindicar seu lugar de vítima; a vítima negra, com dificuldade, mal acessa serviços a que deveria ter pleno direito. As garantias meramente formais de um julgamento justo e de uma resposta estatal proporcional e adequada à injusta violação dos direitos da vítima e de sua família não respondem às dores sem nome desta mãe sem esperanças na justiça.

A intenção de Maíra Brito, ao longo de todo o livro, é muito bem definida: documentar, dar voz e visibilidade às dores das mães e de seus filhos, vítimas do Estado. Seu talento para a escrita permite que as vozes das duas mães se unam à sua própria, que é marcante na construção da narrativa, determinando, com fundamentação teórica, o alcance de quem é matável e de quem não o é no Brasil. Há uma sensibilidade que permeia o texto, como na passagem em que se inclui a certidão de nascimento de Johnatha - pois o que importa é o seu nascimento para a sua mãe; seu corpo morre, mas sua memória, não.

As mulheres-mães-negras reconhecem a importância de suas falas a Maíra Brito, que será uma poderosa interlocutora para a defesa dos direitos humanos, de suas famílias e de tantas outras. Como diz Ana Paula, há, no livro de Brito, uma poderosa mensagem que poderá “tocar outras mães, com essa trajetória do luto à luta” (Ana Paula, in BRITO, 2018, p. 50).

A escrita de Maíra Brito é permeada de dor, de amor e de respeito. Suas palavras são sensíveis, não assumem a dor das mães negras, mas as compartilha e as honra. O amor com que escreve projeta suas palavras para alcançar cada vez mais pessoas. A importância do amor para as mulheres negras é objeto de estudo de bell hooks, que explica que, em razão do processo da escravidão e do racismo, é comum que mulheres negras não consigam acessar o amor como experiência. A luta pela sobrevivência já é dura demais para a abertura a qualquer outro sentimento. No entanto, hooks entende que o amor é a chave: é o amor quem pode fazer com que a luta das mulheres negras se traduza em uma luta por uma vida plena, e não só uma vida a que se sobrevive (hooks, 2006). Por sua vez, Maíra Brito demonstra, com as palavras, seu amor e seu respeito à luta das mães-mulheres-negras que lutam pela memória de seus filhos e por respostas dignas do sistema de justiça criminal.

A escolha cuidadosa das referências dos títulos e subtítulos, associadas às falas de Ana Paula e de Aparecida, dão um grande poder ao livro: é um chamado a todas e todos nós - e, no que me toca diretamente, a todas e a todos que trabalham com ou no sistema de justiça criminal, o alerta constante sobre o racismo estrutural que orienta todo o seu funcionamento.

Talvez esse seja a grande provocação que Maíra Brito deixa às pessoas brancas: não é necessário apenas se declarar antirracista; é importante atuar consciente de seus privilégios, contestando-os e questionando-os a todo o tempo.

Somada ao ciclo de negações e de reforços de estereótipos, a mídia também produz discursos que naturalizam a superioridade branca e que tratam o branco como representante natural da espécie. Se as características do branco são a norma da humanidade, todos os não brancos são o desvio da norma. Todos negros são os não humanos (BRITO, 2018, p. 89).

Esse processo de desumanização - tão nítido nas ações da branquitude3 3 Infelizmente são muitos os exemplos de racismo atualmente, mas recorro, aqui, a um exemplo literário: Toni Morrison, em “O olho mais azul”, descreve a ida da menina Pecola a uma loja para comprar balas. A forma como o dono da loja a trata é reveladora dessa desumanização (MORRISON, 2019, p. 56-59). - é a marca da mídia, na cobertura de casos de homicídios da população jovem negra brasileira. Esse assunto permeia o livro, com falas de Ana Paula e de Aparecida, na voz de Maíra Brito. A jornalista se posiciona pela necessidade de reforço da perspectiva de defesa dos direitos humanos.

Referências bibliográficas

  • BRASIL. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Atlas da Violência. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/dados-series/17 Acesso em 27 ago. 2019.
    » http://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/dados-series/17
  • hooks, bell. Vivendo de amor. In: WERNECK, Jurema; MENDONÇA, Maysa; EVELYN, c (org). O livro da saúde das mulheres negras: nossos passos vêm de longe. Rio de Janeiro: Pallas Editora / Criola, 2006.
  • FREITAS, Felipe da Silva. Novas perguntas para a Criminologia Brasileira: poder, racismo e direito no centro da roda. Cadernos do CEAS, Salvador, n. 238, p. 488-499, 2016.
  • FIOCRUZ. Mães de Manguinhos promovem evento por memória, justiça e liberdade nas favelas e nas periferias. Disponível em: http://www.ensp.fiocruz.br/portalensp/informe/site/materia/detalhe/46060 Acesso em 21 jul. 2019.
    » http://www.ensp.fiocruz.br/portalensp/informe/site/materia/detalhe/46060
  • LEAL, Jackson da Silva. Criminologia da Libertação: construção da criminologia critica latino-americana como teoria crítica do controle social e a contribuição desde o Brasil. 1. ed. Belo Horizonte: D' Plácido, 2017.
  • MARTINS, Fernanda. A sustentação de um discurso crítico criminológico na Revista de Direito Penal e Criminologia (1971-1983). Revista Direito e Práxis, v. 5, n. 9, 2014, pp. 118-149.
  • MORRISON, Toni. O olho mais azul. Trad. Manoel Paulo Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
  • 1
    Usamos, aqui, a interseccionalidade citada no livro, quando se referencia a categoria utilizada por Vilma Reis (2005): “jovens-homens-negros” (BRITO, 2018, p. 90).
  • 2
    “Eu soube da morte dele de uma forma muito cruel. Recebi uma ligação da polícia perguntando por ele e quando respondi que era a mãe dele quem estava falando, do outro lado da linha, disseram: seu filho morreu” (Aparecida, in BRITO, 2018, p. 70).
  • 3
    Infelizmente são muitos os exemplos de racismo atualmente, mas recorro, aqui, a um exemplo literário: Toni Morrison, em “O olho mais azul”, descreve a ida da menina Pecola a uma loja para comprar balas. A forma como o dono da loja a trata é reveladora dessa desumanização (MORRISON, 2019, p. 56-59).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Mar 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2020

Histórico

  • Recebido
    27 Ago 2019
  • Aceito
    09 Set 2019
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