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Por uma virada ontológica no Judiciário brasileiro: um novo papel a ser desempenhado por negros e indígenas

Resumo

A histórica desconsideração de saberes não eurocêntricos configura uma das características do colonialismo, fenômeno que persiste no Brasil sob a vigente Constituição, alcançando o Judiciário. O presente artigo examina como tal desconsideração judicial pode obstar a aplicação dos direitos das populações negras e indígenas. Em seguida, propõe uma virada ontológica no Judiciário, para que este amplie a consideração de diversas formas de conhecimento no exercício de suas funções. Metodologicamente, o artigo é assentado em pesquisa bibliográfica interdisciplinar que se soma a exame de duas iniciativas do Sistema de Justiça, realizados a partir de entrevistas semiestruturadas com seus coordenadores: o Polo Indígena de Conciliação na Comunidade de Maturuca em Roraima e o Projeto Vozes dos Quilombos no Piauí. Sob tal método, o artigo procura inovar utilizando o conceito antropológico de virada ontológica para aplicá-lo juridicamente ao Judiciário. Verificou-se, ao final, que as iniciativas examinadas são aptas a revelar possibilidades de escutas judiciais de populações historicamente colonizadas.

Palavras-chave:
Judiciário; Colonialismo; Virada ontológica

Abstract

The historical disregard of non-Eurocentric knowledge is one of the characteristics of the phenomenon known as colonialism. It persists in Brazil under the current Constitution and reaches the Judiciary. This article examines how such disregard may hinder the judicial application of black and indigenous populations rights. Then, the paper proposes an ontological turn in the judiciary. That means the functioning of a judicial system that expands the consideration of various knowledge in the exercise of its functions. Methodologically, the article is based on interdisciplinary bibliographic research. In addition, it examines two justice system initiatives: the Indigenous Conciliation Center in the Maturuca Community in Roraima and the Vozes dos Quilombos Project in Piauí. The analysis is conducted from semi-structured interviews with the coordinators of those initiatives. Under such method, the article seeks to innovate using the anthropological concept of ontological turn to apply it legally to the judiciary. It was found that the both examined initiatives are able to reveal possibilities of judicial listening in favor of historically colonized populations.

Keywords:
Judiciary; Colonialism; Ontological turn

Introdução1 1 O autor agradece os avaliadores pelas sugestões apresentadas.

A situação de maior vulnerabilidade das populações negras (pretas e pardas) e indígenas no Brasil é descortinada por dados numéricos. Neste século XXI, o país perdura convivendo com os negros entre os 75% mais pobres (IBGE, 2019) e com 18% dos indígenas sob a situação de extrema pobreza, número seis vezes maior do que a proporção do restante da população (CEPAL, 2016); por sua vez, mais de 66% do total das pessoas que se encontram encarceradas são negras (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2020), as quais ainda representam cerca de 75% dos mortos por policiais (GRELLET, 2020GRELLET, Fábio. Negros são 75% dos mortos pela polícia do Brasil, aponta relatório. Uol, São Paulo, 15 jul. 2020. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2020/07/15/negros-sao-75-dos-mortos-pela-policia-no-brasil-aponta-relatorio.htm. Acesso em 9 mar. 2021.
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); o referido estrato populacional foi ainda o mais atingido pela pandemia da Covid-19, chegando a ter 47,6% de suas mortes em decorrência da doença, contra 28,1% da população branca (AGÊNCIA DE NOTÍCIA DA AIDS, 2021); sob o mesmo contexto, tem-se o processo de usurpação de terras contra comunidades tradicionais, que levou a mais de mil assassinatos de indígenas nas últimas três décadas (CIMI, 2020).

Tais indicadores exemplificados configuram um efeito, dentre muitos outros, de todo um processo secular de práticas de subalternização do trabalho, do corpo, da vida, da liberdade e de formas de existência que inferiorizam negros e indígenas ao logo dos séculos. Tal processo atende à denominação de colonialismo (SANTOS, 2002SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2002.).

A compreensão da origem do fenômeno requer o retorno à obra de Immanuel Wallerstein (1983WALLERSTEIN, Immanuel. The three instances of hegemony in the history of the capitalista word-economy. International Journal of comparative sociology, [s.l.], vol. 24, jan 1983. Disponível em: https://www.deepdyve.com/lp/brill/the-three-instances-of-hegemony-in-the-history-of-the-capitalist-world-MRAPN5iGGG. Acesso em: 25 jul. 2022.
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). O autor observa que o sistema capitalista tem como um dos seus objetivos fundamentais a incessante acumulação do capital e a consequente necessidade de expansão de territórios. A vinda dos exploradores europeus ao continente americano a partir do final do século XV está inserida nesta necessidade. Todavia, tal processo não ensejou apenas o aporte de caravelas, armas de fogo e aventureiros, mas, sobretudo, a chegada de um modo próprio de existência - a civilização eurocêntrica2 2 Eurocentrismo não configura “[...] uma categoria que implica toda a história cognoscitiva em toda a Europa, nem na Europa Ocidental em particular. Em outras palavras, não se refere a todos os modos de conhecer de todos os europeus e em todas as épocas, mas a uma específica racionalidade ou perspectiva de conhecimento que se torna mundialmente hegemônica colonizando e sobrepondo-se a todas as demais, prévias ou diferentes, e a seus respectivos saberes concretos, tanto na Europa como no resto do mundo” (QUIJANO, 2005 p. 126). - que, como forma de justificar a exploração dos territórios e de pessoas levada a efeito a partir de então, colocou-se em posição racialmente superior às sociedades originárias do continente e aos africanos trazidos à força para serem escravizados (QUIJANO, 2005QUIJANO, Aníbal. A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais; Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005.).

“A ideia de que os brancos europeus podiam sair colonizando o resto do mundo estava sustentada na premissa de que havia uma humanidade esclarecida que precisava ir ao encontro de uma humanidade obscurecida [...]”, conforme síntese de Ailton Krenak (2019KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 11). E justamente por serem definidas como raças inferiores, as populações da humanidade tida por obscurecida tornaram-se, na visão colonizadora, destituídas de saber. Nada teriam a acrescentar ao espaço público de discussões cidadãs e da promoção de políticas públicas.

Os dados econômicos e sociais, acima mencionados, revelam a persistência de práticas semelhantes neste século XXI, de modo a proporcionar formato ao colonialismo contemporâneo, chamado por Boaventura Santos (2007SANTOS, Boaventura Sousa. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia dos saberes. Novos Estudos do CEBRAP, São Paulo, n. 79, p. 71-94, nov., 2007. Disponível em: < http://www.scielo.br/pdf/nec/n79/04.pdf>. Acesso em 17 ago. 2021.
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) de colonialismo social ou cultural. Se não há mais a colonização política externa e nem o discurso oficial explícito da inferioridade de raças, mantém-se, no plano fático, hierarquizações semelhantes àquelas do período pré-1822 (ano da independência do Brasil perante Portugal), direcionadas sobretudo aos descendentes dos africanos e dos habitantes originários escravizados e explorados: objetificação do trabalho, dominação corporal, relativização da vida e da liberdade e o desprezo dos saberes.

A última faceta das práticas colonialistas mencionadas - a desconsideração dos saberes3 3 O aspecto epistêmico do colonialismo contemporâneo é referido por Aníbal Quijano (2005, p. 121) como colonialidade, a, segundo o autor, possibilitar ao branco de ascendência europeia a manutenção de “[...] todas as formas de controle se subjetividade, da cultura, e em especial do conhecimento, da produção do conhecimento”. Walter Mignolo (2017, p. 2) reforça tal denominação, apontando que “a colonialidade nomeia a lógica subjacente da fundação e do desdobramento da civilização ocidental desde o Renascimento até hoje [...]”. Por opção metodológica, este texto faz uso da expressão colonialismo, tal como utilizada por Boaventura Santos e autoras como Grada Kilomba (2019, p. 33), que, de modo cristalino, sintetiza o fenômeno como aquele que “[...] simboliza práticas sádicas de conquistas e dominação e seus regimes brutais de silenciamento das/os chamadas/os ‘Outras/os’”. A despeito dessas diferenças de denominação, Quijano e Mignolo tratam da mesma forma de opressão secular. - revela, por seu turno, o caráter epistêmico do fenômeno. Conforme aponta Djamila Ribeiro (2017RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala. Belo Horizonte: Letramento; Justificando, 2017., p. 35) em relação aos estratos historicamente colonizados, “as experiências desses grupos localizados socialmente de forma hierarquizada e não humanizada faz com que as produções intelectuais, saberes e vozes sejam tratadas de modo igualmente subalternizado [...]”. Essa circunstância pode explicar o silenciamento que lhes são impostos em espaços tidos por essenciais aos debates públicos, como os meios de comunicação e as universidades, ainda hoje majoritariamente ocupados por brancos, isto é, pessoas que não têm, entre suas experiencias de vida, a submissão ao racismo.

Diante da distância abissal entre a realidade de normas constitucionais que prometem a construção de sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, inciso I) e igualdade racial (art. 5º, caput) perante a realidade de uma vida de subjugações e silenciamentos, há de se perquirir o papel que o Judiciário tem exercido para a subsistência de tal quadro. Na qualidade de função estatal que cabe aplicar as normas vigentes em litígios, como tem o Judiciário lidado com práticas colonialistas? Qual sua responsabilidade perante a prolongada subalternização de negros e indígenas? Como pode vir a atuar na concretização do projeto constitucional de superação do colonialismo para reduzir as desigualdades?

Na busca de responder tais questionamentos é que o objetivo deste artigo é apresentado. Procura-se examinar obstáculos colonialistas de índole epistêmica, presentes na atividade judicial no trabalho de aplicação dos direitos sobre populações negras e indígenas, para, ao final, propor uma virada ontológica no Judiciário brasileiro, passando este a considerar saberes não eurocêntricos no exercício de suas funções.

Como se vê do recorte de pesquisa, há o foco especial na descrição da perspectiva epistemológica do colonialismo contemporâneo, o que, por sua vez, leva o estudo a buscar uma possível alternativa, também epistêmica, a esse estado de coisas. Assim é feito pelo fato de o silenciamento secular dos grupos subalternizados impedi-los de denunciar e superar a objetificação, a dominação, o desprezo e a relativização de direitos que, conforme aludido anteriormente, proporcionam formato ao fenômeno em questão.

Em termos metodológicos, trata-se de escrito assentado em pesquisa bibliográfica promotora de diálogo interdisciplinar entre o Direito e as Ciências Sociais: há aqui uma interação entre estudos de Direito Antidiscriminatório e análises da Sociologia e da Antropologia Decoloniais. Sob tal diálogo, o artigo procura inovar mediante a utilização do conceito antropológico de virada ontológica para aplicá-lo juridicamente ao Judiciário.

Somando-se ao exame da literatura, têm-se ainda breves exames, realizados a partir de entrevistas semiestruturadas com seus coordenadores, de duas iniciativas oriundas do Sistema de Justiça aptas a revelar possibilidades de escutas de populações colonizadas no âmbito do Judiciário. A primeira dessas iniciativas é o Polo Indígena de Conciliação na Comunidade de Maturuca, do Tribunal de Justiça de Roraima, e a segundo, o Projeto Vozes dos Quilombos, da Defensoria Pública do Piauí.

Para atingir o fim proposto, conforme o caminho adotado, o artigo está dividido em seis seções, além desta introdutória. Na seção 1, procede-se à breve menção a dois casos apreciados que simbolizam dificuldades judiciais na compreensão de saberes não eurocêntricos. Nas seções 2 e 3, relaciona-se tais obstáculos à uma histórica construção do Judiciário conforme padrões colonialistas. Na seção 4, aponta-se a necessidade de uma virada ontológica no Judiciário para que este suplante as dificuldades de entendimento dos conhecimentos historicamente colonizados, indicando-se, na seção seguinte, duas práticas, atualmente em vigor, que parecem revelar a possibilidade da sustentada superação. Ao final, o estudo apresenta suas conclusões.

1 Duas práticas judiciais e um mesmo sintoma

Inicia-se o exame procurando promover pronta concretude ao debate colocado. Para isso, mencionam-se duas práticas judiciais que evidenciam dificuldades do Judiciário em lidar com saberes não eurocêntricos.

Cabe ressalvar que, quando aqui se alude ao termo Judiciário, não se está ignorando o fato de, em uma república federativa como o Brasil, inexistir uma única unidade judicial, mas várias apartadas em órgãos distintos: tribunais estaduais, tribunais federais, cortes superiores, ramos especializados, enfim, toda uma gama de unidades composta por magistrados e servidores das mais diversas regiões do país. Alude-se, porém, a Judiciário enquanto instituição considerada em sua totalidade (o “poder de Estado”) que, conforme sustentado, em geral apresenta dificuldades em suas relações com formas de existência colonizadas, fato simbolizado por duas práticas objetos de menção.

A escolha das específicas práticas sucede com base em três circunstâncias que devem ser externadas. Primeiramente, porque realizadas em períodos próximos uma das outras (início de 2014), quando se encontravam em vigor, já há algumas décadas, as normas anticolonialistas da Constituição de 1988, representadas a todas as populações secularmente colonizadas pela promessa de liberdade, justiça e solidariedade, pela vedação de discriminação e pela igualdade racial (artigos 3º, I e IV e 5º, caput), sem prejuízo de dispositivos aplicáveis a estratos específicos4 4 Tal como o reconhecimento específico de saberes ancestrais indígenas, pela via da legitimação de organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, definida pelo artigo 231 ou tal como o reconhecimento da propriedade quilombola, validando-se o seu uso conforme os saberes dessas específicas comunidades, proporcionado pelo artigo 60 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. ; em segundo lugar, porque envolvem justamente o foco deste trabalho, as populações originárias do continente americano e as de ascendência africana; e, em terceiro lugar, pela linguagem incisiva que utilizam, evidenciando os obstáculos judiciais para a efetivação de direitos que este estudo pretende apontar.

É certo que a seleção de duas práticas, em meio aos milhões de processos que tramitam no país, pode parecer insuficiente para revelar as dificuldades do arcabouço judicial em lidar com povos colonizados. A escolha de dois casos para menção, contudo, sucede apenas para simbolizar a presença de obstáculos no sistema como um todo, que, para além de exames concretos como o realizado, são evidenciados por outros elementos cientificamente verificáveis, como a citada prevalência negra nas prisões, que lá se encontram sob a chancela judicial (flagrantes validados ou custódias decretadas, ambos pelo Judiciário).

Realizadas as observações preliminares, pode-se, enfim, alcançar as práticas. Parte-se, então, de fevereiro de 2014 quando o cacique Babau, líder indígena Tupinambá da Serra do Padeiro sofreu a medida de prisão preventiva por decisão oriunda da Vara Criminal da Comarca de Una. Anota-se aqui, para melhor contextualizar o problema, que a citada comunidade é uma das componentes da etnia Tupinambá, povo que luta pelo seu direito à demarcação de terra (art. 231, da Constituição) situada entre os Municípios baianos de Buerarema, Una e Ilhéus. Essa luta, porém, é menosprezada pelo Estado brasileiro, que não cumpre seu dever jurídico de ouvir os indígenas e proceder à demandada demarcação.

Com o intuito de sustentar a competência do tribunal estadual baiano para o decreto da custódia de um indígena, a autoridade judicial subscritora da decisão anotou:

Pelo que consta na representação, há possivelmente a existência de pessoas que estão se valendo de benefícios concedidos aos que realmente merecem (índios) e sob o manto protecionista do Estado pretendem cometer crimes graves como os que vêm ocorrendo na presente região.

Consta da representação que não existe qualquer critério objetivo e seguro para a constatação de quem é verdadeiramente índio, inclusive com relatos de qualquer pessoa pode se autoafirmar índio, ser cadastrado perante o Órgão Federal, inclusive com possibilidade de retratação e deixar de ser índio.

[...].

Percebe-se a fragilidade do sistema de aferição da QUALIDADE indígena, fato que ocasiona não o fortalecimento do mencionado biótipo, mas o desprestígio daqueles que verdadeiramente são índios e que merecem todo respeito e tutela estatal.

[...].

Ressalto que o modus operandi da prática criminosa que se investiga desvirtua por completo a concepção que se tem por índio e afasta completamente a característica indígena aos investigados [...] (BAHIA, 2014).

Verifica-se, do teor do ato, a desconsideração da autoidentificação étnica. Isso, apesar de se tratar de direito previsto no artigo 1o, item 2, da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, subscrita pelo Estado brasileiro em 2002 sob o contexto da autonomia dos saberes indígenas normativamente legitimada no pós- Constituição de 1988. Em tal desconsideração, insere-se mencionado estrato populacional à posição de componente de sociedades estáticas (marcadas por biótipos) e, portanto, atrasadas (a ponto de dependerem do Estado para o reconhecimento de uma qualidade indígena), ignorando-se o fato de qualquer coletividade estar submetida a mudanças sociais, sobretudo as decorrentes de miscigenações ocorridas entre populações diversas ao longo dos séculos (BONFIL BATALHA, 1972BONFIL BATALHA, Guillermo. El concepto de indio en América: una categoría de la situación colonial. Anales de Antropología, UNAM, México, vol. 9, p. 105-124, 1972.).

Importante ressaltar que negar a uma dada população a possibilidade de se auto identificar significa negar a ela capacidade de produzir saberes relevantes. De fato, quem não pode sequer decidir a que estrato social pertence, dependendo para isso de vontade externa estatal, é, sob tal lógica, desprovido de qualquer autonomia, inclusive cognitiva. Trata-se de circunstância que no âmbito do colonialismo passa a justificar o secular alijamento dos debates públicos e a impossibilidade de ter demandas específicas (como a demarcação da terra Tupinambá) consideradas pelo Poder Público.

Da Justiça estadual baiana, alcança-se a Seção Judiciária Federal do Rio de Janeiro para menção à segunda prática judicial, realizada no mês de abril do mesmo ano de 2014. Em ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal, foi indeferido pedido liminar para que a empresa Google retirasse 15 vídeos ofensivos à umbanda e ao candomblé postados na rede social Youtube. Os vídeos relacionavam os rituais religiosos de matrizes africanas ao que, sob a ótica eurocêntrica cristã, é visto como demônio e mal, chegando-se, em um deles, a se pedir o fechamento de terreiros.

A situação descrita, contudo, não sensibilizou juridicamente o Judiciário, conforme se verifica do trecho abaixo da fundamentação do ato decisório:

No caso, ambas manifestações de religiosidade não contêm os traços necessários de uma religião a saber, um texto base (corão, bíblia etc) ausência de estrutura hierárquica e ausência de um Deus a ser venerado.

Não se vai entrar, neste momento, no pantanoso campo do que venha a ser religião, apenas, para ao exame da tutela, não se apresenta malferimento de um sistema de fé. As manifestações religiosas afro-brasileiras não se constituem em religiões, muito menos os vídeos contidos no Google refletem um sistema de crença - são de mau gosto, mas são manifestações de livre expressão de opinião (BRASIL, 2014).

Como se vê, negou-se judicialmente a existência de religiões de raízes africanas pelo fato destas não terem um sistema de crenças escrita e nem serem hierarquizadas. Trata-se de conclusão que desconsidera conhecimentos baseados na tradição oral e em modos de vida sócio comunitários, como o são aqueles de populações trazidas forçadamente para serem escravizadas até o século XIX, despojando muitos de seus atuais descendentes do direito à liberdade religiosa previsto no artigo 5º, inciso VI, da vigente Constituição Federal.

Sem embargo da diversidade das populações envolvidas nos dois atos mencionados (um envolvendo povos indígenas e outro, as populações de ascendência africana), há um elemento comum que os une, para além do fato de terem sido proferidos no mesmo ano de 2014. Em ambos os casos, o Judiciário ignorou a autonomia dos saberes dessas populações, validando, ao final, todo um sistema de opressão, de origem colonial, baseado na superioridade racial dos colonizadores.

Não se está a afirmar - importante ressalvar - ter havido um intuito deliberado dos juízes que proferiram as decisões de inferiorizar conhecimentos não eurocêntricos. A propósito, no caso da Justiça Federal do Rio de Janeiro, noticiou a imprensa (PINTO, 2014PINTO, Marcelo. Juiz recua em manifestações sobre religiões africanas, mas mantém decisão. Consultor Jurídico, São Paulo, 21 maio 2014. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2014-mai-21/juiz-recua-manifestacoes-religioes-africanas-mantem-decisao. Acesso em: 28 out. 2021.
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) que o próprio magistrado subscritor do ato decisório reconsiderou suas assertivas. O problema é a naturalização de concepções racistas, trazidas pelas práticas históricas colonialistas, nem sempre percebidas pelos próprios atores do Sistema de Justiça por impregnadas estruturalmente na sociedade brasileira, na forma apontada por Silvio Almeida:

Em resumo: o racismo é uma decorrência da própria estrutura social, ou seja, do modo “normal” com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares, não sendo uma patologia social e nem um desarranjo institucional. O racismo é estrutural. Comportamentos individuais e processos institucionais são derivados de uma sociedade cujo racismo é regra e não exceção (ALMEIDA, 2020ALMEIDA, Silvio. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Editora Jandaíra, 2020., p. 50).

2 Judiciário enquanto construção eurocêntrica

No âmbito do mesmo raciocínio da subsistência de racismo imbuído nos arcabouços sociais a partir de práticas históricas colonialistas, há se de lembrar que, semelhantemente aos demais países do continente americano, o Judiciário brasileiro é, em sua gênese, resultado de uma construção colonizada de Estado. Em tais termos, foi moldado à luz dos sistemas judiciais europeus, ignorando formas de resolução de conflitos baseadas em conhecimentos ancestrais, adotadas pelas comunidades indígenas locais ou pelas populações africanas.

No seu funcionamento cotidiano, atuou originalmente de modo coerente ao Estado colonialista do qual faz parte. Lembra, a respeito, Fabio Konder Comparato (2013COMPARATO, Fabio Konder. O poder Judiciário no Brasil. Cadernos IHU Ideias. São Leopoldo, ano 1, n. 1, 2013. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/images/stories/cadernos/ideias/222cadernosihuideias.pdf. Acesso em: 14 set. 2021.
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, p. 12), o silêncio de juízes aos casos de abusos cometidos por proprietários contra escravos, no Brasil escravocrata regido pela Constituição imperial de 1824, “[...] quando mais não fosse porque vários magistrados eram proprietários de fazendas, com bom número de escravos”.

Superada normativamente a escravidão sobre negros e indígenas no final do século XIX5 5 Relata Manuela Carneiro da Cunha (2012, p. 82-83) que “declarada ou embuçada, porém, a escravidão indígena perdurou até pelo menos meados do século XIX. Vendiam-se crianças (Circular 9/8/1845) e adultos eram disfarçadamente escravizados também (Aviso 2/9/1845). No que hoje é o Amazonas, a escravização nas formas mais tradicionais - apresamento direto, estímulo à guerra indígena para compra de prisioneiros continuava como se nada houvesse”. , o sistema perdurou legitimando práticas semelhantemente discriminatórias ao longo do período republicano. É o caso, por exemplo, da criminalização dos chamados charlatanismo e curandeirismo, sucedida de modo mais intenso na primeira metade do século XX, quando os conhecimentos medicinais das populações colonizadas eram desprezados pelo Judiciário brasileiro que, no exercício da persecução penal, enxergava-os como infrações penais passíveis de punição.

De outro lado, cabe lembrar que se o Judiciário criminalizava saberes medicinais ancestrais de negros e indígenas é porque, anteriormente às suas decisões, vigoravam normas jurídicas que sustentavam a criminalização. Essas normas, por sua vez, estavam inseridas em quadros mais amplos de programas civilizatórios (SCHRITZMEYER, 2004SCHRITZMEYER, Ana Lúcia Pastore. Sortilégio dos saberes: curandeiros e juízes nos tribunais brasileiros (1900-1990). São Paulo: IBCCRIM, 2004.) sustentados pelas elites econômicas e políticas do país, os quais, em apertado resumo, colocariam o Brasil no mesmo patamar do que se considerava desenvolvimento das nações europeias colonizadoras.

A promulgação da Constituição Federal de 1988, embora tenha normativamente encerrado a legitimidade de programas de tal espécie, não logrou suprimir a naturalização de situações judicialmente colonialistas. É o que se verifica das duas decisões judiciais trazidas no item anterior, a serem somadas a outros sinais presentes como os dados da população carcerária, alcançando, em acréscimo, a própria composição racial do Judiciário deste início de século XXI: segundo o Censo Judicial, promovido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ, 2018), 80,3% dos magistrados do país não se declaram índios ou negros.

3 O problema da leitura dos direitos

Sob concepções puramente tecnicistas acerca da interpretação e aplicação de normas jurídicas, a presença de um Judiciário estruturalmente branco, construído conforme padrões eurocêntricos, não traria efeitos relevantes6 6 É o que sustentava a Escola da Exegese no século XIX, para quem cabia ao Judiciário “[...] mera aplicação dos enunciados normativos, literalmente considerados, à situação fática a ele submetida [...]” (RAMOS, 2015, posição 974). . Afinal, o exercício de tal atividade seria politicamente neutro, como se Política e Direito configurassem setores estanques e incomunicáveis entre si.

O problema é que não há como apartar, em setores estanques, a Política do Direito. Conforme Max Weber, a Política consiste na “[...] aspiração à participação no poder ou a exercer influência sobre a distribuição do poder [...]” (WEBER, 2015WEBER, Max. Ciência e política: duas vocações. São Paulo, Martin Claret, 2015., p. 63), externando-se na luta pela dominação proporcionada pelo aparelho estatal, que, sob o Estado de Direito, deve ocorrer dentro de parâmetros garantidos pelo sistema normativo. Em torno dessas lutas, por sua vez, situam-se mobilizações de determinados grupos sociais para modificar o próprio Direito, criando institutos jurídicos, ampliando-os ou extinguindo-os.

Sobram exemplos ao longo da História para confirmar as estreitas relações entre ambos os setores. A propriedade privada individual, valor basilar do modo capitalista de produção, foi consagrada no sistema jurídico como aspiração política da burguesia, no contexto da Revolução Francesa de 1789. Por sua vez, os direitos trabalhistas foram produtos das mobilizações operárias na Europa pós-Revolução Industrial e no Brasil que começava a se industrializar sob a Constituição de 1891. Por fim, para não se alongar em demasia na exemplificação, os direitos originários destinados à população indígena, previstos na Constituição brasileira de 1988, decorreram da mobilização desse estrato populacional em favor do reconhecimento da diversidade de formas de existência no território do país.

Para além dessas relações estreitas entre Política e Direito, os próprios membros da magistratura não são pessoalmente neutros. Assim como qualquer outro cidadão, têm visões próprias de mundo, oriundas dos valores sociais que adquirem ao longo de sua vivência perante a família, o sistema educacional que frequentam, origens de classe, o estrato racial e de gênero a que pertencem, os noticiários que acompanham, igrejas que eventualmente frequentam, dentre outros mediadores.

Isso não significa que o magistrado não se encontra vinculado aos parâmetros legais como critério válido de julgamento. Todavia, a letra da lei é frequentemente dotada de significados plurívocos (BAXI, 2006BAXI, Upendra. Politics of reading human rights: inclusion and exclusin within the production of human rights. In: MECKELED-GARCÍA, Saladin; ÇALI, Basak. The legalization of human rights: multidisciplinary perspectives on human rights and human rights law. [recurso eletrônico]. New York: Routledge, 2006. p. 167-184.), refletindo os embates políticos presentes na construção de qualquer instituição jurídica, conforme observado acima e, ao final, levando o processo interpretativo a se sujeitar a valores pessoais de quem procede à leitura prévia e à sua aplicação, como os juízes quando da análise dos conflitos que lhes são levados.

Os efeitos políticos e jurídicos de uma magistratura prevalentemente branca revelam-se, por tudo isso, intuitivos. Mais de 80% dos juízes do Brasil procedem à leitura das amplas promessas normativas constitucionalmente previstas a partir de saberes adquiridos por experiências de vida que desconhecem heranças racistas de índole colonialista. Não vivenciam em grande parte, por exemplo, a luta pela terra tida por essencial à própria existência, como o fazem cotidianamente comunidades indígenas; não vivenciam, da mesma maneira, o que é ser parte de um estrato populacional alvo de cerca de 75% das mortes por policiais (GRELLET, 2020GRELLET, Fábio. Negros são 75% dos mortos pela polícia do Brasil, aponta relatório. Uol, São Paulo, 15 jul. 2020. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2020/07/15/negros-sao-75-dos-mortos-pela-policia-no-brasil-aponta-relatorio.htm. Acesso em 9 mar. 2021.
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) ou cuja matriz religiosa é alvo de quase 60% dos crimes de intolerância praticados no Brasil (RIOS, 2019RIOS, Alan. Religiões de matriz africana são alvos de 59% dos crimes de intolerância. Correio da Manhã, Brasília, 11 nov. 2019. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2019/11/11/interna_cidadesdf,805394/religioes-de-matriz-africana-alvos-de-59-dos-crimes-de-intolerancia.shtml. Acesso em: 28 out. 2021.
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), da forma cotidianamente experimentada pela população negra. Consoante lembra Adilson Moreira (fazendo uma menção mais genérica a juristas brancos), “a raça também define a forma pela qual eles interpretam normas constitucionais, porque ela os situa em uma posição social específica” (MOREIRA, 2019MOREIRA, Adilson José. Pensando como um negro: ensaio de hermenêutica jurídica. São Paulo: Editora Contracorrente, 2019., p. 31).

De todo o quadro descrito, parece axiomático concluir-se pela necessidade de promoção de políticas públicas que prontamente modifiquem a composição do Judiciário, tornando-o menos branco. A instituição da política de cotas raciais também para indígenas e para todas as instâncias judiciais - de modo a ampliar os termos da Resolução nº 203 de 23 de junho de 2015 do CNJ que as limitou à população negra nos concursos de ingresso na magistratura- seria, assim, uma importante alternativa. Mais magistrados negros e indígenas trariam novas experiências de vida e novos conhecimentos na leitura dos direitos. Além disso, conforme pontua Silvio Almeida (2020ALMEIDA, Silvio. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Editora Jandaíra, 2020., p. 110), ensejariam a “[...] abertura de um espaço político para que as reivindicações das minorias possam ser repercutidas [...]”.

Tais anotações, contudo, não significam que a presença de populações historicamente colonizadas na magistratura garanta, por si só, a consideração dos respectivos saberes na apreciação judicial de litígios. A complexidade da faceta epistêmica do colonialismo contemporâneo torna a questão da representatividade apenas um aspecto de todo um arcabouço constituído sob padrões seculares racistas, conforme se extrai das observações formuladas pelo mesmo autor acima citado:

Ainda que essencial, a mera presença de pessoas negras e outras minorias em espaços de poder e decisão não significa que a instituição deixará de atuar de forma racista. A ação dos indivíduos é orientada, e muitas vezes só é possível, por meio de instituições, sempre tendo como pano de fundo os princípios estruturais da sociedade, como as questões de ordem política, econômica e jurídica (ALMEIDA, 2020ALMEIDA, Silvio. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Editora Jandaíra, 2020., p. 49).

O que Silvio Almeida está a afirmar é que de pouco pode adiantar a maior presença de populações historicamente colonizadas nos locais de poder se estes permanecerem, em seus arcabouços, montados conforme padrões colonialistas. Nesses termos, um Judiciário racialmente plural pode não solucionar os problemas acima colocados se estruturalmente perdurar funcionando na forma que foi historicamente construído, isto é, sob a exclusiva perspectiva de vida da população de ascendência europeia.

Narrativas de magistrados negros, manifestadas em artigos disponibilizados na rede mundial de computadores, confirmam tal advertência. Nesse sentido, tem-se artigo de autoria da juíza Karen Pinheiro, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que, relatando sua experiência profissional, salienta:

Não foram poucos os flagrantes de racismo encontrados nesse percurso, tanto nos cartórios, como nas salas de audiências, nos eventos públicos, em atos praticados por diferentes membros das carreiras jurídicas, que se surpreendiam com a imagem de uma mulher negra exercendo a jurisdição.

O estranhamento nas relações interpessoais sempre foi meu companheiro: houve quem perguntou onde estava a juíza, houve quem se dirigiu a todos presentes em sala de audiências menos a mim; houve quem disse que pensava em alguém diferente, ainda que eu estivesse ocupando o lugar de maior destaque do ambiente forense, o que demonstrava rejeição à figura de uma juíza de direito que ostentava uma representação não correspondente ao padrão construído no imaginário coletivo. Todos, de diferentes modos, mas por meio de códigos não falados revelaram o racismo em suas condutas (PINHEIRO, 2019PINHEIRO, Karen. Uma magistrada negra: uma história e um Judiciário para além da exceção. Carta Capital, São Paulo, 21 mar. 2019. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/blogs/sororidade-em-pauta/uma-magistrada-negra-historia-e-um-judiciario-para-alem-da-excecao/. Acesso em: 8 nov. 2021.
https://www.cartacapital.com.br/blogs/so...
, online).

Em sentido semelhante, situa-se o relato do juiz do Tribunal de Justiça de Sergipe, Edinaldo Santos Junior:

Assim, apesar de vivenciar formalmente as condições de qualquer outro magistrado brasileiro, a minha cor ainda poderia ser considerada um fator subordinante. Ao tratar das políticas territoriais em relação à raça, Grada Kilomba, em seu livro Memórias da Plantação, lembra-nos de que nos racismos contemporâneos não há lugar para a diferença e os diferentes permanecem perpetuamente irreconciliáveis com a “nação”; são estrangeiros. Na mesma linha, Fanon diria que nós, negros, não somos escravos da ideia que os outros fazem de nós, mas da nossa (simples) aparição.

Perguntas como essas: “você é juiz(íza)?” ou “cadê o juiz ou a juíza?” em contextos evidentes de territorialidade judiciária consolidada, como um gabinete do(a) magistrado(a), por exemplo, demonstram uma odiosa manutenção de um pensamento estruturalmente racista que, consciente ou inconscientemente, identifica determinada raça como inautêntica para ocupação de determinados locais de poder (SANTOS JUNIOR, 2021SANTOS JUNIOR, Edinaldo. Um sujeito-juiz-negro. Justificando, São Paulo, 20 jul. 2021. Disponível em: http://www.justificando.com/2021/07/20/edinaldo-cesar-santos-junior-um-sujeito-juiz-negro/. Acesso em: 8 nov. 2021.
http://www.justificando.com/2021/07/20/e...
, online).

Revela-se realmente difícil esperar do Judiciário, estruturalmente considerado, sensibilidade acerca de problemas sofridos por quem, secularmente, tem sido inserido nos mais baixos degraus da escala social brasileira. As vantagens históricas adquiridas por uma população nunca escravizada - a branca - parecem ampliar-se nas lutas pelos direitos ocorrentes no âmbito dos processos judiciais.

4 O caráter reativo dos direitos e a necessária virada ontológica

Cabe ressaltar que tais vantagens subvertem toda a lógica reativa do reconhecimento de demandas na forma de direitos em favor de estratos colonizados.

De fato, os direitos dos povos indígenas, previstos nos artigos 231 e 232 na Constituição de 1988, configuram uma reação contra práticas historicamente colonialistas, as quais colocam as populações originárias em inferioridade no tocante ao restante da população. De modo semelhante, a vedação de discriminação de origem, raça, sexo, cor e idade, prevista no artigo 3º, IV, do mesmo documento constitucional, apresenta-se na forma de reação contra situações de desvantagens a que foram e são submetidos setores populacionais como os negros. Se não existissem práticas colonialistas, não haveria motivo para se atribuir direitos especiais a estratos colonizados.

Aparecendo, então, como respostas a hierarquizações, tais direitos requerem do Estado a realização de atuações que criem “[...] condições subjetivas e condições objetivas de paridade de participação” (MOREIRA, 2020MOREIRA, Adilson José. Tratado de direito antiscriminatório. São Paulo: Editora Contracorrente, 2020., p. 725). Inclui-se, neste papel a ser desempenhado, o Judiciário, na medida em que a aplicação dos direitos é também tarefa sua, enquanto um dos poderes estatais.

Sucede que, como se viu, tem-se uma atividade judicial construída a partir de conhecimentos eurocêntricos. É, portanto, sob esses modelos que corriqueiramente procede à leitura dos direitos, mesmo quando atua em processos em que contendem populações que adotam outras formas de existência.

Tem-se um problema que parece ser inerente ao sistema: a perspectiva que pauta a leitura dos direitos é a mesma que baseia o colonialismo, objeto da reação social que ensejou o arcabouço normativo a ser aplicado. Daí a importância da promoção de modificações estruturais no Judiciário, que alcancem as raízes das dificuldades de seus membros em proceder a interpretação e aplicação efetivamente descolonizadoras das normas jurídicas. Ante seu caráter estrutural, mencionada tarefa implica enfrentar um dos núcleos das opressões colonialistas: a desconsideração dos saberes dos estratos colonizados.

De tal circunstância, advém a necessidade de realizar o que ora se denomina virada ontológica no Judiciário.

A expressão virada ontológica tem sua origem na Antropologia, ramo das Ciências Sociais que nasceu do olhar eurocêntrico em relação às populações originárias dos territórios colonizados. Por isso, em sua gênese, baseou-se no pensamento evolucionista, o qual enxergava as sociedades exploradas como etapas não evoluídas da humanidade.

Embora a superação do evolucionismo configure consenso acadêmico desde o século passado, reconhecem-se ainda seus resquícios em trabalhos antropológicos. A própria inserção de determinadas populações na forma de objetos de estudo, tal como coisas inanimadas examinadas pelas ciências naturais, não deixa de revelar-se como uma tomada de posição de superioridade do pesquisador da sociedade eurocêntrica em relação ao pesquisado das sociedades colonizadas.

A virada ontológica aparece, então, como movimento acadêmico que se insere como alternativa para suplantar qualquer elemento que coloque o estudioso em situação superior àquele que é referido nas investigações científicas. Adotando parâmetros simétricos com o pesquisado, pretende que a ciência o trate como sujeito igual ao pesquisador, ainda que tenha outros costumes, tradições, crenças e instituições formadas com base em saberes próprios.

Daí as pesquisas fundadas em tal perspectiva acadêmica reconhecerem que a realidade não é apenas aquela edificada pelos europeus colonizadores. Admitem e sustentam a presença de múltiplas realidades, constituídas a partir dos saberes das mais diversas populações espalhadas pelo território brasileiro e, mais amplamente, por todo o planeta: cada uma dessas populações tendo sua própria ontologia, isto é, sua maneira de “[...] ser e estar no mundo” (SILVA, 2011SILVA, Sergio Baptista da. Cosmologias e ontologias ameríndias no Sul do Brasil: algumas reflexões sobre o papel dos cientistas sociais face ao Estado. Espaço Ameríndio, Porto Alegre, v. 5, n. 1, p. 182-192, jan./jun. 2011. Disponível em: <https://www.scribd.com/document/215745278/Cosmologias-e-ontologias-amerindias-no-Sul-do-Brasil>. Acesso em: 31 mar. 2018.
https://www.scribd.com/document/21574527...
, p. 183), considerável em plano de igualdade com qualquer outra.

Diante do caráter descolonizador de normas da Constituição, como as constantes nos artigos 3º, I e IV, 5º, caput e 231 (já mencionados), parece juridicamente razoável fazer uso do modelo acadêmico da virada ontológica na atuação institucional do Judiciário. Mas como aplicar um modo de atuar para pesquisas científicas no proceder de um poder de Estado? A perspectiva eurocêntrica que, ao longo dos séculos, formatou o sistema judicial torna necessária a construção de novos arcabouços que, reconhecendo os múltiplos conhecimentos existentes em território brasileiro, proporcionem a todos os litigantes oportunidades iguais de fala e escutas perante um corpo de julgadores plural, de modo a romper silenciamentos e a tornar efetiva a troca igualitária de saberes.

Os arcabouços a serem construídos, consequentemente, devem ser pautados pela horizontalidade. Esse é o fator imprescindível a torná-los aptos a superar, ao menos no plano judicial, a raiz epistêmica do colonialismo contemporâneo, chamada por Boaventura Santos de lógica colonizadora totalitária, “[...] que nega o carácter racional a todas as formas de conhecimento que se não pautarem pelos seus princípios epistemológicos e pelas suas regras metodológicas” (SANTOS, 2002SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2002., p. 61). Uma virada ontológica, como se vê.

5 A possível virada ontológica em duas práticas

A radicalidade (por alcançar a raiz do problema epistêmico) da mudança estrutural acima defendida escancara, por si só, as dificuldades para sua concretização. É possível um poder de Estado estruturalmente eurocêntrico superar o colonialismo eurocêntrico para proporcionar voz àqueles que historicamente calou? Uma resposta positiva à questão é aquela que melhor se coaduna ao ordenamento jurídico em vigor, sobretudo porque, no final das contas, a virada ontológica implica no cumprimento das promessas normativas constitucionais, reduzindo as desigualdades. Proceder à virada ontológica é, em tais termos, romper com a discriminação de origem, raça, sexo, cor e idade (artigo 3º, IV, da Constituição Federal) na leitura judicial dos direitos; é, semelhantemente, legitimar usos, costumes e tradições não eurocêntricas (artigo 231, da Constituição Federal).

Para, então, apontar a viabilidade da sustentada mudança estrutural no Judiciário, faz-se menção a duas práticas atualmente em andamento. Ambas revelam que a interpretação e a aplicação judicial dos direitos podem efetivamente basear-se na troca igualitária de saberes.

A primeira dessas práticas é de iniciativa do Tribunal de Justiça de Roraima (TJRR), o Polo Indígena de Conciliação na Comunidade de Maturuca, o qual atua prioritariamente na resolução de conflitos internos comunitários. A segunda, o Projeto Vozes dos Quilombos, não é oriunda do Judiciário, mas da Defensoria Pública do Piauí, instituição que se insere no Sistema de Justiça e que, neste caso, tem atuação prioritária nos conflitos envolvendo comunidades quilombolas e Poder Público.

Não há textos acadêmicos ou matérias jornalísticas que fornecem elementos mais precisos acerca de ambas as iniciativas. Entendeu-se adequado, por isso, colher informações das próprias autoridades públicas que as coordenam, por intermédio de entrevistas semiestruturadas, realizadas, entre os anos de 2020 e 2021, remotamente via aplicativo Whatsapp e correio eletrônico (as conversas ocorreram durante a pandemia da Covid 19, cujo enfrentamento requeria medidas sanitárias de isolamento). Formularam-se para elas as seguintes indagações:

  • a) o que é o projeto?

  • b) quantas pessoas trabalham no projeto?

  • c) como são escolhidas?

  • d) elas fazem treinamentos?

  • e) há outros elementos relevantes que merecem ser informados?

Reconhece-se que a metodologia empregada está longe de encerrar todas as possibilidades de análise das iniciativas. Trabalhos etnográficos nas localidades ou entrevistas com os respectivos usuários podem aprofundar o exame7 7 Para o aprofundamento dos estudos sobre o Projeto Vozes do Quilombo, sob o recorte da percepção dos usuários, indica-se vídeo disponível na internet:https://youtu.be/Z8VWwLNMz2E. . Para os escopos deste artigo, contudo, as entrevistas com quem as coordenam, formuladas como forma de suprir a insuficiência de material bibliográfico a respeito, pareceu suficiente para apresentá-las como políticas públicas possivelmente replicáveis. Esse foi o recorte de análise adotado no presente texto.

Inicia-se o exame com menção ao Polo Indígena de Conciliação na Comunidade de Maturuca, prática levada a efeito em 2015 pelo TJRR, corte de pequeno porte (menos de 60 juízes), representante do Judiciário da unidade da federação roraimense, habitada por apenas 600 mil pessoas em uma vasta área territorial de 224 mil quilômetros quadrados. Sob a liderança do Juiz de Direito Aluízio Ferreira Vieira, autodeclarado indígena, o polo em consideração proporciona aos membros da população originária local o exercício protagonista na solução dos conflitos internos, levando em conta seus usos, costumes e tradições, tal como previsto na Constituição Federal (artigo 231). Trata-se de uma resposta, oriunda do sistema judicial local, a dois problemas que parecem axiomáticos a comunidades como a alcançada pela prática: primeiramente, a distância da localidade aos centros urbanos em uma unidade da federação caracterizada pela baixa densidade populacional e, em segundo lugar, a própria necessidade histórica da população indígena ter seus conhecimentos considerados na resolução de conflitos.

Conforme narrado pelo magistrado Vieira (2020VIEIRA, Aluizio Ferreira. Entrevista. [jun. 2020]. Entrevistador: o autor. Boa Vista, 2020. Arquivo escrito e oral (whatsapp)., informação verbal), para o projeto ser colocado em execução, 16 pessoas foram inicialmente capacitadas para o exercício da função de conciliador, todas escolhidas pelas lideranças da própria comunidade. Acordou-se que o conciliador tem de ser indígena, respeitado pelas pessoas da localidade e que nesta exerça atividade que o torne socialmente conhecido por todos, como a de professor, agente de saúde ou, no idioma próprio, tuxaua, isto é, liderança política comunitária. Cada conciliador deve frequentar cursos de formação continuada, sob a responsabilidade do TJRR.

Sob os requisitos e sob a estrutura acima mencionados, aos conciliadores se impõe o dever de atentar-se para que a condução das causas, que lhe são submetidas à tentativa de composição amigável, ocorra de forma condizente a ditames éticos e morais da comunidade. Há, neste último ponto, verdadeiro reconhecimento do pluralismo jurídico no território brasileiro, pelo caminho da legitimação das normas da comunidade, baseadas em seus próprios saberes. Afinal, tais ditames ostentam natureza normativa vinculante sobre o formato do trabalho de quem realiza a mediação das lides.

Encerrada a primeira, alcança-se a segunda prática, o Projeto Vozes dos Quilombos, levado a efeito pela Defensoria Pública do Piauí, formada atualmente por 112 defensores públicos. Situado no noroeste da Região Nordeste em uma extensa área superior a 251 mil quilômetros quadrados, o Piauí conta com pouco mais de três milhões de habitantes, 224 municípios e cerca de 266 comunidades quilombolas. Segundo narrado pela Defensora Pública Karla Andrade (2021ANDRADE, Karla. Entrevista. [out. 2021]. Entrevistador: o autor. Teresina, 2021. Arquivo escrito (e-mail)., informação verbal), idealizadora e coordenadora da iniciativa, o projeto nasceu no ano de 2019, como uma resposta aos obstáculos no acesso à justiça das populações quilombolas locais, espalhadas em 37 municípios (havendo membros da defensoria em apenas oito deles) e agrupadas em sua maioria em comunidades de difícil acesso.

O projeto teve sua execução iniciada no Quilombo Custaneira, zona rural de Paquetá do Piauí, onde ocorreu uma reunião com mais de 30 representantes de 13 Comunidades Quilombolas e membros da Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas. Do evento, adveio a confecção dos objetivos de trabalho da iniciativa, estabelecendo-se, como ponto principal, a presença da Defensoria Pública junto a comunidades e a promoção da participação dos quilombolas nos espaços de debate (judicial e extrajudicial). Estabeleceu-se, ainda como objetivo, o fortalecimento de parcerias entre a Defensoria Pública e movimentos sociais na promoção de ações afirmativas em favor dos quilombolas e de suas comunidades. Daí a preocupação da instituição em trabalhar em constante diálogo com as populações alcançadas, mesmo que não as tenha oficialmente na sua execução (o projeto conta, além da coordenadora, com seis outros defensores públicos e mais três servidores).

No quadro do mesmo diálogo, atentando-se ainda às demandas quilombolas (conforme autonomia estabelecida pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho), a Defensoria Pública piauiense prioriza as soluções conciliatórias, sobretudo em audiências com gestores públicos. Tal opção tem levado, na visão da coordenação do projeto, a resultados satisfatórios, tais como, por exemplo, na garantia de não fechamento de escolas quilombolas e de atendimento em postos de saúde (inclusive na distribuição prioritária da vacina contra COVID 19).

O Projeto Vozes dos Quilombos também volta o seu olhar para a luta contra o racismo no espaço interno da entidade que a promove, tendo apresentado uma proposta, efetivamente aprovada em 2020, de Resolução ao Conselho Superior da Defensoria Pública do Piauí para previsão de cotas raciais, tanto para os concursos de ingresso nos cargos de carreira, como nos testes seletivos de estagiários. Além disso, reconhecendo a insuficiência (sem negar a importância) das medidas de maior representatividade, a iniciativa levou à organização de um curso remoto para educação em direitos quilombolas, com o apoio da Escola Superior da Defensoria Pública do Piauí e do setor de informática da entidade, o qual, em 2021, recebeu sua segunda edição. Por fim, no primeiro semestre de 2021, o projeto promoveu a edição da Cartilha sobre Direitos Quilombolas, com 15 capítulos, que foi lançada e disponibilizada em formato digital8 8 A cartilha está disponível em: http://www.defensoria.pi.def.br/wp-content/uploads/2021/03/Direitos-Quilombolas-2.pdf. .

Repare-se que, a despeito de se tratar de iniciativa de ente não pertencente ao Judiciário, o Projeto Vozes dos Quilombos pode inspirar políticas judiciárias a serem promovidas por tribunais estaduais e federais regionais, assim se realizando mediante a aproximação do Judiciário a populações tradicionais. É igualmente possível que o projeto inspire, de forma mais ampla, o CNJ em seu trabalho de normatizar políticas judiciárias por todo o país, conforme estabelecido pelo arrigo 103-B, §4º, inciso I, da Constituição Federal, o que pode também ser realizado a partir da ideia lançada na Comunidade de Maturuca, por intermédio da instituição de outros polos indígenas de conciliação.

Cabe ressalvar que se desconhecem dados quantitativos, divulgados pelas entidades públicas responsáveis por ambas as iniciativas, que indiquem quão mais adequadamente garantidos se encontram os direitos das populações destinatárias dos serviços. É possível até especular-se acerca dessa ausência de divulgação, relacionando-a com os próprios padrões eurocêntricos que proporcionam o formato prevalente da atuação cotidiana do Tribunal de Justiça e da Defensoria Pública envolvidos, não priorizando os projetos estudados. As dificuldades existentes para o funcionamento diário de ambas também parecem confirmar essa conclusão, como no caso do polo de conciliação que teve suas atividades encerradas após a gestão do presidente do TJRR que o instituiu (tendo sido reaberto em 2019) ou no caso do Projeto Vozes dos Quilombos, cujos defensores públicos que nele atuam não o fazem em dedicação exclusiva, mas acumulando com outras funções.

Sem embargo dessas circunstâncias, sob o aspecto qualitativo, parece intuitivo vislumbrar que as iniciativas examinadas gerem proveitos para as comunidades em questão, pois enfrentam abertamente o aspecto epistêmico do colonialismo contemporâneo. Além disso, revela-se possível verificar reflexos diretos no campo da apreciação jurisdicional dos conflitos: veja-se o caso do deferimento de tutela antecipada de bloqueio de matrículas, por parte Juízo da Comarca de Paulistana, conquistada pela Comunidade Quilombola de Sumidouro, que, demandando os direitos sobre pedaço de terra já certificada pela Fundação Palmares9 9 Cabe à Fundação Palmares garantir os direitos das comunidades quilombolas. , ameaçados por registro de contratos de compra e venda no local, realizado sob a omissão do Poder Público, levou a Defensoria Pública piauiense a ajuizar ação declaratória de nulidade de registro de imóveis, por petição inicial assinada pela própria coordenadora do Projeto Vozes dos Quilombos (PIAUÍ, 2022)10 10 A conclusão da decisão proferida chama atenção pelo fato de priorizar os direitos quilombolas, baseados na tradicionalidade e saberes não eurocêntricos, sobre a Lei de Registros Públicos, baseada no asseguramento da propriedade individual, essencial ao expansionismo capitalista (WALLERSTEIN, 1983). .

Conclusões

Em seu livro Ideias para adiar o fim do mundo, o indígena Ailton Krenak (2019KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 31) aponta aquilo que, no seu entendimento, configura um dos principais fatores de resistência das populações colonizadas (no seu caso, a indígena) ao longo dos séculos: “a gente resistiu expandindo a nossa subjetividade, não aceitando essa ideia de que nós somos todos iguais. Ainda existem aproximadamente 250 etnias que querem ser diferentes umas das outras no Brasil, que falam mais de 150 línguas e dialetos”.

Embora não tenha formação jurídica, Krenak percebe o que muitos juristas têm dificuldade de perceber. Como reação ao colonialismo, a diversidade é a reivindicação nuclear de estratos oprimidos alçados à categoria de sujeitos especiais de direito. Se esta é o núcleo de suas demandas, deve estar também no núcleo da leitura dos direitos reconhecidos como respostas estatais.

Como, então, fazer com que a função que cabe ler litigiosamente esses direitos, o Judiciário, reconheça a diversidade de formas de existência como seus elementos nuclear? O Polo Indígena de Conciliação e o Projeto Vozes dos Quilombos, acima examinados, proporcionam uma resposta à indagação: ambos revelam que tal reconhecimento pode suceder mediante a legitimação de saberes não eurocêntricos, possibilitando que os respectivos portadores atuem ativamente, em plano de igualdade com agentes públicos, nas soluções de lides.

É certo que as iniciativas mencionadas provêm de instituições do Estado, isto é, o ente que, também constituído sob padrões eurocêntricos, tem liderado ao longo dos séculos o processo colonialista de arranque de formas de existência em favor da subsistência de uma única ontologia, de índole hegemônica. Não se pode esquecer, contudo, que as normas jurídicas que estabelecem, a populações colonizadas, a qualidade de sujeitas especiais de direito como reações a práticas opressoras seculares provém igualmente da realidade estatal.

Há, pois, espaços contra - hegemônicos que podem ser ocupados no Estado. Isso inclui o espaço do poder Judiciário, que, contudo, necessita adaptar-se a formas de existência para as quais não foi instituído. É preciso, pois, que estruturalmente se submeta a uma virada ontológica, compreendendo necessidades e demandas das populações subalternizadas e, no final das contas, procedendo à leitura dos direitos que deve aplicar pela troca de conhecimentos.

Tudo isso implica, como necessidade aparentemente mais imediata, em uma nova composição do Judiciário, menos branca, mais plural. Mas não como um fim em si mesmo. Há prioritariamente de se dar espaço às vozes colonizadas, entendo-as como imprescindíveis em todo processo decisório, não resumido a uma sentença que objetiva encerrar um litígio. Há de abranger desde a escuta efetiva de argumentos de litigantes baseados em perspectivas não exclusivamente eurocêntricas até alcançar o ato decisório final, legitimando, de modo isonômico, toda a multiplicidade de saberes subsistentes em território brasileiro.

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  • MIGNOLO, Walter. Colonialidade: o lado mais escuro da modernidade. Revista brasileira de ciências sociais, Rio de Janeiro, vol. 32, n. 44, p. 1-18, jun. 2017. Disponível em: Khttps://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/6758490/mod_folder/content/0/walter%20mignolo.pdf Acesso em: 26 jul. 2022.
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  • MOREIRA, Adilson José. Pensando como um negro: ensaio de hermenêutica jurídica. São Paulo: Editora Contracorrente, 2019.
  • MOREIRA, Adilson José. Tratado de direito antiscriminatório. São Paulo: Editora Contracorrente, 2020.
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  • PINHEIRO, Karen. Uma magistrada negra: uma história e um Judiciário para além da exceção. Carta Capital, São Paulo, 21 mar. 2019. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/blogs/sororidade-em-pauta/uma-magistrada-negra-historia-e-um-judiciario-para-alem-da-excecao/. Acesso em: 8 nov. 2021.
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  • PINTO, Marcelo. Juiz recua em manifestações sobre religiões africanas, mas mantém decisão. Consultor Jurídico, São Paulo, 21 maio 2014. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2014-mai-21/juiz-recua-manifestacoes-religioes-africanas-mantem-decisao Acesso em: 28 out. 2021.
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  • QUIJANO, Aníbal. A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais; Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005.
  • RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. 2ed. São Paulo: Saraiva, 2015.
  • RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala. Belo Horizonte: Letramento; Justificando, 2017.
  • RIOS, Alan. Religiões de matriz africana são alvos de 59% dos crimes de intolerância. Correio da Manhã, Brasília, 11 nov. 2019. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2019/11/11/interna_cidadesdf,805394/religioes-de-matriz-africana-alvos-de-59-dos-crimes-de-intolerancia.shtml Acesso em: 28 out. 2021.
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  • SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2002.
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  • SCHRITZMEYER, Ana Lúcia Pastore. Sortilégio dos saberes: curandeiros e juízes nos tribunais brasileiros (1900-1990). São Paulo: IBCCRIM, 2004.
  • SILVA, Sergio Baptista da. Cosmologias e ontologias ameríndias no Sul do Brasil: algumas reflexões sobre o papel dos cientistas sociais face ao Estado. Espaço Ameríndio, Porto Alegre, v. 5, n. 1, p. 182-192, jan./jun. 2011. Disponível em: <https://www.scribd.com/document/215745278/Cosmologias-e-ontologias-amerindias-no-Sul-do-Brasil>. Acesso em: 31 mar. 2018.
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  • VIEIRA, Aluizio Ferreira. Entrevista. [jun. 2020]. Entrevistador: o autor. Boa Vista, 2020. Arquivo escrito e oral (whatsapp).
  • WALLERSTEIN, Immanuel. The three instances of hegemony in the history of the capitalista word-economy. International Journal of comparative sociology, [s.l.], vol. 24, jan 1983. Disponível em: https://www.deepdyve.com/lp/brill/the-three-instances-of-hegemony-in-the-history-of-the-capitalist-world-MRAPN5iGGG Acesso em: 25 jul. 2022.
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  • WEBER, Max. Ciência e política: duas vocações. São Paulo, Martin Claret, 2015.
  • 1
    O autor agradece os avaliadores pelas sugestões apresentadas.
  • 2
    Eurocentrismo não configura “[...] uma categoria que implica toda a história cognoscitiva em toda a Europa, nem na Europa Ocidental em particular. Em outras palavras, não se refere a todos os modos de conhecer de todos os europeus e em todas as épocas, mas a uma específica racionalidade ou perspectiva de conhecimento que se torna mundialmente hegemônica colonizando e sobrepondo-se a todas as demais, prévias ou diferentes, e a seus respectivos saberes concretos, tanto na Europa como no resto do mundo” (QUIJANO, 2005QUIJANO, Aníbal. A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais; Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005. p. 126).
  • 3
    O aspecto epistêmico do colonialismo contemporâneo é referido por Aníbal Quijano (2005QUIJANO, Aníbal. A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais; Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005., p. 121) como colonialidade, a, segundo o autor, possibilitar ao branco de ascendência europeia a manutenção de “[...] todas as formas de controle se subjetividade, da cultura, e em especial do conhecimento, da produção do conhecimento”. Walter Mignolo (2017MIGNOLO, Walter. Colonialidade: o lado mais escuro da modernidade. Revista brasileira de ciências sociais, Rio de Janeiro, vol. 32, n. 44, p. 1-18, jun. 2017. Disponível em: Khttps://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/6758490/mod_folder/content/0/walter%20mignolo.pdf. Acesso em: 26 jul. 2022.
    https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.p...
    , p. 2) reforça tal denominação, apontando que “a colonialidade nomeia a lógica subjacente da fundação e do desdobramento da civilização ocidental desde o Renascimento até hoje [...]”. Por opção metodológica, este texto faz uso da expressão colonialismo, tal como utilizada por Boaventura Santos e autoras como Grada Kilomba (2019KILOMBA, Grada. Memórias de plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019., p. 33), que, de modo cristalino, sintetiza o fenômeno como aquele que “[...] simboliza práticas sádicas de conquistas e dominação e seus regimes brutais de silenciamento das/os chamadas/os ‘Outras/os’”. A despeito dessas diferenças de denominação, Quijano e Mignolo tratam da mesma forma de opressão secular.
  • 4
    Tal como o reconhecimento específico de saberes ancestrais indígenas, pela via da legitimação de organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, definida pelo artigo 231 ou tal como o reconhecimento da propriedade quilombola, validando-se o seu uso conforme os saberes dessas específicas comunidades, proporcionado pelo artigo 60 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
  • 5
    Relata Manuela Carneiro da Cunha (2012CUNHA, Manuela Carneiro da. Índios no Brasil: história, direitos e cidadania. São Paulo: Claro Enigma, 2012., p. 82-83) que “declarada ou embuçada, porém, a escravidão indígena perdurou até pelo menos meados do século XIX. Vendiam-se crianças (Circular 9/8/1845) e adultos eram disfarçadamente escravizados também (Aviso 2/9/1845). No que hoje é o Amazonas, a escravização nas formas mais tradicionais - apresamento direto, estímulo à guerra indígena para compra de prisioneiros continuava como se nada houvesse”.
  • 6
    É o que sustentava a Escola da Exegese no século XIX, para quem cabia ao Judiciário “[...] mera aplicação dos enunciados normativos, literalmente considerados, à situação fática a ele submetida [...]” (RAMOS, 2015RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. 2ed. São Paulo: Saraiva, 2015., posição 974).
  • 7
    Para o aprofundamento dos estudos sobre o Projeto Vozes do Quilombo, sob o recorte da percepção dos usuários, indica-se vídeo disponível na internet:https://youtu.be/Z8VWwLNMz2E.
  • 8
  • 9
    Cabe à Fundação Palmares garantir os direitos das comunidades quilombolas.
  • 10
    A conclusão da decisão proferida chama atenção pelo fato de priorizar os direitos quilombolas, baseados na tradicionalidade e saberes não eurocêntricos, sobre a Lei de Registros Públicos, baseada no asseguramento da propriedade individual, essencial ao expansionismo capitalista (WALLERSTEIN, 1983WALLERSTEIN, Immanuel. The three instances of hegemony in the history of the capitalista word-economy. International Journal of comparative sociology, [s.l.], vol. 24, jan 1983. Disponível em: https://www.deepdyve.com/lp/brill/the-three-instances-of-hegemony-in-the-history-of-the-capitalist-world-MRAPN5iGGG. Acesso em: 25 jul. 2022.
    https://www.deepdyve.com/lp/brill/the-th...
    ).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2024

Histórico

  • Recebido
    03 Mar 2022
  • Aceito
    05 Ago 2022
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