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Violência contra mulheres e a crítica jurídica feminista: breve análise da produção acadêmica brasileira

Resumo

O presente artigo analisa a produção acadêmica feminista no campo do Direito, em especial, os estudos sobre violência contra mulheres, a partir da década de setenta, buscando explorar a emergência do feminismo e dos estudos sobre violência e gênero no direito brasileiro. Examina também o crescimento desse campo e as potencialidades para novas abordagens feministas no Direito.

Palavras-chave:
Crítica feminista ao direito; Violência contra as mulheres; Direitos humanos das mulheres

Abstract

This article analyzes the feminist legal scholar production in Law, especially the studies on violence against women, starting from the 1970s. It explores both the emergence of feminism and the studies on violence and gender in Brazil and also examines the growth of this field and the potentialities for new feminist approaches in Law.

Keywords:
Feminist critique of Law; Violence against women; Rights of women

Introdução11Com esse trabalho prestamos uma singela homenagem às feministas precursoras do Direito.

Esse trabalho é um esforço de mapeamento e de análise2 2 Este trabalho resulta de nosso esforço em articular e ampliar as análises que cada uma de nós iniciou em trabalhos anteriores (SEVERI, 2018; CAMPOS, 2017). da produção acadêmica feminista no campo do Direito a partir dos anos 1970, com ênfase nos trabalhos sobre violência contra mulheres. Entendemos essa tarefa como necessária, pois a produção feminista nesse campo é significativa, embora não necessariamente reconhecida pelo malestream3 3 Utilizamos a expressão malestream e não mainstream (SMART, 2000) para demarcar a centralidade masculina da produção e circulação no direito. . Além disso, consideramos importante resgatar esse percurso histórico da construção de perspectivas feministas no direito como um processo de construção cumulativa e constante e que, a cada dia, ganha mais proeminência. Salientamos que nosso trabalho certamente não abarca toda a produção feminista nesse campo, mas aquela que conseguimos acessar através de nossas próprias pesquisas até o momento e que permitisse explicitarmos as principais características da trajetória intelectual no campo jurídico feminista brasileiro.

Há muito, ainda, por ser feito em termos de reconstrução da genealogia dos feminismos jurídicos brasileiros. Procuramos, aqui, apenas apreender os contornos iniciais do pensamento feminista sobre o (ou crítico ao) direito, suas formas de articulação com a luta por direitos humanos das mulheres no Brasil e apontar para as potencialidades desse campo em forte desenvolvimento mais recentemente.

Consideramos como produção acadêmica feminista aquelas que assim se declaram em sua temática, sua linha editorial ou na abordagem teórico-metodológica escolhida (SILVA, 2013SILVA, Carmen. Desafios das publicações feministas. Estudos Feministas, Florianópolis, n. 21, vol. 2, 2013, pp. 625-635.). Priorizamos a análise da produção veiculada em formato de livros, de artigos publicados em revistas com propósitos acadêmicos e de relatórios resultantes de ações de advocacy4 4 A expressão advocacy é utilizada pelos movimentos feministas para se referir a um conjunto amplo e diversificado de ações políticas dos movimentos de mulheres com o objetivo de influenciar o debate público e incidir nos atores e instituições políticas, sociais e culturais de modo a gerar transformações políticas e institucionais na sociedade civil e no Estado, a partir de conteúdos e propostas específicas presentes nas agendas feministas. feminista.

Identificamos que as autoras brasileiras pioneiras no uso da abordagem feminista do direito são oriundas de diversas áreas de formação, cujas análises são construídas tanto a partir do meio acadêmico quanto do contexto das estratégias de ação política feminista. É, portanto, nos estudos5 5 São vários os modos de se referir a tais estudos, conforme o momento histórico e as discussões teóricas que os fundamentam: estudos sobre a mulher ou sobre as mulheres, estudos de gênero, estudos sobre mulheres, estudos sobre relações de gênero, teorias de gênero. sobre mulheres, relações de gênero e violência doméstica, campo interdisciplinar em crescimento desde meados dos anos 1970, que podemos encontrar alguns dos contornos da crítica feminista brasileira às instituições jurídicas e políticas e, também, identificar algumas das nossas juristas6 6 O termo jurista nos pareceu mais apropriado para se referir ao perfil de atuação de um conjunto importante de feministas brasileiras, que tem construído variadas abordagens críticas ao direito, não necessariamente a partir do espaço da academia, mas sobretudo na intersecção entre dois ambientes nos quais elas têm transitado: o da ação política e o do saber jurídico profissional/acadêmico. feministas pioneiras.

Para a análise dessa produção utilizamos a classificação proposta por Isabel Cristina Jaramillo (2000)JARAMILLO, Isabel Cristina. La crítica feminista al derecho, estudio preliminar. In.: WEST, Robin. Género y teoría del derecho. Bogotá: Siglo de Hombres Editores, Facultad de Derecho de la Universidad de Los Andes, Ediciones Uníandes, Instituto Pensar, 2000, pp. 27-66. sobre os tipos de interação entre feminismo e direito expressos nas produções acadêmicas feministas latino-americanas: a) o feminismo como crítica ao direito e b) o direito como ferramenta do feminismo. A autora ainda subdivide o grupo dos estudos de crítica feminista ao direito em dois: as críticas aos pressupostos gerais do direito e de suas noções fundamentais (teorias feministas críticas do direito) e as críticas às instituições jurídicas (e políticas) particulares. Dentre as produções que discutem os usos do direito, ela distingue aquelas que abordam os usos estratégicos e os usos não estratégicos do direito pelos feminismos.

No Brasil, a produção acadêmica feminista relativa ao direito, apesar da sua recente expansão, pode parecer bastante reduzida ou incipiente, quando comparada ao vigor dos estudos jurídicos feministas em regiões do Norte Global. Isso porque os estudos reunidos sob os eixos feminist jurisprudence ou feminist legal theory têm se consolidado como um importante campo teórico de crítica jurídica desde o final dos anos 1980 nos Estados Unidos e em alguns países da Europa, como o Reino Unido.

Nosso argumento é que as análises feministas brasileiras sobre o direito vêm se consolidando como um campo delimitado de investigação na academia jurídica e têm sido, por um lado, tecidas em diálogo com um campo interdisciplinar em vigoroso crescimento no Brasil desde meados dos anos 1970 - os chamados estudos sobre mulheres, gênero e violência contra as mulheres -, e, por outro, produzidas de modo fortemente associado às estratégias feministas de mobilização político-legal pela afirmação dos direitos humanos das mulheres.

Tal campo de estudos também emergiu segundo dinâmicas próprias do feminismo brasileiro e pela interação com as vertentes europeias e norte-americanas marcada por uma dúplice dinâmica de recepção-assimilação e de conflito-diferenciação-acomodação. De acordo com Bila Sorj e Maria Luiza Heilborn (1999)SORJ, Bila; HEILBORN, Maria Luiza. Estudos de gênero no Brasil. In.: MICELI, Sérgio (org.). O que ler na ciência social brasileira: 1970-1995. São Paulo: Editora Sumaré, 1999, pp. 183-221., nos Estados Unidos, por exemplo, os chamados Women’s Studies originaram-se em meio aos movimentos de protestos nas universidades nos anos 1960, juntamente com os estudos raciais, questionando os fundamentos científicos das ciências sociais. Já na academia brasileira, os estudos sobre mulheres e gênero emergiram de modo articulado a outras agendas de mobilização da esquerda, como a crítica às desigualdades sociais e ao autoritarismo político. As pesquisas sociais voltadas à fundamentação de propostas de políticas públicas e mudanças dogmático-normativas específicas também foram mais recorrentes entre as feministas brasileiras, em relação à ênfase das norte-americanas na crítica epistemológica.

No caso da interação entre feminismo e direito, nosso argumento é que as juristas feministas brasileiras privilegiaram, ao invés da disputa no campo da teoria do direito ou da epistemologia jurídica, a elaboração de análises críticas às instituições específicas do direito e sobre o uso estratégico do discurso jurídico. Isso fica bem ilustrado quando analisamos, por exemplo, a produção teórica sobre violência doméstica: as discussões aí travadas refletem, em grande medida, os aportes conceituais do feminismo à dogmática nacional e internacional dos direitos humanos e às noções de sujeito de direitos, de cidadania, de espaço público, de democracia e de acesso à justiça.

No que se refere à produção acadêmica brasileira sobre mulheres, gênero e violência, esta tem crescido consideravelmente desde a década de setenta em diversas áreas, a partir de condições criadas pela rearticulação do movimento feminista brasileiro nos anos 1970 e da centralidade que a temática da violência contra as mulheres foi assumindo desde então (BANDEIRA, 2014BANDEIRA, Lourdes Maria. Violência de gênero: a construção de um campo teórico de investigação. Revista Sociedade e Estado, vol. 29, n. 2, 2014, pp. 449-469.; BRUSCHINI; UNBEHAUM, 2002BRUSCHINI, Cristina; UNBEHAUM, Sandra G. (Org.). Gênero, democracia e sociedade brasileira. São Paulo: Fundação Carlos Chagas: 34, 2002.).

Esperamos que tal análise possa contribuir com uma agenda de pesquisa ainda incipiente no Brasil sobre o pensamento jurídico feminista brasileiro e sobre as contribuições teóricas e metodológicas que os estudos sobre violência, gênero e feminismo têm trazido para o campo do direito.

1. Panorama sobre estudos jurídico-feministas, relações de gênero e violência contra as mulheres nos anos 1970-1990

O ressurgimento do feminismo como movimento social, especialmente a partir de 1975, aconteceu em forte articulação com as lutas sociais pela redemocratização do país - a exemplo da luta pela Anistia -, com as vertentes teóricas marxistas e com as perspectivas feministas norte-americanas e europeias, nesse caso, em grande parte provocada pelo exílio de brasileiras no exterior.

No debate pelas liberdades democráticas, as feministas criaram jornais para divulgar as suas ideias. Em São Paulo, dois importantes jornais, o “Brasil Mulher” e o “Nós Mulheres”, passam a repercutir os debates feministas. Segundo Maria Paula Araújo (2000)ARAÚJO, Maria Paula Nascimento. A utopia fragmentada: as novas esquerdas no Brasil e no mundo na década de 70. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2000., esses jornais inovavam na linguagem e divulgavam uma nova concepção política que explicitava as relações entre o público e o privado, tornando político o que era, até então, considerado assunto pessoal e politizando as emoções, as relações pessoais e os laços familiares; atribuíam importância às transformações no cotidiano e às questões da esfera doméstica; e abordavam temas como amor, sexo, dor, frustração, valorizando as experiências pessoais.

Em diálogo com as vertentes marxistas, esses veículos abordaram a temática da força de trabalho feminino ou do trabalho feminino assalariado, mas incorporando diversos outros temas como maternidade, reprodução, sexualidade, creches, escolas e saúde. Destaca o Jornal Nós Mulheres:

Queremos, portanto, boas creches e escolas para nossos filhos, lavanderias coletivas e restaurantes a preços populares, para que possamos junto com os homens assumir as responsabilidades pela sociedade (JORNAL NÓS MULHERES, 1976JORNAL NÓS MULHERES. Editorial. Associação de Mulheres, São Paulo, n. 1, jun., 1976., p. 2).

Essa mesma simbiose também aparece nos trabalhos das acadêmicas brasileiras pioneiras nas abordagens feministas. A socióloga Heleieth Saffioti, em 1969, publica o livro “A Mulher na Sociedade de Classes: mito e realidade”, que logo se torna uma das principais referências nas discussões sobre a condição da mulher no mundo do trabalho. A autora analisa como o fator sexo opera nas sociedades de classe de modo a alijar do mercado, especialmente, a força de trabalho feminina. Para ela, a organização capitalista, bem como as funções que a mulher desempenha na família (sexualidade, reprodução e socialização dos filhos), produzem uma hierarquia entre os sexos como um meio de expropriação. Tanto a sua condição de trabalhadora, quanto a de inativa são construídas a partir da hierarquização dos sexos (SAFFIOTI, 1969SAFFIOTI, Heleieth. A Mulher na sociedade de classes: mito e realidade. São Paulo: Quatro Artes, 1969.). Esse trabalho se tornou referência para a reflexão acadêmica brasileira sobre a condição feminina nas sociedades de classes e para grupos feministas que despontavam naquele período em todo o país, e influenciou diversas abordagens de juristas feministas.

Por sua vez, o Ano Internacional da Mulher em 1975 e o apoio das Nações Unidas para a realização da Conferência sobre as mulheres brasileiras impulsionaram a aproximação das feministas brasileiras do discurso sobre direitos no repertório de estratégias políticas do feminismo, também de caráter transnacional e cada vez mais crescente. A participação do movimento feminista em redes nacionais e internacionais de direitos humanos fortaleceu um intenso trabalho de advocacy que envolveu uma forte crítica às legislações internas discriminatórias, a proposição de novos marcos normativos e o uso dos instrumentos de direitos humanos para denúncias e investigações de violações dos direitos humanos das mulheres (PITANGUY, 2002PITANGUY, Jaqueline. Gênero, cidadania e direitos humanos. In.: BRUSCHINI, Cristina; UNBEHAUM, Sandra G. (Org.). Gênero, democracia e sociedade brasileira. São Paulo: Fundação Carlos Chagas: 34, 2002, pp. 109-119.; BARSTED; HERMAN, 1999BARSTED, Leila Linhares; HERMAN, Jacqueline. As Mulheres e os Direitos Humanos. Rio de Janeiro: CEPIA, 1999.). É em meio a esse contexto que o trabalho de crítica jurídica das nossas juristas feministas pioneiras emerge.

Uma das juristas pioneiras na abordagem feminista na academia brasileira, Sílvia Pimentel, em 1978PIMENTEL, Silvia. Evolução dos direitos da mulher: norma, fato, valor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1978., escreve o livro “A Evolução dos Direitos da Mulher”, onde analisa a evolução dos direitos femininos no Brasil e internacionalmente. Sua preocupação é o estudo dos direitos assegurados à mulher no ordenamento jurídico-positivo, a verificação da posição da mulher na estrutura social e, ainda, a reflexão sobre os aspectos axiológicos da igualdade de direitos entre os sexos e a maior ou menor participação da mulher na sociedade. A discussão desenvolvida pela autora se dá em três vertentes: abordagem jurídico-positiva, sociológica e axiológica, com poucas referências de autoras externas. Quando discute, por exemplo, a igualdade perante a lei, a autora expõe um exaustivo trabalho de resgate constitucional, mas não faz referência à discussão sobre o chamado dilema entre igualdade e diferença, algo que foi objeto de intenso debate entre as teóricas do Norte-Global na mesma época.

Nos anos 1980, com o movimento pela redemocratização do país e a luta pela instituição de uma Assembleia Nacional Constituinte, há possibilidade de incluir normas relativas à igualdade entre homens e mulheres no corpo da Constituição, tarefa que o feminismo da época assume com vigor.7 7 A forte atuação feminista no Congresso Nacional durante os trabalhos constituintes ficou conhecida como Lobby do Batom.

No livro “A Mulher e a Constituinte” (1985), resultante de sua atuação junto ao movimento feminista brasileiro durante o processo de mobilização pela redemocratização do país, Silvia Pimentel apresenta um estudo sobre os direitos das mulheres na legislação constitucional brasileira, comparando-a com as Constituições de outros países, para fundamentar algumas proposições de mudanças constitucionais democratizantes. A autora faz referência ao princípio da igualdade de direitos afirmando que:

É insuficiente o artigo 153 da Constituição atual. ‘Todos são iguais perante a lei sem distinção de sexo [...]’. Importa que a nova Constituição expresse que a mulher e o homem têm os mesmos direitos no que diz respeito à sua vida familiar, social, econômica, política e cultural (PIMENTEL, 1985_____. A mulher e a constituinte. São Paulo: Cortez,1985., p. 11).

Esse trecho expressa o entendimento do movimento feminista brasileiro, mobilizado nos anos 1980 em torno da Constituinte, sobre a relevância de se considerar as demandas das mulheres na construção de uma sociedade cidadã e democrática.

Além do reconhecimento formal da igualdade entre homens e mulheres, era preciso avançar na afirmação de um conjunto amplo de direitos que viabilizassem transformações na condição da mulher na sociedade brasileira, tais como direito a creches, trabalhistas e ligados à criação de equipamentos sociais para a socialização das atividades domésticas e de cuidados (PIMENTEL, 1985). Lavanderias e restaurantes coletivos, por exemplo, são uma necessidade e devem ser matéria constitucional. Isto permitiria condições dignas de trabalho a homens e mulheres que, assim, ficariam mais tranquilos em relação aos cuidados com os filhos e em suas condições e relações de trabalho. Verifica-se aqui a influência do pensamento do feminismo socialista8 8 A influência do pensamento de Heleieth Saffioti é visível. nesse tema, a ponto de fazê-lo ganhar relevância constitucional nas formulações de Pimentel.

Da mesma forma, Florisa Verucci e Ediva Marino em “Os Direitos da Mulher” (1985) analisam a situação das mulheres nos diversos campos do direito e tecem críticas ao direito civil, penal, do trabalho, previdenciário que ainda discriminam as mulheres. A proposta do texto é dar uma visão da evolução do direito da mulher na década, “[mas que] se vê prejudicada pelo fato de que uma década, em Direito, é insignificante” (VERUCCI; MARINO, 1985VERUCCI, Florisa; MARINO, Ediva. Os direitos da mulher. São Paulo: Nobel/Conselho Estadual da Condição Feminina, 1985., p.5). Segundo as autoras, no Brasil, o que mais se destacou no período foi a promulgação da chamada Lei do Divórcio e o projeto do Estatuto da Mulher Casada, integrado ao novo projeto de Código Civil. Tendo em vista a tramitação de uma proposta de alteração da parte especial do Código Penal, as autoras discutem as propostas feministas, destacando:

É opinião unânime entre as feministas que o estupro tem que deixar de ser considerado um crime contra os costumes e passar a ser penalizado como um crime contra a pessoa, a exemplo das legislações mais avançadas, como a da Itália e da Suécia, onde o estupro, além de ser considerado como agressão qualificada, não pode ter como defesa a clássica alegação de que a mulher teria provocado o crime (VERUCCI; MARINO, 1985VERUCCI, Florisa; MARINO, Ediva. Os direitos da mulher. São Paulo: Nobel/Conselho Estadual da Condição Feminina, 1985., p. 5).

A principal crítica das autoras envolve a proposta do Código Penal em debate à época, que não inovava no tratamento relativo ao crime de estupro, pois ele continuaria entre os crimes contra os costumes. Além do estupro, as autoras mencionam que a violência física contra a mulher praticada pelo companheiro dentro do lar deve ser enfocada pela lei e pelas autoridades como crime de lesões corporais e não como uma questão particular entre casais, o que deixa impune a maioria desses crimes. Afirmam que o espancamento de mulheres não teria lugar adequado na legislação brasileira, ficando enquadrado no “crime de lesões corporais” e tratado de forma injusta tanto pela sociedade quanto pela polícia, que não leva a sério esse tipo de denúncia.

O homicídio “passional” de mulheres também é criticado pelas autoras, especialmente pelo uso da tese da legítima defesa da honra. Elas sustentam que, embora o instituto da legítima defesa esteja presente em diversas legislações, a sua extensão à “defesa da honra” seria um artifício criado por advogados como estratégia para absolvição.

Três reivindicações aparecem com nitidez nesses estudos: a) a revogação da tese da legítima defesa da honra e o fim dos homicídios passionais; b) o reconhecimento do estupro como crime contra a pessoa e não como um crime contra os costumes; e c) a revisão do tratamento jurídico-penal atribuído ao crime de lesão corporal, especialmente em relação aos cometidos por parceiros íntimos contra as mulheres. Sem isso, ‘a difícil igualdade’, para usar a expressão de Fanny Tabak e Florisa Verucci, não seria alcançada.

Os escritos de Silvia Pimentel, Florisa Verucci, Fanny Tabak e Ediva Marino referem-se expressamente às mudanças legais necessárias para se atingir a igualdade formal e material entre mulheres e homens. A lei é vista como um instrumento de mudança social e capaz de alterar o status jurídico e a condição feminina. De acordo com Fanny Tabak e Florisa Verucci:

A lei pode servir para ampliar os direitos já reconhecidos, para combater diferentes formas de discriminação por motivo de sexo, para penalizar violações desses direitos e punir atentados contra a integridade física, psicológica e mental das mulheres (TABAK; VERUCCI, 1994TABAK, Fanny; VERUCCI, Florisa. A difícil igualdade. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994., p.47).

A proposta de mudanças através do direito é evidente. O direito seria instrumento de mudança concreta, de garantia e ampliação de direitos, de combate às discriminações e de punição às violações. O feminismo jurídico no país assume a proposta de reforma legal em todos os campos. É necessária uma Constituição que consagre a igualdade formal entre homens e mulheres e que esta igualdade se reflita em outros ramos do direito, como no direito civil, no direito de família e no direito penal. Assim, paralelamente à luta por uma inscrição normativa constitucional da igualdade, as feministas do direito buscam a reforma, sobretudo, da legislação civil e penal como uma das estratégias para o enfrentamento à violência contra as mulheres. Já no livro “A Mulher e o Direito” (1987VERUCCI, Florisa. A Mulher e o direito. São Paulo: Nobel, 1987.), Florisa Verucci retoma e detalha a análise dos direitos da mulher, sem, no entanto, fazer alguma discussão mais aprofundada dos temas abordados. Exceção ao tema do aborto, onde a autora analisa as dificuldades de sua descriminalização no Brasil.

Especificamente no campo penal, Ester Kosovski, que talvez possa ser considerada a primeira criminóloga feminista brasileira, escreve em 1983, “Adultério”. No livro, a autora questiona o adultério como “verdadeiro tabu da sociedade patriarcal que ainda hoje persiste na proibição legal de que um homem ou uma mulher possam ter relações sexuais fora do casamento” (KOSOVISKI, 1983KOSOVSKI, Ester. Adultério. Rio de Janeiro: Condecri,1983., p.24). Ela investiga as razões históricas para a criminalização do adultério e advoga a sua descriminalização. É interessante observar que, quando a autora fala da família, casamento e divórcio, há pouca referência a autoras feministas estrangeiras, revelando uma teorização nacional, já que o adultério era um tema que interessava às mulheres brasileiras.

Além do debate nacional, as juristas feministas brasileiras também acompanharam a pauta do feminismo em torno dos direitos humanos internacionalmente reconhecidos, em especial, dos direitos sexuais e reprodutivos. As obras que exemplificam essa abordagem são: “Cladem: Mulher e Direitos Humanos na América Latina”, organizado por Silvia Pimentel (1992)_____ (Org.). Mulher e Direitos Humanos na América Latina. Rio de Janeiro: CLADEM, 1992. e “As mulheres e os Direitos Humanos”, organizado por Leila Linhares Barsted e Jacqueline Herman (1999).

O enfoque na saúde e nos direitos sexuais e reprodutivos é presente em alguns trabalhos, especialmente a partir dos anos 1990. Isso pode ser resultado da interação das feministas com os movimentos sociais de luta pelo sistema público de saúde brasileiro e com várias teóricas e militantes da área de saúde pública no processo de mobilização em torno da Constituinte. Além disso, a temática do aborto, diferentemente das feministas do Norte-Global, não foi abordada pelas feministas brasileiras como um direito individual e universal, mas sim como um problema de saúde pública, em razão dos riscos à saúde das mulheres e do sofrimento físico e emocional. Tal enquadramento, de acordo com Bila Sorj (2002SORJ, Bila. O feminismo e os dilemas da sociedade brasileira. In.: BRUSCHINI, Cristina; UNBEHAUM, Sandra (Orgs.). Gênero, democracia e sociedade brasileira. São Paulo: Fundação Carlos Chagas, Editora 34, 2002, pp. 97-107., p. 103), parece melhor contextualizar a luta à nossa realidade social marcada por amplas desigualdades sociais e mobilizar apoios e coalizões, especialmente entre a esquerda e importantes setores da Igreja Católica, que compartilham uma agenda social e política em outras lutas sociais. De acordo com ela,

(A) estratégia discursiva do movimento feminista evita produzir conflitos enraizados em diferentes sistemas de entendimento moral, cuja resolução tende a ser um jogo de soma zero, justamente pelo caráter doutrinário que os fundamenta. A luta pelo aborto no país investe predominantemente nos argumentos de justiça social e, em menor medida, na afirmação dos direitos individuais que se expressam na soberania dos indivíduos sobre seus próprios corpos, da qual o direito ao aborto é uma decorrência necessária.

Esse tipo de abordagem sobre os direitos sexuais e reprodutivos pode ser encontrado em produções como: “Direitos humanos, ética e direitos reprodutivos”, organizado por Denise Dora e Domingos da Silveira (1998)DORA, Denise; SILVEIRA, Domingos. Direitos humanos, ética e direitos reprodutivos. Porto Alegre: Themis, 1998.; “Mulher, Saúde e Cidadania: cuide da sua saúde e conheça seus direitos”, organizado por Leila Linhares Barsted, Jacqueline Hermann e Ruth Mesquita (1997)BARSTED, Leila Linhares; HERMAN, Jacqueline; MESQUITA, Ruth. Mulher, Saúde e Cidadania: cuide da sua saúde e conheça seus direitos. Rio de Janeiro: CEPIA, 1997.; “Cairo-Brasil: 5 anos de experiências relevantes em saúde, direitos reprodutivos e sexuais”, organizado pela Rede Nacional Feminista de Saúde e Direitos Reprodutivos (SOS – CORPO, 1999SOS-CORPO. Cairo-Brasil: 5 anos de experiências relevantes em saúde, direitos reprodutivos e sexuais. Brasília: Rede Nacional Feminista de Saúde e Direitos Reprodutivos, 1999.) e “Cadernos Themis - Direitos Sexuais”, organizado por Denise Dora (2002)DORA, Denise (Org.). Cadernos Themis - Direitos Sexuais. Porto Alegre: THEMIS, 2002.. A maioria dessas obras foram organizadas por autoras integrantes das ONGs feministas9 9 Podemos citar os trabalhos editados pela CEPIA, AGENDE, SOS-Corpo e THEMIS. criadas nos anos 1990 e que, no início dos anos 2000, estão articuladas em torno das ações de advocacy feminista para a criação da Lei Maria da Penha.

Apesar, portanto, de algumas afinidades entre as teses desenvolvidas por feministas estrangeiras e a produção brasileira10 10 No entanto, tendo em vista a formação marxista das feministas brasileiras, não se pode esquecer a influência das revolucionárias russas e alemãs Rosa Luxemburgo, Clara Zetkin e Alexandra Kollontai. , os temas abordados estavam em sintonia com o contexto nacional. A crítica ao caráter discriminatório de uma série de institutos jurídicos e políticos é desenvolvida a partir de análises que enfatizam direitos sociais e a democratização da sociedade brasileira. Esses trabalhos devem ser compreendidos no contexto de uma atuação que se deu, sobretudo, fora dos espaços acadêmicos do direito. As juristas feministas pioneiras estavam mobilizadas na luta pelo retorno à democracia e enfrentavam também questões como creches, custo de vida e emprego. E buscaram traçar os contornos jurídicos de tais direitos, ao mesmo tempo em que explicitavam o caráter discriminatório do direito brasileiro. Já nos anos 1970 e 1980 é possível perceber que algumas das facetas do fenômeno da violência contra as mulheres já aparece de modo incipiente.

A produção intelectual acima apontada foi fundamental para subsidiar mudanças institucionais democratizantes e problematizar o caráter discriminatório do direito brasileiro. Já a sua circulação no meio jurídico acadêmico foi muito baixa. As carreiras e profissões do direito, públicas ou privadas, consolidaram-se historicamente, no Brasil, sob a hegemonia masculina e branca, servindo-se tanto do percentual ínfimo de mulheres nelas presente, quanto dos valores e saberes que sustentam o direito e suas práticas profissionais. As feministas que tentaram incidência na produção acadêmica no campo do direito enfrentaram diversas dificuldades para contrapor-se teoricamente aos “machos e brancos” (aproveitando a expressão de Saffioti). Mesmo assim, as juristas feministas foram pavimentando o caminho para a construção de um pensamento feminista no direito.

2. O debate sobre gênero e violências contra mulheres

No final da década de setenta e início dos anos oitenta, o tema da violência doméstica aparece com mais força tanto no movimento social quanto no meio acadêmico feminista.

O assassinato, por exemplo, de Ângela Diniz, praticado por seu companheiro “Doca Street” em 1976 chocou o país. A tese da defesa da “honra” e de ter “matado por amor”, que culminou com uma pena branda, foi duramente criticada pelas feministas que, nesse momento, criaram o slogan “quem ama não mata” como estratégia de sensibilização da opinião pública acerca do homicídio de mulheres cometido por parceiros íntimos.

Além da tese da legítima defesa da honra, o estupro light ou por cortesia11 11 O estudo feito por Silvia Pimentel, Ana Lucia Schritzmeyer e Valéria Pandjiarjian, do fim dos anos 90 intitulado Estupro: crime ou cortesia? é uma referência importante no âmbito dos trabalhos com tal perfil. são exemplos de formulações utilizadas em processos judiciais nos anos 1980 e 1990 envolvendo mulheres que sofreram violência sexual ou foram assassinadas, com o objetivo de absolver o agressor e punir a própria vítima. Na agenda do movimento feminista, era cada vez mais central o combate à violência contra as mulheres e a promoção de mudanças nas práticas judiciárias.

Nos anos oitenta, a criação de Delegacias Especializadas de Atendimento a Mulheres (DEAMs) pode ser identificada como a primeira expressão de uma política criminal apoiada pelo feminismo. No âmbito do movimento, o II Congresso da Mulher Paulista, ocorrido em Valinhos em 1980, e a criação dos grupos de atendimento a mulheres, como o SOS Corpo e o Centro de Defesa da Mulher, são elementos que favoreceram a intensificação do debate público sobre violência por parte do movimento feminista. Essa discussão encontrava resistência mesmo entre setores progressistas que eram aliados das feministas em outras agendas. Segundo Maria Amélia Teles (1993TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1993., p. 131):

A mulher brasileira até então se mantinha calada frente à violência doméstica. Capaz de denunciar corajosamente as torturas e assassinatos cometidos pela polícia, omitia a violência praticada contra ela própria pelo seu marido ou companheiro. As feministas denunciavam a violência doméstica e sexual, sem, contudo, mostrar casos concretos, como uma mulher assassinada pelo companheiro ou uma mulher visivelmente espancada, o que fazia com que jornalistas e lideranças de esquerda alegassem que elas apenas copiavam as europeias, porque ‘lá sim, é que tem esse tipo de violência’.

O texto de Maria Amélia Teles é bastante ilustrativo para mostrar que o tema da violência doméstica só ganha credibilidade quando aparecem casos concretos capazes de explicitar a violência sofrida pelas mulheres brasileiras. Evidencia também a influência das feministas europeias sobre as brasileiras que, segundo a imprensa, “copiavam” as denúncias feitas pelas feministas estrangeiras.

A relação entre a academia e a prática militante era fundamental, não apenas para o aprofundamento teórico-conceitual sobre o fenômeno da violência contra as mulheres, como também para a realização de críticas que explicitassem os efeitos discriminatórios de tais elaborações jurídicas e para a formulação de políticas públicas. Foi, então, no final dos anos 1980, acompanhando a expansão significativa dos estudos acadêmicos feministas em diversas áreas do conhecimento, que os estudos sobre relações de gênero e violência doméstica ganham centralidade na agenda das juristas feministas.

De acordo com Miriam Grossi, Luzinete Minella e Juliana Losso (2006)GROSSI, Miriam Pillar; MINELLA, Luzinete Simões; LOSSO, Juliana Cavilha Mendes. Gênero e Violência: pesquisas acadêmicas brasileiras (1975-2005). Florianópolis: Mulheres, 2006. 12 12 As autoras realizaram um balanço sobre a expansão dos estudos sobre violência e gênero no Brasil, a partir da análise do levantamento dos estudos de pós-graduação (teses e dissertações) e de conclusão de cursos sobre gênero e violência publicados entre 1975 e 2005 em diferentes áreas do conhecimento. , nos anos 1980, a presença cada vez mais crescente do tema da violência contra as mulheres nas agendas do movimento feminista à época favoreceu um adensamento da produção feminista sobre o tema. Algumas das autoras desse período ainda são referências importantes nos estudos sobre violência contra as mulheres13 13 Algumas das autoras que podemos citar são: Mariza Corrêa, Maria Amélia Azevedo, Marilena Chauí, Heleieth Saffioti, Paula Montero, Bila Sorj, Danielle Ardaillon, Heloisa André Pontes, Guita Debert, Matilde Ribeiro, Luiza Barrios, Edna Roland, Sueli Carneiro e Wania Santanna. . Além dos esforços conceituais, muitas delas realizaram estudos empíricos sobre o funcionamento de juizados especiais criminais, de delegacias de polícia e de entidades periciais criminais, muitos deles com caráter diagnóstico e prescritivo, apresentando propostas de soluções indicativas para políticas públicas.

A crítica ao uso do argumento da legítima defesa da honra nos casos de assassinatos de mulheres cometidos pelos companheiros para fundamentar a absolvição do réu é feita, inicialmente, pela antropóloga Mariza Corrêa no início dos anos 80 nos trabalhos “Os crimes da paixão” (1981CORRÊA, Marisa. Os Crimes da Paixão. São Paulo: Brasiliense,1981.) e “Morte em Família: representações jurídicas e papéis sexuais” (1983______. Morte em família: representações jurídicas de papéis sexuais. Rio de Janeiro: Graal, 1983.). Jaqueline Hermann e Leila Linhares Barsted (1995)HERMANN, Jacqueline; BARSTED, Leila Linhares. O Judiciário e a violência contra a mulher: a ordem legal e a (Des)ordem familiar. Rio de Janeiro: CEPIA, 1995. examinam o perfil de resposta judicial em processos criminais de homicídios e lesões corporais entre parceiros íntimos, buscando identificar diversos aspectos recorrentes no modelo de resposta do sistema judiciário para a questão da violência doméstica contra as mulheres que acabam por transformar a diferença entre os sexos em desigualdades sociais. Conforme a análise das autoras, as decisões judiciais, especialmente dos então chamados “crimes passionais”, apoiam-se, via de regra, em uma moral sexual feminina. O que parece orientar o processo, quando são crimes entre cônjuges, é saber se a mulher, vítima ou autora do crime, transgrediu ou não o papel de boa mãe, boa esposa, boa dona de casa. A família acaba sendo o bem jurídico mais importante e valorizado por juízes e júris populares do que a vida da mulher. Quando o comportamento da mulher coloca em risco a organização familiar, há uma condescendência social para com seu assassinato, se foi feito pelo marido ou companheiro.

Além desse, outros estudos sociojurídicos, com perfil de pesquisa-denúncia, também abordaram o uso dos estereótipos discriminatórios por parte do Judiciário nos julgamentos de casos envolvendo mulheres ou as percepções das mulheres sobre o sistema de justiça. Produzidos frequentemente por grupos multidisciplinares, nos quais participam juristas feministas que estão, também, envolvidas no trabalho de advocacy junto aos poderes do Estado, tiveram como objetivo subsidiar propostas de alteração do quadro jurídico-legal discriminatório contra as mulheres. Alguns exemplos são: “Quando a vítima é mulher: análise do julgamento de crimes de estupro, espancamento e homicídio” (1987ARDAILLON, Danielle; DEBERT, Guita. Quando a vítima é mulher: análise de julgamentos de crimes de estupro, espancamento e homicídios. Brasília: CNDM/CEDAC, 1987.), de Danielle Ardaillon e Guita Grimm Debert; “A figura/personagem mulher em processos de família”, de Silvia Pimentel, Beatriz Giorgi e Flavia Piovesan (1993)PIMENTEL, Silvia; PIOVESAN, Flávia; GIORGI, Beatriz de. A figura/personagem mulher em processos de família. Porto Alegre: FABRIS, 1993.; “Percepções das mulheres em relação ao direito e à justiça”, de Silvia Pimentel e Valéria Pandjiarjian (1996)PIMENTEL, Silvia; PANDJIARJIAN, Valéria. Percepção das mulheres em relação ao direito e à justiça. Porto Alegre: Fabris, 1996..

Em relação aos debates acadêmicos dos anos 1970 e início dos anos 1980, é possível percebermos um salto conceitual nos anos 1990. As agressões e homicídios praticados por parceiros íntimos contra as mulheres passaram a ser considerados tipos de violência e, como tal, deveriam ser reconhecidos juridicamente como violações de direitos humanos. As pesquisas na área vão adensando os tipos, significados e conceituações de violência contra as mulheres, acompanhando as mudanças da política feminista e a incorporação de outras categorias analíticas como: gênero, corpo, sexualidade, orientação sexual, raça, etnia, classe social e geração.

Se nos anos 1970, por exemplo, falávamos apenas sobre os homicídios praticados por maridos, companheiros e amantes como um tipo de violência contra a mulher, dos anos 1980 em diante, com a criação das chamadas ONGs feministas e com as experiências das delegacias especializadas de atendimento à mulher, passamos a reconhecer formas variadas de violência nas relações domésticas e/ou conjugais e, posteriormente, a debater outros temas como o assédio sexual, o abuso infantil e as violências étnicas no campo dos estudos sobre violência contra as mulheres (GROSSI, 1994______. Novas/Velhas Violências contra a Mulher no Brasil. Estudos Feministas, Rio de Janeiro, n. especial 2, 1994, pp. 473-483.). O próprio homicídio de mulheres praticado por parceiros íntimos passou a ser nomeado de feminicídio14 14 Como exemplo, podemos citar Suely Almeida (1998). por várias feministas, em contraposição à definição jurídica de “crimes passionais”.

A crítica ao direito penal é recorrente entre as juristas feministas. Florisa Verucci escreve no prefácio do livro “Mulheres Espancadas”, de Maria Amélia Azevedo:

O crime de lesões corporais não tem sexo no Código Penal, mas tem na prática, pois o praticado por homem contra mulher não é punido. O homicídio doméstico tem que sair detrás da expressão ‘passional’ e ser mesmo um crime qualificado praticado como é, na grande maioria dos casos contra pessoa indefesa. O estupro tem que ser considerado, como na Itália e na Suécia, por exemplo, também na esfera do casal permitindo que a mulher recorra à Delegacia da Mulher [...]. Na esfera criminal é grande a distância que nos separa de nossa meta igualitária de respeito. Me parece maior do que nas outras esferas do direito (VERUCCI, 1985______. Prefácio. In.: AZEVEDO, Maria Amélia. Mulheres Espancadas: a violência denunciada. São Paulo: Cortez Editora, 1985, pp. I-IX., p. IX).

O discurso de Florisa Verucci evidencia dois aspectos importantes desse debate: por um lado, a igualdade no campo do direito deve ser construída, também no âmbito do direito penal. Por outro, as dificuldades de atingir essa “igualdade” nesse campo parecem ser maiores que em outros. Embora não esteja explicitamente mencionado, pode-se dizer que os esforços analíticos da autora visam explicitar o caráter sexista do direito penal15 15 Carol Smart, em The Woman of Legal Discourse (1992) discute três momentos da perspectiva de que o direito tem gênero: o direito é sexista, o direito é masculino e o direito tem gênero. .

A incorporação da perspectiva de gênero para a abordagem da violência contra a mulher ocorre na década de oitenta, sem que implicasse em um abandono das categorias “mulher” ou “mulheres”. A categoria gênero subsidiará a emergência de duas correntes interpretativas do fenômeno da violência contra as mulheres na academia: uma, trataria as mulheres como vítimas e outra, como cúmplices. A primeira, que se identificava com uma matriz feminista marxista e radical, compreendia a violência masculina como um reflexo do patriarcado e da dominação masculina.16 16 Ver também Heleith SAFFIOTI (1987, 1994, 2004) e Maria Amélia AZEVEDO (1985). A segunda, mais relativista, considerava a violência como parte de um jogo de dominação/submissão nas relações de gênero (GREGORI, 1993GREGORI, Maria Filomena. Cenas e Queixas. Um estudo sobre Mulheres, relações violentas e a prática feminista. Rio de Janeiro, 1993.; GROSSI, 1991______. Vítimas ou cúmplices? Dos diferentes caminhos da violência contra a mulher no Brasil. In: XV Reunião Anual da ANPOCS, Caxambu, 1991.).

O debate entre as duas perspectivas dividiu as feministas tanto na academia quanto no movimento social. A primeira corrente, mais vinculada à sociologia, irá predominar junto às feministas do direito. Os estudos que se seguiram procuraram desconstruir essa visão dualista. A exemplo deles, podemos citar as pesquisas de sociólogas e antropólogas como Lourdes Bandeira, Mireya Soares, Lia Zanotta Machado, Bárbara Musumeci Soares e Eliane Brandão. Embora emergente o tema sobre homens violentos, os estudos nessa área eram bem reduzidos17 17 Maria Regina Lisboa menciona que o primeiro “Simpósio do Homem” produzido por homens e para homens, realizou-se em outubro de 1985. e eram poucos os pesquisadores homens que tomaram a violência contra mulheres como objeto de estudo.

A articulação entre raça e gênero, embora já presente nos anos setenta nos estudos de Lélia González, emergirá com maior ênfase nos anos 1990, pelas abordagens, sobretudo, de teóricas ligadas ao movimento de mulheres negras a exemplo de Sandra Azeredo (1994)AZEREDO, Sandra. Teorizando sobre gênero e relações raciais. Estudos Feministas, edição especial, 2o semestre, 1994, pp. 203-2016., Edna Roland (1995)ROLAND, Edna. Direitos reprodutivos e racismo no Brasil. Estudos Feministas, v.2, n.2, 1995, pp. 506-514., Matilde Ribeiro (1995)RIBEIRO, Matilde. Mulheres negras brasileiras: de Bertioga a Beijin. Estudos Feministas, v.2, n.2, 1995, pp.446-457., Luiza Barrios (1995)BARRIOS, Luiza. Nossos feminismos revisitados. Estudos Feministas, v.2, n.2, 1995, pp.458-463., dentre outras. Sueli Carneiro (2003)CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. In: ASHOKA EMPREENDIMENTOS SOCIAIS; TAKANO CIDADANIA (Orgs.). Racismos contemporâneos. Rio de Janeiro: Takano Editora, 2003, pp. 49-58. enfatizou a necessidade de “enegrecermos” o feminismo para que fosse possível alargar o conceito de violência contra a mulher. De acordo com ela,

As mulheres negras vêm há anos buscando alargar o conceito de violência contra a mulher, para além da agressão e do abuso sexual, pela introdução do conceito de violência racial entre as práticas que produzem dano físico, psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação. (...) o que poderia ser considerado estórias ou reminiscências do período colonial permanece atuante no imaginário social e se renova e adquire novas roupagens e novas funções numa ordem social supostamente democrática, mas que mantém intactos os papéis instituídos para as relações de gênero segundo a cor ou raça no período escravagista. Essa tradição continua legitimando formas particulares de violências vividas presentemente por mulheres negras, dentre as quais destaca-se o turismo sexual e o tráfico de mulheres, temas que apresentam o corte racial como um marco fundamental (CARNEIRO, 2003CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. In: ASHOKA EMPREENDIMENTOS SOCIAIS; TAKANO CIDADANIA (Orgs.). Racismos contemporâneos. Rio de Janeiro: Takano Editora, 2003, pp. 49-58., p. 12).

Outros trabalhos nesse sentido são “As Mulheres e a Legislação Contra o Racismo”, organizado por Leila Linhares Barsted, Jacqueline Hermann e Maria Elvira Vieira de Mello (2001); “Razão, ‘cor’ e desejo: uma análise comparativa sobre relacionamentos afetivo-sexuais “inter-raciais” no Brasil e na África do Sul”, de Laura Moutinho (2004)MOUTINHO, Laura. Razão, “cor” e desejo: uma análise comparativa sobre relacionamentos afetivo-sexuais “inter-raciais” no Brasil e na África do Sul. São Paulo: Unesp, 2004. e “Violência contra a mulher e saúde: um olhar da mulher negra”, organizado pela Casa de Cultura da Mulher Negra (2004)CASA DE CULTURA DA MULHER NEGRA. Violência contra a mulher e saúde: um olhar da mulher negra. Santos: CCMN, 2004..

No início do século XXI, os estudos sobre violência doméstica assumem centralidade na agenda feminista. A política feminista das décadas anteriores de denunciar a impunidade da violência e o descaso do sistema de justiça dá lugar a posturas propositivas de mudanças na legislação. Essa mudança de posição ocorre em virtude de três elementos centrais nesse período: a) a criação da primeira delegacia da mulher, em 1985; b) a bem sucedida intervenção feminista na Assembleia Nacional Constituinte que culminou com inúmeras propostas aprovadas no texto da nova Constituição18 18 Conforme Cecília Santos (2010), o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher teve um papel significativo na incorporação de 80% das propostas feministas na Constituição de 1988. e c) o surgimento das organizações não governamentais de direitos das mulheres19 19 Sobre a mudança ocorrida no movimento de mulheres e criação de ONGs, ver Miriam Grossi (1998). .

A criação das delegacias especializadas no final dos anos 1980 e de outros serviços estatais para o enfrentamento à violência doméstica contra as mulheres também conduziu o campo feminista a empregar enormes esforços analíticos, com caráter de avaliação e de monitoramento nos anos seguintes. As delegacias especializadas objetivavam estimular as denúncias de violência doméstica, já que as mulheres teriam um ambiente acolhedor, profissionais treinadas, com sensibilidade de escuta para dar andamento aos procedimentos criminais necessários. Elas também ofereceriam a possibilidade de dar a visibilidade necessária ao problema e mostrar uma intervenção do Estado, através da responsabilização dos agressores. Idealmente, as mulheres agredidas seriam bem atendidas nas delegacias da mulher e denunciariam os agressores, que seriam exemplarmente responsabilizados. Mesmo sendo um tipo de estrutura criada por força do movimento feminista, vários estudos realizados após a sua criação apontaram para as dificuldades desses equipamentos em cumprir esse papel20 20 Ver Bárbara SOARES,1996; Jacqueline MUNIZ, 1996; Lia Zanotta MACHADO, 2001; e Wânia Pasinato Izumino (1998). de modo adequado.

Por outro lado, o ativismo transnacional do movimento feminista iniciado nos anos 1990 em torno dos tratados internacionais de direitos humanos das mulheres e antirracistas acabou por favorecer uma aproximação bastante horizontalizada entre as abordagens teóricas de feministas estrangeiras e as brasileiras. Alda Facio, Carol Smart, Rebecca Cook, Kimberlé Crenshaw, Virginia Vargas, Gladys Acosta, Lorena Fries são alguns dos nomes de autoras estrangeiras mais recorrentes em trabalhos produzidos por juristas feministas brasileiras nesse período.

Os quase trinta anos de estudos sobre violência contra as mulheres irão subsidiar, em meados dos anos 2000, os trabalhos de advocacy feminista voltados à aprovação da Lei Maria da Penha, diploma legal que propôs uma alteração substancial no tratamento jurídico-legal aos vários tipos de violência contra as mulheres existentes até então. Esse processo garantiu renovado fôlego para que muitas militantes e acadêmicas intensificassem a produção de abordagens teórico-críticas sobre o direito e as instituições do sistema de justiça, a partir de enfoques feministas bastante variados (SEVERI, 2018SEVERI, Fabiana Cristina. Lei Maria da Penha e o projeto jurídico feminista brasileiro. São Paulo: Lúmen Juris, 2018.; CAMPOS, 2017______. Criminologia Feminista: teoria feminista e crítica às criminologias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017.).

3. Violência, gênero e as recentes publicações feministas no campo do direito

As publicações feministas, mesmo das juristas acima apontadas, estão ausentes da maioria das bibliotecas universitárias e das referências de trabalhos profissionais e acadêmicos, de docentes ou estudantes, ou da jurisprudência dos tribunais de justiça do país. Essa produção começou a se ampliar e ter maior visibilidade no meio jurídico acadêmico apenas na última década, coincidindo com o período de criação da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006). Um dos temas mais recorrentes nos estudos é a violência contra as mulheres (SEVERI, 2018SEVERI, Fabiana Cristina. Lei Maria da Penha e o projeto jurídico feminista brasileiro. São Paulo: Lúmen Juris, 2018.).

A coincidência não é à toa. A Lei Maria da Penha é resultante de uma longa trajetória de luta dos movimentos feministas e de advocacy feminista no país; ela reforça o dever do Estado brasileiro em garantir vários direitos humanos das mulheres previstos em tratados internacionais dos quais o país já era signatário; traz vários institutos jurídicos e conceitos até então novos na legislação brasileira; e ainda, introduz o conceito de gênero como categoria de análise jurídica.

Os esforços de compreender a lei, de disputar a produção dos sentidos sobre ela e “o lugar de fala das feministas” na produção da crítica jurídica brasileira, apesar de estarem em curso há, ao menos, três décadas, ganham a cena na academia jurídica brasileira nesses últimos anos pelas mãos de um amplo campo de autoras provenientes de variadas vertentes teóricas ou militantes.

Essa produção recente tem garantido maior visibilidade à bibliografia sobre história do feminismo e sobre as críticas feministas ao direito (ou críticas jurídico-feministas) até então pouco conhecida (ou mesmo negada) por parte do quadro do campo jurídico brasileiro, bem como à vasta produção sobre gênero e feminismo em outras áreas das ciências humanas e sociais.

Um dos principais livros que assume boa parte desses desafios é “Lei Maria da Penha comentada em uma perspectiva jurídico-feminista”, organizado por Carmen Hein de Campos, sob a coordenação do CLADEM/Brasil – Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher. A maioria dos textos foi produzida por integrantes21 21 Alguns desses nomes são: Carmen Hein Campos, Leila Linhares Barsted, Myllena Calasans de Matos, Iáris Cortes, Rosane M. Reis Lavigne, Silvia Pimentel, Wânia Pasinato, Fabiane Simioni, Rúbia Abs da Cruz e Ela Wiecko V. de Castilho. do Consórcio de ONGs feministas que elaboraram o anteprojeto da Lei e por juristas que participam dos debates sobre a criação, implementação e interpretação da Lei de acordo com os propósitos que ensejaram a sua elaboração. Os textos abordam a Lei Maria da Penha nos marcos dos direitos humanos das mulheres e sob a perspectiva dos movimentos que foram protagonistas na construção do anteprojeto da Lei e seus maiores impulsionadores.

A primeira seção do livro reúne dados sobre a trajetória da luta feminista no Brasil pela criação da Lei Maria da Penha, e analisa o processo legislativo que culminou na sua aprovação, a disputa jurídica em torno da definição de seu texto final e os principais desafios para sua interpretação jurídica e aplicação prática. A segunda é composta por artigos que analisam cada dispositivo da Lei, pontuando as razões sociojurídicas pelas quais eles foram estabelecidos. Ainda, em diálogo com teorias feministas sobre o direito produzidas em outros continentes, lança bases para a construção de uma crítica feminista aos principais paradigmas criminológicos e jurídico-penais hegemônicos na academia brasileira que permita uma interpretação jurídica da Lei Maria da Penha mais compatível com os marcos dos direitos humanos das mulheres.

As análises relativas à LMP ou à violência doméstica são bastante recorrentes nos estudos feministas no campo do direito, mas há uma multiplicação de temas, abordagens e vozes nessa produção, apontando para um fortalecimento do diálogo das feministas brasileiras com outras vertentes jurídicas críticas e com outras teóricas estrangeiras. Parte importante dessa produção também tem centrado seus esforços na articulação do fenômeno da violência contra as mulheres com a temática racial e problematizado outras formas de violência contra as mulheres e de gênero.

Nesse sentido, podemos citar alguns títulos como: “Discursos Negros: legislação penal, política criminal e racismo”, organizado por Ana Flauzina, Felipe Freitas, Hector Vieira, Thula Pires (2015); “A situação dos Direitos Humanos das Mulheres Negras no Brasil: violências e violações”, organizado por Jurema Werneck e Nilza Iraci (2016)WERNECK, Jurema; IRACI, Nilza. A situação dos direitos humanos das mulheres negras no Brasil: violências e violações. São Paulo: Criola-Geledés, 2016.; e “Tramas e dramas de gênero e de cor: A violência doméstica contra mulheres negras”, de Bruna Cristina Jaquetto Pereira (2016)PEREIRA, Bruna Cristina Jaquetto. Tramas e dramas de gênero e de cor: a violência doméstica contra mulheres negras. Brasília: Brado Negro, 2016.; “Da expectativa à realidade: a aplicação das sanções na Lei Maria da Penha”, de Luanna Thomaz de Souza (2016)SOUZA, Luanna Tomaz. Da expectativa à realidade: a aplicação de sanções na Lei Maria da Penha. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016..

Essa produção também tem possibilitado novas leituras sobre a Lei Maria da Penha, em face do seu inicial “enquadramento” nas abordagens exclusivamente penais ou criminológicas. Ela também tem favorecido a apreensão sobre como a dimensão racial participa na manifestação da violência doméstica e familiar contra as mulheres.

Nesse sentido, Bruna Pereira (2016)PEREIRA, Bruna Cristina Jaquetto. Tramas e dramas de gênero e de cor: a violência doméstica contra mulheres negras. Brasília: Brado Negro, 2016. problematiza o relativo silêncio sobre a questão racial nos estudos sobre violência contra as mulheres no Brasil e aponta para a necessidade de incorporar cor/raça como categoria analítica relevante nos estudos sobre violência doméstica e familiar, já que as mulheres brasileiras são constituídas no e por meio de processos de racialização. Apesar do êxito dos estudos feministas dos anos 1980 e 1990 em desnaturalizar a violência contra as mulheres, é necessário que outras nuances da violência que ocorrem no ambiente doméstico sejam desveladas e compreendidas, a partir de análises que tomem a problemática das relações raciais como eixo central de abordagem, de modo articulado a categorias de gênero e classe social.

Ana Flauzina (2015)FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Lei Maria da Penha: entre os anseios da resistência e as posturas de militância. In: FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro et al. Discursos Negros: legislação penal, política criminal e racismo. Brasília: Brado Negro, 2015, pp. 115-144., ao articular gênero e raça na abordagem sobre a Lei Maria da Penha, identifica diversos efeitos do racismo nos processos de interpretação e aplicação da Lei que acabam por minar a efetivação dos seus ideais e aprofundar a vulnerabilidade de corpos negros em face ao sistema de justiça criminal. De acordo com a autora,

Infelizmente, as discussões em torno da Lei Maria da Penha pouco têm se debruçado sobre essas peculiaridades, silenciando dimensões importantes dos abusos físicos e psicológicos que atingem as mulheres negras, a partir da conjunção da lógica sexista e racista reverberada pelos agressores. Assim, a leitura do que é violência contra as mulheres no âmbito doméstico e familiar desconsidera agressões de cunho racial como um dado que precisa ser enfrentado não só na própria caracterização do delito, como também nas demais intervenções dirigidas aos autores, tais como grupos de reflexão. Pelo que se pode constatar, a demanda pela proteção das ‘mulheres’ tem a branquitude como parâmetro, fraturando a experiência daquelas que tem no terror racial um ingrediente patente que autoriza e potencializa toda a sorte de vilipêndios que as assaltam (FLAUZINA, 2015FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Lei Maria da Penha: entre os anseios da resistência e as posturas de militância. In: FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro et al. Discursos Negros: legislação penal, política criminal e racismo. Brasília: Brado Negro, 2015, pp. 115-144., p. 138).

A perspectiva teórica feminista para a análise do direito é assumida com maior frequência nos trabalhos recentes de diversas áreas do direito e outras dimensões de violência de gênero são problematizadas por textos recentes. É o caso, por exemplo, de “Olhares Feministas sobre o Direito das Famílias Contemporâneo”, de Lígia Ziggiotti de Oliveira (2016)OLIVEIRA, Lígia Z.iggiotti. Olhares feministas sobre o Direito das Famílias contemporâneo: Perspectivas críticas sobre o individual e o relacional em família. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2016.; “Práticas de justiça em direito de família: estudo de caso sobre a guarda compartilhada”, de Fabiane Simioni (2017)SIMIONI, Fabiane. Práticas de justiça em direito de família: estudo de caso sobre a guarda compartilhada. Rio Grande: Editora da FURG, 2017.; “Feminicídio - uma análise sociojurídica da violência contra a mulher no Brasil”, de Adriana Ramos de Mello (2016)MELLO, Adriana de. Femicídio: uma análise sócio jurídica do fenômeno no Brasil. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2016.; “Criminologia feminista: teoria feminista e crítica às criminologias”, de Carmen Hein de Campos (2017); “Criminologia feminista: novos paradigmas”, de Soraia da Rosa Mendes (2017)MENDES, Soraia da Rosa. Criminologia Feminista: novos paradigmas. São Paulo: Saraiva, 2017.; e “Lei Maria da Penha e o projeto jurídico feminista brasileiro”, de Fabiana Cristina Severi (2018)SEVERI, Fabiana Cristina. Lei Maria da Penha e o projeto jurídico feminista brasileiro. São Paulo: Lúmen Juris, 2018..

Se a maioria das juristas feministas até o final dos anos 1990 são fortemente ligadas aos movimentos feministas e só algumas poucas estão formalmente vinculadas à academia, esses últimos textos citados revelam uma espécie de profissionalização no campo dos estudos feministas sobre o direito. A maioria das autoras mais recentes, apesar de estarem relativamente próximas a movimentos feministas e de mulheres ou serem atuantes em serviços ou varas especializadas em violência contra as mulheres, são pesquisadoras ou docentes vinculadas formalmente a cursos jurídicos ou a grupos de pesquisa em direito.

Essa mudança nos parece bastante relevante e merece análises próprias, já que a ciência e a prática jurídica, historicamente, são consideradas como um domínio reservado aos homens. Isso não quer dizer que as mulheres estivessem formalmente excluídas desse campo e que agora as barreiras inexistem, mas que, de alguma forma, as resistências existentes à presença delas no campo científico do direito sofreram fissuras que merecem ser analisadas em maior profundidade.

Os trabalhos com perfil didático ou que problematizam a educação jurídica em perspectiva de gênero também começam a despontar recentemente. Em 2006______. Os cursos de direito e a perspectiva de gênero. Porto Alegre: Fabris, 2006., por exemplo, a militante feminista Maria Amélia Teles publicou um livro por uma editora comercial de livros jurídicos (Sergio Fabris) com o título “Os cursos de direito e a perspectiva de gênero”. O trabalho é voltado à formação de juristas e de profissionais do direito e busca apresentar a tal público os principais conceitos, marcos teóricos e registros históricos para que esses profissionais possam adotar uma perspectiva de gênero na análise do direito e melhor efetivarem os direitos humanos das mulheres. Há, também, outros trabalhos sob o eixo feminismo e educação jurídica (ou educação popular em direito) como: “A violência de gênero nos espaços do direito”, organizado por Vanessa Dorneles Schinke (2017)SCHINKE, Vanessa Dorneles. A violência de gênero nos espaços do direito: narrativas sobre ensino e aplicação do direito em uma sociedade machista. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2017.; “Manual para Promotoras Legais Populares – PLPs”, organizado por Suelaine Carneiro e Tânia Portella (2013)CARNEIRO, Suelaine; PORTELLA, Tânia. Manual para Promotoras Legais Populares – PLPs. São Paulo: Geledés, 2013.; “Introdução crítica ao direito das mulheres”, livro organizado por José Geraldo de Sousa Júnior, Bistra Stefanova Apostolova e Lívia Gimenes Dias da Fonseca, em 2011SOUSA JÚNIOR, José Geraldo; APOSTOLOVA, Bistra Stefanova; FONSECA, Lívia Gimenes Dias. Introdução crítica ao direito das mulheres. Série O direito achado na rua. Brasília: CEAD/FUB, 2011., junto à série de livros da coleção “O direito achado na rua”.

Considerações finais

A análise do material bibliográfico reunido aqui nos permitiu explicitar que, apesar da marginalidade dos primeiros estudos feministas no campo do direito em relação à produção jurídica nacional, tais estudos expressam uma forte interação com as pautas do movimento feminista, em especial, as demandas por ampliação dos direitos humanos das mulheres. Na temática da violência contra as mulheres, a produção teórica feminista foi parte fundamental do conjunto de estratégias dos movimentos de mulheres e feministas nos processos de luta pela criação de novos contornos jurídicos e político-institucionais para o enfrentamento às violências contra as mulheres no Brasil.

Em termos de impactos no meio jurídico acadêmico, se até meados dos anos 2000 essa produção foi marginal, mais recentemente, ela tem ganhado visibilidade e passado por um alargamento em termos de abordagens teórico-metodológicas, de propósitos e de temáticas, seguindo a própria ampliação do campo feminista e a intensificação do diálogo do feminismo brasileiro com o feminismo transnacional e com outras vertentes teórico-epistemológicas que também entraram em cena no campo jurídico brasileiro na última década.

Se, atualmente, o pensamento crítico feminista parece surgir como novidade no campo acadêmico e se impor como uma tendência teórica inovadora com forte potencial crítico, isso é resultado, em grande medida, de um percurso realizado, desde os anos 1970, por diversas juristas feministas pioneiras. Esse termo não se refere, necessariamente, à originalidade em termos de análises feministas sobre o direito no Brasil, mas ao modelo de intelectual que elas acabaram por assumir ao estarem envolvidas, simultaneamente, na reflexão teórica e na militância feminista que ensejaram as transformações jurídicas mais significativas para a efetivação dos direitos humanos das mulheres e para o enfrentamento à violência contra as mulheres.

A metáfora do anfíbio utilizada por Maristella Svampa (2007SVAMPA, Maristella. “¿Hacia un nuevo tipo de intelectual?” Revista Ñ, Buenos Aires, 29 de Julio de 2007., p. 31) ilustra bem a capacidade que esse modelo de intelectual/pesquisadora/profissional demonstra em “habitar e se desenvolver em vários mundos, gerando assim vínculos múltiplos, solidariedades e cruzamentos entre realidades diferentes”. Diferente do camaleão - que se adapta a diferentes situações e de acordo com o tipo de interlocutor -, o modelo de intelectual anfíbia coloca “em jogo e em discussão os próprios saberes e competências, desenvolvendo uma maior compreensão e reflexividade sobre as diferentes realidades sociais e sobre si mesmo”. O principal desafio assumido por nossas juristas feministas anfíbias, então, foi o de pensar criativamente “os cruzamentos, as pontes, as vinculações, ainda que fugazes e precárias, que são possíveis de se estabelecer entre estes universos tão distintos”, cujos efeitos, em nossa opinião, já se fazem sentir.

  • 2
    Este trabalho resulta de nosso esforço em articular e ampliar as análises que cada uma de nós iniciou em trabalhos anteriores (SEVERI, 2018SEVERI, Fabiana Cristina. Lei Maria da Penha e o projeto jurídico feminista brasileiro. São Paulo: Lúmen Juris, 2018.; CAMPOS, 2017).
  • 3
    Utilizamos a expressão malestream e não mainstream (SMART, 2000______. La teoría feminista y el discurso jurídico. In.: BIRGIN, Haydée. El derecho en el género y el género del derecho. Buenos Aires: Biblos, 2000, pp. 31-32.) para demarcar a centralidade masculina da produção e circulação no direito.
  • 4
    A expressão advocacy é utilizada pelos movimentos feministas para se referir a um conjunto amplo e diversificado de ações políticas dos movimentos de mulheres com o objetivo de influenciar o debate público e incidir nos atores e instituições políticas, sociais e culturais de modo a gerar transformações políticas e institucionais na sociedade civil e no Estado, a partir de conteúdos e propostas específicas presentes nas agendas feministas.
  • 5
    São vários os modos de se referir a tais estudos, conforme o momento histórico e as discussões teóricas que os fundamentam: estudos sobre a mulher ou sobre as mulheres, estudos de gênero, estudos sobre mulheres, estudos sobre relações de gênero, teorias de gênero.
  • 6
    O termo jurista nos pareceu mais apropriado para se referir ao perfil de atuação de um conjunto importante de feministas brasileiras, que tem construído variadas abordagens críticas ao direito, não necessariamente a partir do espaço da academia, mas sobretudo na intersecção entre dois ambientes nos quais elas têm transitado: o da ação política e o do saber jurídico profissional/acadêmico.
  • 7
    A forte atuação feminista no Congresso Nacional durante os trabalhos constituintes ficou conhecida como Lobby do Batom.
  • 8
    A influência do pensamento de Heleieth Saffioti é visível.
  • 9
    Podemos citar os trabalhos editados pela CEPIA, AGENDE, SOS-Corpo e THEMIS.
  • 10
    No entanto, tendo em vista a formação marxista das feministas brasileiras, não se pode esquecer a influência das revolucionárias russas e alemãs Rosa Luxemburgo, Clara Zetkin e Alexandra Kollontai.
  • 11
    O estudo feito por Silvia Pimentel, Ana Lucia Schritzmeyer e Valéria Pandjiarjian, do fim dos anos 90 intitulado Estupro: crime ou cortesia? é uma referência importante no âmbito dos trabalhos com tal perfil.
  • 12
    As autoras realizaram um balanço sobre a expansão dos estudos sobre violência e gênero no Brasil, a partir da análise do levantamento dos estudos de pós-graduação (teses e dissertações) e de conclusão de cursos sobre gênero e violência publicados entre 1975 e 2005 em diferentes áreas do conhecimento.
  • 13
    Algumas das autoras que podemos citar são: Mariza Corrêa, Maria Amélia Azevedo, Marilena Chauí, Heleieth Saffioti, Paula Montero, Bila Sorj, Danielle Ardaillon, Heloisa André Pontes, Guita Debert, Matilde Ribeiro, Luiza Barrios, Edna Roland, Sueli Carneiro e Wania Santanna.
  • 14
    Como exemplo, podemos citar Suely Almeida (1998)ALMEIDA, Suely Souza de. Femicídio: algemas invisíveis do público-privado. Rio de Janeiro: Revinter: 1998..
  • 15
    Carol SmartSMART, Carol. The Woman of Legal Discourse. Social and Legal Studies, v. 1, n. 29, 1992, pp. 29-44., em The Woman of Legal Discourse (1992) discute três momentos da perspectiva de que o direito tem gênero: o direito é sexista, o direito é masculino e o direito tem gênero.
  • 16
    Ver também Heleith SAFFIOTI (1987______. O poder do macho. São Paulo: Moderna, 1987., 1994______. Violência de gênero no Brasil contemporâneo. In.: SAFFIOTI, Heleieth; MUNÕZ-VARGAS, Monica (Orgs.). Mulher brasileira é assim. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1994, pp. 151-185., 2004______. Gênero, patriarcado e violência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004.) e Maria Amélia AZEVEDO (1985)AZEVEDO, Maria Amélia. Mulheres espancadas: a violência denunciada. São Paulo: Cortez Editora, 1985..
  • 17
    Maria Regina Lisboa menciona que o primeiro “Simpósio do Homem” produzido por homens e para homens, realizou-se em outubro de 1985.
  • 18
    Conforme Cecília Santos (2010)SANTOS, Cecília MacDowell. Da delegacia da mulher à Lei Maria da Penha: absorção/tradução de demandas feministas pelo Estado. Revista Crítica de Ciências Sociais, Lisboa, n.89, 2010, pp. 153-170., o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher teve um papel significativo na incorporação de 80% das propostas feministas na Constituição de 1988.
  • 19
    Sobre a mudança ocorrida no movimento de mulheres e criação de ONGs, ver Miriam Grossi (1998)GROSSI, Miriam. Feministas históricas e novas feministas no Brasil. Florianópolis: UFSC (Programa de Pós Graduação em Antropologia Social), 1998..
  • 20
    Ver Bárbara SOARES,1996SOARES, Musumeci Bárbara. Delegacia de atendimento à mulher: questão de gênero, número e grau. In.: SOARES, Luiz Eduardo. Violência e política no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Relume Dumará/ISER, 1996, pp. 125-164.; Jacqueline MUNIZ, 1996MUNIZ, Jacqueline. Os direitos dos outros e outros direitos: um estudo sobre a negociação de conflitos nas DEAMs/RJ. In.: SOARES, Luiz Eduardo. Violência e política no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Relume Dumará/ISER, 1996, pp. 125-166.; Lia Zanotta MACHADO, 2001MACHADO, Lia Zanotta. Eficácia e desafios das Delegacias Especializadas no Atendimento às Mulheres: o futuro dos direitos à não-violência. Mimeo, 2001.; e Wânia Pasinato Izumino (1998)IZUMINO, Wânia Pasinato. Justiça e violência contra a mulher: o papel do sistema judiciário na solução dos conflitos de gênero. São Paulo: Annablume/Fapesp, 1998..
  • 21
    Alguns desses nomes são: Carmen Hein Campos, Leila Linhares Barsted, Myllena Calasans de Matos, Iáris Cortes, Rosane M. Reis Lavigne, Silvia Pimentel, Wânia Pasinato, Fabiane Simioni, Rúbia Abs da Cruz e Ela Wiecko V. de Castilho.

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  • 1
    Com esse trabalho prestamos uma singela homenagem às feministas precursoras do Direito.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Jun 2019
    • Data do Fascículo
      Apr-Jun 2019

    Histórico

    • Recebido
      01 Jan 2018
    • Aceito
      24 Maio 2018
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