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Os argumentos do agronegócio em ações ajuizadas em face da Comunidade Quilombola Pesqueira Vazanteira de Caraíbas e da regularização fundiária do patrimônio da União no Norte de Minas Gerais

The arguments of agribusiness in judicial processes filed against the traditional fishery Community of the “Quilombo de Caraíbas” and the land regularization of the Federal's patrimony in the North of Minas Gerais

Resumo

O trabalho analisa os argumentos produzidos por fazendeiros e empresários rurais no âmbito de disputas judiciais que envolvem a Comunidade Quilombola Pesqueira e Vazanteira de Caraíbas e a regularização fundiária do patrimônio da União na bacia do rio São Francisco norte-mineiro. Para alcançarmos o objetivo, articulamos revisão bibliográfica com pesquisa documental, realizada, essa última, por meio da análise de conteúdos oriundos desses processos judiciais. Enquanto resultados, apresentamos a síntese dos argumentos acionados judicialmente pelos fazendeiros e empresários em questão, exercendo uma interpretação controlada acerca dos conteúdos que carregam. O exame desses argumentos demonstrou-nos a continência de seus conteúdos em relação a retóricas e jogos de linguagem mais amplos, constituídos de significantes e de preconcepções que viabilizam em termos práticos a manutenção das relações de poder e a adequação de condições macroeconômicas ao contexto agrário regional.

Palavras-chave:
Campo jurídico; Conflitos ambientais; Rio São Francisco

Abstract

This article presents the analysis of the arguments produced by agribusiness representatives in the context of legal disputes involving the traditional fishery Community of the “Quilombo de Caraíbas”, and the land regularization of the Federal's patrimony in the São Francisco North-Mineiro River basin. In order to reach the objective, we articulated a bibliographical review with documentary research, carried out through the analysis of contents arising from these judicial processes. As a result, we present a summary of the arguments filed in court by the landowners and businessmen in question, exercising a controlled interpretation of the contents they carry. The analysis of these arguments showed us the continence of their contents in relation to broader rhetoric and language games, constituted of signifiers and preconceptions that make feasible, in practical terms, the maintenance of power relations and the adequacy of macroeconomic conditions to the regional agrarian context.

Keywords:
Legal field; Environmental conflicts; São Francisco River

Introdução1 1 O presente trabalho é um fruto da Dissertação de Mestrado intitulada Um jogo de cartas marcadas?: análise de conteúdos jurídicos a partir da Comunidade Quilombola Pesqueira Vazanteira de Caraíbas, defendida em 2022, no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Social da Universidade Estadual de Montes Claros (PPGDS/UNIMONTES).

“[...] Compreender a gênese social de um campo e apreender aquilo que faz a necessidade específica da crença que o sustenta, do jogo de linguagem que nele se joga, das coisas materiais e simbólicas em jogo que nele se geram, é explicar, tornar necessário, subtrair ao absurdo do arbitrário e do não motivado os atos dos produtores e as obras por eles produzidas e não, como geralmente se julga, reduzir ou destruir” (BOURDIEU, 1989BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa: Difel/Bertrand Brasil, 1989., p. 69).

A Comunidade Quilombola Pesqueira e Vazanteira de Caraíbas [ou Comunidade de Caraíbas] se localiza na margem direita do rio São Francisco, a pouco mais de 10 quilômetros a montante da cidade norte-mineira de Pedras de Maria da Cruz. O nome da Comunidade faz referência a “quantidade de paus de Caraíba [árvore nativa de flores brancas grandes e vistosas] que existiam na localidade” (NIISA, 2018a, p. 6).

Os habitantes dessa Comunidade se caracterizam por um modo de vida que é intrinsecamente vinculado às dinâmicas sanfranciscanas, reunindo em seu cotidiano atividades como a pesca artesanal, a agricultura de sequeiro (plantio nas terras altas e barrancos), a agricultura vazanteira (cultivos realizados nas margens planas e inundáveis do rio), a criação de animais e o extrativismo de frutos e madeira (NIISA, 2018a).

O território tradicional da Comunidade de Caraíbas é composto por uma diversidade de ambientes. Podemos compreender as suas dimensões por meio da justaposição estabelecida entre as terras baixas, que são alagadas sazonalmente pelo rio em regimes de enchente e vazante, abarcando a beira rio, o lagadiço, o beiradão, as lagoas e as ilhas; e as terras altas, que não são alagáveis, nas quais estão as matas.

Por força do artigo 20, III, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/1988)2 2 Art. 20 da CRFB/1988. “São bens da União: III - os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros países, ou se estendam a território estrangeiro ou dele provenham, bem como os terrenos marginais e as praias fluviais”. , as terras baixas do rio São Francisco, que em termos jurídicos recebem o nome de terrenos marginais, compõem o domínio da União Federal. Consequentemente, a ocupação tradicional da Comunidade de Caraíbas desperta igualmente a temática da constituição, da apropriação e da regularização fundiária das terras da União.

A gestão dessas terras é executada pela Secretaria do Patrimônio da União (SPU). Esse órgão concebeu e executou um projeto de “reposicionamento institucional” que teve o intuito de “inverter a lógica histórica, marcada pela predominância de princípios patrimonialistas e modelos de gestão cartorial dos bens da União”, que acabavam por reforçar o paradigma da terra pública como “terra de ninguém” (RESCHKE, 2005RESCHKE, Alexandra. Nossa Várzea: cidadania e sustentabilidade na Amazônia brasileira. 2005. Disponível em: <https://repositorio.enap.gov.br/bitstream/1/259/1/Nossa%20V%C3%A1rzea.pdf>. Acesso em: 30 jun. 2022.
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, p. 1).

O “reposicionamento institucional” da SPU ocorreu mediante a mobilização das interfaces que permitem a configuração da função socioambiental do patrimônio da União, executada em trabalhos da SPU e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA)3 3 Referimo-nos sobretudo ao trabalho intitulado A Função Socioambiental do Patrimônio da União na Amazônia (2016) do IPEA. a partir de experiências e estudos sobre a Amazônia Legal4 4 A região da Amazônia Legal corresponde à área de atuação da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM). Nos termos do art. 2º da Lei Complementar nº 124/2007, “a área de atuação da SUDAM abrange os Estados do Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Rondônia, Roraima, Tocantins, Pará e do Maranhão na sua porção a oeste do Meridiano 44º”. .

Em 2005, a SPU instituiu o Projeto Nossa Várzea de regularização fundiária de comunidades ribeirinhas na Amazônia Legal, que desenvolveu um instrumento legal para assegurar de forma rápida a permanência no território de povos tradicionais em conflito, enquanto não efetivado o reconhecimento pleno da posse, mediante Concessão do Direito Real de Uso (CDRU)5 5 Faculdade do Poder Público, criada pelo Decreto-Lei nº 271/1967. É considerado direito real resolúvel, cujos objetos podem ser “terrenos públicos ou particulares, concedidos de forma remunerada ou gratuita, por tempo certo ou indeterminado, para fins específicos de regularização fundiária de interesse social, urbanização, industrialização, edificação, cultivo da terra, aproveitamento sustentável das várzeas, preservação das comunidades tradicionais e seus meios de subsistência ou outras modalidades de interesse social em áreas urbanas”. . Esse instrumento é o Termo de Autorização de Uso Sustentável (TAUS).

O TAUS pode ser outorgado a habitantes de comunidades tradicionais, de forma individual ou coletiva, que ocupem ou utilizem determinadas áreas da União, dentre as quais estão as “várzeas e mangues de leito de corpos d’água federais; as áreas de praia fluvial federais; e os terrenos de marinha e marginais presumidos”. Tais áreas “[...] são consideradas indubitavelmente da União, por força constitucional, e sobre elas qualquer título privado é nulo” (SPU, 2010).

As experiências de concessão do TAUS, inicialmente, ficaram circunscritas à Amazônia Legal, principalmente nos Estados do Pará, Amazonas e Acre. No entanto, no ano de 2010, a SPU expandiu essas diretrizes em relação a todas as áreas de atuação dos Superintendentes do Patrimônio da União (RESCHKE, 2005RESCHKE, Alexandra. Nossa Várzea: cidadania e sustentabilidade na Amazônia brasileira. 2005. Disponível em: <https://repositorio.enap.gov.br/bitstream/1/259/1/Nossa%20V%C3%A1rzea.pdf>. Acesso em: 30 jun. 2022.
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, p. 2).

Por intermédio de articulações externas empreendidas por seus habitantes, a Comunidade de Caraíbas conquistou, em 2013, a primeira [e até então única] concessão de TAUS no estado de Minas Gerais (TAUS nº 001/2013 SPU/MG). Contudo, o território tradicional por eles reivindicado ultrapassa a área de concessão do TAUS, demarcada enquanto patrimônio da União, incorporando igualmente as terras altas, que não constituem o domínio público federal, conforme representado a seguir:

Mapa 1
Dimensões do TAUS e do território tradicional da Comunidade de Caraíbas

A Comunidade em questão vivencia historicamente a ocorrência de intensos entraves dispostos em detrimento da “[...] reprodução do seu modo de vida ao longo do tempo, devido principalmente a conflitos ambientais6 6 Utilizamos o conceito mobilizado por Acselrad (2004), para o qual a noção de conflitos ambientais pode ser capturada por meio de “quatro dimensões constitutivas”, sendo elas: apropriação simbólica e apropriação material, durabilidade e interatividade espacial das práticas sociais”. Esses conflitos envolvem “grupos sociais com modos diferenciados de apropriação, uso e significação do território” (ROCHA, 2017, p. 39). [...] que se dão entre as comunidades e empreendimentos do agronegócio”. Tais conflitos se relacionam à expansão do agronegócio, por meio do estabelecimento da fruticultura e de outras culturas irrigadas, como também da pecuária (NIISA, 2018a, p. 43).

As configurações e os impactos produzidos por tais alterações demonstram a incidência de dinâmicas históricas que produzem “a expropriação das terras tradicionalmente ocupadas e a restrição de acesso à natureza por parte de comunidades negras da região, além da interferência significativa no regime hidrológico do rio e nos processos dos organismos vivos” (NIISA, 2018a, p. 43).

Os moradores da Comunidade de Caraíbas são representados juridicamente pela Associação dos Vazanteiros e Pescadores Artesanais da Ilha da Capivara e Caraíbas. Em face dessa Associação, foram ajuizadas ações de reintegração de posse e de declaração da nulidade de instrumentos de demarcação e regularização fundiária do patrimônio da União, provocadas por fazendeiros e empresários rurais que se sobrepõem ao [e disputam o] território tradicional da Comunidade de Caraíbas: o agropecuarista Rodolpho Velloso Rebello e a empresa Pedras de São João Agropecuária S.A.

Com o intuito de encararmos a judicialização desses conflitos, assumimos a perspectiva de Bourdieu (2001BOURDIEU, Pierre. Meditações Pascalianas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001., p. 263), no sentido de compreender o direito e o corpo judicial enquanto “jogos sociais” nos quais “[...] cada jogador disporia dos ganhos positivos ou negativos de todos os que o precederam, ou seja, dos resultados acumulados por todos os seus ancestrais”. Desse modo, apesar da legitimação do campo jurídico enquanto “um espaço de disputa justa entre diferentes interpretações das normas jurídicas”, o que ocorre na prática mais se aproxima de um “jogo de cartas marcadas” (CASTRO, 2018CASTRO, Felipe Araújo. Genealogia histórica do campo jurídico brasileiro: liberalismo-conservador, autoritarismo e reprodução aristocrática. (Tese de Doutorado em Direito). Faculdade de Direito, Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2018., p. 50).

Partindo de tais considerações iniciais, o objetivo deste trabalho é analisar os argumentos produzidos por esses antagonistas no âmbito de disputas judiciais que envolvem a Comunidade de Caraíbas e a regularização fundiária do patrimônio da União na bacia do rio São Francisco norte-mineiro. Para tanto, articulamos revisão bibliográfica com pesquisa documental.

A revisão bibliográfica se pautou na leitura dos Relatórios Antropológicos produzidos no âmbito do Projeto Dinâmicas Socioambientais na Bacia Média do rio São Francisco Mineiro, coordenado pelo Núcleo Interdisciplinar de Investigação Socioambiental (NIISA) da Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES), e de notas técnicas, artigos, dissertações e teses produzidos por membros desse Núcleo.

A pesquisa documental foi realizada mediante análise de conteúdos oriundos dos processos judiciais mencionados. Consideramos “a análise de conteúdo enquanto um conjunto de técnicas de análise de comunicações, [...] que utiliza procedimentos sistemáticos de descrição do conteúdo das mensagens” acompanhados de um “exercício de interpretação controlada” (BARDIN, 2016BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2016., p. 19).

Para Bardin (2016BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2016., p. 8), “o fator comum de tais técnicas múltiplas é a existência de uma hermenêutica controlada, [...] baseada na inferência de conhecimentos relativos às condições de produção (ou, eventualmente, de recepção) das comunicações”. Desse modo, ao transitar entre “o rigor da objetividade” da coleta de dados e a “fecundidade da subjetividade” revelada nas inferências, a análise de conteúdo objetiva a “[...] correspondência entre as estruturas semânticas ou linguísticas e as estruturas psicológicas ou sociológicas dos enunciados”.

Os procedimentos realizados com o intuito de analisarmos os conteúdos em questão perpassaram as seguintes etapas, conforme descrição de Bardin (2016BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2016., p. 65): 1) pré-análise (momento no qual constituímos um corpus de processos judiciais, mediante regras de exaustividade, representatividade, homogeneidade e pertinência); 2) exploração do corpus (etapa que consiste em operações de codificação e categorização dos dados brutos); e 3) tratamento dos resultados e inferência (etapa que envolve a construção da síntese argumentativa e o exercício de interpretação controlada).

O texto se encontra dividido em duas seções. A primeira delas intitulada Território tradicional ou “terra de ninguém”?, na qual abordamos alguns aspectos da judicialização do conflito. A segunda se intitula Os argumentos do agronegócio e apresenta uma síntese dos argumentos produzidos pelos autores desses pleitos judiciais, além de uma interpretação em torno dos conteúdos que carregam

1. Território tradicional ou “terra de ninguém”?

O território reivindicado pela Comunidade de Caraíbas é objeto de conflitos ambientais oriundos das sobreposições exercidas ao longo das últimas décadas por fazendeiros e empresários, dentre outras questões7 7 Apesar do ponto de vista assumido no desenvolvimento deste trabalho corresponder à narração de fatos e à exposição de problemáticas abordadas por parte dos habitantes da Comunidade de Caraíbas e daqueles que lá estiveram com o intuito de produzirem determinadas pesquisas, existem outros sujeitos sociais e reivindicações envolvidos nesses mesmos conflitos. Alguns desses sujeitos litigam em demandas judiciais, como é o caso da Comunidade de Caraíbas, da Liga dos Camponeses Pobres (LCP) e dos alegados proprietários da Fazenda Capivara e das Fazendas Triunfo e Santa Clara. Outros, contudo, não necessariamente recorreram ao Poder Judiciário em defesa da posse exercida, hipótese essa perceptível em relação às Fazendas Belchior, Boa Vista e Pioneira [não abordadas neste artigo], mesmo que invariavelmente se sobreponham e impeçam o acesso ao território integral reivindicado pela Comunidade de Caraíbas. . Esses conflitos foram igualmente os vetores do ajuizamento de demandas judiciais, provocadas pela Pedras de São João Agropecuária S.A., que foi proprietária da Fazenda Capivara, e por um agropecuarista regional, que diz ser coproprietário das Fazendas Santa Clara e Triunfo, em detrimento da Associação dos Vazanteiros e Pescadores Artesanais da Ilha da Capivara e Caraíbas, de suas lideranças e de órgãos como a SPU e a Fundação Cultural Palmares.

A seguir, podemos visualizar as sobreposições das áreas das Fazendas de titularidade dos referidos conflituantes em relação às dimensões territoriais de concessão do TAUS e ao território tradicional reivindicado pela Comunidade de Caraíbas, além da caracterização de uma disputa em torno do acesso ao rio.

Mapa 2
Sobreposições da Fazenda Capivara e das Fazendas Triunfo e Santa Clara sobre o território tradicional da Comunidade de Caraíbas

A Pedras de São João Agropecuária S.A. é uma sociedade empresarial de capital fechado cuja sede se encontra localizada na cidade do Rio de Janeiro. A empresa porta um capital social na monta de 5 milhões de reais e declarou ser “legítima proprietária e possuidora, há mais de 30 anos, da Fazenda Capivara”, na qual produzia “alimentos e riquezas para este país, através da criação de rebanho bovino (mais de 2.000 animais), sem descurar-se da preservação ambiental”. A referida propriedade foi adquirida em 29 de agosto de 1983 e serviu como objeto de gravames hipotecários ao longo dos anos, por conta de financiamentos bancários destinados ao fomento de empreendimentos na cidade do Rio de Janeiro (AUTOS Nº 0053390-09.2013.4.01.3800, JFMG).

No dia 19 de maio de 2013, sob o fundamento de que a Fazenda Capivara “foi invadida de forma violenta por ‘inocentes úteis’, acompanhados de ‘articuladores de invasões’”, a aludida empresa requereu em Juízo a reintegração de posse de uma área total de 3.803 hectares. O pedido liminar de reintegração de posse foi analisado e deferido pelo Juízo da Vara Agrária do Estado de Minas Gerais, que determinou, no dia 09 de setembro de 2013, a reintegração de posse e o consequente despejo dos “grupos invasores” (AUTOS Nº 0053390-09.2013.4.01.3800, JFMG).

Após o declínio da competência de julgamento desse processo para a Justiça Federal, ao argumento de que se trata de imóvel litigioso localizado às margens de um curso fluvial da União, a referida liminar de reintegração de posse foi reanalisada e indeferida pelo Juízo da 2ª Vara Federal Cível e Criminal de Montes Claros.

A Pedras de São João Agropecuária S.A. também questionou judicialmente a legalidade “dos procedimentos de demarcação [executados pela União], em face da ausência de notificação pessoal das autoras para acompanhar o processo administrativo”, “requerendo a declaração de nulidade do TAUS nº 001/2013, o reconhecimento do título de propriedade da autora e a legitimidade de seu domínio sobre o imóvel, além da condenação da União ao pagamento perdas e danos causados pela concessão do TAUS” (AUTOS Nº 0008348-76.2014.4.01.3807, JFMG).

Ao analisar o pedido liminar de “paralisação do procedimento administrativo de concessão do TAUS nº 001/2013”, o Juízo da 2ª Vara Federal Cível e Criminal de Montes Claros, em 01 de julho de 2014, indeferiu a pretensão da empresa autora, argumentando que inexiste “prova inequívoca que leve à formação de um juízo de verossimilhança das alegações contidas na inicial” (AUTOS Nº 0008348-76.2014.4.01.3807, JFMG).

Noutro giro, existem as demandas judiciais protocoladas pelo citado agropecuarista que diz ser “coproprietário de duas glebas de terra vizinhas e contíguas”, denominadas Fazenda Santa Clara e Fazenda Triunfo, nas quais são desenvolvidas as culturas da banana e pimenta do reino, bem como a atividade da pecuária (AUTOS Nº 5008226-04.2017.8.13.0024, JFMG).

Em petição inicial do processo em referência, esse agropecuarista esboçou as dimensões materiais e logísticas de seu empreendimento por meio da menção ao que considerou como uma atividade de elevado potencial empregatício, tendo em vista ser “o autor o maior empregador individual do município de Pedras de Maria da Cruz, contando com aproximadamente 100 empregados diretos, sem contar os trabalhadores eventuais, prestadores de serviço e empreiteiros” (AUTOS Nº 5008226-04.2017.8.13.0024, JFMG).

Conforme narrou o autor, foi necessária a utilização de um “moderno sistema de irrigação artificial, visto que a região do semiárido mineiro [“reconhecidamente seca, dotada de poucas e irregulares chuvas”] é inviável à produtividade mercadologicamente desejada, caso não se viabilize a captação em grande volume de água do rio São Francisco (AUTOS Nº 5008226-04.2017.8.13.0024, JFMG).

O requerente afirmou que até 2016 inexistia qualquer conflito em relação à posse por ele exercida, o que se alterou, no entanto, em 17 de junho de 2016, quando “[...] pessoas não identificadas, mas pertencentes a movimentos sociais [...] invadiram as Fazendas Triunfo e Santa Clara” (AUTOS Nº 5008226-04.2017.8.13.0024, JFMG).

Em 06 de março de 2017, o Juízo da Vara Agrária de Minas Gerais deferiu o pedido liminar protocolado pelo autor, para determinar que a coletividade representada pela Associação dos Vazanteiros e Pescadores Artesanais da Ilha da Capivara e Caraíbas, “se abstenha de praticar quaisquer atos que importem em turbação, esbulho ou ameaça à posse que o autor exerce sobre os imóveis objeto da presente demanda, quais sejam Fazenda Santa Clara e Fazenda Triunfo” (AUTOS Nº 5008226-04.2017.8.13.0024, JFMG).

Essa ordem liminar foi recorrida pelo Ministério Público do Estado de Minas Gerais (MPMG). Em análise ao recurso interposto pelo MPMG, a 11ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais no mês de maio de 2017 suspendeu a eficácia da liminar em questão (AUTOS Nº 5008226-04.2017.8.13.0024, JFMG).

No ano de 2018, o agropecuarista mencionado ajuizou outra ação, pela qual requer a declaração de nulidade do procedimento administrativo de concessão do TAUS nº 001/2013, tendo em vista que restringiu o acesso ao local “[...] onde se encontra a captação da água que sustenta todo o empreendimento agrícola” (AUTOS Nº 1006628-75.2018.4.01.3400, JFMG).

Em argumentação produzida de modo a indicar contradições e incongruências alegadamente contidas nos documentos e relatórios que embasaram a concessão do TAUS nº 001/2013 pela SPU/MG, o agropecuarista apontou ainda para “a degradação ambiental perpetrada pelos beneficiários do TAUS”, e para o risco de que a porção de terras em referência se torne uma “terra de ninguém”8 8 “Na realidade, as áreas indevidamente concedidas pela SPU (ágil na concessão do TAUS e inoperante na fiscalização), hoje são literalmente “terra de ninguém!” (AUTOS Nº 1006628-75.2018.4.01.3400, JFMG, p. 36, grifo nosso). , o que é considerado uma violação ao direito de propriedade (AUTOS Nº 1006628-75.2018.4.01.3400, JFMG).

Todos os processos judiciais abordados neste trabalho, até o fim da coleta de dados, encontravam-se ativos, em fase de instrução processual e pendentes de pronunciamento de mérito definitivo. Os sentidos dessas ações judiciais permanecem, portanto, abertos e em disputa.

2. Os argumentos do agronegócio9 9 Nas palavras de Pompeia (2018, p. 21), “o agronegócio representa o ‘outro’ dos ‘outros’ com quem a Antropologia se relaciona, dado que tem implicado efeitos notórios sobre as populações tradicionais”. O termo agribusiness foi referenciado pela primeira vez em 1955, pelos estadunidenses John Herbert Davis e Ray Allan Goldberg, “[...] tanto para nomear a crescente aproximação entre a agropecuária e segmentos a montante e a jusante dela quanto para agir sobre as relações entre eles”. Desde então, o termo foi reinterpretando amiúde, adotando diversos sentidos, conforme o contexto de adaptação. No Brasil, “a noção de agribusiness começou a ser mobilizada ainda nas décadas de 1950 e 1960, por meio de entidades do patronato rural”. “Entre as décadas de 1970 e 1980, os usos da concepção cresceram, ao mesmo tempo em que os sentidos atribuídos a ela se diversificavam”. Contudo, o sentido que “ganhou notoriedade pública no Brasil” foi justamente aquele cunhado por Davis e Goldberg (POMPEIA, 2018, p. 43).

A associação tecida entre as mobilizações e as articulações encampadas pela Comunidade de Caraíbas a partir de 2013, de um lado, e os processos judiciais sobre os quais debruçamo-nos neste trabalho, do outro, evidenciou-nos que tais ações judiciais representam não apenas um mero exercício do direito de recorrer ao sistema de justiça em defesa dos seus interesses. Para além disso, quando observados a partir do ponto de vista daqueles que vivenciam o conflito, esses pleitos judiciais traduzem um modus operandi específico, oriundo do próprio processo de encurralamento praticado em face dos habitantes da Comunidade de Caraíbas ao longo das últimas décadas.

Desse modo, na medida em que os projetos de retomada territorial comunitários e o trâmite dos procedimentos administrativos de demarcação e de regularização fundiária do patrimônio da União instaurados pela SPU avançaram, o agronegócio conflituante recorreu ao Poder Judiciário, ajuizando, em reação, uma demanda judicial correspondente.

Esses movimentos de resposta são responsáveis por inserir as interpretações e as pretensões do agronegócio no âmbito do sistema de justiça, resultando invariavelmente na emergência de potenciais instrumentos de legitimação e de manutenção das relações de poder que atravessam o contexto. Isso porque esses interesses, após serem traduzidos pela linguagem da demanda judicial, ingressam em espaços nos quais, de maneira geral, os conteúdos que carregam se conectam à natureza liberal, conservadora e autoritária do campo jurídico brasileiro (CASTRO, 2018CASTRO, Felipe Araújo. Genealogia histórica do campo jurídico brasileiro: liberalismo-conservador, autoritarismo e reprodução aristocrática. (Tese de Doutorado em Direito). Faculdade de Direito, Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2018.).

No âmbito deste trabalho, ao selecionarmos e interpretarmos os conteúdos de cuja autoria é dos fazendeiros, percebemos que determinados argumentos por eles utilizados podem ser correlacionados, considerando critérios de congruência ou contingência temática, de maneira a constituírem ideias-síntese da argumentação acionada judicialmente pelos conflituantes.

Essa síntese argumentativa é o resultado, portanto, da aglutinação dos conteúdos de argumentos correlatos produzidos por esses sujeitos, conforme a ocorrência do tema ao longo do trâmite processual. Podem ser percebidos enquanto argumentos preponderantes desses pleitos judiciais, eis que sintetizam uma série de conteúdos, mas não excluem a existência de outras ideias residuais.

Embora a síntese argumentativa identificada nesta seção se relacione a retóricas mais amplas10 10 Nesse caso, fazemos referência à “retórica da intransigência” e à “retórica de estigmatização”, que são duas abordagens produzidas a partir da integração dos pensamentos de autores como (ACSELRAD, 2018), (HIRSHMAN, 1992) e (ANAYA et al, 2020, p. 210). A retórica da intransigência é percebida como o “[...] combate aos esforços de democratização das sociedades” (ACSELRAD, 2018). A retórica da estigmatização, por sua vez, “entrelaça uma cadeia de significantes estigmatizantes como “quilombolização, invasores, posseiros, caboclos, pseudogrupos”, entre outros, produzindo efeitos simbólicos “que autorizam, no campo das disputas materiais, [a ocorrência de] ações de violência contra grupos étnicos e camponeses perpetradas por ruralistas e agentes do estado” (ANAYA et al, 2020, p. 210). , utilizadas enquanto instrumentos de convencimento da opinião pública acerca de determinadas disputas, compreendemos que elas não se confundem, haja vista que os argumentos em questão se originam e se alimentam de tais retóricas. Dentro do campo judicial, por outro lado, assumem as feições da hermenêutica jurídica.

A seguir apresentamos as ideias-síntese identificadas, sendo elas: a legalidade e a necessidade dos empreendimentos; a insubsistência dos procedimentos administrativos; a ameaça dos movimentos sociais; e, por fim, a “quilombolização” no Norte de Minas Gerais. Tais interpretações estão acompanhadas dos conteúdos que as compõem.

Conforme poderá ser percebido a seguir, a aglutinação de argumentos correlatos e a elaboração de ideias-síntese distintas não obscureceram o fato de que tal síntese é permeada por argumentos que se entrecruzam e se relacionam, sendo acionados em outros contextos argumentativos que não somente naqueles nos quais os capturamos.

Tabela 1
Síntese argumentativa e conteúdos correspondentes relacionados aos autores das ações judiciais estudadas

Em primeiro lugar, a defesa dos interesses das fazendas conflituantes no âmbito desses processos judiciais ocorre por meio de uma argumentação que se interessa em demonstrar o enquadramento desses empreendimentos do agronegócio em disposições legais relacionadas à transmissão de imóveis11 11 Art. 1.227 do Código Civil de 2002. “Os direitos reais sobre imóveis constituídos, ou transmitidos por atos entre vivos, só se adquirem com o registro no Cartório de Registro de Imóveis dos referidos títulos (artigos 1.245 a 1.247), salvo os casos expressos neste Código”. e à função social da propriedade privada rural12 12 Art. 5º da CRFB/1988: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] XXII - é garantido o direito de propriedade; XXIII - a propriedade atenderá a sua função social”. .

Esse enquadramento pode ser compreendido como uma expressão da legalidade para o agronegócio, posto que interpreta determinados marcos jurídicos a partir de uma hermenêutica própria [e histórica], caracterizada pelas perspectivas do direito de propriedade privada e da natureza como mercadoria, além de uma série de incompreensões acerca da realidade das comunidades quilombolas (CASTILHO; CASTILHO, 2022CASTILHO, Ela Wiecko Volkmer; CASTILHO, Manoel Lauro Volkmer. A Nulidade do Registro do Imóvel Caípe. 2022. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/rdp/a/pthYWGNSXBSt8LrJsN43nfN/abstract/?lang=pt>. Acesso em: 06 set. 2022.
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). Nesse sentido, a legalidade para o agronegócio se contrapõe à legalidade para as comunidades quilombolas, que é marcada por uma interpretação do arcabouço legal que não desconsidera uma trajetória de expropriações e violências perpetradas em detrimento de pessoas negras no Brasil.

O conteúdo desses argumentos recorre à ferramenta da legitimação oriunda do sistema cartorial, apontando para a regularidade do título de aquisição e igualmente da cadeia sucessória dos imóveis. No caso dessa última, a defesa da sua regularidade funciona ainda enquanto uma forma pela qual se torna possível afastar a referência à apropriação privada de patrimônio público da União.

A certidão de cadeia sucessória indica que o primeiro registro da Fazenda Maria da Cruz [Fazenda que se desmembrou e deu origem às Fazendas Capivara, Triunfo e Santa Clara, por exemplo] ocorreu em 15 de agosto de 1924, quando Francisca de Almeida Santos Soares adquiriu o imóvel a título de sucessão hereditária do espólio de José R. de Almeida Santos (AUTOS Nº 1006628-75.2018.4.01.3400, JFMG).

Em 23 de março de 1945, a referida proprietária transferiu o imóvel a Pedro Mineiro de Souza, mediante interveniência da Estrada de Ferro Central do Brasil, nos termos de escritura pública de compra e venda lavrada pelo Cartório do 6º Ofício do Rio de Janeiro/RJ. Posteriormente, a partir de 31 de outubro de 1977, a Fazenda em questão começou a ser subdividida, de maneira que em 22 de maio de 1981, foi registrada, por exemplo, a subdivisão que formou a Fazenda Triunfo, adquirida em 18 de maio de 1998 por Hélio Wanderley Alcântara, Maria José Rocha Sousa e Rodolpho Velloso Rebello (AUTOS Nº 1006628-75.2018.4.01.3400, JFMG).

A narração dessa cadeia sucessória, apesar de constituir um dos pontos centrais dentro da argumentação acerca da legalidade desses empreendimentos, é capaz de evidenciar, por outro lado, a existência de sobreposições e de aparentes incongruências legais, sobretudo quando associamos as marcações temporais supramencionadas ao histórico da ocupação tradicional da Comunidade de Caraíbas.

O primeiro apontamento desse imóvel, datado de 1924, é posterior às evidências históricas de ocupação da Comunidade de Caraíbas, as quais registram ainda em 1860 a existência de povoações habitando a beira-rio, que já acionavam os topônimos que orientam o modo de vida dos moradores dessa Comunidade13 13 É o caso do Atlas e Relatório Concernente a Exploração do rio São Francisco (1860). (NIISA, 2018a).

Além disso, em uma área de ocupação de um dos troncos familiares fundadores da Comunidade de Caraíbas, o tronco dos descendentes de Pedro Nicolau e Santa (conhecida como Velha Preta), existe o Cemitério dos Nicolau, no qual “[...] há inscrição na sepultura de um ancestral que informam nascida e crescida na Comunidade, cujo data de nascimento remete ao ano de 1909” (NIISA, 2018a, p. 69).

A averbação da aquisição primária do imóvel em questão, registrada enquanto resultado de sucessão hereditária, não informa as concessões que inscreveram tal imóvel no âmbito de um patrimônio privado [espólio de José R. de Almeida Santos]. Ao longo do desenvolvimento desta pesquisa, contudo, não tivemos acesso ao formal de partilha respectivo, datado de 15 de agosto de 1924, documento que pode preencher ao menos parcialmente essa lacuna. O mesmo ocorreu em relação à escritura pública de compra e venda lavrada pelo Cartório do 6º Ofício do Rio de Janeiro, em 23 de março de 1945, documento que registra os termos da intervenção da União Federal, por meio da Estrada de Ferro Central do Brasil, em uma das transferências do referido imóvel.

O acesso e a análise dos referidos documentos podem responder a alguns questionamentos que emergem acerca da legitimidade dos títulos de propriedade registrados em nome dos autores das ações judiciais estudadas. Esses questionamentos, no entanto, persistirão para além deste trabalho, e se relacionam à aquisição primária do imóvel em questão e aos termos integrais da partilha datada do ano de 1924, relativa aos bens deixados por José R. de Almeida Santos. Ademais, a averiguação da legitimidade desses títulos exige igualmente uma análise da adequação do ato de intervenção da União Federal no contrato de compra e venda avençado em 1945 entre Francisca de Almeida Santos Soares e Pedro Mineiro, em relação aos ditames da legislação vigente à época.

Nesse sentido, apesar da definição lacunosa expressa na Constituição de 1891 acerca dos bens de domínio da União e da ausência de menção aos terrenos marginais do rio São Francisco no texto do Decreto-lei nº 22.250/1932, o Código das Águas, legislação em vigor [mesmo que parcialmente] desde 1934, dispõe que os terrenos reservados nas margens das correntes públicas de uso comum [ou terrenos marginais] são bens públicos dominicais, “se não estiverem destinados ao uso comum, ou por algum título legítimo não pertencem ao domínio particular”.

No caso da cadeia dominial em análise, entretanto, entendemos ser impossível afirmar de antemão que as suas origens e a intervenção da União Federal em 1945 são plenamente legítimas, de maneira a justificar a existência de domínio particular sobre terrenos que, desde pelo menos o ano de 1934, já eram considerados integrantes do patrimônio público. Isso só pode ocorrer por meio de uma análise aprofundada dos documentos supramencionados.

De todo modo, resgatamos aqui a compreensão de que mesmo a arguição e demonstração em diferentes instâncias da nulidade do registro de imóveis circunscritos em territórios em disputa não garantem invariavelmente o reconhecimento da improcedência de demandas judiciais contrárias à ocupação das comunidades locais. É o caso, por exemplo, do conflito entre os povos Xucuru e fazendeiros no Pernambuco, que chegou até a Corte Interamericana de Direitos Humanos em 2018, após o “[...] judiciário brasileiro, em todas as instâncias, considerar que os indígenas perderam a posse da Fazenda Caípe antes da Constituição de 1934”, o que tornaria legítima a existência de domínio particular sobre essa terra (CASTILHO; CASTILHO, 2022CASTILHO, Ela Wiecko Volkmer; CASTILHO, Manoel Lauro Volkmer. A Nulidade do Registro do Imóvel Caípe. 2022. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/rdp/a/pthYWGNSXBSt8LrJsN43nfN/abstract/?lang=pt>. Acesso em: 06 set. 2022.
https://www.scielo.br/j/rdp/a/pthYWGNSXB...
, p. 499).

No entanto, consoante demonstrado por Castilho e Castilho (2008, p. 501), “[..] os títulos apresentados [pelos mencionados fazendeiros], examinados à luz da legislação vigente à época, são fortemente questionáveis e indicam a apropriação mediante fraude de terras indígenas”. A Corte Interamericana de Direitos Humanos, em sentido similar, determinou no ano de 2018 que o Estado brasileiro providenciasse a compra ou a expropriação das terras sob domínio particular, reintegrando total ou parcialmente o território indígena Xucuru, caso possível.

De acordo com os mencionados autores, a atuação do Poder Judiciário brasileiro nesse caso evidenciou uma “[...] disseminada incompreensão judicial decorrente dos sucessivos preconceitos hermenêuticos e legislativos de origem histórica quanto à realidade indígena, de resto semelhante a que se revela em face dos remanescentes de quilombos, ambas derivadas de evidente leitura constitucional desligada dos pressupostos fundamentais da República” (CASTILHO; CASTILHO, 2022CASTILHO, Ela Wiecko Volkmer; CASTILHO, Manoel Lauro Volkmer. A Nulidade do Registro do Imóvel Caípe. 2022. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/rdp/a/pthYWGNSXBSt8LrJsN43nfN/abstract/?lang=pt>. Acesso em: 06 set. 2022.
https://www.scielo.br/j/rdp/a/pthYWGNSXB...
, p. 520).

Outro aspecto contido no conteúdo que se relaciona à legalidade desses empreendimentos é a afirmação de cumprimento dos ditames da função social da propriedade privada. Essa argumentação exemplifica a constatação de que “a função social da propriedade é função socialmente determinada” (MOREIRA, 2018MOREIRA, Fernanda Accioly. Terras de exclusão, portos de resistência: um estudo sobre a função social das terras da União. (Tese de Doutorado em Arquitetura). Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2018., p. 76), ao passo que pode ser acionada em diferentes contextos de disputa de acordo com as relações de poder e os interesses neles inseridos.

Por tais motivos, a defesa em Juízo do atendimento da função social da propriedade privada por fazendeiros e empresários rurais em conflitos como o vivenciado pelos habitantes da Comunidade de Caraíbas é indício, muitas vezes, de uma interpretação superficial desse conceito, eis que, dentre outras questões, desconsidera o uso predatório e exclusivo da natureza e a financeirização da terra, intentados por esses antagonistas.

O conteúdo que interpreta a legalidade dos empreendimentos também se expressa em associação à demonstração de sua inserção perante o desenvolvimento econômico municipal, evidenciando a reprodução de uma lógica específica de justificação do avanço do agronegócio em virtude da alegada pobreza e baixa incidência de investimentos vivenciados historicamente no Norte de Minas Gerais.

No entanto, essa argumentação, que compõe o leque de ferramentas discursivas acionadas pelo afã desenvolvimentista, é comumente contrariada por pesquisas que demonstram, por exemplo, as dimensões “antagônica e contraditória da territorialização do campesinato e do agronegócio no Norte de Minas Gerais”. A consolidação do modelo agrário-agrícola nacional, "[...] ancorado no latifúndio, nas commodities, nas máquinas, nos agrotóxicos e em perversas relações de trabalho”, intensificada pela modernização no campo, “[...] deixou evidente a existência de uma conflitualidade envolvendo camponeses e agronegócio de forma contínua no Brasil” (FERREIRA et al, 2017FERREIRA, Gustavo Henrique Cepolini; SILVA, Rosilene Gonçalves; SILVA, Franciele Alves. A territorialização camponesa e do agronegócio no Norte de Minas: algumas leituras preliminares. 2017. Disponível em: <https://publicacoes.agb.org.br/index.php/boletim-paulista/article/view/1009>. Acesso em: 17 jun. 2022.
https://publicacoes.agb.org.br/index.php...
, p. 23).

Por conseguinte, a inserção da ideia de necessidade dos empreendimentos tem mais a dizer sobre as relações de capital e poder que entrecruzam o contexto em questão, do que necessariamente sobre a configuração de uma relação minimamente equilibrada entre a elite fundiária e os povos do campo.

A segunda ideia-síntese se refere aos argumentos correlatos que defendem a insubsistência dos procedimentos administrativos de responsabilidade da SPU que ensejaram a demarcação das terras da União e a concessão do TAUS à Comunidade de Caraíbas no ano de 2013. Esses argumentos se respaldam em inversões das características e dos eventos cronológicos dos conflitos, de maneira que a União passa a ser responsabilizada pelas “invasões” executadas em face das propriedades dos fazendeiros conflituantes, ao passo que supostamente concedeu e legitimou a ocupação de terceiros que, consoante essa argumentação, não exerciam qualquer tipo de posse anteriormente.

A contínua menção à ausência de ocupação dos habitantes da Comunidade de Caraíbas em relação às margens do rio São Francisco parece se apoiar sobre os efeitos do próprio processo de encurralamento vivenciado por essa Comunidade, sobretudo a partir de 1970, sem necessariamente reconhecê-lo como tal. O conteúdo em questão intercala referências sobre o fato de que, nas últimas décadas do século anterior, a ocupação dos habitantes da Comunidade de Caraíbas se encontrava, em grande parte, contida [ou encurralada] nas Ilhas da Capivara, do Balaieiro e da Coruja, mas omite o processo [iniciado pelos fazendeiros antecessores] que forçou esse grupo a tanto e possibilitou a expansão do agronegócio sobre as margens do rio São Francisco.

Nos termos dessa ideia-síntese, a União teria sido motivada por interesses escusos, ao executar a demarcação de áreas de sua dominialidade nas margens do rio São Francisco e promover a regularização fundiária de ocupações tradicionais. Por conseguinte, a argumentação em questão é construída de modo a indicar supostos desvios de finalidade e a ausência de interesse público no âmbito das ações da SPU.

O conteúdo analisado neste trabalho permite-nos compreender algumas formas pelas quais determinados conceitos, como legalidade, interesse e bem público, são mobilizados por interpretações distintas e muitas vezes contraditórias, produzindo efeitos que podem corresponder ao intento do emissor, e não necessariamente a uma compreensão comum sobre o tema. No caso da argumentação dos fazendeiros conflituantes, a insubsistência do procedimento administrativo responsável pela concessão do TAUS à Comunidade de Caraíbas é percebida como consequência de ações que foram pautadas em uma interpretação do conceito de interesse público que não corresponde àquela traduzida no projeto de sociedade defendido por tais sujeitos.

É o que percebemos através do esboço, elaborado pela argumentação dos conflituantes, da contraposição entre o projeto de acesso privado e uso predatório do rio São Francisco e de suas margens, compreendido enquanto “fundamental e estratégico” e associado tacitamente ao conceito de interesse público, e as reivindicações da Comunidade de Caraíbas, vistas enquanto oriundas de interesses “ilegítimos” e “sem credibilidade”. É assim que se torna possível vincular o TAUS em questão às imputações de “fajuto”, “artificioso” e constituintes de um tipo de "aberração jurídica, política e social em curso no país” (AUTOS Nº 0007190-44.2018.4.01.3807, JFMG, p. 626).

O mesmo ocorre em face da mobilização do conceito de bem público por parte dos alegados proprietários. Nesse caso, os autores reconhecem a natureza pública de uso comum intrínseca à categoria jurídica dos terrenos marginais dos rios federais, afirmando que esses bens devem “[...] garantir a todos o acesso às vias navegáveis”. No entanto, os conflituantes utilizam esse reconhecimento não como um argumento em favor da democratização do acesso à natureza, haja vista que, na prática, são eles os próprios sujeitos responsáveis por tornarem particulares as margens do rio São Francisco e impossibilitarem o uso e o manejo por parte daqueles que historicamente dependem delas. O intuito, por outro lado, é o de questionar a legitimação da posse da Comunidade de Caraíbas, arguindo que tal concessão inviabiliza “o uso comum de toda a população” (AUTOS Nº 0007190-44.2018.4.01.3807, JFMG, p. 1057).

Ademais, a tese de insubsistência dos procedimentos administrativos é composta igualmente por uma análise jurídica dos documentos, laudos e notas técnicas que compõem esses procedimentos, bem como das normativas relacionadas à previsão e aos requisitos de concessão do TAUS. Contudo, longe de apontarem consistentemente quaisquer irregularidades, os argumentos em leitura revelam uma intenção em fragilizar os fundamentos e os critérios dessa política pública específica, se apoiando em sua existência embrionária em Minas Gerais para caracterizá-la enquanto insubsistente e inapta a promover mudanças sociais em contexto regional.

Uma evidência do que foi abordado acima é a menção à suposta ausência de prévia notificação ou de participação dos fazendeiros conflituantes no âmbito do processo administrativo em debate, impossibilitando o exercício do direito ao contraditório e à ampla defesa, assegurados constitucionalmente.

Em contrapartida, esse alegado vício procedimental se dispõe em sentido contrário aos relatos dos habitantes da Comunidade de Caraíbas e aos fatos registrados pelo NIISA (2018b, p. 14), que demonstram a recalcitrância dos fazendeiros conflituantes em receberem as notificações da SPU ao longo do procedimento de concessão do TAUS. Além disso, conforme nota técnica produzida pela SPU, alguns desses fazendeiros obstruíram os trabalhos de campo do referido órgão, trabalhos esses que se relacionavam à demarcação de terras da União apontada justamente [e paradoxalmente] por esses sujeitos enquanto incompleta e insuficiente (NIISA, 2018b, p. 14)14 14 “Cronologia dos fatos relacionados ao processo de criminalização da Comunidade de Caraíbas [...] 2014/11/12: SPU informa em Nota Técnica nº 07/2014-SEGES/SPU-MG que os trabalhos de demarcação das terras da União foram obstruídos pelos proprietários das Fazendas Boa Vista, Pioneiras e Pedras de São João Agropecuária S.A. e solicitam uma ação judicial para garantir incursão nas terras da União ocupadas pelas fazendas. A partir de então o trabalho dos técnicos de campo da SPU é realizado com acompanhamento da Polícia Federal” (NIISA, 2018b, p. 14). .

A aglutinação de argumentos correlatos apresentada na tabela anterior ainda permitiu-nos perceber um grupo de alegações, produzidas pelos autores das ações judiciais aqui analisadas, relacionadas à suposta ameaça oriunda da atuação do que é considerado como movimentos sociais. Um dos efeitos argumentativos intentados por essa ideia é a elaboração de um adversário ideal, que incorpora tanto os atos da Comunidade, como aqueles provenientes de outras ocupações não quilombolas inseridas nos conflitos15 15 Registramos aqui principalmente as ocupações não quilombolas inseridas no território tradicional exercidas pelas fazendas. No entanto, existem as ocupações não quilombolas oriundas da LCP e de terceiros desconhecidos. Tais ocupações provocam disputas internas pautadas por divergências entre lógicas distintas de apropriação, significação, uso e manejo da natureza desempenhadas por esses grupos e pessoas. , principalmente aquelas exercidas pela Liga dos Camponeses Pobres (LCP)16 16 De acordo com Batella (2021, p. 13) “a LCP [ou Liga] é uma organização política atuante no Norte de Minas Gerais desde meados da década de 1990”. A Liga desenvolve as suas práticas a partir de uma noção de luta pelo direito à terra para “[...] camponeses pobres sem-terra ou com pouca terra”. e por terceiros desconhecidos. Em favor dessa representação do inimigo supostamente advogam “retrógradas e transgressoras pastorais da terra e grandes organizações políticas de ‘ideologia bolivariana’” (AUTOS Nº 1006628-75.2018.4.01.3400, JFMG, p. 26).

Esse adversário ideal, que é evidentemente abstrato, desconexo da prática e fortemente vinculado a estigmas do senso comum sobre esse tema, é percebido pelos autores dos processos judiciais enquanto representante de “graves riscos” à manutenção dos seus empreendimentos, eis que o seu modo de agir é, por suposição, causador da “[...] destruição de pastagens, da falta de ligação no sistema de água para abastecimento do rebanho, e da ausência de fornecimento de suplemento alimentício para o gado” (AUTOS Nº 0053390-09.2013.4.01.3800, JFMG, p. 11).

Um dos registros contidos na Cronologia dos fatos relacionados ao processo de criminalização da Comunidade de Caraíbas, produzida pelo (NIISA, 2018b, p. 14), permitem-nos elucidar as contradições relacionadas aos argumentos sobre a ameaça dos movimentos sociais. Referimo-nos ao episódio ocorrido no dia 17 de maio de 2017, no qual um Oficial de Justiça, policiais militares, funcionários da Fazenda Triunfo e o filho de um dos seus proprietários, munidos de uma ordem judicial abordada na seção anterior, prenderam um morador e, enquanto mantido dentro da viatura, "[...] utilizaram um trator para derrubar imediatamente a sua casa e de sua família” (NIISA, 2018b, p. 17).

A ordem judicial em questão foi motivada pela espécie de argumentação em comento, haja vista que não mencionou “nominalmente o morador”, “[...] mas foi direcionada de forma genérica para integrantes de movimentos sociais”. Na prática, a ausência de indicação de um morador em específico, sobre o qual recai a imputação dos fazendeiros, e a sobreposição violenta exercida pela ordem privada regional permitiram o cumprimento da determinação judicial a partir do crivo extralegal dos seus próprios requerentes. As lideranças da Comunidade de Caraíbas relatam que o fazendeiro em questão “[...] faz uso deste artifício, como forma de imputar a eles responsabilidades por atos não realizados pelos seus membros”, sobretudo relacionados ao uso e manejo da natureza (NIISA, 2018b, p. 17).

Por fim, a última síntese apresentada na tabela anterior se relaciona ao que vem sendo denominado de “quilombolização no Norte de Minas Gerais” por representantes da elite agrária regional em alguns de seus discursos e eventos públicos. Em 29 de junho de 2018, por exemplo, um jornal de circulação regional, em uma matéria intitulada “Expomontes começa com críticas a ataque quilombola”, noticiou a realização do evento de abertura da feira agropecuária em questão, momento no qual José Luiz Veloso Maia, então Presidente da Sociedade Rural de Montes Claros, abordaria as suas “[...] críticas à quilombolização no Norte de Minas Gerais”. Na visão do mencionado representante, o fenômeno da “quilombolização no Norte de Minas Gerais” é fruto da “[...] criação de áreas remanescentes de quilombos, para promover a desapropriação de áreas produtivas, visando assentar esse segmento social” (NIISA, 2018b, p. 42).

De acordo com o NIISA (2018b, p. 1), essa e outras matérias jornalísticas, “divulgadas em âmbito local e regional”, podem ser caracterizadas pela existência de acusações em desfavor de “movimentos sociais e instituições científicas”, produzidas, de forma geral, pelo setor ruralista em referência. Essas acusações se referem ao suposto estímulo, empreendido por instituições de ensino superior “[...] à autodeclaração étnica de grupos camponeses e à invasão de terras particulares” (NIISA, 2018b, p. 1).

De forma similar ao explicitado pelo então Presidente da Sociedade Rural de Montes Claros, a argumentação analisada neste trabalho igualmente se apoia em uma negação da identidade “cultural e associativa” dos membros de comunidades quilombolas e em imputações acerca da emergência identitária desses sujeitos que a consideram um artifício para a promoção da ocupação de terras produtivas e o acesso a políticas públicas (AUTOS Nº 0007190-44.2018.4.01.3807, JFMG, p. 634).

Observamos que a própria diversidade identitária, alicerçada ao longo da história entre os habitantes da Comunidade de Caraíbas, é utilizada como forma de se levantarem suspeitas acerca da existência de um modo de vida tradicional. A imagem que esses fazendeiros intentam esboçar, portanto, é a de uma fabricação artificial e estimulada de signos arbitrários. Em função disso, a argumentação em análise defende a suposta incompatibilidade das identidades de pescadores, vazanteiros e quilombolas, e que os sujeitos que as reivindicam são orientados por interesses escusos e situacionais ou “a bola da vez” (AUTOS Nº 1006628-75.2018.4.01.3400, JFMG, p. 26).

O mesmo ocorre em face do questionamento ao critério de autoatribuição17 17 Nos termos do art. 2º do Decreto n.º 4.887/2003, “consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de autoatribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida. §1º Para os fins deste Decreto, a caracterização dos remanescentes das comunidades dos quilombos será atestada mediante autodefinição da própria comunidade”. que subjaz os procedimentos de identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades de quilombos, definidos no âmbito do Decreto n.º 4.887/2003. Nas palavras de um desses conflituantes, “basta uma autodeclaração, ou seja, levantar o dedo” (AUTOS Nº 0007190-44.2018.4.01.3807, JFMG, p. 626).

De forma geral, o referido Decreto foi alvo de oposições em outras problemáticas jurídicas mais amplas. É o caso da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 3.239/Distrito Federal, ajuizada em 25 de junho de 2004 pelo então Partido da Frente Liberal (PFL) em face do Decreto nº 4.887/2003. O Partido em questão argumentou em favor da “[...] inconstitucionalidade formal e material do direito de propriedade das terras formadoras dos quilombos no período imperial aos que, por autoatribuição, se declararem remanescentes das comunidades quilombolas” (BRASIL, 2018, p. 88).

Um dos argumentos elaborados pelos autores da ADI nº 3.239/DF, por sua vez, recai justamente sobre o critério de autoatribuição supramencionado, no sentido de considerá-lo um “[...] absoluto descompasso com o texto constitucional [...] que pode levar ao reconhecimento do direito a mais pessoas do que aquelas efetivamente beneficiadas pelo artigo 68 do ADCT” (BRASIL, 2018, p. 9).

Contudo, o Supremo Tribunal Federal, em 08 de fevereiro de 2018, julgou improcedentes os pedidos protocolados pelo PFL. Nos termos da relatora da ação, a Ministra do Rosa Weber, "[...] a consciência da própria identidade [conceito mencionado na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho] não é um conceito infenso à constatação, apreensão externa e à objetivação” (BRASIL, 2018, p. 125).

Consequentemente, nos termos do voto em questão, o critério de autodefinição não deve ser deslegitimado, eis que é evidenciado pelo “estado da arte da antropologia contemporânea”, mas sim dimensionado de modo que se afastem “[...] os temores como os referidos na petição inicial da ADI nº 3.239/DF, decorrentes de exegeses que lhe atribuem conotação de presunção absoluta de veracidade” (BRASIL, 2018, p. 126).

De modo similar, o Procurador Regional da República, Daniel Sarmento, em seu parecer intitulado Territórios Quilombolas e Constituição: a ADI 3.239 e a Constitucionalidade do Decreto nº 4.887/03 (2008), pondera que “a autodefinição é um dos critérios adotados pelo Decreto, mas não o único”, visto que existem outros critérios contidos no seu art. 2º. Não bastasse, “[...] não há como ignorar a visão que o próprio sujeito de direito tem de si, sob pena de se perpetrarem sérias arbitrariedades e violências, concretas ou simbólicas” (SARMENTO, 2008SARMENTO, Daniel. Territórios Quilombolas e Constituição: a ADI 3.239 e a Constitucionalidade do Decreto nº 4.887/03. 2008. Disponível em: <https://www.saude.rj.gov.br/comum/code/MostrarArquivo.php?C=NDU0Nw%2C%2C>. Acesso em: 07 mai. 2022.
https://www.saude.rj.gov.br/comum/code/M...
, p. 31).

A ideia-síntese da “quilombolização no Norte de Minas Gerais” ainda carrega em si a preconcepção de que reivindicações identitárias e territoriais como as reverberadas pela Comunidade de Caraíbas são supostamente construídas com o intuito de “suscitarem a existência de conflitos, dramatizarem a situação e buscarem simpatia e o sentimento de condolência” (AUTOS Nº 0007190-44.2018.4.01.3807, JFMG, p. 1041).

Ao negarem os processos passados e contemporâneos de violências perpetradas em desfavor de comunidades negras no Brasil, esses argumentos verbalizam a paradoxal transfiguração da vítima em agente “oportunista e violento”, dotado de “informação e de assessoramento”, que oportuna ter acesso à terra mediante a manipulação e a sensibilização sociopolíticas (AUTOS Nº 1006628-75.2018.4.01.3400, JFMG, p. 14).

3. Considerações finais

O contexto vivenciado pelos moradores da Comunidade de Caraíbas demonstra-nos que a aplicação de um instrumento de regularização fundiária relacionado a ocupações tradicionais em cenários de conflito, muitas vezes caracterizados pela sobreposição histórica da ordem privada em face da ordem pública, pode caminhar para a desconsideração não censurada dos atos e procedimentos de Estado.

É evidência do que foi abordado anteriormente o fato de que, desde a concessão do TAUS à Comunidade de Caraíbas em 2013, a SPU foi incapaz ou não teve o interesse de assegurar o acesso pleno às dimensões territoriais que foram concedidas com o intuito de possibilitar a manutenção do modo de vida e das dinâmicas socioambientais da Comunidade de Caraíbas. A razão disso, dentre outros motivos, reside no êxito das estratégias de sobreposição dos fazendeiros.

Uma dessas estratégias se relaciona à judicialização desse conflito. Em movimentos de resposta e de contraposição às ações de retomada territorial e de conscientização de direitos empreendidas pela Comunidade de Caraíbas, os alegados proprietários recorreram às instâncias judiciais, ajuizando os processos de reintegração de posse e de declaração de nulidade do TAUS abordados neste trabalho.

De maneira geral, os argumentos apresentados em Juízo por esses fazendeiros conflituantes podem ser representados pelas ideias da legalidade e da necessidade dos empreendimentos, da insubsistência dos procedimentos administrativos, da ameaça dos movimentos sociais e da “quilombolização” no Norte de Minas Gerais.

O exame desses argumentos demonstrou-nos a continência de seus conteúdos em relação a retóricas e jogos de linguagem mais amplos, constituídos de significantes e de preconcepções que viabilizam em termos práticos a manutenção das relações de poder e a adequação de condições macroeconômicas ao contexto agrário regional.

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  • BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI nº 3.239/DF. Relatora: Ministra Rosa Weber. 2018. Disponível em: <https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=749028916>. Acesso em: 07 mai. 2022.
    » https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=749028916
  • CASTILHO, Ela Wiecko Volkmer; CASTILHO, Manoel Lauro Volkmer. A Nulidade do Registro do Imóvel Caípe. 2022. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/rdp/a/pthYWGNSXBSt8LrJsN43nfN/abstract/?lang=pt>. Acesso em: 06 set. 2022.
    » https://www.scielo.br/j/rdp/a/pthYWGNSXBSt8LrJsN43nfN/abstract/?lang=pt
  • CASTRO, Felipe Araújo. Genealogia histórica do campo jurídico brasileiro: liberalismo-conservador, autoritarismo e reprodução aristocrática. (Tese de Doutorado em Direito). Faculdade de Direito, Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2018.
  • FERREIRA, Gustavo Henrique Cepolini; SILVA, Rosilene Gonçalves; SILVA, Franciele Alves. A territorialização camponesa e do agronegócio no Norte de Minas: algumas leituras preliminares. 2017. Disponível em: <https://publicacoes.agb.org.br/index.php/boletim-paulista/article/view/1009>. Acesso em: 17 jun. 2022.
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  • GOMES, Fernando Soares. Um jogo de cartas marcadas?: análise de conteúdos jurídicos a partir da Comunidade Quilombola Pesqueira Vazanteira de Caraíbas. (Dissertação de Mestrado em Desenvolvimento Social). Universidade Estadual de Montes Claros. Montes Claros, 2022.
  • HIRSHMAN, Albert. A retórica da intransigência: perversidade, futilidade, ameaça. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
  • MOREIRA, Fernanda Accioly. Terras de exclusão, portos de resistência: um estudo sobre a função social das terras da União. (Tese de Doutorado em Arquitetura). Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2018.
  • NIISA. Nota técnica sobre os conflitos ambientais territoriais envolvendo terras tradicionalmente ocupadas e áreas da União no médio rio São Francisco mineiro. Montes Claros, 2018b.
  • NIISA. Relatório Antropológico de Identificação Territorial da Comunidade Quilombola Pesqueira e Vazanteira de Caraíbas. Montes Claros, 2018a.
  • POMPEIA, Caio. Formação política do agronegócio. (Tese de Doutorado em Antropologia Social). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2018.
  • RESCHKE, Alexandra. Nossa Várzea: cidadania e sustentabilidade na Amazônia brasileira. 2005. Disponível em: <https://repositorio.enap.gov.br/bitstream/1/259/1/Nossa%20V%C3%A1rzea.pdf>. Acesso em: 30 jun. 2022.
    » https://repositorio.enap.gov.br/bitstream/1/259/1/Nossa%20V%C3%A1rzea.pdf
  • ROCHA, Letícia Aparecida. O poder da territorialidade: “O lugar da gente”, o território pesqueiro. (Dissertação de Mestrado em Desenvolvimento Social). Universidade Estadual de Montes Claros. Montes Claros, 2017.
  • SARMENTO, Daniel. Territórios Quilombolas e Constituição: a ADI 3.239 e a Constitucionalidade do Decreto nº 4.887/03. 2008. Disponível em: <https://www.saude.rj.gov.br/comum/code/MostrarArquivo.php?C=NDU0Nw%2C%2C>. Acesso em: 07 mai. 2022.
    » https://www.saude.rj.gov.br/comum/code/MostrarArquivo.php?C=NDU0Nw%2C%2C
  • SPU. Portaria nº 89/2010 de 15 de abril de 2010. Disponível em: <https://urbanismo.mppr.mp.br/arquivos/File/PORTARIA_SPU_89_2010_TAUS_comunidadestradicionais.pdf>. Acesso em: 07 mai. 2022.
    » https://urbanismo.mppr.mp.br/arquivos/File/PORTARIA_SPU_89_2010_TAUS_comunidadestradicionais.pdf
  • 1
    O presente trabalho é um fruto da Dissertação de Mestrado intitulada Um jogo de cartas marcadas?: análise de conteúdos jurídicos a partir da Comunidade Quilombola Pesqueira Vazanteira de Caraíbas, defendida em 2022, no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Social da Universidade Estadual de Montes Claros (PPGDS/UNIMONTES).
  • 2
    Art. 20 da CRFB/1988. “São bens da União: III - os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros países, ou se estendam a território estrangeiro ou dele provenham, bem como os terrenos marginais e as praias fluviais”.
  • 3
    Referimo-nos sobretudo ao trabalho intitulado A Função Socioambiental do Patrimônio da União na Amazônia (2016) do IPEA.
  • 4
    A região da Amazônia Legal corresponde à área de atuação da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM). Nos termos do art. 2º da Lei Complementar nº 124/2007, “a área de atuação da SUDAM abrange os Estados do Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Rondônia, Roraima, Tocantins, Pará e do Maranhão na sua porção a oeste do Meridiano 44º”.
  • 5
    Faculdade do Poder Público, criada pelo Decreto-Lei nº 271/1967. É considerado direito real resolúvel, cujos objetos podem ser “terrenos públicos ou particulares, concedidos de forma remunerada ou gratuita, por tempo certo ou indeterminado, para fins específicos de regularização fundiária de interesse social, urbanização, industrialização, edificação, cultivo da terra, aproveitamento sustentável das várzeas, preservação das comunidades tradicionais e seus meios de subsistência ou outras modalidades de interesse social em áreas urbanas”.
  • 6
    Utilizamos o conceito mobilizado por Acselrad (2004ACSELRAD, Henri. Conflitos Ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará/Fundação Heirinch Böll, 2004.), para o qual a noção de conflitos ambientais pode ser capturada por meio de “quatro dimensões constitutivas”, sendo elas: apropriação simbólica e apropriação material, durabilidade e interatividade espacial das práticas sociais”. Esses conflitos envolvem “grupos sociais com modos diferenciados de apropriação, uso e significação do território” (ROCHA, 2017ROCHA, Letícia Aparecida. O poder da territorialidade: “O lugar da gente”, o território pesqueiro. (Dissertação de Mestrado em Desenvolvimento Social). Universidade Estadual de Montes Claros. Montes Claros, 2017., p. 39).
  • 7
    Apesar do ponto de vista assumido no desenvolvimento deste trabalho corresponder à narração de fatos e à exposição de problemáticas abordadas por parte dos habitantes da Comunidade de Caraíbas e daqueles que lá estiveram com o intuito de produzirem determinadas pesquisas, existem outros sujeitos sociais e reivindicações envolvidos nesses mesmos conflitos. Alguns desses sujeitos litigam em demandas judiciais, como é o caso da Comunidade de Caraíbas, da Liga dos Camponeses Pobres (LCP) e dos alegados proprietários da Fazenda Capivara e das Fazendas Triunfo e Santa Clara. Outros, contudo, não necessariamente recorreram ao Poder Judiciário em defesa da posse exercida, hipótese essa perceptível em relação às Fazendas Belchior, Boa Vista e Pioneira [não abordadas neste artigo], mesmo que invariavelmente se sobreponham e impeçam o acesso ao território integral reivindicado pela Comunidade de Caraíbas.
  • 8
    “Na realidade, as áreas indevidamente concedidas pela SPU (ágil na concessão do TAUS e inoperante na fiscalização), hoje são literalmente “terra de ninguém!” (AUTOS Nº 1006628-75.2018.4.01.3400, JFMG, p. 36, grifo nosso).
  • 9
    Nas palavras de Pompeia (2018POMPEIA, Caio. Formação política do agronegócio. (Tese de Doutorado em Antropologia Social). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2018., p. 21), “o agronegócio representa o ‘outro’ dos ‘outros’ com quem a Antropologia se relaciona, dado que tem implicado efeitos notórios sobre as populações tradicionais”. O termo agribusiness foi referenciado pela primeira vez em 1955, pelos estadunidenses John Herbert Davis e Ray Allan Goldberg, “[...] tanto para nomear a crescente aproximação entre a agropecuária e segmentos a montante e a jusante dela quanto para agir sobre as relações entre eles”. Desde então, o termo foi reinterpretando amiúde, adotando diversos sentidos, conforme o contexto de adaptação. No Brasil, “a noção de agribusiness começou a ser mobilizada ainda nas décadas de 1950 e 1960, por meio de entidades do patronato rural”. “Entre as décadas de 1970 e 1980, os usos da concepção cresceram, ao mesmo tempo em que os sentidos atribuídos a ela se diversificavam”. Contudo, o sentido que “ganhou notoriedade pública no Brasil” foi justamente aquele cunhado por Davis e Goldberg (POMPEIA, 2018POMPEIA, Caio. Formação política do agronegócio. (Tese de Doutorado em Antropologia Social). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2018., p. 43).
  • 10
    Nesse caso, fazemos referência à “retórica da intransigência” e à “retórica de estigmatização”, que são duas abordagens produzidas a partir da integração dos pensamentos de autores como (ACSELRAD, 2018ACSELRAD, Henri. Pressão do agronegócio se junta a preconceito em novo antiambientalismo. Folha de São Paulo, dez. 2018. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2018/12/pressao-do-agronegocio-se-junta-a-preconceito-em-novo-antiambientalismo.shtml>. Acesso em: 31 ago. 2021.
    https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissi...
    ), (HIRSHMAN, 1992HIRSHMAN, Albert. A retórica da intransigência: perversidade, futilidade, ameaça. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.) e (ANAYA et al, 2020ANAYA, Felisa; OLIVEIRA, Cláudia; RIBEIRO, Luciana; ARAÚJO, Elisa; THÉ, Ana. Antiambientalismo racializado, apropriação privada de terras públicas e resistências no médio São Francisco, Minas Gerais, Brasil. 2020. Disponível em: <https://periodicos.uff.br/antropolitica/article/view/42130>. Acesso em: 07 mai. 2022.
    https://periodicos.uff.br/antropolitica/...
    , p. 210). A retórica da intransigência é percebida como o “[...] combate aos esforços de democratização das sociedades” (ACSELRAD, 2018). A retórica da estigmatização, por sua vez, “entrelaça uma cadeia de significantes estigmatizantes como “quilombolização, invasores, posseiros, caboclos, pseudogrupos”, entre outros, produzindo efeitos simbólicos “que autorizam, no campo das disputas materiais, [a ocorrência de] ações de violência contra grupos étnicos e camponeses perpetradas por ruralistas e agentes do estado” (ANAYA et al, 2020, p. 210).
  • 11
    Art. 1.227 do Código Civil de 2002. “Os direitos reais sobre imóveis constituídos, ou transmitidos por atos entre vivos, só se adquirem com o registro no Cartório de Registro de Imóveis dos referidos títulos (artigos 1.245 a 1.247), salvo os casos expressos neste Código”.
  • 12
    Art. 5º da CRFB/1988: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] XXII - é garantido o direito de propriedade; XXIII - a propriedade atenderá a sua função social”.
  • 13
    É o caso do Atlas e Relatório Concernente a Exploração do rio São Francisco (1860).
  • 14
    “Cronologia dos fatos relacionados ao processo de criminalização da Comunidade de Caraíbas [...] 2014/11/12: SPU informa em Nota Técnica nº 07/2014-SEGES/SPU-MG que os trabalhos de demarcação das terras da União foram obstruídos pelos proprietários das Fazendas Boa Vista, Pioneiras e Pedras de São João Agropecuária S.A. e solicitam uma ação judicial para garantir incursão nas terras da União ocupadas pelas fazendas. A partir de então o trabalho dos técnicos de campo da SPU é realizado com acompanhamento da Polícia Federal” (NIISA, 2018b, p. 14).
  • 15
    Registramos aqui principalmente as ocupações não quilombolas inseridas no território tradicional exercidas pelas fazendas. No entanto, existem as ocupações não quilombolas oriundas da LCP e de terceiros desconhecidos. Tais ocupações provocam disputas internas pautadas por divergências entre lógicas distintas de apropriação, significação, uso e manejo da natureza desempenhadas por esses grupos e pessoas.
  • 16
    De acordo com Batella (2021BATELLA, David Batista. A Liga dos Camponeses Pobres e a luta pela terra no Norte de Minas: 1995-2017. (Dissertação de Mestrado em História). Universidade Estadual de Montes Claros. Montes Claros, 2021., p. 13) “a LCP [ou Liga] é uma organização política atuante no Norte de Minas Gerais desde meados da década de 1990”. A Liga desenvolve as suas práticas a partir de uma noção de luta pelo direito à terra para “[...] camponeses pobres sem-terra ou com pouca terra”.
  • 17
    Nos termos do art. 2º do Decreto n.º 4.887/2003, “consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de autoatribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida. §1º Para os fins deste Decreto, a caracterização dos remanescentes das comunidades dos quilombos será atestada mediante autodefinição da própria comunidade”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2024

Histórico

  • Recebido
    17 Nov 2022
  • Aceito
    04 Ago 2023
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