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Práticas insolentes: Práticas sexuais desviantes e potência jurídico-política

Impertinent practices: Deviant sexual practices and legal-political force

Resumo

O presente artigo tem o objetivo inicial de identificar como práticas sexuais marginais podem mostrar o direito como um campo no qual a relação entre normalização/controle e busca por direitos não é contraditória. Para tanto, usamos de dois procedimentos. Um primeiro de análise conceitual e outro de uso de casos concretos como exemplos para a percepção da análise conceitual realizada. Na análise conceitual adotamos a compreensão de que normalização em Michel Foucault não é controle sobre sujeitos dados, mas a própria produção normativa da subjetividade. Formulamos que a busca por direitos pode ser compreendida como prática de resistência diante de critérios normativos de certas subjetividades, o que permitiria a ressignificação normativa. Entre normalização e luta por direitos, assim, haveria um circuito. No que se refere aos casos utilizados, a pretensão era a de mostrar que o ideal de completude no direito, quando falha, não trata de anomia em relação a determinadas sexualidades, mas da percepção que tais sexualidades são constituídas no exterior da normalidade normativamente desenhada. Diante dessa não previsibilidade, a busca por direitos, mais que provocar resposta, provoca também um deslocamento da normalidade sexual pressuposta pelas subjetividades normativas existentes para o direito. Assim, as práticas sexuais fabricadas como marginais, encontram nos próprios termos dessa construção normativa a potência de sua resistência e redesenho, tendo como espaço importante de resistência e ressignificação o direito.

Palavra-chave:
Práticas sexuais desviantes; Normalização; Luta por direitos

Abstract

This article has the initial objective of identifying how marginal sexual practices can provide the perception of law as a field in which the relation between normalization/control and the politics of rights is not contradictory. To do so, we use two procedures. The first is a conceptual analysis and the second makes use of concrete cases as examples for the understanding of the conceptual analysis. In the conceptual analysis we adopt the point of view that normalization in Michel Foucault is not control over given subjects, but the normative production of subjectivity itself. We formulate that the politics of rights can be understood as a practice of resistance against normative criteria of certain subjectivities, which would allow the normative re-signification. Between normalization and politics of rights, there is a circuit. With regard to the cases used, the pretension was to show that the ideal of completeness in law, when it fails, does not deal with anomie in relation to certain sexualities, but the perception that such sexualities are constituted outside normatively designed normality. Faced with this nonpredictability, the search for rights goes beyond that provoking a response, it also provokes a displacement of sexual normality presupposed by the normative subjectivities existent for the law. Thus, the sexual practices fabricated as marginal, find in the very terms of this normative construction the power of their resistance and to redesign normativity, having the law as an important field of resistance and resignification.

Keywords:
Deviant sexual practices; Normalization; Politics of rights

1 Introdução: preocupações incontornáveis.

Existe abundante bibliografia que trata o Direito como instrumento político de normalização dos corpos e da sexualidade.1 1 Vide FOUCAULT, Michel. Sexualidade e poder. In: Ditos e escritos V: Ética, sexualidade e política. 2a ed. Rio de Janeiro: Gen, 2006. Assim como a literatura médica, a regulamentação dos prazeres mediante estruturas jurídicas, é pensada como vetor de atuação do dispositivo da sexualidade2 2 A noção de dispositivo é famosamente apresentada nos seguintes termos: “um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode tecer entre estes elementos” (FOUCAULT, 2000, P. 244). O dispositivo remete, assim, às complexas relações de variados elementos e práticas que veiculam atuações de poder no seu papel de fabricar e gerir objetos, conceitos, sujeitos e partes do real. O dispositivo da sexualidade, em particular, trata dos contornos da sexualidade tornados possíveis e sua administração (por saberes/práticas médicos e jurídicos na menção aqui feita). . Por outro lado, com a ascensão de movimentos sociais feministas e LGBT, sobretudo a partir das décadas de 1960, o direito passou a ser um campo de disputa por aqueles que buscavam maiores liberdades civis no campo reprodutivo e sexual.

Com a onda de libertação feminina, muitas teóricas fizeram do gênero e da sexualidade seu campo de estudo, e trouxeram definitivamente questões políticas, históricas, culturais e sociais para o que se insistia em manter fechado no campo do biológico ou da natureza. Figuras do masculino e feminino na sociedade, da ruptura com os órgãos sexuais e a relativização dos gêneros se destacaram como verdadeiros problemas de pesquisa nas ciências humanas, em grande parte alimentadas por correntes construcionistas3 3 A posição construcionista aparece desde pelo menos a década de 90, como central nos debates pósestruturalistas, nos debates de teoria de gênero e nos debates de estudos pós-coloniais. Como nos lembra Francisco Ortega, a compreensão de que nossas ideias e crenças acerca do corpo são construções políticas e sociais, contribuiu com pelo menos dois eventos fundamentais: a primeira contribuição foi a de finalmente carregar o corpo para o centro dos debates políticos e sociais, deslocando o corpo natural para o plano de uma realidade tornada possível pelo embate de políticas, poderes, tecnologias, discursos, posicionamentos históricos, culturais e etc; a segunda contribuição revela uma maior potência emancipatória aos campos de estudos vinculados ao construcionismo, e tem relação, assim, com sua significação ético-política, uma vez que contribui na oposição a práticas opressivas sobre gênero, idade, etnicidade, raça e etc (ORTEGA, 2014). Apesar de tais aspectos positivos ligados ao construcionismo, aos quais podemos somar também uma postura crítica à metafísica, ao vitalismo e essencialidades fundacionistas (temas caros aos pósestruturalistas, por exemplo), não foi é sem confronto que seus estudos se realizam, já que a abordagem construcionista é plural e possui diferentes nuances (sobre isto conferir WEEKS, 2015). . Além, mais que objetos de publicações, os questionamentos viriam a embasar transformações políticas, pautadas na disputa por direitos e na provocação de reconhecimento também pela via legal, visando a garantia mínima de igualdade e diversidade no âmbito jurídico. A dimensão jurídica, assim, é disputada por leituras aparentemente diversas, vindo a representar tanto enclausuramento, quanto espaço para alcançar conquistas.

A título de exemplo, Roger Raupp Rios (2006RIOS, Roger Raupp. Para um direito democrático da sexualidade. Horiz. antropol., Porto Alegre , v. 12, n. 26, p. 71-100, Dec. 2006 . Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-71832006000200004&lng=en&nrm=iso>. access on 21 Feb. 2017. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-71832006000200004.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
), compreendendo as tensões existentes entre a visão do direito como forma de normalização e o direito como objeto de busca e conquistas no que se refere à sexualidade, defende uma leitura constitucional dos direitos sexuais, estruturando-os a partir dos princípios fundamentais da liberdade, igualdade e dignidade da pessoa humana. Como se verá adiante, não se faz somente uma leitura da sexualidade conforme os direitos constitucionais, mas uma efetiva ampliação do ordenamento jurídico com base na liberdade sexual com igual respeito e consideração.

Em outro espaço, destacado do jurídico - embora, por vezes, afirmando tímidas aproximações - teóricos das problemáticas de gênero, como Paul Preciado, por exemplo, realizam uma crítica mais decisiva em face da normalização dos corpos, sem mediar a luta por direitos como atuação que eventualmente possa desarticular os sentidos enclausurantes da normalização. Em posição corajosa porque dissidente, afirma que uma sociedade radicalmente avessa à idéia de gênero não conhece limitações à disposição sexual dos corpos. Assim, contratos contrassexuais poderiam ser livremente celebrados a fim de garantir a relação consensual na busca do prazer, ainda que se sujeitem ao crivo social das denominadas "práticas desviantes".

Considerando o esboçado acima, entendemos que a tensão vista entre direito como normalização e direito como conquista, pode remeter a um dualismo de caráter intransponível, no qual acabamos por estabelecer uma leitura que configura um “ou, ou...”, cuja normalização ganha caráter inexoravelmente negativo e a busca por direitos, caráter positivo. Em nossa perspectiva, tal arquitetura não apenas engessa pela précompreensão estabelecida aquilo que a prática poderia mostrar de dissonante, como também propõe leitura simplista da própria noção de normalização.

Nossa proposta seria a de pensar o movimento, a relação entre normalização e busca por direitos, não fixando-os como contrários ou contraditórios, mas como realizadores de um circuito. A busca por direitos não é a saída ou o avesso da normalização, é uma forma de contestar os modos da normalização para que ela seja reconstruída em outras bases (esperançosamente mais branda, mas ainda normalização, já que é um contorno subjetivo estabelecido). Mais que isso, ser positivo ou negativo não reside em nenhum proprium do que normalização ou busca por direitos são; reside no que realizam - só se torna visível em práticas concretas. Procedimentos de normalização podem operar de modo positivo ou negativo (novas normalizações, ainda que sejam normalizações, podem destituir formas prévias mais rígidas), assim como a busca por direitos pode ser positiva ou negativa (quando grupos organizados da sociedade civil pressionam para aprovação de projetos de lei sobre as condições de admissibilidade do aborto, por exemplo, essa busca por direitos pode pretender maior controle sobre o corpo feminino).

E, finalmente, sobre a leitura simplista de normalização. Temos que se trata de processos de subjetivação e gestão. O já célebre tema do controle, geralmente acionado nesse campo de discussão, precisa ser posicionado não como controle de subjetividades pré-existentes, mas relativo aos procedimentos de produção mesma dessas subjetividades e sua cristalização. Assim, a normalização apresenta esse caráter produtivo (que não é originalmente nem positivo ou negativo) e pode se realizar também na busca por direitos, que ao resistir a certas formas de normalização, acabam por propor outras e revelam esse circuito constante de deslocamentos realizados pela relação entre ambos.

Nesse trilho, expõe-se a seguinte questão-problema: "há a possibilidade das práticas sexuais minoritárias, em suas demandas por direitos, realizarem resistência que permita a ressignificação de subjetividades normativas pela produção normativa?4 4 Essa questão-problema poderia se desdobrar ainda em outra: se práticas sexuais minoritárias exercerem alguma influência sobre a produção jurídica, o campo do jurídico continuaria a permitir um olhar monolítico de seu papel regulador de identidades e práticas? .

De antemão, levantamos como principal hipótese a partir da bibliografia trabalhada, que práticas e teorizações acerca da sexualidade e gênero afetam sobremaneira a construção político-jurídica da sociedade e realizam contínuos movimentos nas fronteiras das subjetividades normativas. Acreditamos que o Direito se apresenta como local de disputa de significados e de produção/gestão de práticas, constituindo-se como um observatório privilegiado da relação entre normalização e suas reconfigurações na disputa por direitos, em especial no terreno da sexualidade.

2 Práticas sexuais desviantes: as produções de conceitualização.

Partimos de uma perspectiva foucaultiana a partir da qual conceituar o que se entende por "práticas desviantes" trata menos de um esforço de recobrir um significado próprio e verdadeiro de tais práticas e mais da atenção sobre o próprio conceito como situado no interior de um regime de verdade e práticas de poder. A locução que reúne a noção de práticas sexuais à qualidade desviante, toca em duas atividades: uma de naturalização das práticas sexuais e outra de reconhecimento propiciado por esse lugar natural, de suas formas outras, ditas “desviantes”. Os registros dos discursos médico, biológicos e também jurídicos realizam tais atividades produzindo, sinalizando e tratando uma esfera sexual marginalizada. Mais que isso, se a sexualidade e as práticas sexuais são retiradas do espaço da natureza, aparece a preocupação em compreender como suas classificações produzem tipos de subjetividades (normais ou desviantes) e como a sexualidade se constitui em critério de revelação da verdade sobre o sujeito (FOUCAULT, 1988________. História da Sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988).

Para Michel Foucault, a sexualidade germina nas palavras pelos idos da antiguidade tardia. Teriam sido os estóicos, mestres na negação do prazer carnal e na vida levada com austeridade, os primeiros a reprimir a prática sexual como algo absolutamente imoral. Nesse momento, o indivíduo que buscasse a verdade deveria se afastar e abdicar de todo gozo. Tem-se, portanto, uma prévia negação da sexualidade com os helênicos. (FOUCAULT, 2004FOUCAULT, Michel. Sexualidade e Solidão. In: Ética, sexualidade, Política: Ditos e Escritos V. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.)

Tal interpretação, contudo, não desloca a importância do cristianismo em aprofundar as discussões ético-filosóficas acerca da sexualidade. Se no período romano houve uma censura dual entre prazer versus rigor, a queda do império possibilitará uma preocupação com as práticas de prazer. Isso significa que o discurso se destinará não apenas ao sexo, mas às práticas sexuais e sua organização. Em exposição sumária, o confessionário e os mosteiros se apresentam como principais mecanismos para o ensino e a instauração de uma sociedade pastoral: uma sociedade obediente, com uma moralidade sexual direcionada absolutamente para a reprodução, monogâmica e reservada no íntimo da família. Nesse sentido, não seria uma sexualidade proibida,

mas a colocação em ação de um mecanismo de poder e de controle, que era ao mesmo tempo um mecanismo de saber, de saber do indivíduos, mas também de saber dos indivíduos sobre eles próprios e em relação a eles próprios. (FOUCAULT, 2006________. Sexualidade e poder. In: Ditos e escritos V: Ética, sexualidade e política. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006., p. 72)

Na modernidade, o discurso sexual ganha nova amplitude com o alinhamento das práticas eróticas ao saber médico. Aqui houve um hiperdesenvolvimento do discurso, colocando a sexualidade em patamar de teoria, de ciência, enfim, como um saber. O nascimento de uma scientia sexualis e o desejo de se descobrir a verdade sobre o sexo, contudo, não tem em Foucault um caráter libertador (FOUCAULT, 1988________. História da Sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988). Com as incursões de Freud, acreditou-se que boa parte do sofrimento ocidental advinha da ausência de se pensar a sexualidade e que os discursos vencidos pela história se fundavam em mitos irracionais, afetivos e errôneos. Houve uma nova afirmação e uma intensa produção científica na temática do erótico, mas sobretudo da normalidade e da perversão. (FOUCAULT, 2006)

Ao fundar as práticas sexuais normais, o discurso médico acabou por encaixar uma série de práticas dissonantes dentro no campo da anormalidade, da perversão e da doença. A título de exemplo, vale lembrar que até meados dos anos 1990 falava-se em “homossexualismo" e casais gays eram tidos como doentes. Nos moldes da scientia sexualis o saber científico coloca num eixo de coerência sexo, identidade de gênero e identidade sexual, como necessário à normalidade e como critério de medida da anormalidade quando rompida essa sequência “lógica”. Nesse sentido, a sexualidade somente poderia se expressar através e segundo autoridades de tais saberes.

No âmbito político-jurídico, as políticas da sexualidade tiveram como foco os entes transcendentais da “família" e da “nação”, visando as relações sexuais a partir dos interesses reprodutivos de Estado. Assim, os projetos estatais tinham como objeto primário o controle da população e seus grandes números estatísticos: taxas de natalidade, doenças sexualmente transmissíveis, o fluxo os vetores de contaminação de tais doenças e as estatísticas de abortos cometidos são exemplos ilustrativos das políticas sexuais nascidas no século XIX. O efeito mais conhecido e exaustivamente apresentado em inúmeros ensaios foi a constituição do casal heterossexual reprodutivo como norma biológica, moral e jurídica, ou seja, a normalização do corpo heterossexual. (CARRARA, 2015CARRARA, Sérgio. MORALIDADES, RACIONALIDADES E POLÍTICAS SEXUAIS NO BRASIL CONTEMPORÂNEO. In: Mana, Rio de Janeiro , v. 21, n. 2, p. 323-345, Aug. 2015 . Disponível em:<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010493132015000200323&lng=en&nrm=iso>. access on 18 Feb. 2017. http://dx.doi.org/10.1590/0104-93132015v21n2p323.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
)

Se é verdade que a história de sexualidade se baseou na formação de saberes e na construção de corpos normais, é igual verdade que o mesmo discurso produziu anomalias. Esses corpos abjetos5 5 Judith Butler ao tematizar que a produção normativa da normalidade realiza um “exterior constitutivo” da anormalidade, nomeia tais vidas excluídas do espaço normal de “corpos abjetos” (BUTLER, 2007 e 2011). cumprem absoluta centralidade na scientia sexualis, pois à medida em que o anormal é esquadrinhado, o normal subsiste. Assim, a sexualidade sã e aquela rebelde guardam íntimas relações entre si, a primeira dependendo da segunda para sua validade. Por outro lado, ainda que haja um padrão da normalidade, a mesma unidade não ocorre com as práticas desviantes. Espalhadas no conjunto social das mais diversas formas, quantidades e qualidades, vigoram condutas libidinosas igualmente anômalas em face no discurso jurídico-científico, porém com maior ou menor grau de reprovação entre si.

Acerca dessa leitura social sobre as práticas desviantes, Rubin (1989RUBIN, Gayle. “Thinking sex: notes for a radical theory of the politics of sexuality”. In: VANCE, Carole (ed.). Pleasure and danger: toward a politics of sexuality. Boston: Routlegde, 1989.) irá identificar quais usos sexuais possuem maior rejeição no Ocidente. Assim, esboça um sistema hierárquico de valorização sexual, no qual os heterossexuais, casados e reprodutores estariam no topo de uma "pirâmide erótica"; na base, as identidades mais desprezadas: transexuais, travestis, fetichistas, sadomasoquistas, trabalhadoras do sexo (prostitutas e atrizes da pornografia), seguidos por aqueles cujo erotismo ultrapassa barreiras geracionais. No centro dessa pirâmide vacilam casais gays e lésbicas, homens gays promíscuos e casais heterossexuais de relacionamento aberto, a depender da conjuntura político-social de cada momento histórico. Indivíduos cujo comportamento sexual esteja situado no alto dessa hierarquia serão gratificados cotidianamente com respeito, saúde mental, mobilidade financeira, apoio social e tantos outros benefícios materiais e institucionais. Entretanto, à medida em que as práticas eróticas descendem à pirâmide de Rubin, os indivíduos que as praticam se tornam mais propensos a doenças mentais, restrições de liberdade e mobilidade, perda de apoio institucional e as variadas formas de sanções econômicas presentes no mercado (RUBIN, 1989RUBIN, Gayle. “Thinking sex: notes for a radical theory of the politics of sexuality”. In: VANCE, Carole (ed.). Pleasure and danger: toward a politics of sexuality. Boston: Routlegde, 1989.).

Como visto anteriormente, a condição da anormalidade ou valorização sexual não é algo natural. Muito pelo contrário, foi demoradamente construída pelos legítimos saberes da história e por práticas de poder. Se, na antiguidade, a sexualidade era rechaçada pela filosofia estóica e, no período medieval, pela religião, na modernidade e no contemporâneo o discurso médico/científico impera. Assim, ainda que a terceira edição do Diagnostic and Statistical Manual of Mental and Physical Disorders (DSM) tenha retirado a homossexualidade do rol de distúrbios, voyeurismo (DSM-V 302.82), masoquismo (DSM-V 302.83), sadismo (DSM-V 302.84), fetichismo (DSM-V 302.81), transsexualidade (DSM-V 302.6), travestismo (DSM-V 302.3), e outros transtornos parafílicos são firmemente defendidos como disfunções psicológicas. Aqui, o termo parafilia significa "qualquer interesse sexual intenso e persistente que não aquele voltado para a estimulação genital ou carícias preliminares com parceiros humanos que consentem e apresentam um fenótipo normal e maturidade física". (ASSOCIAÇÃO AMERICANA DE PSIQUIATRIA, 2014, p. 452 e 685 - 703)

Em outras palavras, ainda é ampla a produtividade acadêmica nas ciências médicas acerca da etiologia, tratamento e cura desses casos de "patologias". (RUBIN, 1989RUBIN, Gayle. “Thinking sex: notes for a radical theory of the politics of sexuality”. In: VANCE, Carole (ed.). Pleasure and danger: toward a politics of sexuality. Boston: Routlegde, 1989.). Ainda é plenamente presente tais processos de produção de subjetividades constituídas no negativo. Desses saberes de ampla legitimidade e aceitação social, retira-se fonte confiável do que seria a atual hierarquia das práticas sexuais, consideradas como desviantes aquelas apontadas pela medicina. Em outras palavras, para usar a expressão de BHABHA (2014), desviantes seriam aqueles "portadores de sexualidades policiadas" (p. 25, grifo nosso), pois pertencem a outras vozes - fora do sistema de ideias dominante - incapazes de atingirem igual proporções discursivas. Importante salientar, que esse fora do sistema não indica uma existência dessas sexualidades como não reconhecidas, mas que são produzidas na marginalidade, lá enquadradas pelos moldes de sua fabricação.

Embora o acima exposto se apresente como acúmulo teórico incontornável para o desenvolvimento a seguir, não se intenta aqui reiterar as denúncias contra os dispositivos normalizadores. Pelo contrário, após as produções literárias no campo dos estudos de gênero e - frise-se - o engajamento político dos grupos LGBTI, faz-se necessária a investigação da resistência às normalizações insustentáveis para certos corpos e grupos como proposição de ressignificação da normalização e não como sua quebra de uma vez por todas. E queremos analisar a ressignificação na seara da sexualidade pela via da potência jurídica. Em outras palavras, como a busca por direitos, não é o “outro” da normalização, mas a luta e resistência daquilo que nas normalizações válidas se pretende fraturar, vindo a abrir assim a possibilidade de ressignificar os critérios de normalidade sexual vigentes.

Ao tratar da luta por direitos no plano da sexualidade e gênero como uma potencialidade, eleva-se a sexualidade6 6 Sexualidade aqui pensada não em termos de realidade dada, mas aquela realizada e efetivada por práticas e modos de vida. tanto a delatora de lacunas nos sistemas jurídicos, quanto a ampliadora dos enunciados normativos. Resta compreender, portanto, o que a Teoria do Direito pode aprender com as práticas sexuais ou como, caso ignoradas, irrompem forçosamente em face aos dogmas jurídicos da modernidade, forçando deslocamentos.

3. Práticas no jurídico: o dogma da completude no Civil Law e as lacunas no Common Law.

Na tradição jurídica de origem revolucionária-francesa denominada por civil law, a norma enquanto lei escrita possui nítida centralidade. De fato, alguns estudiosos dessa corrente irão definir o direito como sendo um conjunto de normas, ou salientar que "a experiência jurídica é uma experiência normativa" (BOBBIO, 2010BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010., p. 15). Nessa construção jurídica tipicamente moderna, inaugurada com as codificações do mundo ocidental, acredita-se que a totalidade das relações sociais esteja albergada pelo direito e que, no caso de conflito, haverá uma norma capaz de sua solução. O juiz constituído no civil law, ao se colocar diante do litígio, terá de encontrar uma norma - comandos imperativos ou declarativos - apta a resolver de maneira justa e inequívoca a situação. Por outro lado, a inexistência de norma é imediatamente afastada como uma impossibilidade jurídica. Em verdade, o juiz não pode deixar de julgar apesar do silêncio, obscuridade ou insuficiência legislativa. Trata-se da proibição do non liquet e do dogma da completude. (BOBBIO, 2010)

A crença ainda vigora no direito positivo atual com acerto duvidoso. Não se pode dizer que o dogma da completude tenha passado incólume pelas críticas de todos os flancos da Teoria do Direito. Os contrapontos irão enfatizar que, não apenas o Direito seria incompleto diante das relações sociais, mas a existência de lacunas seria de todo insuperável pelas codificações. Isso porque, como irá destacar Bobbio (2010BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010.), as mudanças sociais, cada vez mais voláteis, geram um enorme descompasso entre a realidade e o normatizado. A cada momento, novas formas de contratar, trabalhar, fraudar ou exercer a sexualidade surgem nas vidas pública e privada, apesar da inércia do legislador em acompanhar as mudanças sociais. Na opção por compreender o direito em sua construção normativa, renegou-se a compreensão do mesmo como um fenômeno social inconstante. Dito em outras palavras "a pretensão dos juristas ortodoxos de fazer do direito um produto do Estado era infundada e conduzia a vários absurdos, como aquele de acreditar na completude do direito codificado". (BOBBIO, 2010BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010., p. 281)

Não cabe aqui traçar um histórico dos movimentos críticos ao positivismo jurídico, tampouco desconstruir, em alguns parágrafos, séculos inteiros de construção teórica do direito. Há que se destacar que muitas críticas foram enfrentadas com maestria na defesa de um direito capaz de sanar todos os conflitos sociais. Para esses defensores, "a completude não era um mito, mas uma exigência de justiça; não era uma função inútil, mas uma defesa útil de um dos valores supremos a que deve servir a ordem jurídica, a certeza." (BOBBIO, 2010BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010., p. 282, grifo no original). Ao final, o Direito como um todo vacila entre estabilidade do sistema e adaptabilidade com a sociedade.

Nada obstante isso, diversas são as experiências globais que fogem ao sistema normalista de tradição francesa. Tradição jurídica que faz frente ao civil law, e o faz com grande aceitabilidade ainda no Ocidente, é o common law, com origens inglesas. Diz-se que a referida tradição é um direito feito pelo juiz (judge made law). Tal alegação decorre da construção do common law se fundar largamente em precedentes judiciais, ou seja, na vinculação de decisões passadas com conflitos semelhantes atuais. De fato, nesse sistema de precedentes vinculantes as cortes agem em duas dimensões, a uma resolvendo conflitos já enfrentados, conforme decisões passadas; a duas produzindo o direito, ao se debruçar sobre litígio inédito e criando regras para o futuro. (WAMBIER, 2009WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Estabilidade e adaptabilidade como objetivos do Direito: civil law e common law. In: Revista de Processo, vol. 172, p. 121 - 174, jun. 2009.).

Esse duplo movimento faz com que se construa previsibilidade e estabilidade jurídicas em razão da obediência aos julgados anteriores, ao passo em que atua também na adaptabilidade social. Diz-se que, no direito inglês, os precedentes devem reger o direito, a não ser que exista uma razão séria para que sejam abandonados. Nesse sentido, as especificidades dos casos se colocam como suma importância para a consolidação do direito. Ainda que nem todas as características importem, reconhece-se no common law que dois casos nunca são absolutamente idênticos. Assim, ao se deparar com um litígio inédito (case of first impression), a decisão que lhe põe fim consistirá num precedente com consequências futuras (WAMBIER, 2009WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Estabilidade e adaptabilidade como objetivos do Direito: civil law e common law. In: Revista de Processo, vol. 172, p. 121 - 174, jun. 2009.). Extrai-se, portanto, as características marcantes da tradição em comento: a prática, o casuísmo e os fatos concretos são e compõem o direito. (CAVARZANI, 2014CAVARZANI, Vinicius. O common law, o civil law e uma análise sobre a tradição jurídica brasileira. In: Revista de processo, vol. 231, p. 321 - 345, mai. 2014.).

Ao expor a crença na completude jurídica introduzida pelo movimento de codificação das normas, optou-se igualmente por apresentar a tradição jurídica do common law como um antagonista. Tal operação tentou provocar, primeiramente, um estranhamento ambivalente - na expectativa de quebra da universalidade dos sistemas jurídicos e, em segundo lugar, uma questão frente às lacunas jurídicas em cada uma das tradições. Como se viu, a escolha da representação da norma em ambos os casos visa solucionar o conflito jurídico intransponível entre segurança/previsibilidade e adaptabilidade. Nada obstante isso, irão tratar fatos não normalizados de maneiras bastante distintas. Se no sistema anunciado pelo Code Napoleon há um axioma da completude, então as lacunas são sempre consideradas um defeito jurídico, ou melhor uma exceção. No entanto, confrontado diante de uma lacuna jurídica incontornável em face às especificidades do caso o juiz deverá recorrer a outros meios, gerando novo direito. Por outro lado, tal questão não se apresenta com maiores desdobramentos no sistema de tradição anglo-saxã. Isso porque, voltado às particularidades e práticas do caso, o julgador terá formas de resolver o litígio inédito sem ferir os fundamentos hermenêuticos do sistema.

Em outras palavras, se por um lado práticas externas ao direito podem se apresentar com naturalidade para a última tradição, ao dogma da completude representam real ameaça. De todo modo, a preocupação frente às realidades dissonantes pode ser mitigada quando se considera que lacunas são inerentes a qualquer ordenamento, sobretudo ao se ampliar o entendimento. É que o conceito de lacuna não se restringe à ausência de regulamentação expressa, mas é igualmente ausência de um critério de escolha de qual regra aplicar, havendo uma pluralidade delas, na solução de um caso específico. Assim, tanto a mais sintéticas das codificações quanto a infinitamente elaborada deverá enfrentar a problemática de diversas soluções para um mesmo caso. Resumidamente, se verifica quando "o sistema não oferece a possibilidade de resolver um determinado caso nem de um determinado modo nem do modo oposto". (BOBBIO, 2010BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010., p. 291-292)

Parece-nos, entretanto, que enfrentar esses desvios jurídicos seria promissor ao Direito. Expor as feridas do sistema jurídico, suas contradições e incapacidades acabaria por aprimorar tanto a capacidade de diálogo do direito com as anomias quanto a leitura crítica da Teoria da Norma. Por outro lado, essas transgressões não se dão apenas na especulação teórica ou nas hipóteses sempre absurdas dos manuais de ensino do direito. Muito pelo contrário, essas fissuras se encontram nas práticas marginalizadas e incompreendidas da sociedade. Nesse sentido, é essencial retirar das práticas sexuais desviantes um potencial questionador do próprio direito. Se há contribuição do direito na marginalização e constituição de subjetividade marginalizada, pela anomia e não cobertura, é preciso, pela provocação mesma de uma resposta jurídica perturbar a consolidação dessa caracterização subjetiva negativa. Ao se expor as tensões entre a práxis erótica marginalizada e as abstrações normativas sedimentadas (e, a princípio, totalizantes), há um impulso que retira o Direito de sua inércia e coage novas leituras. Aqui acionamos o caráter normalizador reconhecido inicialmente, de relação e movimento com a busca por direitos como resistência e reformulação dessa normalidade posta. O próximo ítem tentará demonstrar como a sexualidade, em sua provocação por respostas jurídicas, permite o circuito de abertura e fechamento das subjetividades normalizadas no sistema jurídico.

4. Práticas desviantes e a expansão do jurídico: por direitos mais desejáveis.

O que se procurou traçar acima foi a pontuação de maneira mais ou menos linear das próximas preocupações. Viu-se que certos saberes ao longo da história se ocuparam por produzir uma moralidade e normalidade no campo sexual, à medida em que produziram seus desvios na qualidade de categorias abjetas. Paralelamente a isso, fez-se breve incursão nas duas tradições jurídicas ocidentais contemporâneas, sem pretensão de sedimentar um conhecimento exauriente, mas na expectativa de trazer ao leitor interdisciplinar as lentes para interpretação do dogma da completude7 7 O problema da completude, como aqui trabalhado, quer indicar o desafio dos processos reiterados de abertura e fechamento de significação de subjetividades acolhidas e tratadas pelos direitos vigentes. Ou seja, se a completude é um “dogma”, a busca por direitos no plano da sexualidade tem mostrado contínuas fissuras e aberturas no sistema, seja por inclusão ou ressignificação de certas identidades e suas coberturas jurídicas. . Como visto, ainda que o direito parta de uma certeza quanto à sua capacidade reguladora totalizante, a sociedade é por demais complexa e volátil para se restringir à lei escrita. Práticas diversas em todas as áreas surgem constantemente de maneira contrária a entendimentos anteriores e as regras precisam revistas.

Nas interseções entre a normalização da sexualidade, contudo, é possível dizer que muito pouco foi revisto, sobretudo no Brasil. Apenas mais recentemente, com o movimento LGBT consolidado, algumas pautas e reivindicações começaram a adentrar tanto no judiciário quanto na preocupação legislativa e doutrinária. Lentamente começaram a aparecer as mazelas jurídicas em lidar com situações sempre presentes na sociedade. Foi assim, por exemplo, com a ADPF 132, na qual o Supremo Tribunal Federal reconheceu a união homoafetiva (BRASIL, 2011); mas também a ADPF 291, julgamento em que se declarou não recepcionado pela Constituição Federal o crime de pederastia no Código Penal Militar (BRASIL, 2015). Nada obstante a presença dessas pautas levadas ativa e forçosamente ao escopo jurídico, deseja-se aqui analisar situações ainda não muito bem trabalhadas, provocações feitas pelas práticas eróticas ainda não compreendidas pelo direito. São práticas cotidianas que, com menor notoriedade em face dos movimentos sociais, produzem enorme fissura nos institutos jurídicos e profanam seus dogmas.

Nesse sentido, merece destaque o caso da travesti Indianara Siqueira, ré em processo penal de suposto ultraje público ao pudor (art. 233 do Código Penal). O processo teve origem após Indianara ter retirado a camisa em frente a um bar na praia de Copacabana. Além das eventuais defesas sobre o conteúdo do tipo penal, há aqui uma incoerência latente do ordenamento jurídico reveladora da incapacidade do ordenamento jurídico. Sendo considerada legalmente como homem, o ato de retirar a camisa em espaço público seria permitido, como de fato era feito por inúmeros banhistas naquele momento; por outro lado, os seios femininos que possuía não poderiam ser postos a nu, tal qual ocorre com as demais mulheres, tendo efeito de reconhecimento da identidade social feminina. Esse espaço entre duas identidades, provocaram um conflito de reconhecimento para um tratamento jurídico coerente. Nesse dilema bastante interessante, a magistrada preferiu arquivar o processo, ao invés de enfrentar a decisão ( SANTOS, 2017SANTOS, Andressa Regina Bissolotti. Movimento LGBT e direito: identidades e discursos em (des)construção. 2017. 234 f. Dissertação (Mestrado em Direitos Humanos e Democracia). Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade Federal do Paraná, Curitiba. Defesa em 30/03/2017.).

O caso de Indianara revela mais que o comportamento reprovável da sociedade em situações similares. Explicita, também, uma incompletude do direito em compreender práticas sociais que questionam as posições estáveis de identidade de gênero. Revelou-se aí uma limitação quanto à inteligibilidade do Estado em face a seus próprios tipos penais, os quais precisam ser drasticamente repensados face experiências dissonantes. Trocando em miúdos, o exemplo de Indianara "colocou assim o próprio direito em um dilema, em que qualquer solução (...) seria capaz de demonstrar a limitação a termos restritos de inteligibilidade de gênero". (SANTOS, 2017SANTOS, Andressa Regina Bissolotti. Movimento LGBT e direito: identidades e discursos em (des)construção. 2017. 234 f. Dissertação (Mestrado em Direitos Humanos e Democracia). Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade Federal do Paraná, Curitiba. Defesa em 30/03/2017., p. 198)

A fissura aqui trabalhada se deve a uma tensão entre o comportamento considerado probo dos sujeitos no ordenamento jurídico e uma realidade mais complexa, na qual parte dos indivíduos e suas práticas permanecem em um campo extralegal. Essa denúncia da incapacidade normativa ocupa um papel crucial na suposta naturalização das práticas cotidianas. Afinal, antes de se tornar objeto de discussão, a norma permanece inerte, naturalizada no estado de coisas. Quando questionada, porém, expõe a falha para uma série de possibilidades contestatórias sempre incertas, tanto na produção de maior igualdade e liberdade sexual, quanto na defesa de um retrocesso moral. O embate aqui, além de meramente jurídico, encara o político, demonstrando uma potencialidade própria do corpo desviante (SANTOS, 2017SANTOS, Andressa Regina Bissolotti. Movimento LGBT e direito: identidades e discursos em (des)construção. 2017. 234 f. Dissertação (Mestrado em Direitos Humanos e Democracia). Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade Federal do Paraná, Curitiba. Defesa em 30/03/2017.)8 8 A esse respeito, das potencialidades do desviante ou do excluído como remanescente, Giorgio Agamben e Judith Butler, embora não sejam aqui trabalhados, contribuem de maneira ímpar para esse debate da potência a partir da externalidade da exclusão. Agamben, com sua noção de Inoperosidade, coloca em questão aqueles que, como restos, desativam a lei como nomos e a reativam na condição de efetivação e promessa (normatividade performativa), (AGAMBEN, 2000). Já Butler, numa releitura que questiona o padrão de que a política só acontece no espaço da vida qualificada, quando superadas as futilidades da mera existência, aponta a precariedade como potência política (BUTLER, 2012). .

A lógica de transgressão das práticas lascivas emerge igualmente em ordenamentos que não dependem tanto de norma previamente escrita. Assim, na tradição do common law as práticas não irão se limitar à modificação de um entendimento normativo, mas atingirão potência constitutiva do Direito. De algum modo, essas construções agem tal como as Ações Constitucionais elencadas anteriormente, porém sem necessidade de ofensa constitucional, surgindo mais propriamente da experiência cotidiana. Significa, portanto, que eventuais julgamentos acerca de práxis tidas como desviantes irão passar a albergar todo o direito, tendo eficácia geral.

Nesse toar, Bennet (2012) investigou alguns leading cases julgados no Reino Unido envolvendo práticas sadomasoquistas. Merece distinção o ocorrido com um policial britânico com mais de 17 anos de patrulhamento, ao ter imagens de suas performances feitas em clubes sadomasoquistas anonimamente divulgadas aos oficiais superiores. Ainda que tenham compreendido que tais atividades não implicam ofensa ao direito, o oficial foi formalmente exonerado. Na justificativa, informaram que tal material em domínio público era incompatível com o cargo de policial. Denominado como Pay v. UK, o caso chegou à Corte Europeia de Direitos Humanos em razão das proteções contra demissão injusta e a proibição da discriminação. Os juízes, no entanto, não acolheram a apelação, fundamentando que o policial não fora despedido em razão de suas práticas sexuais, mas porque, ao frequentar tais clubes, esse fato poderia vir a público e atrapalhar sua efetividade no trabalho. Em outras palavras, a dificuldade não está nas preferências eróticas, mas na sua divulgação a um público indeterminado de pessoas. (BENNET, 2012)

Seria dizer que toda a questão da discriminação gira em torno da publicidade e que tais práticas sexuais tidas à margem da sociedade só merecem proteção quando realizadas no espaço privado. De qualquer forma, permanece duvidoso ainda a extensão desse julgamento para outros agentes públicos envolvidos com a administração legal, como magistrados ou promotores públicos. Deveriam esses personagens ter a liberdade sexual restringida, mesmo que tais atos não sejam, por si só, contrários à lei? Seguindo a lógica da publicidade como a justificativa, funcionários de empresas de segurança privada poderiam sofrer a mesma exclusão, mesmo que haja nítida ofensa à proibição de discriminação. (BENNET, 2012)

O interessante é que o entendimento jurídico firmado acima ultrapassa uma discussão anterior, também ocorrida no Reino Unido, a qual englobara pontos sensíveis relativos ao masoquismo. Trata-se do "case of first impression" R vs. Brown, julgado no ano de 1994, no qual cinco homens gays acabaram presos por lesões corporais cometidas durante a prática de atos sádicos e masoquistas. Muito embora a tipificação da lesão corporal inglesa considere como ofensa somente aquela praticada sem o consentimento do ofendido, o entendimento do judiciário foi diverso para o caso. Isso porque a tradição inglesa prevê circunstâncias especialíssimas de consentimento válido, tais quais, cirurgias, tatuagens e afins, circuncisões religiosas e esportes violentos. As práticas sadomasoquistas ficaram afastadas dessas e de quaisquer outras hipóteses onde, supostamente, se verificaria uma utilidade social suficiente para se levantar a punibilidade (BENNET, 2012, p. 4)

Se no último caso penal a ilicitude repousava nas práticas sadomasoquistas propriamente ditas e na sua insuficiência de consentimento, no estudo de Pay v. UK tal ilicitude não foi questionada. Apesar de serem situações que aparentemente mereceriam o mesmo tratamento judicial, pois as práticas seriam exatamente as mesmas (desvios sadistas), as especificidades do segundo romperam o entendimento anterior. Refere-se ao fenômeno da distinguishing, técnica de flexibilidade do common law em razão das particularidades do novo caso (WAMBIER, 2009WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Estabilidade e adaptabilidade como objetivos do Direito: civil law e common law. In: Revista de Processo, vol. 172, p. 121 - 174, jun. 2009.). Nessa situação, permanece em vigor no ordenamento a regra de lesão corporal pelas condutas lascivas. Nada obstante, tendo em vista que no conflito com o agente de segurança novas questões foram trazidas, logo uma regra inédita deve se aplicar.

Por outro lado, ainda que se entenda que a discussão do policial perpassou âmbitos do direito do trabalho e o direito à não discriminação, fato é que as práticas provocadoras foram exatamente as mesmas em ambos os casos. Se se considera um avanço a opção pela exoneração ao se comparar com a violência material da prisão, isso não significa maior certeza jurídica, tampouco uma mudança universal. Verifica-se que condutas diversas podem ter resultados diversos, não tanto por seus resultados, mas pelos sujeitos envolvidos e a provocação feita por terceiros. Vê-se que os desvios sexuais masoquistas permanecem demais para estrutura jurídica, não podendo ser condicionados pelo atual estado do direito.

Também Maria Filomena Gregori (2016GREGORI, Maria Filomena. Prazeres perigosos: Erotismo, gênero e limites da sexualidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.) apreciou o caráter de transgressão dos sádicos e masoquistas contra a norma, sobretudo no que diz respeito ao consentimento necessário entre os praticantes. Com efeito, as categorias de consenso e vulnerabilidade são fundamentais para se pensar com responsabilidade novas fugas das tecnologias de poder e, ao contrário, influir no direito através da resistência sexual. Ato contínuo, a pesquisadora aponta como a anuência e a vulnerabilidade constituem hoje os termos centrais em torno dos quais são compreendidos as práticas e direitos sexuais. Por outro lado, os conceitos de prazer e perigo, que anteriormente apresentaram grande rentabilidade analítica, foram exaustivamente estudados, descolando as atuais problematizações para outros campos (GREGORI, 2016GREGORI, Maria Filomena. Prazeres perigosos: Erotismo, gênero e limites da sexualidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.).

Isso posto, a fim de se pensar um direito constituído a partir das práxis desviantes, é imprescindível ter em consideração que práticas que envolvam maiores riscos necessitam de maior garantia de livre consenso. Ocorre que, ao tomarmos exemplos sensíveis como prostituição ou as práticas SM (sadomasoquistas), sobretudo em uma sociedade com marcadores sociais tão desiguais, a livre manifestação de vontade será sempre viciada. “A preocupação com a segurança e com o consentimento dos praticantes [de SM] funciona como uma espécie de ideal. Nenhum desses termos é facilmente acessível ou garantido” (GREGORI, 2016GREGORI, Maria Filomena. Prazeres perigosos: Erotismo, gênero e limites da sexualidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2016., p. 178).

Importante destacar o papel crucial que tais práticas possuem ao se apresentarem como a exceção da norma, na tentativa de expandir fronteiras do que é aceito e socialmente legitimado. “Nesse caso é feita uma aposta na capacidade de transgressão que essas práticas sexuais não sancionadas têm na contestação de normas de sexualidade e gênero e na criação de novas identidades coletivas” (GREGORI, 2016GREGORI, Maria Filomena. Prazeres perigosos: Erotismo, gênero e limites da sexualidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2016., p. 185) Se, por um lado, potencializam as experiências de corpo ao colocar em tensão as normas e convenções da sexualidade; por outro, não existem garantias de que consigam evitar abusos e violência, ainda que seus discursos estejam cada vez mais permeados pela noção de “são, seguro e consensual”. É preciso compreender como a dinâmica dessas práticas põe em operação, em um só tempo, “a busca da legitimação de condutas e preferências sexuais - que tende a uma estabilização normativa - e a tentativa de criar atos e relações que coloquem as normas em tensão” (GREGORI, 2016, p. 182). Ao final, novas práticas sexuais e seus limites entre prazer e risco irão sempre realocar para outros espaços a própria compreensão dos limites da norma e do direito. Mais que isso, realocam também os sentidos fixados sobre subjetividades normais e anormais em termos de sexualidade. Certo é que as práticas sexuais consideradas desviantes são empreendimentos de risco. Isso não significa, contudo, que não devam ser lidas sob a ótica de um direito fruto do Estado democrático, direito este sempre atento à pluralidade.

Talvez quem tenha chego bastante próximo à análise do que significa um direito lido com as lentes da diversidade sexual tenha sido Roger Raupp Rios (2006RIOS, Roger Raupp. Para um direito democrático da sexualidade. Horiz. antropol., Porto Alegre , v. 12, n. 26, p. 71-100, Dec. 2006 . Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-71832006000200004&lng=en&nrm=iso>. access on 21 Feb. 2017. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-71832006000200004.
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). Ao formular a hipótese dos chamados direitos sexuais democráticos, indica não apenas as formas como o direito deve ser alterado para a possibilidade de liberdades e igualdades sexuais efetivas, mas como o discurso jurídico já foi remodelado em virtude das produções teóricas da sexualidade. Nesses termos, destaca, por exemplo, a passagem dos direitos reprodutivos ao direito da sexualidade. Os primeiros, ainda que possuam importância notória, surgem em um momento inicial de liberação sexual, pautado sobretudo por mulheres, especialmente no que diz respeito às técnicas contraceptivas e ao aborto. Ocorre que limitar a compreensão exclusivamente aos direitos da reprodução produziria um obstáculo diante da diversidade envolvida. Ainda, conforme sustenta o autor, “poder-se-ia correr o risco de reduzir a operacionalidade dessas categorias jurídicas, inclusive no que respeita ao universo feminino, num enfraquecimento indesejável e desnecessário” (RIOS, 2006RIOS, Roger Raupp. Para um direito democrático da sexualidade. Horiz. antropol., Porto Alegre , v. 12, n. 26, p. 71-100, Dec. 2006 . Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-71832006000200004&lng=en&nrm=iso>. access on 21 Feb. 2017. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-71832006000200004.
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, p. 9).

Assim, para uma efetiva mudança no âmbito jurídico da sexualidade, foi preciso retirar a ênfase na reprodução e explicitar o direito da sexualidade. Com os direitos sexuais se expande a proteção jurídica não apenas para as mulheres, tampouco restringe-se aos grupos subalternos em função do gênero e do sexo. Pelo contrário, o direito da sexualidade não pode encontrar fronteiras na proteção identitárias, mas deve se guiar em direção à proteção de condutas e práticas sexuais, ainda que não convencionais, como aquelas já apresentadas.

Práticas, portanto, não identidades. A mitigação do sujeito (de subjetividades que tenham um caráter próprio/natural de correção ou monstruosidade) e a alteração da ênfase para as condutas objetivamente realizadas é fundamental para a transformação do discurso sobre a sexualidade. Isso porque os saberes acerca da temática, desde a modernidade, buscaram no sujeito a construção de sua identidade, constituindo a dicotomia de corpos normais e corpos desviantes. Assim surge o sujeito homossexual, a ninfomaníaca, a histérica, o sádico, o masoquista, o heterossexual entre infindáveis exemplos de acordo com os desejos de cada indivíduo. Eis um primeiro e envergonhado passo para a construção de uma política sexual de valorização das minorias sexuais (aquelas que adotam práticas menos valorizadas). Enfatizar as práticas, debruçando-se nas relações intersubjetivas tratadas em cada caso. Frise-se que uma moralidade sexual democrática significa avaliar as práticas sexuais pelo modo como seus parceiros se tratam: o nível de consideração mútua, a presença ou ausência de coerção e a quantidade e qualidade dos prazeres envolvidos. Assim, apesar de haver uma avaliação segundo as práticas envolvidas, tal moralidade julga a maneira como se colocam os sujeitos dentro da relação9 9 Ainda que se possa questionar que tal posicionamento não realiza uma quebra final com a subjetividade, em termos de atuação jurídica significa um deslocamento de causa e efeito e de estabilidade para processos constitutivos. (RUBIN, 1989RUBIN, Gayle. “Thinking sex: notes for a radical theory of the politics of sexuality”. In: VANCE, Carole (ed.). Pleasure and danger: toward a politics of sexuality. Boston: Routlegde, 1989.). Some-se a isso as práticas que são negadas como possíveis para certos corpos ou grupos, não obstante valham para outros: casamento, nome, filhos, pensão e etc.

A fim de estruturar um direito sexual democrático sem cair em mero liberalismo ingênuo, Rios esclarece que, para além de democrático, deve ser um direito responsável. A pergunta que se direciona a seguir é de ordem pragmática: como estruturar um direito da sexualidade nesses termos? A resposta dada de pronto seria basilar o referido direito segundo as fórmulas básicas das declarações dos direitos humanos e do constitucionalismo clássico, quais sejam, os princípios da liberdade, igualdade e dignidade. Nessa vertente, o direito da sexualidade democrático "rompe com o tratamento subalterno das mulheres, homossexuais, soropositivos, crianças ou adolescentes” (RIOS, 2006RIOS, Roger Raupp. Para um direito democrático da sexualidade. Horiz. antropol., Porto Alegre , v. 12, n. 26, p. 71-100, Dec. 2006 . Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-71832006000200004&lng=en&nrm=iso>. access on 21 Feb. 2017. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-71832006000200004.
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, p. 13 - 14), sem desviar olhares para situações de vulnerabilidade aí empreendidas. Em verdade, trata-se de alargar os referidos princípios nos desdobramentos sexuais que lhes dizem respeito, agregando a esses direitos conteúdos jurídicos suficientes para enfrentar as reais situações nas quais a sexualidade está em jogo.

Sem mais desvios e de modo ilustrativo, os direitos sexuais desenvolvem os princípios fundamentais da liberdade e igualdade em múltiplas consequências não tão distantes do que o movimento constitucionalista já produziu. Há, porém, um alargamento hiperbólico, fruto da tensão entre os direitos já dispostos no ordenamento jurídico e a necessidade de justiça em face das lacunas ideológicas. Assim, elencam-se os "(i) direito à liberdade sexual; (ii) direito à autonomia sexual, integridade sexual e à segurança do corpo sexual; (iii) direito à privacidade sexual; (iv) direito à expressão sexual; (v) direito à associação sexual” (RIOS, 2006RIOS, Roger Raupp. Para um direito democrático da sexualidade. Horiz. antropol., Porto Alegre , v. 12, n. 26, p. 71-100, Dec. 2006 . Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-71832006000200004&lng=en&nrm=iso>. access on 21 Feb. 2017. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-71832006000200004.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
, p. 15). Em outras palavras, tendo como base os direitos fundamentais do Estado de Direito, propõe-se uma interpretação extensiva, a tal ponto que se constituam novas garantias. Como visto, liberdade, privacidade, segurança e autonomia são princípios necessários à democracia e ao regime constitucional, sendo suas ampliações interpretativo-sexuais meras consequências.

Pensar a possibilidade de um direito de associação sexual, por exemplo, revela duas consequências iniciais. A primeira, destaca a evidente lacuna pela simples originalidade do conceito, não trabalhado anteriormente; a segunda, cria algo nitidamente novo ao ordenamento muito mais poroso e volátil que a figura do casamento ou da união estável. Os relacionamentos conforme os quadros do Direito de Família, ainda que possam ser comparados metaforicamente com associações, não implicam num efetivo direito de associação sexual, capaz de corresponder a deveres plurilaterais em tantos números quanto eventualmente contratados. Certamente, seria de todo irresponsável fazer tal relação simplória. A expansão proposta por Rios, em todas as suas figuras, revela possibilidades práticas de interferências intencionais das práticas erotizantes no campo do estudo do direito. Impõe pensamentos necessários frente à complexidade social e às práticas situadas à margem, emergindo da tensão entre a normatividade e indomável sexual.

5. Conclusões: onde se quer chegar.

No caminho aqui desenvolvido, não buscamos nos debruçar sobre os institutos normalizadores do direito sobre o indivíduo, replicando uma conotação de controle já bastante utilizada. Diferente disso, procuramos mostrar a complexidade das práticas de normalização, permitindo a leitura das subjetividades não como dadas, mas realizadas. Tal percepção da normalização impede uma dualidade estática entre direito como controle (normalizador no sentido de colocar a lei, dizer o não e funcionar como repressão) e direito como conquista (aquilo que as subjetividades marginais buscariam para sua visibilidade e proteção). Nossa leitura é a de que a busca por direitos não é instrumento para proteger corpos ou grupos em sua natureza, mas forma de questionar os critérios de subjetivação a eles impressos e permitir a sua ressignificação. Logo, no lugar de dualidade, circuito. A busca por direitos não é a saída das normalidades desenhadas, mas seu redesenhar.

O caminho para esse pano de fundo foi o de problematizar como, a despeito de deliberações manifestas dos agentes do direito ou dos militantes de todas as ordens, sexualidades desviantes não apenas são postas e geridas pelo direito, mas também resistem e ressignificam o direito.

Se a teoria jurídica codificadora parte do pressuposto da totalidade da norma e da ausência de lacunas sistêmicas, o que subentende que todas as formas de vida aceitas e normais estão contempladas pelo sistema, e aquelas não contempladas são distúrbios, não são formas de vida válidas (e isso contribui à constituição normativa das subjetividades); práticas como as ocorreram com a travesti Indianara expõem como diante de certas configurações sobre sujeitos é demandada uma resposta do direito que perturba aquela configuração. Aparece o jogo normalização e resistência, tendo como plano de visibilidade a relação subjetividades e direito.

O estudo do Direito com base na tradição do common law, por sua vez, permite investigação com o caso concreto muito maior que a legalidade escrita. Em Pay v. UK, as performances sadomasoquistas em discussão foram, elas próprias, constituidoras de um direito fundado na corte (direito como resposta). Nada obstante isso, uma série de perguntas permaneceram, como se não houvesse um esgotamento do teórico ainda quando as minúcias se prendem na realidade material.

As lacunas denunciadas e as provocações feitas por tantas outras cenas levantadas forçam um outro olhar para a sexualidade entre direito como normalização/controle e direito como conquista. As práticas desviantes são a um só tempo fabricadas como desviantes e nisso adquirem potência jurídica. Potência de resistir de seu lugar desviante, lutar por direitos e com isso provocar produção de sentidos normativos que são ressignificação de sentidos sobre sujeitos e suas sexualidades. Assim, ciente que o direito é um campo de continuada disputa (já que não há o “golpe de misericórdia” contra a normalização, ela é apenas constantemente deslocada, atenuada e reorganizada), Roger Raupp Rios propôs antecipadamente uma alternativa. A partir dos pilares do Estado Constitucional, sobretudo nas noções de liberdade e igualdade, destilou diversos direitos sexuais. Considerar que esses são, antes, direitos e, depois, sexuais, não é frivolidade. Mais que isso, desviar da identidade para focar nas práticas, é estratégia interessante para mobilizar as sentidos cristalizados de sujeitos desviantes em termos de sexualidade. De fato, releva-se aqui o potencial construtivo derivado da enorme tensão entre as práticas hierarquicamente renegadas e a norma contemporânea. Conquanto a impermeabilidade dos legisladores e magistrados sobre tais leituras, há algo que resta incômodo no interior da sociedade, algo que, por vezes, pulula às preocupações jurídicas. É dizer que há no direito algo incompreendido, uma fissura que o permeia com a mesma dúvida de Chico Buarque de Holanda:

O que será que me dá
Que me queima por dentro, será que me dá
Que me perturba o sono, será que me dá
Que todos os tremores me vêm agitar
Que todos os ardores me vêm atiçar
Que todos os suores me vêm encharcar
Que todos os meus nervos estão a rogar
Que todos os meus órgãos estão a clamar
E uma aflição medonha me faz implorar
O que não tem vergonha, nem nunca terá
O que não tem governo, nem nunca terá
O que não tem juízo
(Chico Buarque de Holanda, "O que será (À flor da pele)")

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  • SANTOS, Andressa Regina Bissolotti. Movimento LGBT e direito: identidades e discursos em (des)construção. 2017. 234 f. Dissertação (Mestrado em Direitos Humanos e Democracia). Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade Federal do Paraná, Curitiba. Defesa em 30/03/2017.
  • WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Estabilidade e adaptabilidade como objetivos do Direito: civil law e common law. In: Revista de Processo, vol. 172, p. 121 - 174, jun. 2009.
  • WEEKS, Jeffrey. O corpo e a sexualidade. In: O Corpo Educado: pedagogias da sexualidade. LOURO, Guacira Lopes (Org.). Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
  • 1
    Vide FOUCAULT, Michel. Sexualidade e poder. In: Ditos e escritos V: Ética, sexualidade e política. 2a ed. Rio de Janeiro: Gen, 2006.
  • 2
    A noção de dispositivo é famosamente apresentada nos seguintes termos: “um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode tecer entre estes elementos” (FOUCAULT, 2000, P. 244). O dispositivo remete, assim, às complexas relações de variados elementos e práticas que veiculam atuações de poder no seu papel de fabricar e gerir objetos, conceitos, sujeitos e partes do real. O dispositivo da sexualidade, em particular, trata dos contornos da sexualidade tornados possíveis e sua administração (por saberes/práticas médicos e jurídicos na menção aqui feita).
  • 3
    A posição construcionista aparece desde pelo menos a década de 90, como central nos debates pósestruturalistas, nos debates de teoria de gênero e nos debates de estudos pós-coloniais. Como nos lembra Francisco Ortega, a compreensão de que nossas ideias e crenças acerca do corpo são construções políticas e sociais, contribuiu com pelo menos dois eventos fundamentais: a primeira contribuição foi a de finalmente carregar o corpo para o centro dos debates políticos e sociais, deslocando o corpo natural para o plano de uma realidade tornada possível pelo embate de políticas, poderes, tecnologias, discursos, posicionamentos históricos, culturais e etc; a segunda contribuição revela uma maior potência emancipatória aos campos de estudos vinculados ao construcionismo, e tem relação, assim, com sua significação ético-política, uma vez que contribui na oposição a práticas opressivas sobre gênero, idade, etnicidade, raça e etc (ORTEGA, 2014). Apesar de tais aspectos positivos ligados ao construcionismo, aos quais podemos somar também uma postura crítica à metafísica, ao vitalismo e essencialidades fundacionistas (temas caros aos pósestruturalistas, por exemplo), não foi é sem confronto que seus estudos se realizam, já que a abordagem construcionista é plural e possui diferentes nuances (sobre isto conferir WEEKS, 2015).
  • 4
    Essa questão-problema poderia se desdobrar ainda em outra: se práticas sexuais minoritárias exercerem alguma influência sobre a produção jurídica, o campo do jurídico continuaria a permitir um olhar monolítico de seu papel regulador de identidades e práticas?
  • 5
    Judith Butler ao tematizar que a produção normativa da normalidade realiza um “exterior constitutivo” da anormalidade, nomeia tais vidas excluídas do espaço normal de “corpos abjetos” (BUTLER, 2007 e 2011).
  • 6
    Sexualidade aqui pensada não em termos de realidade dada, mas aquela realizada e efetivada por práticas e modos de vida.
  • 7
    O problema da completude, como aqui trabalhado, quer indicar o desafio dos processos reiterados de abertura e fechamento de significação de subjetividades acolhidas e tratadas pelos direitos vigentes. Ou seja, se a completude é um “dogma”, a busca por direitos no plano da sexualidade tem mostrado contínuas fissuras e aberturas no sistema, seja por inclusão ou ressignificação de certas identidades e suas coberturas jurídicas.
  • 8
    A esse respeito, das potencialidades do desviante ou do excluído como remanescente, Giorgio Agamben e Judith Butler, embora não sejam aqui trabalhados, contribuem de maneira ímpar para esse debate da potência a partir da externalidade da exclusão. Agamben, com sua noção de Inoperosidade, coloca em questão aqueles que, como restos, desativam a lei como nomos e a reativam na condição de efetivação e promessa (normatividade performativa), (AGAMBEN, 2000). Já Butler, numa releitura que questiona o padrão de que a política só acontece no espaço da vida qualificada, quando superadas as futilidades da mera existência, aponta a precariedade como potência política (BUTLER, 2012).
  • 9
    Ainda que se possa questionar que tal posicionamento não realiza uma quebra final com a subjetividade, em termos de atuação jurídica significa um deslocamento de causa e efeito e de estabilidade para processos constitutivos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Mar 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2020

Histórico

  • Recebido
    28 Set 2018
  • Aceito
    08 Maio 2019
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