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Resistência Climática como Crítica à Propriedade: As Visões Alternativas de Direito que Emergem de Narrativas e Práticas de Contestação

Climate Resistance as Critique of Property: Alternative Visions of Law that Emerge from Narratives and Practices of Contestation

Resumo

O presente artigo propõe um enquadramento de atos de resistência e ativismo climático como forma de crítica da propriedade. Defende-se que o repertório contencioso de certos atores sociais no campo climático pode ser não apenas passível de ser defendido à luz do direito, mas carrega também um potencial crítico a concepções vigentes de propriedade. Para tanto, são abordados modelos teóricos que unem a discussão sobre desobediência civil e direito de propriedade. A partir disso, e com base na teoria de direito de Robert Cover, busca-se agregar uma nova dimensão normativa a tais práticas de forma a possibilitar a identificação de novas concepções e críticas da propriedade, a partir das lutas existentes.

Palavras-chave:
Desobediência Civil; Ativismo Climático; Propriedade

Abstract

The present article proposes an understanding of acts of resistance and climate activism as a form of critique of property. It argues that the contentious repertoire of certain social actors in the field of climate change can not only defensible under the law but also carries a critical potential towards current conceptions of property. To do so, it analyzes theoretical models that connect the discussion on civil disobedience and property rights. Building on this, based on the theory of law of Robert Cover, it seeks to aggregate a new normative dimension to such practices to make possible the identification of new conceptions and critiques of property, from existing mobilizations.

Keywords:
Civil Disobedience; Climate Activism; Property

1. Introdução

O presente artigo tem como objetivo reposicionar discussões existentes acerca do ativismo climático - em especial, o enfoque em ações de dano à propriedade e eco-sabotagem - para identificar neste conjunto de práticas e discursos um eixo de crítica à propriedade, que de forma mais potente alimenta narrativas comunitárias de contestação ao status quo.

O agravamento da crise climática tem produzido efeitos cada vez mais visíveis e disruptivos nas sociedades humanas contemporâneas (IPCC, 2021). Diante de um clima em rápida transformação que impõe crescentes desafios à coletividade, é inescapável o questionamento de Blumenfeld: como podemos nos adaptar a um mundo errado (e em chamas)? (BLUMENFELD, 2023BLUMENFELD, J. Climate barbarism: Adapting to a wrong world. Constellations, v. 30, n. 2, p. 162-178, 2023.)

Este quadro tem suscitado variadas reflexões acerca dos possíveis caminhos futuros de organização social e política, com distintos trabalhos articulando propostas e cenários associados a modelos democráticos, autoritários e socialistas (WAINWRIGHT; MANN, 2018WAINWRIGHT, J.; MANN, G. Climate Leviathan: a political theory of our planetary future. London New York: Verso, 2018.; HICKEL, 2020HICKEL, J. Less is more: how degrowth will save the world. London: William Heinemann, 2020.; HUBER, 2022HUBER, M. T. Climate change as class war: building socialism on a warming planet. London ; New York: Verso, 2022.; SAITŌ, 2022SAITŌ, K. Marx in the Anthropocene: towards the idea of degrowth communism. Cambridge New York Port Melbourne New Delhi Singapore: Cambridge University Press, 2022.). Como elemento mobilizador dessas investigações está a questão de como o corpo político pode se articular para promover mudanças responsivas ao novo contexto climático.

Com isto, emerge como tema de interesse as experiências de mobilização e ação coletiva em torno da pauta climática. Tem recebido particular destaque o conjunto de iniciativas e protestos liderados por jovens ativistas do Norte Global, como os movimentos Fridays for Future e Extinction Rebellion (XR), embora estes representem somente uma parcela específica dos atores sociais mobilizados pela pauta climática (DE MOOR et al., 2021DE MOOR, J. et al. New kids on the block: taking stock of the recent cycle of climate activism. Social Movement Studies, v. 20, n. 5, p. 619-625, 3 set. 2021.; NEAS; WARD; BOWMAN, 2022NEAS, S.; WARD, A.; BOWMAN, B. Young people’s climate activism: A review of the literature. Frontiers in Political Science, v. 4, p. 940876, 4 ago. 2022.; KIRSOP-TAYLOR; RUSSEL; JENSEN, 2023KIRSOP-TAYLOR, N.; RUSSEL, D.; JENSEN, A. A typology of the climate activist. Humanities and Social Sciences Communications, v. 10, n. 1, p. 896, 1 dez. 2023.).

No presente artigo, partimos de uma concepção ampla do ativismo climático que não se limita a esta vertente urbana, jovem, europeia e norte-americana, mas que também contempla outros grupos e indivíduos que têm associado lutas históricas contra desigualdade e opressão com os ditames da questão climática, sobretudo no Sul Global. Nesse sentido, nossa caracterização ampliada do ativismo climático se alinha com o que Svampa (2019SVAMPA, M. As fronteiras do neoextrativismo na América Latina: conflitos socioambientais, guinada ecoterritorial e novas dependências. [s.l.] Editora Elefante, 2019.) denomina “giro ecoterritorial das lutas”, em sua análise da América Latina, que denota a incorporação de atores indigenistas e populares na organização da esquerda política, e em que ela destaca a crescente afirmação da centralidade da pauta climática frente a processos neoextrativistas.

Em que pese a variedade e multiplicidade de formas de organização que informam a atuação destes grupos e indivíduos, têm sido objeto de particular fascinação1 1 Exemplo interessante é o sucesso do filme norte-americano “How to Blow Up a Pipeline”, que tira seu título da obra homônima de Malm (2021), e que conta a história de um ataque ficcional a um oleoduto perpetrado por jovens ativistas. e comentário as situações de dano à propriedade e as estratégias de sabotagem (MALM, 2021MALM, A. How to blow up a pipeline: learning to fight in a world on fire. First edition paperback ed. London ; New York: Verso, 2021.; SOVACOOL; DUNLAP, 2022SOVACOOL, B. K.; DUNLAP, A. Anarchy, war, or revolt? Radical perspectives for climate protection, insurgency and civil disobedience in a low-carbon era. Energy Research & Social Science, v. 86, p. 102416, abr. 2022.). Neste campo, entram as experiências de dano a estrutura de indústrias fósseis, ocupação de minas de carvão, e mesmo ataques a carros SUV. Além do destaque na cobertura midiática, o impacto dessas ações tem produzido reflexões acerca da legitimidade e efetividade de tais práticas, levando na perspectiva institucional a respostas de criminalização do ativismo climático e medidas de proteção à infraestrutura fóssil (CROCKETT, 2022CROCKETT, N. The Rise of Critical Infrastructure Protest Legislation and Its Implications for Radical Climate Activism. Colorado Environmental Law Journal, v. 33, n. 2, 2022.).

O que propomos neste artigo é expandir a chave de análise para identificar no conjunto de práticas dos ativistas climáticos um sentido comum de crítica à propriedade. Acreditamos que a contestação normativa ao estatuto jurídico da propriedade é eixo que une os distintos atores e grupos mobilizados pela pauta climática, não só os sabotadores e os que realizam táticas de dano à propriedade, mas também atores engajados em lutas ecoterritoriais que dispõem de outras abordagens de ação coletiva.

De forma geral, a crítica a ser explorada se dirige à propriedade privada, que se consolida como um dos pilares do modo de produção capitalista. Assim, o direito à propriedade é formalmente articulado a partir da identificação exclusiva de um particular detentor de certos atributos de exploração e gozo, e que tem servido como base para processos macrohistóricos de despossessão de comunidades tradicionais, extração e comodificação dos recursos vinculados ao território (MARX, 2016MARX, K. Os despossuídos: debates sobre a lei referente ao furto de madeira. São Paulo: Boitempo, 2016., 2022; SVAMPA, 2019SVAMPA, M. As fronteiras do neoextrativismo na América Latina: conflitos socioambientais, guinada ecoterritorial e novas dependências. [s.l.] Editora Elefante, 2019.; NICHOLS, 2020NICHOLS, R. Theft is property! dispossession & critical theory. Durham: Duke University Press, 2020.).

Isto não exclui também que a propriedade estatal retenha características privatistas na relação entre sujeito proprietário e coisa, atuando, sob certo enfoque, o Estado como detentor exclusivo dos bens em seu domínio (AZEVEDO MARQUES, 2014). Sendo assim, o próprio Estado pode atuar de forma similar a um particular em relação ao seu patrimônio, guardadas certas proporções. Ou seja, em certas situações, o Estado em si mesmo pode ser agente dos processos de despossessão e extração vinculados à afirmação do regime moderno de propriedade (SVAMPA, 2019SVAMPA, M. As fronteiras do neoextrativismo na América Latina: conflitos socioambientais, guinada ecoterritorial e novas dependências. [s.l.] Editora Elefante, 2019.; NICHOLS, 2020NICHOLS, R. Theft is property! dispossession & critical theory. Durham: Duke University Press, 2020.).

Sendo assim, considerando o exposto acima utilizaremos, no decorrer do artigo, a expressão “propriedade” sem adjetivá-la como privada, para deixarmos em evidência a relação de domínio sobre a coisa independentemente da qualificação jurídica do sujeito proprietário2 2 Isso não significa que concordamos que a crítica marxiana à propriedade é limitada por criticar a propriedade burguesa, e não a apropriação de objetos em geral, o que necessitaria trazer para uma teoria crítica da propriedade uma dimensão ética, como faz Daniel Loick a partir de Agamben (LOICK, 2016, p. 92-93). Para nós, basta defender que no atual estado de coisas, a diferenciação entre um sujeito de direito público ou de direito privado ser proprietário não é relevante para o desenvolvimento do argumento, sem entrarmos em detalhes sobre os limites da crítica comunista da propriedade. . Nosso argumento é que enfatizar esta dimensão crítica, como elemento pertencente à mobilização climática em uma perspectiva ampla permite a compreensão mais aprofundada do conteúdo dos discursos e práticas em questão, revelando um importante sentido de disputa jurídica em torno dos institutos que atualmente regram e continuarão a regrar a organização da propriedade enquanto transicionamos para um mundo pautado pelo colapso climático.

Para tanto, propõe-se traçar o seguinte caminho de análise. A segunda seção, após esta primeira parte introdutória, partirá do trabalho de William Scheuerman sobre desobediência civil. O autor, ao propor uma reflexão sobre o dano politicamente motivado à propriedade, traz o debate para um plano que une desobediência civil e teorias da propriedade, que delineia, de forma preliminar, a conexão entre práticas de contestação e as concepções normativas que as informam.

Sendo assim, na sequência, discutiremos o trabalho de dois outros teóricos contemporâneos críticos da propriedade, Daniel Loick (2016LOICK, D. Der Missbrauch des Eigentums. Berlin: August Verlag, 2016.) e Tilo Wesche (2022WESCHE, T. Who owns nature? About the rights of nature. Estudios de Filosofía, n. 65, p. 49-68, 31 jan. 2022., 2023), que delineiam possibilidades distintas de organização da propriedade, chamando atenção para elementos de tensão que marcam a conformação atual deste instituto jurídico.

A partir destas referências, na terceira seção, reconstruímos as práticas do ativismo climático a partir da teoria do direito de Robert Cover, conferindo a elas um peso normativo que reforça a dimensão de disputa de sentido jurídico em jogo. Em seguida, encerramos o artigo com uma breve conclusão.

Ao fim e ao cabo, o artigo esboça uma renovada concepção do ativismo climático, ampliada pela riqueza de visões alternativas ao modelo atual de propriedade. Reconhecer a carga jurídica que acompanha as práticas destes atores - para além do furor em torno das ações de sabotagem e dano à propriedade - é forma de aumentar a capacidade explicativa do fenômeno associativo climático, e, ao mesmo tempo, permite uma nova lente para examinar as relações existentes os diferentes grupos e indivíduos ativistas, assim como entre eles e o Estado.

2. Crítica da propriedade e prática política: um debate na teoria crítica

2.1. Dano à propriedade por motivação política: a posição de William Scheuerman

Assim como diversos modelos teóricos e normativos da desobediência civil se desenvolveram com movimentos políticos dos anos 1960 e 1990, o ciclo de protestos que se iniciou nos anos 2010 proporcionou um interesse renovado sobre a categoria, que passa a se engajar com novas pautas de ação coletiva como a questão climática. Um dos principais interlocutores no âmbito da teoria política e do direito é William Scheuerman (SCHEUERMAN, 2018SCHEUERMAN, W. E. Civil disobedience. Malden, MA: Polity, 2018., 2019, 2021), cuja produção envolve uma reconstrução e atualização de debates normativos e históricos da desobediência civil (PINEDA, 2022PINEDA, E. Beyond (and Before) the Transnational Turn: Recovering Civil Disobedience as Decolonizing Praxis. Democratic Theory, v. 9, n. 2, p. 11-36, 1 dez. 2022.).

A questão da violência e da civilidade é uma das principais controvérsias do campo, que se acirra quando o que está sob discussão é o dano à propriedade. A possibilidade de ataque à propriedade é, atualmente, uma das principais divisões do campo entre teóricos “liberais” e “não-liberais” da desobediência civil. Como exemplo deste segundo grupo, teóricas como Candice Delmas, que defende uma noção de “desobediência incivil”, colocariam o ataque à propriedade como legítimo na prática de protesto político (DELMAS, 2018DELMAS, C. A duty to resist: when disobedience should be uncivil. New York: Oxford University Press, 2018., 2020).

Frente a esta discussão, em texto recente, Scheuerman aponta a necessidade de se qualificar a questão do dano à propriedade por motivação política. Segundo seu diagnóstico, a teoria política e jurídica necessita de uma perspectiva mais nuançada sobre a relação entre desobediência civil e dano à propriedade: “uma tipologia conceitual mais rica”, em suas palavras (SCHEUERMAN, 2023SCHEUERMAN, W. E. Dano à propriedade por motivação política. Revista Direito e Práxis, v. Ahead of print, p. 1-29, 2023., p. 3).

O fato de haver diversas “Intenções, técnicas e estratégias subjacentes ao dano à propriedade” (SCHEUERMAN, 2023SCHEUERMAN, W. E. Dano à propriedade por motivação política. Revista Direito e Práxis, v. Ahead of print, p. 1-29, 2023., p. 8) abre a discussão para a formulação de uma tipologia específica, que relacione o dano às diversas formas de como pessoas são afetadas. A inspiração de Scheuerman é Matin Luther King, e a noção de “um núcleo de não-violência em relação às pessoas”. Como, para King, “a propriedade é um meio para um fim”, qual seja, o da vida humana, direcionando o argumento de subordinação da propriedade à pessoa. Na perspectiva de Scheuerman, quão mais separados os tipos de propriedade estiverem da pessoa proprietária, maior margem há para distinções na análise de práticas políticas específicas.

O autor propõe entre as suas categorias o dano “simbólico” à propriedade, aquele “direcionado contra um alvo selecionado principalmente em razão de seu valor simbólico ou expressivo” (SCHEUERMAN, 2023SCHEUERMAN, W. E. Dano à propriedade por motivação política. Revista Direito e Práxis, v. Ahead of print, p. 1-29, 2023., p. 11); e o “dano disruptivo à propriedade”, em que o objetivo da ação é a “disrupção ou obstrução imediata de algumas práticas que os manifestantes veem como injustas ou ilegítimas, com a propriedade-alvo vista como essencial para a prática disputada” (SCHEUERMAN, 2023, p. 14)3 3 O autor também discute a categoria de “apreensão de propriedade”, que não é central para a reconstrução proposta no presente artigo. .

A eco-sabotagem é tratada pelo autor como uma das possíveis formas de “dano disruptivo à propriedade”, revelando o possível enquadramento de algumas ações doo repertório de ativistas climáticos nesta segunda categoria. Neste caso, a preocupação de Scheuerman é que o dano seja sempre limitado a ferimentos severos a pessoas. A preocupação com o backlash é um aspecto essencial desse aspecto em sua argumentação: os ativistas que se engajam nesse tipo de prática política teriam de se submeter a “testes exigentes”.

A análise de Scheuerman sobre os danos politicamente motivados à propriedade apresenta um avanço na discussão teórica da desobediência civil por propor uma conexão com as teorias políticas da propriedade. Ou seja, Scheuerman abre uma discussão interessante: como a propriedade é justificável em primeiro lugar? Afinal, apenas a partir de uma justificativa da propriedade é que podemos pensar qual seria o seu “dano legítimo”, em suas palavras, o “dano limitado à propriedade sob as condições atualmente existentes” (SCHEUERMAN, 2023SCHEUERMAN, W. E. Dano à propriedade por motivação política. Revista Direito e Práxis, v. Ahead of print, p. 1-29, 2023., p. 4).

Sendo assim, ele considera diferença entre “teorias instrumentalistas” e “auto-desenvolvimentistas” da propriedade. Nas primeiras, a propriedade é meio para um fim mais elevado, enquanto nas segundas, ela é retratada como um fim em si mesma. O autor não complexifica a sua análise, mas se vincula à posição instrumentalista para justificar a sua posição de defesa limitada ao dano à propriedade de motivação política.

Scheuerman deixa em aberto em seu texto a possibilidade de se pensar, de forma mais ampla, a prática política do dano à propriedade com as teorias da propriedade. Para o autor, mesmo as teorias auto-desenvolvimentistas da propriedade seriam incapazes de coibir, de forma absoluta, os danos à propriedade com motivação política.

Ao mesmo tempo, essa contribuição de Scheuerman não aparenta abrir tanto espaço para novos modelos e teorias da propriedade: afinal, ainda há a separação entre “o dano” como objeto de estudo a partir da prática política, e “a propriedade”, como relação social e jurídica. O fato de termos de pensar teorias da propriedade para justificar o seu dano não permite relacionar intrinsecamente uma crítica da propriedade a partir das lutas e disputas sobre seus efeitos sociais. Se pensarmos a partir do que o autor denominou como “eco-sabotagem”, a noção instrumental da propriedade é o que faz com que algumas possibilidades de ação sejam consideráveis.

Mas sua preocupação com o backlash mostra que a ação política não tem em si potencial transformador: o objetivo é o de mostrar à esfera pública que há algo de errado com os efeitos locais de determinada prática econômica, mas não há uma crítica à propriedade propriamente dita. A posição de Scheuerman abre espaço para discussões teóricas sobre a relação entre a propriedade e ação política, mas ainda é muito limitada ao escopo das teorias da desobediência civil. Ao mesmo tempo, é possível tentar, por outras vias, aprofundar essa discussão aberta pelo autor.

2.2. Teorias críticas da propriedade - crítica da propriedade e propriedade como crítica

A discussão sobre propriedade ganhou proeminência em reflexões recentes na teoria crítica contemporânea. Desde a reavaliação da herança do idealismo alemão e seus efeitos para a crítica da propriedade a partir de Marx (BLUMENFELD, 2020BLUMENFELD, J. Property and Freedom in Kant, Hegel, and Marx. Em: FARELD, V.; KUCH, H. (Eds.). From Marx to Hegel and back: capitalism, critique, and utopia. London New York (N.Y.): Bloomsbury academic, 2020.), passando pela crítica da propriedade como elemento central para a elaboração de diagnósticos políticos para explicar o surgimento e o avanço da extrema direita (REDECKER, 2020REDECKER, E. VON. Ownership’s Shadow. Critical Times, v. 3, n. 1, p. 33-67, 1 abr. 2020.), pela reflexão crítica do instituto para se pensar o processo de colonização e suas consequências para regimes racializados de propriedade (BHANDAR, 2018BHANDAR, B. Colonial lives of property: law, land, and racial regimes of ownership. Durham: Duke University Press, 2018.) e a legitimidade da crítica indígena aos processos de despossessão (NICHOLS, 2020NICHOLS, R. Theft is property! dispossession & critical theory. Durham: Duke University Press, 2020.), é possível afirmar que há uma leitura compartilhada de que a crítica da propriedade é essencial para a formulação de um diagnóstico do tempo presente, no sentido da teoria crítica (NOBRE, 2004NOBRE, M. A Teoria Crítica. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.).

Muitos dos textos críticos não entram na discussão de como a crítica da propriedade pode ser pensada como uma avaliação normativa do instituto em geral. Grande parte dos trabalhos envolvem pensar a propriedade como um elemento entre vários no âmbito do diagnóstico a ser formulado. Exceções a essa perspectiva geral são as contribuições recentes de Daniel Loick e Tilo Wesche (LOICK, 2016LOICK, D. Der Missbrauch des Eigentums. Berlin: August Verlag, 2016.; WESCHE, 2022WESCHE, T. Who owns nature? About the rights of nature. Estudios de Filosofía, n. 65, p. 49-68, 31 jan. 2022., 2023).

Daniel Loick apresenta uma crítica total à propriedade. O que o autor denomina como crítica política oferece um modelo que deve transcender a possibilidade de se justificar normativamente o exercício do uso dos bens e da terra sem apropriação individual e coletiva (LOICK, 2016LOICK, D. Der Missbrauch des Eigentums. Berlin: August Verlag, 2016., p. 116-130). Com isso, o autor propõe que haja modelos alternativos de se lidar com o uso de quaisquer recursos que superem a noção de propriedade.

Para a discussão teórica, trata-se de uma contribuição que preclui, portanto, a articulação de discursos sobre a propriedade: há uma demanda para sua abolição. Trata-se de um modelo interessante, mas que dificulta fornecer uma ancoragem com os debates de movimentos sociais que à primeira vista não debatem o fim da propriedade como o modelo, mas disputam seus efeitos e condições em modulações locais. Afinal, de acordo com a abordagem de Loick, quaisquer modelos de apropriação, seja comunal ou coletiva, seriam insuficientes. Com isso, no que tange ao debate que relaciona crítica à propriedade nas práticas políticas do movimento climático, há uma dificuldade de se buscar um diálogo direto.

A contribuição de Tilo Wesche é interessante para a presente discussão, pois o objetivo do autor é justificar que a natureza possui direitos de propriedade e, com isso, há uma pretensão de proteção. A inspiração de Wesche é a existência de direitos da terra no Sul Global. Casos na América Latina e em outros continentes inspiram o autor a buscar a possibilidade de defender algo similar no Norte Global, a partir de uma reconstrução interna da noção e dos direitos de propriedade.

Assim, pretende propor uma forma de crítica imanente4 4 Wesche se baseia na literatura atual que discute o que é a crítica imanente no âmbito da teoria crítica contemporânea. Para o debate atual, há algumas referências nacionais e internacionais que são bem resumidas por Repa (REPA, 2016). da propriedade que justifique a partir do discurso jurídico e teórico, que a natureza possua direitos próprios e que eles possam ser protegidos. Dessa forma, trata-se de fazer com que a natureza esteja protegida como proprietária de seus bens naturais: rios, espécies animais, vegetais, entre outras (WESCHE, 2023WESCHE, T. Die Rechte der Natur: vom nachhaltigen Eigentum. Erste Auflage, Originalausgabe ed. Berlin: Suhrkamp, 2023., p. 15-18).

Portanto, o objetivo do autor é derivar uma teoria da propriedade que legitime que a natureza seja protegida como proprietária. Em sua concepção, a estratégia de justificar os direitos da natureza é uma alternativa que é capaz de superar as fraquezas de concepções antropocêntricas e eco-cêntricas que tentam justificar normativamente a proteção ambiental. Os direitos da natureza seriam uma saída interessante por serem capazes de derivar uma estrutura de validade à proteção do meio ambiente que não seja dependente do bem-estar dos seres humanos, mas que também não recaia na falácia eco-centrista de derivar uma posição normativa de um status ontológico, seja por vias científicas ou religiosas (WESCHE, 2022WESCHE, T. Who owns nature? About the rights of nature. Estudios de Filosofía, n. 65, p. 49-68, 31 jan. 2022., p. 59).

Wesche propõe uma noção de propriedade sustentável, de forma que deveres de sustentabilidade derivem da própria estrutura de propriedade (WESCHE, 2023WESCHE, T. Die Rechte der Natur: vom nachhaltigen Eigentum. Erste Auflage, Originalausgabe ed. Berlin: Suhrkamp, 2023., p. 251-252). Trata-se de uma posição derivada da defesa do autor de uma concepção de propriedade liminar5 5 Liminar como tradução de liminales Eigentum. O autor utiliza o termo para explicitar “em sentido amplo os diferentes limites que adentram à propriedade e são concomitantemente inerentes a ela” (WESCHE, 2023, p. 111) . A propriedade liminar, para Wesche, é determinada pela possibilidade de se limitar a propriedade a partir de seu próprio conceito, e não a partir de uma limitação externa6 6 O autor cita o artigo 14, §1 da Constituição Alemã: “A propriedade e o direito de sucessão são garantidos. Seus conteúdos e limites são definidos por lei.” E justifica que a concepção liminar de propriedade já prevê que o conteúdo da propriedade contém seus limites, portanto, não assumindo essa separação estanque entre propriedade e limite. No caso brasileiro, o quanto a “função social” pode ser também pensada como limite interno é um debate possível, mas que não será desenvolvido no presente artigo. Concepções diversas do princípio da função social da propriedade, do ponto de vista do direito civil, podem ser vistas na obra de Francisco Loureiro (LOUREIRO, 2002). Ao mesmo tempo, é possível indicar que a noção proposta por Wesche é distinta da formulação de função social, na medida em que pensa a propriedade como um dever específico de sustentabilidade, e não como portadora de uma cláusula geral de cumprimento, que seria especificável apenas posteriormente, pelo legislador, ou no momento de aferir se houve ou não violação ao princípio. . O seu conceito pode ser explicado sob a perspectiva de que os direitos de propriedade são limitados pelas suas próprias condições de validade: as condições de validade são, ao mesmo tempo, condições liminares, que limitam a propriedade. Assim, propriedade é validada e limitada pelos mesmos princípios normativos (WESCHE, 2023, p. 111-140).

Essa estrutura é essencial para que o autor defenda, ao contrário de teorias clássicas da propriedade, a existência de coerência entre direitos de propriedade e obrigações de sustentabilidade:

Uma coerência entre direitos de propriedade e obrigações de sustentabilidade é estabelecida com fundamento na propriedade liminar. A partir disso, obrigações de sustentabilidade formam um limite interno à propriedade. A validade dos direitos de propriedade depende do reconhecimento de seus limites (WESCHE, 2023WESCHE, T. Die Rechte der Natur: vom nachhaltigen Eigentum. Erste Auflage, Originalausgabe ed. Berlin: Suhrkamp, 2023., p. 252).7 7 As traduções em língua estrangeira foram feitas pelos autores diretamente dos originais.

A partir de sua defesa de uma teoria da propriedade específica que possibilite que a natureza possua direitos de propriedade, aos moldes dos direitos de propriedade ocidentais tradicionais,8 8 O autor atua sempre nos limites da concepção ocidental e moderna de propriedade. Conforme apontado, o objetivo é fornecer uma crítica imanente da propriedade. o autor propõe uma reflexão sobre as possibilidades e vias em que uma transformação socioecológica, que altera e economia global, seja possível com base nas reflexões teóricas que possibilitaram aceitar a ideia de direitos da natureza sob um prisma filosófico. Sua posição é clara: “essa transformação socioecológica se completa por meio da institucionalização de direitos de propriedade sustentável” (WESCHE, 2023WESCHE, T. Die Rechte der Natur: vom nachhaltigen Eigentum. Erste Auflage, Originalausgabe ed. Berlin: Suhrkamp, 2023., p. 295).

A transformação socioecológica por meio da institucionalização da propriedade da natureza é apresentada a partir de uma construção que dá prioridade à ação dos legisladores e dos tribunais na legislação e aplicação de tais direitos. A criação de direitos de propriedade à natureza é parte de uma evolução do direito que não pode ser considerada nem reformista, nem revolucionária, mas como desenvolvimento derivado da própria reconstrução normativa interna ao direito de propriedade (WESCHE, 2023WESCHE, T. Die Rechte der Natur: vom nachhaltigen Eigentum. Erste Auflage, Originalausgabe ed. Berlin: Suhrkamp, 2023., p. 299-310).

A discussão sobre a crítica da propriedade e da desobediência civil aparece para Wesche como elemento terceiro, como forma de pressão da sociedade civil para que tais direitos de propriedade sejam criados. Para o autor, “se os direitos de propriedade sustentáveis não forem introduzidos ou o forem de forma muito reticente (allzu zögerlich), eles podem se apropriar de medidas de apoio para proporcionar sua implementação” (WESCHE, 2023WESCHE, T. Die Rechte der Natur: vom nachhaltigen Eigentum. Erste Auflage, Originalausgabe ed. Berlin: Suhrkamp, 2023., p. 311). O papel do ativismo climático e das práticas sociais da sociedade civil são pensados como suplementares à legislação dos direitos de propriedade da natureza.

A atuação de movimentos sociais e outros grupos políticos é capaz de exercer uma crítica da propriedade ao direcionarem aos legisladores e juízes com o intuito de “corrigir os direitos de propriedade a bens naturais existentes e introduzir direitos de propriedade sustentáveis” (WESCHE, 2023WESCHE, T. Die Rechte der Natur: vom nachhaltigen Eigentum. Erste Auflage, Originalausgabe ed. Berlin: Suhrkamp, 2023., p. 311). Para Wesche, a desobediência civil é o último meio da crítica, que só deve ser utilizada em última instância (WESCHE, 2023, p. 312). Sua concepção de desobediência civil não é muito bem detalhada. A desobediência civil deve cumprir a função de deslegitimação dos direitos de propriedade, e a teoria dos direitos da propriedade da natureza deve funcionar como forma de proporcionar argumentos válidos para a crítica: a desobediência civil deve ser exercida contra a propriedade em nome da propriedade (WESCHE, 2023, p. 316) O autor interpreta a prática dos ativistas como forma de desenvolver o direito de propriedade, e não negá-lo: trata-se de uma forma de fornecer argumentos para ativistas em nome da propriedade:

Essa resistência contra os direitos de propriedade existentes se justifica - considerada sob o ponto de vista da propriedade liminar - do próprio direito de propriedade criticado. Se os direitos de propriedade são exercidos com custos de sustentabilidade, eles perdem sua validade e com isso sua proteção. Junto com a validade de seu direito de propriedade, uma empresa perde a sua proteção (...) ela perde a sua proteção - não a partir de perspectivas de ética ambiental, mas a partir de razões da propriedade porque a empresa não cumpre as próprias condições de validade às quais sua propriedade deve sua validade e, com isso, sua proteção. (WESCHE, 2023WESCHE, T. Die Rechte der Natur: vom nachhaltigen Eigentum. Erste Auflage, Originalausgabe ed. Berlin: Suhrkamp, 2023., p. 318)

O modelo de Wesche apresenta, portanto, uma conexão intrínseca entre desobediência civil e uma teoria da propriedade, tal qual Scheuerman pleiteou em seu artigo. Ao mesmo tempo, o autor não entra na discussão dos limites da prática de resistência e de desobediência porque, apesar de ações políticas serem justificáveis sob a teoria da propriedade liminar e dos direitos da natureza, ela é secundária à legislação desses direitos e a sua efetivação por parte dos tribunais.

A posição de Wesche é complementar a de Scheuerman, dado que a teoria da propriedade desenvolvida não se contradiz com a premissa do autor americano de que a desobediência civil não deve promover violência contra as pessoas. Em consonância, ambos os autores argumentam que o ativismo climático e a eco-sabotagem não possuem um poder transformador em si, e sua função é apenas de tornar a esfera pública sensível a temas que devem ser legislados por parte do Estado9 9 Ambos, de forma mais ou menos explícitas, estão operando no paradigma de Jürgen Habermas em Facticidade e Validade (HABERMAS, 2020). .

Com isso, a própria prática política já é definida pelos teóricos políticos e do direito de antemão: só é possível agir politicamente em determinados limites, assim como a propriedade só pode ser criticada dessa forma a partir da sua transformação imanente em propriedade sustentável. Da mesma forma que o modelo de William Scheuerman é muitas vezes criticado pela falta de radicalidade postas aos liberais, o modelo de Wesche é similarmente suscetível a essas críticas. Podemos pensar neste ponto a partir do contraste entre teorias liberais e radicais da desobediência civil proposto por Robin Celikates:

Enquanto a partir de uma perspectiva liberal a desobediência civil aparece principalmente como uma forma de protesto de indivíduos portadores de direitos contra governos e maiorias políticas que transgridam os limites estabelecidos por princípios e valores morais garantidos, a perspectiva radical democrática não vê a desobediência civil primariamente em termos de limites à soberania popular. Ao contrário, vê a desobediência civil como uma expressão possível da cidadania democrática e um contrapeso dinâmico às tendências rígidas das instituições estatais (CELIKATES, 2021CELIKATES, R. Radical Democratic Disobedience. Em: SCHEUERMAN, W. E. (Ed.). The Cambridge companion to civil disobedience. Cambridge companions to philosophy. Cambridge New York, NY Port Melbourne New Delhi Singapore: Cambridge University Press, 2021. p. 128-152., p. 143)

Tais considerações de caráter radical democrático podem inspirar uma concepção que, no caso da prática política e do ambiente climático, podem nos ajudar a pensar a conexão entre dano à propriedade e ação política como crítica à propriedade. Afinal, algumas práticas de sabotagem e de uso da terra como crítica da propriedade podem ser pensadas como contrapesos a concepções tradicionais de propriedade, mas não precisam ser definidas de antemão pelo teórico sobre qual seria a melhor visão de propriedade a ser defendida pelo movimento climático. Acreditamos que é possível, com isso, delinear algumas sugestões de perspectivas de como tais movimentos não apenas explicitam uma disputa e tentam chamar a atenção da esfera pública, mas suas práticas e táticas são criadoras de direitos e contestações políticas.

3. Nomos e a mobilização climática: posicionando a crítica à propriedade a partir das proposições de Robert Cover

A partir dos diálogos com teorias críticas da desobediência civil e da propriedade, acreditamos ser possível identificar, na prática de movimentos contestatórios e do ativismo climático, conteúdos normativos orientados à construção de sentidos jurídicos alternativos ao direito de propriedade. A premissa que queremos trabalhar é que a ação de atores sociais na pauta climática - seja ela a de protesto, desobediência civil, ação direta - expressa também um conteúdo do seu entendimento quanto ao “direito”, contestando concepções estatais normativas e veiculando novas visões de mundo acerca das relações de propriedade.

Para ilustrar esta dimensão, acreditamos ser de grande valia mobilizar a obra do teórico do direito Robert Cover que, ao estabelecer uma visão antiestatal do direito (COVER, 1983, 1986), providencia um vocabulário para acessar a normatividade na prática de atores não-estatais.10 10 Há uma recepção maior de Robert Cover no Brasil, com diferentes teores e matizes, como por exemplo, os trabalhos de Rodriguez e Gonçalves (GONÇALVES, 2022; RODRIGUEZ, 2019). Para o autor, o direito não é algo que emerge unicamente de uma fonte estatal. Muito pelo contrário, em seu célebre artigo Nomos and Narrative (COVER, 1983), Cover constrói uma visão de que diversos mundos normativos estariam sendo constantemente produzidos por meio de múltiplas narrativas comunitárias, cada uma articulando concepções específicas do direito.

Este referencial coveriano fornece uma nova lente para pensar dimensões jurídicas atreladas às lutas ecoterritoriais e aos movimentos de contestação à produção capitalista, em especial na dimensão da pauta climática. A obra de Cover permite, ao mesmo tempo, agregar um caráter normativo à mobilização climática contraposto à violência institucional dos operadores do direito estatal, e posicionar a crítica dos ativistas climáticos à propriedade como formulação de uma disputa política em torno da reformulação do próprio conceito estatal do direito da propriedade, em uma dinâmica que Cover chama de “constitucionalismo redentor” (“redemptive constitutionalism”) (COVER, 1983), que explicitaremos na próxima seção do trabalho.

3.1. Robert Cover e sua perspectiva do direito

A noção de direito de Robert Cover não pressupõe a presença do Estado. Para o autor, a criação de sentido jurídico se dá em um meio cultural, por meio de processos coletivos e sociais. Dessa forma, cada grupo ou comunidade daria origem a um “nomos” - um mundo normativo próprio - a partir de narrativas específicas que informam o que aquele conjunto de pessoas entende como direito:

O Direito pode ser visto como um sistema de tensão ou uma ponte conectando um conceito de uma realidade para uma alternativa imaginada - isso é, como um conector entre dois estados de coisas, ambos os quais podem ser representados no seu significado normativo apelas por meio dos instrumentos da narrativa. (COVER, 1983, p. 9)

Portanto, nosso universo seria ocupado por diversas comunidades normativas distintas: coletividades em que os membros compartilham significados comuns em torno das questões que regem sua vida comum. Não há um contorno específico para essas comunidades normativas, que podem abarcar desde o Estado até grupos religiosos, associações e movimentos sociais. Diferentes indivíduos podem formar diferentes comunidades e, assim, habitar diferentes mundos normativos.

O que essa concepção informa é uma representação do universo jurídico como sendo composto por vários mundos (ou “nomos”) não-hierarquizados. Nessa direção, Etxabe concebe a proposição coveriana de direito como sendo composta por uma rede de narrativas intercaladas, que não só seguem evoluindo ao longo do tempo, de modo a transformar o seu próprio “nomos” por meio da incorporação de novos significados jurídicos, mas também interagem e influenciam umas às outras (ETXABE, 2010ETXABE, J. The Legal Universe After Robert Cover. Law and Humanities, v. 4, n. 1, p. 115-147, 2010.). A esta dinâmica descentralizada de criação de múltiplos sentidos jurídicos, Cover (1983) dá o nome de “jurisgênese”.

Para Cover, o que confere o sentido de vinculação normativa aos diferentes preceitos apresentados por essas variadas visões de mundo é o comprometimento que os membros da comunidade têm à narrativa. Ou seja, identifica-se na ação social o intuito de se vincular àquela história e aos compromissos normativos que produz. Etxabe sintetiza este argumento da seguinte forma:

Comprometimento pode ser definido como um ato de engajamento pessoal com o preceito legal pelo qual o indivíduo afirma o seu sentido da maneira que diz respeito pessoalmente a ele ou ela. Pelo ato de comprometimento, o indivíduo aceita que a previsão legal, da forma como interpretada por ele ou ela, exerce influência vinculante. Portanto, enquanto o ato de interpretação confere significado particular a um preceito, comprometimento é o ato subjetivo que torna o conteúdo daquela interpretação em norma, pois determina o que a lei é e o que deve ser. (ETXABE, 2010ETXABE, J. The Legal Universe After Robert Cover. Law and Humanities, v. 4, n. 1, p. 115-147, 2010., p. 126)

A interpretação de uma comunidade acerca de uma norma somente carrega o peso de “direito” porque os membros daquela comunidade, individualmente e coletivamente, estão dispostos a viver de acordo com aquela interpretação. Tal concepção ilustra uma visão do direito para além de um exercício técnico-retórico de exegese, mas como prática cotidiana, podendo ser expressa em todos os atos da vida comum, dos mais singelos até o momento de protesto ou eventual desobediência.

Portanto, por meio desta lente coveriana, podemos passar a entender e analisar as práticas e ações de comunidades como afirmação e defesa de sentidos jurídicos e universos normativos próprios, que, por sua vez, podem, a depender da situação, estar em maior ou menor choque com outros “nomos” ou com o próprio Estado (concebido ele mesmo como um “nomos” entre vários).

No limite extremo, a disputa de sentido jurídicos posta no choque entre “nomos” pode envolver reações violentas, na medida em que o comprometimento de cada membro e cada comunidade com a normatividade de seus preceitos exige o que Cover chama de “colocar os corpos à prova” (“place bodies on the line”) (COVER, 1986, p. 1605). Isto é explicitado quando um “nomos” se choca com a ordem institucional estatal.

Uma vez que os membros de comunidades normativas conferem força vinculante aos preceitos que regem seus “nomoi”, quando o direito estatal se posiciona de tal forma ou emite decisões que inviabilizam a permanência das interpretações dessas comunidades, temos um choque frontal do Estado com a própria concepção de mundo destas comunidades. Nesses termos, comprometer-se com a sua visão de mundo é correr o risco de prisão ou até mesmo morte.

Por isso, para Cover, o direito estatal é essencialmente “jurispata”: um eliminador, antes de um criador de sentidos jurídicos. Na perspectiva coveriana, o que uma corte faz ao tomar uma decisão sobre a suposta interpretação “correta” de aplicação do direito é matar outras possíveis interpretações que existiam em paralelo à visão estatal. Para o autor, não existe uma concepção do direito mais certa ou mais errada do que outra (afinal, os “nomos” existem em rede, sem organização hierárquica), mas o direito estatal carrega o poder de violentamente suprimir demais concepções normativas, por meio da sua capacidade de aplicação de sanções e punições.

Por isso que Cover propositalmente escolhe a linguagem de violência para caracterizar estes processos. Para ele, a operação do direito estatal não é um exercício puramente teórico e intelectual, mas um ato violento que coloca as comunidades em tensão entre a escolha de continuar um conflito aberto com o Estado ou se desfazer da sua própria visão de mundo. Na introdução célebre ao seu artigo “Violence and the Word”, Cover comunica que “a interpretação jurídica ocorre em um campo de dor e morte” (“legal interpretation takes place in a field of pain and death” (COVER, 1986, p. 1601).

A ameaça de conflito com Estado é presente para qualquer tipo de comunidade normativa, a despeito do seu maior ou menor nível de interação com a esfera institucional.

Cover conceitua as comunidades normativas como habitantes de um espectro entre insularidade e disputa aberta de sentido jurídico com o Estado. Exemplos das primeiras seriam grupos religiosos como os menonitas e anabatistas nos Estados Unidos, que buscam viver afastados do restante da sociedade segundo seus preceitos próprios. Mesmo isolados, esses grupos podem entrar em disputas de sentido jurídico com o Estado para preservar aspectos integrais da sua visão de mundo. Ou seja, o conflito se dá na chave de preservação do “nomos” insular.

Por sua vez, exemplo do outro extremo do espectro seriam movimentos que buscam ativamente incidir sobre a dimensão do direito estatal para transformar os seus significados, como correntes do movimento abolicionista. Para Cover, estes grupos conformam comunidades normativas que, por meio de variadas táticas (protestos, ação direta, litigância estratégica), procuram mobilizar a esfera estatal a reformular suas interpretações, transformando não só a si mesmas, mas ao próprio “nomos” do Estado.

A este tipo de relação de comunidades normativas com o Estado Cover dá o nome de “constitucionalismo redentor” (“redemptive constitutionalism”). Na formulação de Etxabe, tais correntes redentoras querem substituir a realidade atual por outra fundamentalmente diferente.

Esta representação chama atenção para a perspectiva otimista que Cover confere à jurisgênese, como fenômeno de multiplicação de sentidos jurídicos que, em última instância, enriquece a vida social e se põe em contraponto à arbitrariedade do Estado. Sendo assim, ele conclui sustentando que arranjos constitucionais estatais deveriam buscar estratégias para legitimar as visões alternativas defendidas por comunidades e movimentos, de modo a incluir “novos mundos” ao nosso universo normativo, ao invés de eliminá-los (COVER, 1983). Portanto, conforme apontado por Gonçalves, há um aspecto democrático presente em Cover que se esboça nessa expectativa de que as ordens jurídicas de sociedades modernas possam ser capazes de considerar com devida atenção uma realidade multinormativa (GONÇALVES, 2022GONÇALVES, R. J. J. Multinormatividade, reconhecimento e nomos: elementos para uma teoria crítica do direito. Tese de Doutorado-São Paulo: Universidade de São Paulo, 2022.).

3.2. Leitura do ativismo climático a partir da visão coveriana

A obra de Robert Cover nos fornece um referencial e um vocabulário importantes para explorar as implicações jurídico-normativas que emergem das ações de mobilização em torno da pauta climática, explicitando a presença de disputas de sentido jurídico em jogo. Ao pensar o direito como algo que emerge e se expressa nas práticas e narrativas comunitárias, Cover contribui para que possamos inverter a perspectiva dos teóricos críticos examinados anteriormente: podemos partir primeiro do contexto concreto das práticas de lutas e contestações para depois formular concepções de propriedade em registro teórico.

Para tanto, o primeiro passo é identificar, na caracterização ampla de atores, ativistas e movimentos sociais associados à questão climática, a formação de comunidades normativas específicas. A perspectiva coveriana permite vislumbrar neste conjunto de atores a existência de um feixe de múltiplas narrativas comunitárias que articulam variadas formas de ver o mundo e preceitos normativos que ganham expressão em suas práticas políticas e estratégias de ação.

Sendo assim, conforme apontado anteriormente, uma linha comum a ser identificada nesse conjunto de atores - agora entendidos como comunidades normativas - é a oposição às formas de produção do capitalismo, sobretudo em sua vertente neoextrativista. Se continuarmos com a caracterização do “giro ecoterritorial” de Maristella Svampa (SVAMPA, 2019SVAMPA, M. As fronteiras do neoextrativismo na América Latina: conflitos socioambientais, guinada ecoterritorial e novas dependências. [s.l.] Editora Elefante, 2019.), pode-se propor que há uma orientação normativa comum a estes atores na direção de contestação dos elementos do direito posto que sustentam o modo de produção capitalista, como a forma moderna da propriedade privada.

Portanto, a perspectiva coveriana, ao reconhecer o valor normativo emergente destas comunidades, ajuda a explicitar como a prática dos ativistas e demais atores sociais congrega uma dimensão de crítica à formulação jurídico-estatal da propriedade, mesmo quando não envolvem diretamente a ação contra a propriedade, na forma de sabotagem ou desobediência, seja ela caracterizada como civil ou incivil. O ponto central é que tais comunidades normativas vivem disputas de sentido jurídico com o “nomos” estatal que podem se desenrolar em diversos campos.

Dentro da nossa caracterização ampla de ativismo climático, há comunidades que podemos caracterizar, em um espectro, como mais insulares, aquelas que buscam preservar modos de vida de forma mais alheia ao Estado. Na América Latina e no Brasil, comporiam este recorte, por exemplo, certas comunidades indígenas e quilombolas, que buscam reter e cultivar cosmologias que propõem outras formas de relação com a terra e a natureza.

A título ilustrativo, no livro “A terra dá, a terra quer” do falecido líder quilombola Nego Bispo, temos a seguinte representação da forma de pecuária em sua comunidade quilombola, que, por sua vez, denota uma forma distinta de organização produtiva:

Na Caatinga do Piauí, ainda hoje, plantamos cercado e criamos solto. Não há nenhuma escrituração que determine isso. O Código Civil diz que o dono do animal tem que prendê-lo, e por isso a maioria dos estados planta solto e cria preso. A lógica é que quem anda é o animal, e você tem que prender quem anda. Aqui fazemos o contrário. Cercamos a planta que não anda e deixamos solto o animal que anda. Há uma compreensão nossa - e isso é cosmológico - de que tudo o que nasceu por conta da natureza é de todo mundo. O pasto nativo aqui é comum, e a Caatinga é composta de pasto nativo. Então as pessoas daqui, mesmo que não tenham documento nenhum de posse de terra, podem criar. (SANTOS, 2023a)

Este trecho de Nego Bispo evidencia que a concepção da comunidade quilombola acerca de sua forma comunitária de pecuária não ocorre simplesmente na dimensão social ou cultural, mas é informada por um conteúdo normativo, que, por sua vez, comunica uma visão específica de mundo e do direito. Ao mesmo tempo, Cover nos auxilia a perceber que a noção de direito para os quilombolas não pode ser simplesmente descaracterizada como embasada em modos “religiosos” ou “tradicionais” em contraposto ao direito moderno: a disputa se dá no sentido do significado do que é apropriação, uso e cuidado da terra e nos embates que ocorrem entre essas perspectivas normativas.

Outro exemplo figura nas múltiplas concepções cosmológicas indígenas que interpretam o território não como “objeto” ou como propriedade produtiva a ser explorada, mas sim como ente com que se relaciona e barganha, como é expresso na concepção “Selva-Vivente” (“Kawsak Sacha”) do povo Sarayaku no Equador, da forma como apresentado no recente trabalho de Ghirotto Santos (2023). De modo geral, as concepções normativas dessas comunidades insulares expressam posturas de respeito e coabitação com a natureza, sustentando uma forma de relacionamento com o meio ambiente que não é pautada pela superexploração e extração.

No entanto, mesmo na perspectiva de isolamento, apresentam-se situações de conflito com o Estado quando a preservação do modo de vida comunitário é ameaçada por processos extrativistas, impostos de fora para dentro. No caso do Equador, pontua-se o “caso Sarayaku” em que a comunidade ingressou com pedido perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos frente ao Estado do Equador e indústrias que queriam explorar petróleo nas terras indígenas (SANTOS, 2023b). Este é um exemplo de como as comunidades insulares passam a se ver como integrantes da luta climática, reforçando o enredamento que existe entre diversos tipos de ativistas e atores sociais.

É certo que a mobilização climática envolve também movimentos abertamente redentores que atuam para viabilizar propostas de transformação do “nomos” estatal. São aqueles que buscam incidir diretamente sobre o direito posto, por meio de protestos, advocacy, litigância estratégica, entre outras táticas. Exemplos desses são as articulações para inserção dos “direitos da natureza” nas cartas constitucionais latino-americanas, que obtiveram sucesso na Bolívia e no próprio Equador (SVAMPA, 2019SVAMPA, M. As fronteiras do neoextrativismo na América Latina: conflitos socioambientais, guinada ecoterritorial e novas dependências. [s.l.] Editora Elefante, 2019.).

Essa posição fornece abertura para pensarmos diversas táticas de mobilização climática para além da necessidade de uma justificação normativa para determinadas ações que danifiquem a propriedade. Nesse sentido, práticas de sabotagem, de ocupação e de debate sobre o uso (e o abuso) de determinados recursos podem ser interpretados como disputas interpretativas do direito, e não como algo aquém ou abaixo de determinadas definições do que é justo ou injusto no que tange ao protesto ou à propriedade.

Nas duas vertentes opostas do espectro coveriano, a insular e a redentora, há a presença do choque com o Estado, às vezes mais ou menos explícito. Conforme apontado acima, mesmo as comunidades mais insulares entram em conflitos que evidenciam ser disputas de sentido jurídico em seu cerne. No Brasil, talvez o exemplo atual mais claro seja o embate jurídico em torno do marco temporal, que põe a preservação de comunidades (e da sua relação com o seu território e natureza) em direto conflito com outras concepções normativas que buscam validação na esfera estatal.

O que é evidenciado nesses casos é a contínua tensão entre jurisgênese e jurispatia. Como vimos, esses atores e movimentos, ao perfazerem comunidades normativas próprias, estão articulando outras visões de mundo que propõem outros modos de relação entre sociedade e natureza, humanos e terra, defendendo uma alternativa normativa à propriedade conforme definida no direito estatal.

Nestes termos, quando emerge uma situação de incompatibilização entre “nomoi” (o choque do Estado com as demais comunidades normativas), a resposta estatal carrega uma dimensão de violência, direta ou velada.

Mesmo quando encoberta pela linguagem técnica de decisões judiciais e administrativas (por exemplo, na forma de denegação de usucapião ou de demarcações), a ação estatal produz um resultado violento, na medida em que a consequência prática é a remoção ou impedimento de acesso da comunidade ao seu local de pertencimento. Ou seja, torna-se tangível a dimensão dos corpos à prova como efeito concreto da jurispatia estatal.

Ainda pode se dizer que essa ameaça jurispata do direito estatal permanece mesmo quando comunidades tradicionais utilizam com sucesso de ferramentas jurídicas para defender sua permanência em seus territórios. Isto porque são compelidas a adotar terminologias de “propriedade” e “posse” alheios às suas próprias concepções normativas de relação entre pessoas e natureza. Ou seja, a própria imposição de uma linguagem específica do direito estatal remete à violência e à fragilidade a que estão expostas essas comunidades, ecoando o que Nichols (2020NICHOLS, R. Theft is property! dispossession & critical theory. Durham: Duke University Press, 2020.) aponta no sentido da “recursividade” do fenômeno de despossessão: o reconhecimento momentâneo pelo Estado do status de “proprietário” de indígenas historicamente não foi barreira para que, de fato, elas seguissem perdendo o domínio sobre as suas terras11 11 No sentido de “recursividade”, Nichols propõe que, no caso de comunidades indígenas, o fato de elas serem roubadas e despossuídas é anterior à sua transformação e reconhecimento legal como proprietárias (o que, em tese, as tornaria capazes de se defender juridicamente). No contexto colonial, a violência gera o direito que é lesado. Se na perspectiva do direito privado a propriedade necessariamente tem que ter antecedência lógica ao roubo, no contexto colonial isso pode ser invertido (NICHOLS, 2020). .

Nesse sentido, vitórias no judiciário não afastam a sombra da violência e mantêm um espaço de tensão entre a jurispatia inerente da linguagem do direito estatal e o que Cover aponta como potencial de “constitucionalismo redentor. Nesta chave de tensão, as táticas de desobediência civil ou incivil certamente figuram como uma das formas pelas quais os membros de uma comunidade demonstram seu comprometimento com os preceitos e as concepções normativas pertencentes à sua coletividade. Cover destaca isso, mas o autor vai além e posiciona a desobediência como um ato radical de reinterpretação do direito12 12 “Do seu próprio ponto de vista, no entanto, a comunidade que criou e propôs viver pela sua propria compreensão divergente do direito tem uma demanda que não é de desobediência justificável, mas sim de reinterpretação radical” (COVER, 1983, p. 46) , em que a comunidade afirma seu interesse em viver de acordo com sua visão de mundo. Neste sentido, as práticas de desobediência civil são necessariamente eivadas de um sentido normativo.

Portanto, na perspectiva coveriana, a contestação à posição estatal não aparece somente na desobediência frontal às ordens ou comandos do direito posto, mas ganha corpo principalmente nas práticas cotidianas dos membros de comunidades normativas que buscam viver de acordo com aquilo que propõem.

4. Conclusão: levando o ativismo climático a sério

As análises de Scheuerman e dos críticos da propriedade Loick e Wesche revelam o emaranhamento entre prática e teoria, situando como o comportamento de atores sociais está em diálogo com as proposições do direito. A leitura coveriana expande esse quadro porque atribui a cada ator e sua comunidade uma voz na formulação de sentidos normativos. Com isto, a proposta de Cover nos direciona para uma inversão de perspectiva: deixar, em segundo plano, as análises normativas sobre legitimidade de protesto e do direito de propriedade, para focar no conteúdo expresso pelos atores sociais mobilizados. Entendemos que tal mudança de chave contribui para avançar o debate em três pontos.

Em primeiro lugar, possibilita explicitar o caráter normativo que acompanha as práticas dos movimentos climáticos. Em outros termos, faz com que seja imperativo levar a sério o ativismo climático para além de um conteúdo de propaganda, sabotagem ou de disrupção.

A partir de uma lente coveriana, acreditamos ser possível defender que o indivíduo envolvido na luta climática, quando passa a articular a disputa política coletivamente, se torna comprometido com uma visão normativa alternativa à estatal, e disposto a viver de acordo com ela. Juntamente com outras pessoas e coletivos, ele passa a formar comunidades normativas nas quais florescem novas possibilidades do direito (jurisgênese). Sendo assim, o ato de desobediência é concebido como um ato de sustentação de uma concepção normativa, e de radical reinterpretação da posição estatal, como apontado pelo autor. Isto reforça um valor de ampliarmos a compreensão do ativismo climático em suas variadas facetas, delineando a importância de expansão de linhas de investigação sobre esses atores.

Em segundo lugar, é necessário reconhecer que tais ações de contestação são muitas vezes recebidas com violência pelo Estado, não somente na resposta de agentes de segurança, mas na própria aplicação e operação do direito estatal, que Cover qualifica como jurispata. Processos de reintegração de posse, não-demarcação de terras indígenas, não-reconhecimento de propriedades quilombolas não são meras funções institucionais, mas medidas também violentas que eliminam visões de mundo (e de direito) destas comunidades. O fato de comunidades também poderem se valer do poder jurídico do Estado para se protegerem13 13 Como por exemplo, nos termos da ADPF 828, Relator Min. Luis Roberto Barroso, ainda em discussão. não elimina a ameaça violenta de despossessão.

Nesse sentido, reformula-se a análise limitada da desobediência civil ou incivil e a suposta violência do sabotador, colocando também na balança a violência do Estado. Com isso, considerações normativas de “não-violência” por parte de ativistas também precisam ser ponderadas à luz da violência do direito.14 14 O tema ganhou muita preponderância na teoria crítica contemporânea, inclusive em debates com a obra coveriana, em aspectos que não possuem espaço para serem reproduzidos aqui, como nos casos de Christoph Menke e Daniel Loick (LOICK, 2012; MENKE, 2018, 2019).

Em terceiro lugar, sublinha-se a noção de propriedade como o ponto central de disputa. Na medida em que o modo capitalista de produção, ancorado no pilar da propriedade privada, se mostrou motor de processos insustentáveis de degradação e extração da natureza, que culminaram no atual colapso climático e crise de biodiversidade. O que é comunicado tanto por sabotadores climáticos como por demais atores de contestação é a insuficiência deste conceito jurídico para regulação das relações entre pessoas, e a necessidade de sua reformulação.

Nossa análise revela como a teoria política e a teoria do direito, de forma combinada, possuem o potencial de revelar possibilidades mais amplas de interpretação de práticas sociais que, ao primeiro momento, estariam apenas em conflito direto com o direito posto. Da conexão entre ação coletiva e a crítica ao direito de propriedade emergem narrativas que articulam novas mensagens sobre possibilidades de organização frente as crises contemporâneas, ampliando os debates possíveis sobre o que queremos ser como coletividade e como podemos nos posicionar frente as transformações do colapso climático.

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  • SCHEUERMAN, W. E. Constituent power and civil disobedience: Beyond the nation-state? Journal of International Political Theory, v. 15, n. 1, p. 49-66, fev. 2019.
  • SCHEUERMAN, W. E. (ED.). The Cambridge companion to civil disobedience. Cambridge New York, NY Port Melbourne New Delhi Singapore: Cambridge University Press, 2021.
  • SCHEUERMAN, W. E. Dano à propriedade por motivação política. Revista Direito e Práxis, v. Ahead of print, p. 1-29, 2023.
  • SOVACOOL, B. K.; DUNLAP, A. Anarchy, war, or revolt? Radical perspectives for climate protection, insurgency and civil disobedience in a low-carbon era. Energy Research & Social Science, v. 86, p. 102416, abr. 2022.
  • SVAMPA, M. As fronteiras do neoextrativismo na América Latina: conflitos socioambientais, guinada ecoterritorial e novas dependências. [s.l.] Editora Elefante, 2019.
  • WAINWRIGHT, J.; MANN, G. Climate Leviathan: a political theory of our planetary future. London New York: Verso, 2018.
  • WESCHE, T. Who owns nature? About the rights of nature. Estudios de Filosofía, n. 65, p. 49-68, 31 jan. 2022.
  • WESCHE, T. Die Rechte der Natur: vom nachhaltigen Eigentum. Erste Auflage, Originalausgabe ed. Berlin: Suhrkamp, 2023.
  • 1
    Exemplo interessante é o sucesso do filme norte-americano “How to Blow Up a Pipeline”, que tira seu título da obra homônima de Malm (2021MALM, A. How to blow up a pipeline: learning to fight in a world on fire. First edition paperback ed. London ; New York: Verso, 2021.), e que conta a história de um ataque ficcional a um oleoduto perpetrado por jovens ativistas.
  • 2
    Isso não significa que concordamos que a crítica marxiana à propriedade é limitada por criticar a propriedade burguesa, e não a apropriação de objetos em geral, o que necessitaria trazer para uma teoria crítica da propriedade uma dimensão ética, como faz Daniel Loick a partir de Agamben (LOICK, 2016LOICK, D. Der Missbrauch des Eigentums. Berlin: August Verlag, 2016., p. 92-93). Para nós, basta defender que no atual estado de coisas, a diferenciação entre um sujeito de direito público ou de direito privado ser proprietário não é relevante para o desenvolvimento do argumento, sem entrarmos em detalhes sobre os limites da crítica comunista da propriedade.
  • 3
    O autor também discute a categoria de “apreensão de propriedade”, que não é central para a reconstrução proposta no presente artigo.
  • 4
    Wesche se baseia na literatura atual que discute o que é a crítica imanente no âmbito da teoria crítica contemporânea. Para o debate atual, há algumas referências nacionais e internacionais que são bem resumidas por Repa (REPA, 2016REPA, L. Reconstrução e crítica imanente: Rahel Jaeggi e a recusa do método reconstrutivo na Teoria Crítica. Cadernos de Filosofia Alemã: Crítica e Modernidade, v. 21, n. 1, p. 13-27, 2016.).
  • 5
    Liminar como tradução de liminales Eigentum. O autor utiliza o termo para explicitar “em sentido amplo os diferentes limites que adentram à propriedade e são concomitantemente inerentes a ela” (WESCHE, 2023WESCHE, T. Die Rechte der Natur: vom nachhaltigen Eigentum. Erste Auflage, Originalausgabe ed. Berlin: Suhrkamp, 2023., p. 111)
  • 6
    O autor cita o artigo 14, §1 da Constituição Alemã: “A propriedade e o direito de sucessão são garantidos. Seus conteúdos e limites são definidos por lei.” E justifica que a concepção liminar de propriedade já prevê que o conteúdo da propriedade contém seus limites, portanto, não assumindo essa separação estanque entre propriedade e limite. No caso brasileiro, o quanto a “função social” pode ser também pensada como limite interno é um debate possível, mas que não será desenvolvido no presente artigo. Concepções diversas do princípio da função social da propriedade, do ponto de vista do direito civil, podem ser vistas na obra de Francisco Loureiro (LOUREIRO, 2002LOUREIRO, F. E. A Propriedade como relação jurídica complexa. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.). Ao mesmo tempo, é possível indicar que a noção proposta por Wesche é distinta da formulação de função social, na medida em que pensa a propriedade como um dever específico de sustentabilidade, e não como portadora de uma cláusula geral de cumprimento, que seria especificável apenas posteriormente, pelo legislador, ou no momento de aferir se houve ou não violação ao princípio.
  • 7
    As traduções em língua estrangeira foram feitas pelos autores diretamente dos originais.
  • 8
    O autor atua sempre nos limites da concepção ocidental e moderna de propriedade. Conforme apontado, o objetivo é fornecer uma crítica imanente da propriedade.
  • 9
    Ambos, de forma mais ou menos explícitas, estão operando no paradigma de Jürgen Habermas em Facticidade e Validade (HABERMAS, 2020HABERMAS, J. Facticidade e validade: Contribuições para uma teoria discursiva do direito e da democracia. Tradução: Felipe Gonçalves Silva; Tradução: Rúrion Melo. São Paulo: Ed. Unesp, 2020.).
  • 10
    Há uma recepção maior de Robert Cover no Brasil, com diferentes teores e matizes, como por exemplo, os trabalhos de Rodriguez e Gonçalves (GONÇALVES, 2022GONÇALVES, R. J. J. Multinormatividade, reconhecimento e nomos: elementos para uma teoria crítica do direito. Tese de Doutorado-São Paulo: Universidade de São Paulo, 2022.; RODRIGUEZ, 2019RODRIGUEZ, J. R. Direito das lutas: democracia, diversidade, multinormatividade. 1a edição ed. São Paulo: LiberArs, 2019.).
  • 11
    No sentido de “recursividade”, Nichols propõe que, no caso de comunidades indígenas, o fato de elas serem roubadas e despossuídas é anterior à sua transformação e reconhecimento legal como proprietárias (o que, em tese, as tornaria capazes de se defender juridicamente). No contexto colonial, a violência gera o direito que é lesado. Se na perspectiva do direito privado a propriedade necessariamente tem que ter antecedência lógica ao roubo, no contexto colonial isso pode ser invertido (NICHOLS, 2020NICHOLS, R. Theft is property! dispossession & critical theory. Durham: Duke University Press, 2020.).
  • 12
    “Do seu próprio ponto de vista, no entanto, a comunidade que criou e propôs viver pela sua propria compreensão divergente do direito tem uma demanda que não é de desobediência justificável, mas sim de reinterpretação radical” (COVER, 1983, p. 46)
  • 13
    Como por exemplo, nos termos da ADPF 828, Relator Min. Luis Roberto Barroso, ainda em discussão.
  • 14
    O tema ganhou muita preponderância na teoria crítica contemporânea, inclusive em debates com a obra coveriana, em aspectos que não possuem espaço para serem reproduzidos aqui, como nos casos de Christoph Menke e Daniel Loick (LOICK, 2012LOICK, D. Kritik der Souveränität. Frankfurt am Main: Campus Verlag, 2012.; MENKE, 2018MENKE, C. Kritik der Rechte. Berlin: Suhrkamp, 2018., 2019).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2024

Histórico

  • Recebido
    05 Mar 2024
  • Aceito
    02 Jun 2024
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