Resumo
Trata-se de artigo científico cujo propósito é examinar como o não respeito às línguas nativas na produção de provas judiciais e nos demais atos procedimentais que envolvam acusados indígenas viola o princípio acusatório que, em tese, é a base do processo penal brasileiro. A insuficiente regulamentação impede o exercício pleno do direito de defesa e inviabiliza a paridade de armas entre acusação e defesa. Mesmo com as recentes Resoluções do Conselho Nacional de Justiça (Resolução n.º 287, de 2019, e Resolução n.º 454, de 2022), que estabelecem diretrizes ao encontro do necessário diálogo intercultural, o Judiciário mantém-se alheio ao debate pluricultural, reforçando o viés integracionista indigenista e, logo, a razão colonial que é instrumental para o controle da diversidade étnica. Pelo método de análise jurisprudencial e do levantamento bibliográfico, visam os autores a demonstrar como a não previsão de intérpretes e tradutores de línguas indígenas nos processos criminais que envolvam membros dos povos originários constitui-se em estratégia de silenciamento e invisibilização da etnicidade, tornando o processo penal incapaz de estabelecer um diálogo intercultural e decolonial.
Palavras-chave:
Povos Originários; Línguas Indígenas; Processo Penal brasileiro; Sistema Acusatório
Abstract
It is a scientific article whose purpose is to examine how the lack of respect for native languages in the production of judicial evidence and other procedural acts involving indigenous defendants violates the accusatory principle that, in theory, is the basis of the Brazilian criminal process. Insufficient regulation prevents the full exercise of the right of defense and precludes the parity of arms between prosecution and defense. Even with the recent Resolutions of the National Council of Justice (Resolution 287, 2019, and Resolution 454, 2022), which establish guidelines to meet the necessary intercultural dialogue, the Judiciary remains alien to the pluricultural debate, reinforcing the Indigenist integrationist bias and, therefore, the colonial reason that is instrumental for the control of ethnic diversity. By the method of jurisprudential analysis and bibliographical survey, the authors aim to demonstrate how the lack of prediction of interpreters and translators of indigenous languages in criminal proceedings involving members of the indigenous peoples constitutesIt is a strategy of silencing and invisibilization of ethnicity, making the criminal process unable to establish an intercultural and decolonial dialogue.
Keywords:
Indigenous Peoples; Indigenous Languages; Brazilian Criminal Procedure; Accusatory System
Introdução
O acesso à Justiça, como princípio basilar das sociedades modernas marcadas pela assunção do Estado Democrático de Direito, desdobra-se em várias nuances que revelam os inúmeros obstáculos impostos pela desigualdade social: neste sentido, o elevado custo dos processos judiciais, a precariedade dos órgãos de atendimento judicial gratuito e a vulnerabilidade econômica que afeta os grupos marginalizados dificultam o encaminhamento de suas demandas ao Judiciário. Do mesmo modo, o racismo estrutural e o etnocídio, presentes em órgãos judiciais, reforçam o lugar de subalternidade atribuído às pessoas negras, afrodescendentes e aos povos originários e tradicionais.
À garantia do acesso à Justiça opõem-se, portanto, embaraços que são ocasionados por atos, antecedentes e concomitantes ao atendimento judicial, que veiculam as violências de classe, étnico-racial e de gênero e que, como categorias do exame crítico do funcionamento do sistema de justiça, revelam as fissuras que estão presentes na pretensa coesão social.
Entre tais marcadores sociais desta desigualdade incluem-se as dificuldades inerentes à própria comunicação entre o Judiciário e os jurisdicionados, não só pelo empoeirado rebuscamento linguístico dos atores envolvidos, mas, também, pela não recepção ou facilitação da própria comunicação em si, notadamente quando, entre as partes, encontram-se falantes de língua materna (original ou nativa) diversa da oficial (ou padrão) língua portuguesa.
A oposição feita entre língua materna e língua padrão e a submissão daquela a esta (quando se afirma que existe um único modo correto de linguagem) são tecnologias de um poder distribuído desigualmente em sociedades multiculturais. A definição de certo e errado, em termos linguísticos, espelha preconceitos e hierarquias em sociedade e, por consequência, define o lugar que cada um de seus emissores ocupará nas instituições públicas e privadas. Em tese isento de discriminações, o Judiciário corrobora tais distinções quando impede ou dificulta a utilização de línguas nativas no curso do processo judicial e, ao mesmo tempo que viola o efetivo acesso à Justiça, revitimiza os jurisdicionados por meio de sua exclusão na produção de discursos que compõem a narrativa final do conflito examinado pelo Estado-juiz.
Esta exclusão, contudo, não se opera por mero preconceito linguístico: a ignorância quanto à relevância e a imprescindibilidade, por vezes, da utilização das línguas nativas, caracteriza-se antes como um mecanismo instrumental à formação da convicção de juízes, que, ao arrogarem para si a tarefa exclusiva de exame da culpabilidade dos agentes, veem nesta a autorização para a renúncia do necessário reconhecimento daquelas línguas, na hipótese de haver elementos que ratifiquem a versão da acusação.
Com o intuito de refletir sobre a funcionalidade política e os efeitos desses atos de silenciamento das línguas indígenas no âmbito do processo penal brasileiro, desenvolvemos a pesquisa em três seções.
Em primeiro lugar, discutimos sobre a possibilidade de realização de um diálogo intercultural, considerada a assimetria entre povos originários e sociedade não-indígena, o que interfere no estabelecimento de uma relação processual equânime; em segunda seção, caracterizamos o direito ao uso das línguas originárias (ou maternas) como uma espécie de direito humano contemplado por organismos e acordos internacionais reconhecidos pelo ordenamento jurídico brasileiro e apresentamos as regras relativas ao uso de línguas não oficiais no curso do processo penal brasileiro; por fim, na última seção, realizamos uma análise jurisprudencial de nove julgados do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal acerca da produção probatória em línguas indígenas no Brasil e as razões para o (não) acatamento pleno daquele direito humano, o que permite a reflexão acerca da instrumentalidade oculta da sua violação, se realizada.
Nossa hipótese é a de que a não previsão de intérpretes e tradutores de línguas indígenas nos processos criminais que envolvam membros dos povos originários atualiza-se como uma estratégia de silenciamento e de invisibilização da etnicidade nas demandas do Judiciário, tornando o processo penal incapaz de estabelecer um diálogo intercultural e decolonial que, a partir do acolhimento da diversidade, busque a concretização dos ideários de justiça.
1. Dissonância e polifonia na promoção de um diálogo intercultural
Considerada como traço integrante significativo do acervo cultural das sociedades, a linguagem é, nas palavras de Inês Virgínia Prado Soares (2008SOARES, Inês Virgínia Prado. Cidadania cultural e direito à diversidade linguística: a concepção constitucional das línguas e falares do Brasil como bem cultural. Revista Internacional de Direito e Cidadania, v.1, n.1, jun.2008, São Paulo: Habilis, 2008, p. 83-101., p. 84), um guia fundamental para a compreensão da humanidade sobre sua própria trajetória, tanto para a presente, quanto para as futuras gerações. Por meio da linguagem, os indivíduos são capazes de formar sua própria subjetividade a partir da comunicação com o outro, da transmissão e do compartilhamento de ideias e de valores que, cotejados, opostos e ressignificados, geram a possibilidade da coexistência sociopolítica. É a linguagem, pois, o que garante a construção de identidades e diferenças, ativamente produzidas, discursiva e simbolicamente, no mundo social e cultural (SILVA, 2014SILVA, Tomaz Tadeu da. A produção social da identidade e da diferença. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.); HALL, Stuart; WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2014., p. 76). Por tais razões,
[a] linguagem, forma de expressão estreitamente ligada à liberdade e à essência da vida humana, pode ser tratada no plano jurídico como bem cultural viabilizador de direitos humanos e como vetor do patrimônio cultural imaterial. Nesse sentido, a utilização da língua é exercício dos direitos culturais linguísticos, contrapartida dos direitos de liberdade de expressão e comunicação e materialização do bem cultural intangível (forma de expressão). (SOARES, 2008SOARES, Inês Virgínia Prado. Cidadania cultural e direito à diversidade linguística: a concepção constitucional das línguas e falares do Brasil como bem cultural. Revista Internacional de Direito e Cidadania, v.1, n.1, jun.2008, São Paulo: Habilis, 2008, p. 83-101., p. 84)
Para além de sua função cultural, a língua, para Jünger Habermas (2007HABERMAS, Jünger. A inclusão do Outro: estudos de teoria política. São Paulo: Edições Loyola, 2007., p. 31), é “[...] o mais importante meio de coordenação das ações. Juízos e posicionamentos morais que se apoiam em normas internalizadas se exprimem numa linguagem carregada de emoções” - de tal forma que a possibilidade de coexistência de múltiplas vozes em um debate público é o que permite a concretização da participação democrática nas sociedades modernas. A inclusão do Outro (e, por consequência, a oitiva de suas línguas e vozes) é o que fortalece, para o filósofo, a esfera pública e, assim, as democracias, fazendo-se destacar uma finalidade política atrelada à linguagem.
Por tais razões, Luis Felipe Miguel (2014MIGUEL, Luís Felipe. Democracia e Representação: territórios em disputa. São Paulo: Editora Unesp, 2014., p. 216) afirma que a polifonia, como essa pluralidade de vozes e de perspectivas incidentes na elaboração de um discurso final, é o que, de fato, viabiliza o modelo deliberativo habermasiano, de sorte que, para o filósofo alemão, a princípio, “[...] a própria inclusão produziria a legitimidade das decisões e da justiça”.
Logo, além do papel formulador de identidades socioculturais e da possibilidade de veiculação, por si, das cosmovisões correspondentes às diversas culturas de seus emissores, a linguagem pode espelhar, também, os embates de diferentes grupos sociais envolvidos na tarefa de se imporem politicamente sobre os demais, ainda que dentro do conceito de esfera pública e do indissociável aspecto de conflituosidade por vezes presente. Assim, a sobreposição histórica de uma língua às outras conduz à hegemonização de um discurso ou, ao menos, de um método que leva à sua construção.
A definição de uma única língua como sendo a padrão ou oficial em sociedades plurais e multiculturais como a brasileira resulta do longo processo de conflituosidade histórica entre os diversos grupos sociais e que, antagonizando-se, hierarquizaram as correlatas línguas como certas e erradas para fins de controle político de um grupo por outro. Como exemplo, menciona-se a proibição do nheengatu nas terras brasileiras, em meados do século XVIII, por Sebastião José de Carvalho e Melo (o Marquês de Pombal), ao iniciar uma série de reformas para regeneração econômica da antiga metrópole do Brasil. Segundo determinações de seu “Directório que se deve observar nas povoações dos índios do Pará e Maranhão”, datado de 3 de maio de 1757 (estendido a todo o Brasil, por força do Alvará de 17 de agosto de 1758), a abolição do nheengatu, como língua-geral falada entre colonizadores e indígenas, e a obrigatoriedade do uso da língua portuguesa atenderiam ao propósito de formação de uma única nação, subserviente à Coroa (MAXWELL, 1996MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal: paradoxo do Iluminismo. Trad. Antônio de Pádua Danesi. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996., p. 139).
Na contemporaneidade, a disputa por uma única língua não arrefeceu: antes, constitui parte estratégica da influência cultural no contexto geopolítico (como instrumento a serviço de um soft power), além de garantir uma renovação do projeto de colonialidade e de violência epistêmica que mantêm as hierarquizações historicamente consolidadas em cada sociedade. Logo, “[e]mbora estas estruturas tenham sido desintegradas, com o final do colonialismo enquanto sistema, elas abriram espaço ao surgimento de relações de colonialidade cultural, mais duradouras e de caráter simbólico, perpetuando a dominação colonial [...].” (MARTINS; SILVA; COELHO, 2020MARTINS, Bruna; SILVA, Rui da; COELHO, La Salete. O poder simbólico e a cooperação portuguesa: uma análise sobre o papel da língua. Cadernos de Estudos Africanos, v. 39, p. 17-30, 2020., p. 24)
Portanto, como ensina Tomaz Tadeu da Silva (2014SILVA, Tomaz Tadeu da. A produção social da identidade e da diferença. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.); HALL, Stuart; WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2014., p. 76),
[j]á sabemos que a identidade e a diferença são o resultado de um processo de produção simbólica e discursiva. O processo de produção simbólica e diferenciação linguística por meio do qual elas são produzidas está longe, entretanto, de ser simétrico. A identidade, tal como a diferença, é uma relação social. Isso significa que sua definição - discursiva e linguística - está sujeita a vetores de força, a relações de poder. Elas não são simplesmente definidas; elas são impostas. Elas não convivem harmoniosamente, lado a lado, em um campo sem hierarquias; elas são disputadas.
Sendo assimétrica a relação de poder entre os variados grupos sociais, o reconhecimento (ou não) do uso de línguas maternas (originais ou nativas) impacta na forma como tal poder é (ou deveria ser) distribuído e exercido. Havendo concentração da linguagem, concentra-se o poder: significa dizer que a mera inclusão do Outro no debate público, segundo o modelo deliberativo habermesiano, não indica a imediata ocorrência de interações igualitárias entre os emissores, pois sem o reconhecimento e a integração das várias vozes que conduzem à polifonia, suas falas se mantêm na marginalidade do discurso final.
Em outras palavras, no caso de sociedades multiculturais, a facilitação no uso de línguas diversas da língua padrão rompe com o modelo monista e colonial dos Estados e, por oposição, a dificuldade imposta ao uso daquelas reforça este modelo, à medida que desconsidera seus falantes como sendo verdadeiros sujeitos de direitos em razão de todos os preconceitos vinculados à imagem do indígena.
A visão do índio como um estereótipo nega essa condição do sujeito iminente, prestes a ser, em latência, ao mesmo tempo em que neutraliza a relação entre identidade e alteridade, contida nos processos discursivos. Embora ocorram necessariamente no sujeito, tais processos não se originam nele, o que provoca, de certo modo, um estranhamento durante o ato enunciativo, do enunciador em relação a si mesmo. (LIMBERTI, 2009LIMBERTI, Rita de Cássia Pacheco. Discurso indígena: aculturação e polifonia. Dourados: Editora UFGD, 2009., p. 31)
Assim, revisitando o modelo deliberativo habermasiano para destacar o caráter de conflituosidade em sua base, Luís Felipe Miguel (2014MIGUEL, Luís Felipe. Democracia e Representação: territórios em disputa. São Paulo: Editora Unesp, 2014., p. 223) afirma que
[o] ideal habermasiano de consenso esclarecido é uma espécie de canto monódico; acrescentado da exigência de incorporação das múltiplas perspectivas sociais, torna-se a polifonia referida antes. Mas essa polifonia, enquanto resultado harmonioso da convivência entre diferentes melodias, também exigiria a compatibilização (embora não uniformização) dos vários conhecimentos sociais situados, que se comunicam uns aos outros por meio do debate racional. Uma consciência mais aguda das limitações impostas pela estrutura do campo à presença dos discursos dominados permite entender que, antes de participantes do arranjo polifônico, a eles cabe o papel de ruído, de dissonância.
A dissonância, como ruído de comunicação, provém do reconhecimento de que as línguas nativas serão, por vezes, desconsideradas do debate público e, portanto, afastadas da esfera deliberativa no corpo social. Contudo, sua presença marcante e a necessidade de seu reconhecimento, por força do ideário democrático das sociedades modernas, produzem rupturas no discurso hegemônico e abrem a possibilidade de construção de sentidos alternativos e de pluralidade de perspectivas.
Portanto, seja como elemento dissonante ou polifônico, o uso das línguas maternas revela as assimétricas relações entre os grupos marginalizados e hegemônicos. No caso dos povos originários, esta tensão revela-se no ocultamento da sua diversidade linguística e, portanto, no afastamento das demandas por seu reconhecimento e instrumentalização das línguas nativas, em especial nas relações jurídicas.
A imposição de uma única língua oficial e o fechamento à promoção de um diálogo intercultural são formas, também, de dulcificação ou adestramento dos falantes de línguas nativas, colonizados por um saber-poder que visa a lhes insuflar uma “alma moderna”, que é continuamente produzida pela série de submissões ideológicas e culturais “[...] que se exerce sobre os que são punidos - de uma maneira mais geral sobre os que são vigiados, treinados e corrigidos, sobre os loucos, as crianças, os escolares, os colonizados, sobre os que são fixados a um aparelho de produção e controlados durante toda a existência” (FOUCAULT, 1999FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1999., p. 28). Neste sentido,
[...] a língua dominante é a única língua que significa "progresso" e está associada com modernidade e avanço. Em outras palavras, a linguagem dominante é posicionada em um lugar de privilégio e status superior em comparação com as línguas indígenas. Inversamente, não dominantes, culturas e línguas [indígenas] são relegadas a uma posição no passado, como estáticas, e como em processo de desaparecimento1 1 Texto original: “[...] the dominant language is the only language that signifies “progress” and is associated with modernity and advancement. In other words, the dominant language is positioned in a place of privilege and higher status in comparison to Indigenous languages.” (LEE, 2009, p. 314) . (LEE, 2009LEE, Tiffany S. Language, identity, and power: Navajo and Pueblo young adults’ perspectives and experiences with competing language ideologies. Journal of Language, Identity, and Education, v. 8, p. 307-320, 2009. Disponível em: https://doi.org/10.1080/15348450903305106. Acesso em: 15 nov.2022.
https://doi.org/10.1080/1534845090330510... , p. 314) [tradução livre]
Ante a assimetria entre os falantes, Enrique Dussel (1993DUSSEL, Enrique. 1492 - O encobrimento do Outro: a origem do “mito da modernidade”. Tradução: Jaime A. Clasen. Petrópolis: Vozes, 1993.) questiona se é possível o desenvolvimento de uma teoria ou “filosofia do diálogo” habermasiana como parte integrante de uma filosofia da libertação do oprimido. Para o filósofo argentino, a exclusão do Outro inviabiliza a empiria de tal diálogo, ao menos de início, tendo em vista que o choque (e não encontro) entre o colonizador europeu e os povos originários provocou não só o genocídio destes, mas, também, seu ocultamento e destruição. Considerando que a estratégia de colonização do Outro pressupunha o seu encobrimento e redução à mesmice da identidade europeizada, não seria possível um diálogo intercultural, de fato, operar-se.
Vê-se, pois, que a não realização de um diálogo intercultural que prestigie as línguas nativas funciona como parte da engrenagem das estruturas assimétricas de poder, em especial nas sociedades colonizadas. Porém, em sociedades multiculturais como a brasileira, a promoção do diálogo intercultural impõe-se como medida salutar, não apenas pelo reconhecimento da condição de sujeitos de direitos dos indígenas, mas, também, pela busca de efetiva solução para os conflitos interétnicos que por vezes ocorrem.
Posicionando-se sobre o uso de línguas nativas pelos povos originários argentinos frente ao Poder Judiciário, Fernando Kosovsky (2021KOSOVSKY, Fernando. El derecho de los Pueblos indígenas al uso del propio idioma en sede judicial. Revista Derechos en Acción, año 6, n. 19, p. 605-638, 2021. Disponível em: https://doi.org/10.24215/25251678e527. Acesso em: 15 nov.2022.
https://doi.org/10.24215/25251678e527...
, p. 638) chega à seguinte conclusão que, ressalvadas as poucas distinções de organização administrativa federativa entre os dois países, poderia ser estendida para a análise do Judiciário brasileiro na temática, dada a similitude de desafios:
Recuperando a ideia inicial: o direito ao uso da própria língua dos povos indígenas em sede judicial interpela e põe a nu as ideias de supremacistas culturais que desprezam o direito dos povos indígenas, negando-lhes a liberdade de se expressarem na sua língua nos graus judiciais. Conseguir a efetiva garantia do intérprete para o uso do próprio idioma indígena abre aos povos o desafio com um destino ainda incerto, que exige do estado nacional [...] tomar medidas positivas para sua adequação. Enquanto isso, os avanços dependerão, em boa medida, da perseverança e insistência dos povos indígenas em seus planos para conseguir avanços em cada grau judicial, abrindo caminho entre o pensamento dialógico, acrônico e racista enraizado em grande parte dos operadores judiciais.2 2 Texto original: “Recuperando la idea inicial: el derecho al uso del propio idioma de los pueblos indígenas en sede judicial interpela y pone al desnudo las ideas de supremacistas culturales que desprecian el derecho de los pueblos indígenas negándoles la libertad de expresarse en su idioma en los estrados judiciales. Lograr la efectiva garantía del intérprete para el uso del propio idioma indígena abre a los pueblos el desafío con un destino aún incierto, que exigir a los estados nacional y provincial tomar medidas positivas para su adecuación. Mientras tanto los avances dependerán, en buena medida, de la perseverancia e insistencia de los pueblos indígenas en sus planteos para lograr avances en cada estrado judicial, abriéndose paso entre el pensamiento dialógico, acrónico y racista arraigado en gran parte de los operadores judiciales.” (KOSOVSKY, 2021, p. 638) [tradução livre]
Mais do que a promoção de polifonia nas narrativas judiciais, com o acolhimento de diversos enunciadores no discurso judicial final, deve-se promover o debate capaz de dar peso e valor à contribuição de cada voz e enunciado; significa dizer que, ao Poder Judiciário brasileiro põe-se o desafio de realização de um debate que seja capaz de superar a disputa de narrativas como mera dissonância para a efetiva concretização da troca intercultural.
2. O direito humano às línguas nativas no plano internacional e nacional
O direito ao uso das línguas nativas pelos povos originários é reconhecido, no plano internacional, como um direito humano e constitui parte das conquistas do movimento indígena no âmbito global. Desde a tentativa do Chefe Deskaheh, do Povo Cayuga, em 1923, junto à Liga das Nações, de defender o direito às terras das Seis Nações Iroquois, situadas nos Estados Unidos da América, e de viver segundo as próprias leis, o movimento indígena veio acumulando uma série de embates pelo reconhecimento pleno de sua autonomia, desenvolvendo-se, assim, a habilidade de se comunicarem com não-indígenas segundo as regras internas dos organismos internacionais.
Até o final do século XX, direitos e povos indígenas pareciam duas realidades difíceis de conjugar. No entanto, a tenacidade do movimento indígena ao longo de muitos anos está tornando possível hoje uma parte daquilo que o esperançado Deskaheh, chefe indígena Cayuga, tentou começar sem sucesso momentâneo em 1923, frente ao então palácio da Liga das Nações: que os indígenas tivessem voz própria no organismo internacional dos povos livres. O desafio custou a Deskaheh o exílio para a vida. Quase cem anos se passaram, e embora falte uma longa distância a percorrer, no presente as demandas indígenas encontram canais anteriormente imprevistos em nível internacional, tanto no sistema das Nações Unidas como no sistema interamericano de direitos humanos.3 3 Texto original: “Hasta fines del siglo XX, derechos y pueblos indígenas parecían dos realidades difíciles de conjugar. Sin embargo, la tenacidad del movimiento indígena a lo largo de muchos años está tornando posible hoy una parte de aquello que el esperanzado Deskaheh, jefe indígena Cayuga, intentó conseguir sin éxito momentáneo en 1923, frente del entonces palacio de la Sociedad de Naciones: que los indígenas tuvieran voz propia en el organismo internacional de los pueblos libres. El desafío le costó a Deskaheh el exilio de por vida. Han pasado casi cien años, y si bien falta un extenso trecho por recorrer, en el presente las demandas indígenas encuentran canales antes insospechados a nivel internacional, tanto en el sistema de las Naciones Unidas como en el sistema interamericano de derechos humanos.” (CELADE, 2014, p. 25) (CELADE, 2014, p. 25) [tradução livre]
Imediatamente atrelado à noção de acervo cultural de um povo, o direito ao uso da língua original não se limita, contudo, à sua expressão cultural: antes, é o instrumento que define o acesso dos povos originários a todos os demais direitos humanos e, portanto, o seu real status como sujeitos de direitos junto às sociedades de Estado. Segundo Fernand de Varennes e Elżbieta Kuzborska (2016, p. 282):
Povos indígenas em todo o mundo têm visto frequentemente suas línguas e culturas desconsideradas, manchadas ou mesmo suprimidas. O legado dessas práticas permanece entre nós ainda hoje e pode ser testemunhado através das baixas taxas de retenção e sucesso nas escolas que ensinam em um idioma estranho para muitas crianças indígenas, bem como a recusa comum e continuada das autoridades estatais em usar as línguas originárias em seus contatos e interação com as populações indígenas. Isso, por sua vez, resulta frequentemente em comunicações ruins e acesso a serviços sociais e cuidados de saúde, emprego limitado e oportunidades de avanço para os povos indígenas, e talvez pior, uma visão de que as línguas e culturas indígenas são de alguma forma menos dignas ou inúteis.4 4 Texto original: “Indigenous peoples throughout the world have often seen their languages and cultures disregarded, denigrated or even suppressed. The legacy of these practices remain among us even today and can be witnessed through the low retention and success rates in schools teaching in a language alien to many indigenous children, as well as the common and continued refusal of state authorities to use indigenous languages in their contacts and interaction with indigenous populations. This in turn frequently results in poor communications and access to social services and health care, limited employment and advancement opportunities for indigenous peoples, and perhaps worse a view that indigenous languages and cultures are somehow less worthy or useless.” (VARENNES; KUZBORSKA, 2016, p. 282) [tradução livre]
Deste modo, o reconhecimento das línguas nativas pode, simultaneamente, servir como porta de entrada ou de saída para a dignidade dos povos originários (ibidem, p. 282), a depender do empenho estatal de promoção ou não do diálogo intercultural. Por tais razões, vários dispositivos convencionais e declaratórios, nos âmbitos regional e global, explicitam o direito humano à língua nativa e que, no Brasil, encontram assento pela adesão do País às suas diretrizes.
No Sistema Interamericano de Direitos Humanos, deve-se mencionar a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969, que, em seu artigo 8º, item 2, alínea “a”, afirma como direito do acusado “[...] ser assistido gratuitamente por tradutor ou intérprete, se não compreender ou não falar o idioma do juízo ou tribunal” (BRASIL, 1992b_____. Decreto n.º 678, de 6 de novembro de 1992. Promulga a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969. 1992b. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d0678.htm. Acesso em: 15 nov.2022.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/dec...
). Mas, para além da defesa do uso de línguas que não sejam consideradas oficiais na esfera do Poder Judiciário, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) já se pronunciou sobre a necessidade de tradução de documentos oficiais na língua nativa de um povo afetado por decisão estatal ou governamental, bem como a obrigatoriedade ao Estado de garantia de uma comunicação que respeite o uso de línguas nativas.
Neste sentido, nos casos “Comunidades Indígenas Miembros de la Asociación Lhaka Honhat (Nuestra Tierra) Vs. Argentina” e “Pueblos Indígenas Maya Kaqchikel de Sumpango y otros Vs. Guatemala”, a Corte IDH pronunciou-se sobre o direito dos povos originários de participarem da vida cultural dos Estados, por considerar que a identidade cultural é parte da noção de desenvolvimento progressivo (CORTE IDH, 2022, p. 107). Do mesmo modo, especificamente quanto à Opinião Consultiva OC n.º 29/22, de 30 de maio de 2022, solicitada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), sobre enfoques diferenciados para pessoas em privação de liberdade, a Corte IDH (2022, p. 114-115) definiu que:
[...] o exercício dos direitos tutelados pela Convenção Americana por parte das pessoas indígenas privadas de liberdade exige como pressuposto que elas possam expressar-se e receber informação em seu idioma ou língua. Consequentemente, os Estados devem: a) garantir que qualquer informação fornecida ao resto da população penitenciária, em especial aquela relativa a seus direitos, ao estado de seu processo, e ao tratamento médico recebido, seja traduzida ao idioma das pessoas indígenas. Se estas não souberem ler, deverão ser lidas por intérpretes; b) fornecer interpretação sobre as diligências e procedimentos administrativos e judiciais que possam afetar os seus direitos, quando as pessoas indígenas não falam a língua em que esses processos são conduzidos, ou quando solicitam expressar-se na sua própria língua, e c) abster-se de proibir as pessoas indígenas privadas de liberdade de se expressarem na língua da sua escolha, o que constitui um tratamento discriminatório contrário à Convenção Americana.5 5 Texto original: “A la luz de las normas y estándares anteriormente expuestos, la Corte considera que el ejercicio de los derechos tutelados por la Convención Americana por parte de las personas indígenas privadas de libertad exige como presupuesto que ellas puedan expresarse y recibir información en su idioma o lengua. Consecuentemente, los Estados deben: a) garantizar que cualquier información brindada al resto de la población penitenciaria, en especial aquella relativa a sus derechos, el estado de su proceso, y el tratamiento médico recibido, sea traducido al idioma de las personas indígenas. Si estas no saben leer, deberán ser leídas a ellas por parte de intérpretes; b) brindar interpretación en aquellos procedimientos y diligencias administrativas y judiciales que puedan afectar sus derechos, cuando las personas indígenas no hablen el idioma en que tales procesos sean conducidos, o cuando soliciten expresarse en el idioma propio, y c) abstenerse de prohibir a las personas indígenas privadas de libertad expresarse en el idioma de su elección, lo cual constituye un trato discriminatorio contrario a la Convención Americana.” (CORTE IDH, 2022, p. 114-115) [tradução livre]
Por sua vez, no âmbito do sistema global, a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais dispõe, no artigo 12, a obrigação de os Estados fornecerem serviços de intérprete aos povos originários para que possam compreender e que se façam compreender em procedimentos legais, assegurando seus direitos; ainda, conforme o artigo 28, deve-se ensinar às crianças dos povos interessados a leitura e escrita na sua própria língua ou na língua mais comumente falada pelo grupo a que pertençam e, quando isso não for viável, deve-se realizar consulta com tais povos para a adoção de medidas que permitam tal objetivo, assegurando-se, também, a oportunidade de domínio da língua oficial e a preservação das línguas indígenas; por fim, segundo o artigo 30, cabe aos Estados a distribuição de “[...] traduções escritas e [a] utilização dos meios de comunicação de massa nas línguas desses povos”, a fim de passar informações sobre seus direitos e deveres como cidadãos (BRASIL, 2019).
Na mesma direção, o PIDESC - Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais estabelece no artigo 2º, item 2, que os Estados comprometem-se a garantir todos os direitos nele previstos “[...] sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer outra situação.” (BRASIL, 1992a_____. Decreto n.º 591, de 6 de julho de 1992. Atos Internacionais. Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Promulgação. 1992a. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0591.htm. Acesso em: 15 nov.2022.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/dec...
)
Por fim, a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas prevê uma série de diretrizes em seus artigos 13, 14 e 16, relativas, respectivamente, à manutenção de sua cultura, de seu sistema educacional e ao acesso à informação (ONU, 2008). Ainda, em 2019, foi instituída a Década Internacional das Línguas Indígenas, entre os anos de 2022 a 2032, com o propósito de alertar sobre a situação crítica das línguas indígenas, a demandar recursos para sua preservação, revitalização e divulgação. A medida convida os Estados, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), bem como outros atores, indígenas e não-indígenas, para o estabelecimento de mecanismos nacionais para a adoção de medidas protetivas das línguas (ONU, 2019).
Todas estas disposições apresentam como o direito à língua é a garantia de pleno exercício da cidadania e, pelas mesmas razões, a exigência de que os Estados observem a necessária presença de intérpretes e de tradutores quando do diálogo com os povos originários é medida indispensável para a realização de justiça. Assim, Kristen Carpenter e de Alexey Tsykarev (2020CARPENTER, Kristen; TSYKAREV, Alexey. (Indigenous) Language as a human right. UCLA Journal of International Law and Foreign Affairs, v. 24, n. 49, 2020, p. 49-162. Disponível em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3649091. Acesso em: 15 nov.2022.
https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?...
, p. 57) sustentam que:
[u]ma abordagem dos direitos humanos às línguas indígenas poderia inspirar, por exemplo, a consciência da própria existência das línguas indígenas; confiança renovada na utilização da língua ou no pedido de tradução; compreensão e cura da vergonha das gerações anteriores para as quais a língua era proibida pelos governos; ação coletiva e solidariedade entre os povos indígenas que procuram aprender e transmitir as suas línguas às gerações futuras; e uma compreensão contemporânea de que a língua indígena é relevante não apenas para a cultura, mas também para o desenvolvimento, a ciência e a governança. Uma abordagem de direitos humanos para a língua indígena reconhece que essas línguas são vitais e não arcaicas, e que os governos, juntamente com outras instituições e atores, devem trabalhar para realizar seu potencial por razões de dignidade humana e bem-estar social.6 6 Texto original: “A human rights approach to indigenous languages could inspire, for example, awareness of the very existence of indigenous languages; renewed confidence in using one’s language or asking for translation; understanding and healing from the shame of previous generations for whom the language was forbidden by governments; collective action and solidarity among indigenous peoples who seek to learn and transmit their languages to future generations; and a contemporary understanding that indigenous language is relevant not just to culture, but also to development, science, and governance. A human rights approach to indigenous language recognizes that these languages are vital rather than archaic, and that governments along with other institutions and actors must work to realize their potential for reasons of human dignity and societal wellbeing.” (CARPENTER; TSYKAREV, 2020, p. 57) [tradução livre]
No plano interno, são poucas as diretrizes relativas ao direito ao uso das línguas maternas e à sua implementação, destacando-se as orientações de índole constitucional, legal e administrativa.
De acordo com o artigo 210, §2º, da Constituição Federal, garante-se que o ensino fundamental será ministrado às comunidades indígenas em sua língua, respeitando-se processos próprios de aprendizagem; ainda, segundo o caput do artigo 231, o Estado reconhece aos indígenas o direito às línguas (BRASIL, 1988). Segundo Inês Virgínia Prado Soares (2008SOARES, Inês Virgínia Prado. Cidadania cultural e direito à diversidade linguística: a concepção constitucional das línguas e falares do Brasil como bem cultural. Revista Internacional de Direito e Cidadania, v.1, n.1, jun.2008, São Paulo: Habilis, 2008, p. 83-101., p. 100), mesmo que não haja a admissão de uma pluralidade linguística, com a imposição da língua portuguesa como sendo a língua oficial, a permissão e previsão de co-oficialidade de outras línguas é uma medida que se coaduna às características do Estado Democrático, seja em razão do reconhecimento de um direito fundamental linguístico, seja pelo reconhecimento das línguas maternas como bens culturais brasileiros. Além disso:
O processo de inserção de outras línguas brasileiras em espaços em que a língua portuguesa tem hegemonia, exige a colocação do aparato administrativo à disposição da comunidade ou do indivíduo. A atuação do Estado deve ser centrada na necessidade de criação e oferta de estruturas que garantam a manutenção do falar da comunidade numa perspectiva intergeracional. (SOARES, 2008SOARES, Inês Virgínia Prado. Cidadania cultural e direito à diversidade linguística: a concepção constitucional das línguas e falares do Brasil como bem cultural. Revista Internacional de Direito e Cidadania, v.1, n.1, jun.2008, São Paulo: Habilis, 2008, p. 83-101., p. 101)
De fato, é pouca a regulamentação infraconstitucional sobre o uso de línguas que não sejam a oficial portuguesa, especialmente quanto ao acesso à Justiça. Assim, estipula a Lei n.º 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), em seu artigo 162, que o juiz nomeará intérprete ou tradutor quando necessário para a tradução de documento redigido em língua estrangeira, para verter ao português declarações de partes e de testemunhas que não conheçam o idioma nacional ou para realizar a interpretação simultânea daqueles oriundos das partes e testemunhas com deficiência auditiva que se comuniquem por meio da Língua Brasileira de Sinais, ou equivalente, se solicitado (BRASIL, 2015). Não há regras específicas para línguas indígenas.
Por sua vez, o Código de Processo Penal (Decreto-Lei n.º 3.689, de 3 de outubro de 1941) determina a presença de intérprete quando o interrogando (artigo 193) ou a testemunha (artigo 223) não falar a língua nacional (BRASIL, 1941), novamente com vagas diretrizes sobre a utilização de línguas nativas, notoriamente quando os indígenas, ainda que saibam a língua oficial, não sejam plenamente capazes de a compreender ou de por meio dela se expressar.
Com vistas a preencher as lacunas sobre esta e outras temáticas, o Conselho Nacional de Justiça editou resoluções que têm por foco garantir a melhoria do tratamento dispensado aos povos originários e seus membros. Neste sentido, foi elaborada a Resolução nº 287, de 25 de junho de 2019, com o intuito de assegurar os direitos das pessoas indígenas no âmbito da justiça criminal.
De acordo com a Resolução, seus procedimentos serão aplicáveis a todas as pessoas que se identificam como indígenas, sendo ou não falantes da língua portuguesa (artigo 2º); caberá à autoridade judicial, diante de autodeclaração da parte como indígena, indagar ao jurisdicionado sobre sua etnia, língua falada e o grau de conhecimento da língua portuguesa (artigo 3º, §2º), informação que deverá constar em todos os atos processuais (artigo 4º, caput); além disso, a autoridade judicial (de ofício, por solicitação da defesa, da Fundação Nacional dos Povos Indígenas ou de pessoa interessada) buscará garantir intérprete, preferencialmente membro da mesma etnia da parte indígena, em todas as etapas do processo, se esta não falar a língua portuguesa, tiver dúvida ou não tiver domínio e entendimento do vernáculo, principalmente em relação ao significado dos atos processuais e às suas manifestações (artigo 5º); por fim, a informação quanto à língua falada deverá constar em perícia antropológica determinada de ofício ou por requerimento das partes (artigo 6º, inciso I), devendo os tribunais manterem cadastro de intérpretes especializados nas línguas faladas pelas etnias características da região, bem como de peritos antropólogos (artigo 15, caput). (CNJ, 2019)
Visando a orientar sobre procedimentos para efetivação da garantia do direito ao acesso ao Judiciário de pessoas e povos indígenas, o CNJ elaborou, igualmente, a Resolução n.º 454, de 22 de abril de 2022, que, no tocante ao uso das línguas nativas, estabeleceu que compete aos órgãos do Poder Judiciário especificar o povo, o idioma falado e o nível de conhecimento da língua portuguesa pela parte indígena (artigo 3º, inciso II); ainda, estimula a Resolução o entabulamento de diálogo interétnico e intercultural por meio de linguagem clara e acessível e com a introdução de mecanismos de escuta ativa e direito à informação (artigo 13, parágrafo único), recomendando-se, também, a admissão de depoimentos de partes e testemunhas indígenas em suas línguas nativas, com a garantia de intérprete a ser escolhido, preferencialmente, entre os membros da comunidade de que façam parte, “[...] podendo a escolha recair em não indígena quando esse dominar a língua e for indicado pelo povo ou indivíduo interessado” (artigo 16); por fim, o direito à língua estende-se às crianças e aos adolescentes indígenas, em causas que versem sobre seus interesses (artigos 20 e 21, caput). (CNJ, 2022)
Estas disposições coadunam-se aos anseios de garantia do pleno acesso à Justiça dos povos originários, mas dada a baixa repercussão, ainda, de suas diretrizes nos processos criminais, algumas questões são, desde logo, levantadas quanto à sua eficácia ou alcance real. Embora a Resolução n.º 287, de 2019, seja precisa quanto à obrigatoriedade da presença de tradução ou intérprete em todas as etapas do processo, não é exata a definição quanto ao conteúdo desta tradução ou interpretação, mesmo porque nem todo o linguajar jurídico é traduzível ou interpretável adequadamente para inúmeras línguas nativas. Ao realizar entrevistas com oito intérpretes de línguas nativas dos povos originários peruanos, Bryan Matayoshi Shimabukuro, Kerly Montalvo Guerrero e Marco Ramírez Colombier (2022SHIMABUKURO, Bryan Matayoshi; GUERRERO, Kerly Montalvo; COLOMBIER, Marco Ramírez. Siempre hemos sido intérpretes: identidades y roles de intérpretes indígenas en el sistema judicial peruano. Revista de Llengua i Dret: Journal of Language and Law, v. 77, p. 126-143, 2022. Disponível em: https://doi.org/10.2436/rld.i77.2022.3683. Acesso em 15 dez.2022.
https://doi.org/10.2436/rld.i77.2022.368...
, p. 135) apontam que:
[a] totalidade dos intérpretes entrevistados reconhece a distância cultural que existe entre um sistema judicial baseado no direito romano e os repertórios culturais aos quais se associam as línguas indígenas. Esta diferença se manifesta, principalmente, na falta de equivalentes cunhados na língua indígena para os conceitos de linguagem jurídica especializada. [...]7 7 Texto original: “La totalidad de los intérpretes entrevistados reconoce la distancia cultural que existe entre un sistema judicial basado en el derecho romano y los repertorios culturales a los que se asocian las lenguas indígenas. Esta diferencia se manifiesta, principalmente, en la falta de equivalentes acuñados en la lengua indígena para los conceptos del lenguaje especializado jurídico.[...]” (SHIMABUKURO; GUERRERO; COLOMBIER, 2022, p. 135) [tradução livre]
Além disso, é preciso considerar que a função em si (de traduzir e/ou interpretar) é de alta complexidade, notoriamente em aparatos de Estado falhos que tendem a negar a diversidade étnica ou seu efetivo lugar na construção de sistemas de comunicação mais plurais e diversos. Logo,
[o] exercício da interpretação de línguas indígenas em âmbitos judiciais envolve seguir as diretrizes propostas pela ética profissional e os códigos deontológicos. Acrescentam-se a isso as apreciações e expectativas do grupo de operadores do sistema de justiça, bem como as da cidadania indígena em relação ao papel do intérprete num processo judicial.8 8 Texto original: “El ejercicio de la interpretación de lenguas indígenas en ámbitos judiciales involucra seguir los lineamientos propuestos por la ética profesional y los códigos deontológicos. Se agregan a ello las apreciaciones y expectativas del grupo de operadores del sistema de justicia, así como las de la ciudadanía indígena respecto al papel del intérprete en un proceso judicial.” (SHIMABUKURO; GUERRERO; COLOMBIER, 2022, p. 135) (SHIMABUKURO; GUERRERO; COLOMBIER, 2022SHIMABUKURO, Bryan Matayoshi; GUERRERO, Kerly Montalvo; COLOMBIER, Marco Ramírez. Siempre hemos sido intérpretes: identidades y roles de intérpretes indígenas en el sistema judicial peruano. Revista de Llengua i Dret: Journal of Language and Law, v. 77, p. 126-143, 2022. Disponível em: https://doi.org/10.2436/rld.i77.2022.3683. Acesso em 15 dez.2022.
https://doi.org/10.2436/rld.i77.2022.368... , p. 135) [tradução livre]
Ainda, embora tais orientações sejam uma renovação fundamental do sistema de justiça, é preciso mencionar que a sua concretização pode acabar tornando-se inócua, tendo em vista que a pressuposição de um preparo dos órgãos do Judiciário para o debate pluricultural sem uma efetiva transformação de suas estruturas, que são historicamente racializadas e mantenedoras da invisibilização da diversidade étnica brasileira, impede a real superação dos obstáculos da branquitude e do etnocentrismo no Judiciário.
Por razões semelhantes, deve-se atentar para o fato de que nenhuma das duas resoluções teve a participação direta de indígenas, ao menos em representação formal de entidades ou colegiados indígenas, para a elaboração de suas diretrizes, o que, se por um lado aponta para uma celeridade advinda da necessidade de resposta imediata às causas judiciais que envolvem indígenas no país, por outro, denuncia a permanência de uma tática de exclusividade do debate sobre a temática indígena nas mãos do Estado, que se considera autossuficiente para o cumprimento da tarefa de definir os termos do diálogo intercultural. Desta forma (e estendendo o entendimento à Resolução n.º 454, de 2022), é possível dizer que
[o] CNJ deu um passo importante com a publicação da Resolução n.º. 287, que aponta definitivamente aos juízes o que fazer e como cumprir o texto constitucional e os tratados internacionais sobre direitos humanos. Entretanto, dada a sua natureza resolutiva e administrativa, o escopo da medida se limita ao seu papel de contestar o racismo institucional presente no Poder Judiciário. Reconhecendo a importância do debate que promove, a Resolução n.º. 287 não é capaz de, por si só, mudar o curso do fenômeno de longo prazo do assimilacionismo que marca a política indigenista brasileira, até porque, mesmo quando utilizada para a construção de sua proposta, não considerou a participação direta dos indígenas em consulta livre, prévia e informada. A pressa na adoção da resolução pode ser justificada no uso de uma composição administrativa do pessoal com o objetivo de renovar os procedimentos obtusos do Estado, comprovando, no entanto, que a pressa não é uma maneira segura de mudar o viés integracionista tão consolidado.9 9 Texto original: “The CNJ took an important step with the publication of Resolution No. 287, which definitively points to judges what to do and how to fulfill the Constitutional text and international treaties on human rights. However, given its resolutive and administrative nature, the scope of the measure is limited to its role of challenging the institutional racism present in the Judiciary Branch. Recognizing the importance of the debate it promotes, Resolution No. 287 is not capable of by itself changing the course of the long-term phenomenon of assimilationism that marks Brazilian Indian politics, even because, even when well-intentioned, used it for the construction of its proposal, considered the direct non-avoidance of the indigenous in free, prior and informed consultation. The haste in the adoption of the resolution may be justified in the use of an administrative composition of the staff for the purpose of renewing the State’s obtuse procedures, proving, however, that haste is not a sure way to change so consolidated integrationist bias.” (CASTILHO, MOREIRA DA SILVA, 2019, p. 18) (CASTILHO; MOREIRA DA SILVA, 2019CASTILHO, Ela Wiecko Volkmer de; MOREIRA DA SILVA, Tédney. Incarceration of indigenous people in Brazil and resolution no. 287 of the National Council of Justice of Brazil. Vibrant: Virtual Brazilian Anthropology [online], v. 19, 2019, p. 1-22. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1809-43412022v19a708. Acesso em: 15 nov.2022.
https://doi.org/10.1590/1809-43412022v19... , p. 18) [tradução livre]
Com o intuito de alertar sobre a permanência ou longa duração das táticas que invisibilizam as demandas dos povos originários no processo penal, passa-se à análise da jurisprudência criminal do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF), principalmente quanto ao reconhecimento (ou não) dado à necessidade de utilização de línguas nativas por indígenas que figuram como réus ou acusados, principalmente ante o fato de que a não compreensão dos exatos termos de uma acusação e dos procedimentos adotados para a definição da responsabilidade criminal impactam, sobremaneira, no exercício do direito de defesa.
3. Nos percalços do respeito às línguas indígenas no processo penal brasileiro
Tendo em vista que a linguagem e seu domínio são funcionais ao exercício do poder político e que este também se revela por meio do poder de punir (BATISTA, 2011BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 2011.), o exame acerca da permissibilidade do uso de línguas nativas diversas da língua oficial no curso do processo penal brasileiro é o campo que desvela os embates assimétricos entre os grupos sociais. Autorizar ou não a produção probatória e o deslinde processual em línguas outras que não a padrão compõe o acervo de técnicas de poder e de controle social que são centradas na figura do Estado-juiz, ao mesmo tempo que é o que define o respeito ou a violação aos princípios processuais do sistema acusatório.
Segundo Luigi Ferrajoli (2006FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006., p. 518), o sistema acusatório tem como elementos centrais a separação entre o juiz e o papel da acusação, como forma de se garantir a paridade entre as partes (acusação e defesa), bem como a publicidade dos atos processuais e a oralidade do julgamento. À medida que o Judiciário se esquiva da promoção real de um diálogo intercultural e ignora o multiculturalismo que dá base às relações interétnicas no país, promove-se uma ruptura com essa base principiológica, desequilibrando a relação processual com evidente desvantagem para os indígenas.
A ausência de regras específicas sobre a situação de indígenas no processo penal brasileiro no âmbito legal caracteriza-se como uma afronta às bases do sistema acusatório, considerando-se que o juiz assume, nesses casos de criminalização, por vezes, o papel da acusação, além de dispensar a produção de provas judiciais que deem embasamento à sua decisão de, arbitrariamente, definir a identidade étnica do acusado a partir de critérios superficiais de análise do convívio interétnico. A língua portuguesa é vista como um marco divisório entre o silvícola e o civilizado, valendo-se da linguagem jurídica obtusa e racista ainda vigente no Estatuto do Índio (Lei n.º 6.001, de 1973). Neste sentido,
[...] se o acusado indígena não fala mais sua língua de origem, mas, sim, a língua portuguesa, logo estará integrado à “sociedade nacional” e, portanto, compreenderá plenamente os efeitos de sua conduta e sua reprovabilidade ante a lei penal, merecendo punição. A mera utilização da língua portuguesa é a prova da integração e, para esta, só deve haver uma única direção: a pena. (SILVA, 2016SILVA, Tédney Moreira da. No banco dos réus, um índio: criminalização de indígenas no Brasil. São Paulo: IBCCRIM, 2016., p. 249)
É o que se depreende de pesquisa jurisprudencial realizada junto ao repositório do STF e STJ, em dezembro de 2022, onde, respectivamente, foram levantados 521 e 692 acórdãos utilizando-se os termos de pesquisa “indígena”, “índio” ou “silvícola” à época da elaboração deste artigo. Filtrados para os acórdãos apenas sobre questão criminal (relativos aos recursos processuais criminais ou à ação constitucional de habeas corpus), foram encontrados 22 acórdãos no STF e 104 acórdãos no STJ. Novamente, escolhendo-se analisar somente os acórdãos proferidos a partir da data da publicação da Resolução n.º 287, de 2019, do CNJ (25 de junho de 2019) até a data de pesquisa jurisprudencial (15 de dezembro de 2022), para fins de averiguação do impacto causado (ou não) por tais diretrizes, foram encontrados sete julgados no âmbito do STJ e dois julgados no âmbito do STF, a demonstrar ainda o baixo questionamento junto às instâncias superiores sobre a aplicabilidade e o alcance das Resoluções do CNJ. Todos os julgados mencionam a Resolução n.º 287, de 2019; nenhum julgado mencionou a Resolução n.º 454, de 2022, seja por sua recente publicação, seja pela hipótese de adesão mínima à ideia de interculturalidade. Esta, aliás, nas palavras de Gunther Dietz (2017DIETZ, Gunther. Interculturalidad: una aproximación antropológica. Perfiles Educativos, v. XXXIX, n. 156, 2017, p. 192-207. Disponível em: https://www.scielo.org.mx/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0185-26982017000200192. Acesso em: 15 nov.2022.
https://www.scielo.org.mx/scielo.php?scr...
, p. 193), quando usada como ferramenta de análise e de descrição das relações interétnicas,
[...] define-se como o conjunto de inter-relações que estruturam uma determinada sociedade, em termos de cultura, etnicidade, língua, denominação religiosa e/ou nacionalidade; trata-se de um conjunto que se percebe mediante a articulação dos diferentes grupos de "nós" versus "eles", os quais interagem em constelações maioria-minoria que, muitas vezes, se encontram em constante mudança. Frequentemente estas relações são assimétricas em relação ao poder político e socioeconômico estabelecido e costumam refletir as maneiras historicamente arraigadas de visibilizar ou invisibilizar a diversidade, bem como a forma de estigmatizar a alteridade e de discriminar determinados grupos em particular.10 10 Texto original: “En los casos en los que la interculturalidad no se utiliza de manera prescriptiva, sino como una herramienta descriptiva y analítica, ésta se define como el conjunto de interrelaciones que estructuran una sociedad dada, en términos de cultura, etnicidad, lengua, denominación religiosa y/o nacionalidad; se trata de un ensamble que se percibe mediante la articulación de los diferentes grupos de “nosotros” versus “ellos”, los cuales interactúan en constelaciones mayoría-minoría que, a menudo, se encuentran en constante cambio. Frecuentemente estas relaciones son asimétricas en relación con el poder político y socioeconómico establecido y suelen reflejar las maneras históricamente arraigadas de visibilizar o invisibilizar la diversidad, así como la manera de estigmatizar la otredad y de discriminar a ciertos grupos en particular.” (DIETZ, 2017, p. 193) [tradução livre]
A meta de construção de uma relação processual intercultural encontra-se ainda em seu início. Em geral, percebe-se que a Resolução n.º 287, de 2019, não foi totalmente capaz de estabelecer um novo olhar sobre a questão criminal envolvendo os povos originários, pois, em especial na jurisprudência do STJ (responsável por uniformizar o entendimento sobre a lei federal em todo o país), permanece a visão de integração para a definição de direitos de acusados declarados ou autodeclarados indígenas.
No âmbito do STJ, em nenhum dos sete acórdãos se decidiu em favor do pleito de nulidade processual por ausência de intérprete ou de tradução para língua nativa do réu ou acusado indígena: ao contrário, reforçou-se o paradigma integracionista para se afirmar que aquele poderia conhecer do teor do processo por meio da língua portuguesa, dados os indícios de sua integração ou aculturação. Mesmo após a vigência da Resolução n.º 287, de 2019, o STJ considera que a nomeação de tradutor-intérprete e antropólogo é desejável, mas não indispensável, notoriamente quando há indícios de que o acusado conhece, ainda que parcialmente, a língua portuguesa, o que denunciaria seu grau avançado de integração.
Tal postura corrobora a longa duração do assimilacionismo no Judiciário, bem como a inalterabilidade de pressupostos teóricos do próprio direito penal, que passa a ser usado como ferramenta de controle social da diversidade étnica e da periculosidade que esta representa.
Neste sentido, o Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial (AgRg AgRESP) n.º 1889344-MS, o AgRg AgRESP n.º 2132094-MS, o Agravo Regimental no Habeas Corpus (AgRg HC) n.º 575.814-PR, o AgRg HC n.º 604.898-MS, o AgRg HC n.º 621.553-PR e o AgRg HC n.º 698.909-MS - todos decididos no âmbito do STJ - reafirmam que o domínio da língua portuguesa isenta o Judiciário de requerer de ofício a produção de laudo antropológico, ou de acatar o pedido das partes com este propósito. Assim, examinando ementa reproduzida nos julgados mencionados, vê-se como a constatação de domínio da língua portuguesa (sem aprofundamento, contudo, quanto ao nível desse domínio) é suficiente para a não observância quanto à necessidade de promoção de um diálogo intercultural:
AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. NULIDADE. NECESSIDADE DE REALIZAÇÃO DE PERÍCIA ANTROPOLÓGICA INDÍGENA. PRECLUSÃO CONSUMATIVA. DISPENSABILIDADE. [...]
3. O entendimento do Tribunal a quo está em consonância com a jurisprudência desta Corte no sentido de que "É dispensável a realização de exame pericial antropológico ou sociológico quando, por outros elementos, constata-se que o indígena está integrado à sociedade civil e tem conhecimento dos costumes a ela inerentes. Precedentes do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal" (REsp 1.129.637/SC, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, DJe 10/3/2014).
4. "Ante a conclusão das instâncias ordinárias de que os recorrentes possuem o domínio da língua portuguesa, sendo desnecessária a nomeação de intérprete (art. 193 do CPP), incabível a revisão do acórdão nesse ponto, pois seria necessário o reexame dos fatos e provas dos autos, o que é vedado no julgamento do recurso especial, nos termos da Súmula 7 do STJ" (AgRg no REsp 1519523/PR, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, DJe 23/10/2015).
5. Agravo regimental desprovido. (BRASIL, SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 2021b_____. Superior Tribunal de Justiça (5. Turma). Agravo em Recurso Especial n.º 1889.344-MS (2021/0151995-7). Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial. Estupro de vulnerável. Nulidade. Necessidade de realização de perícia antropológica indígena. Preclusão consumativa. Dispensabilidade. Constatação por outros elementos probatórios. Necessidade de reexame de provas. Incidência da Súmula n.º 7 do Superior Tribunal de Justiça - STJ. Agravo Regimental desprovido. Agravante: N X. Agravado: Ministério Público do Estado de Mato Grosso do Sul. Relator: Min. Joel Ilan Paciornik, 2021b, 5 de outubro de 2021.)
A orientação do Superior Tribunal de Justiça reforça o paradigma assimilacionista mesmo quando, ao menos discursivamente, apresenta conhecer as determinações da Resolução n.º 287, de 2019, do CNJ, de forma que esta perde muito de seu alcance e finalidade, de fato, transformadora do sistema de justiça criminal aplicável aos indígenas criminalizados. Nesse sentido, por exemplo, os termos apresentados em Recurso de Habeas Corpus RHC n.º 141.827-MS, do Superior Tribunal de Justiça, base, também, dos julgados já mencionados:
RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. RÉU DECLARADAMENTE INDÍGENA. NULIDADE DO PROCESSO. OFENSA ÀS FORMALIDADES DA RESOLUÇÃO N.º 287/2019 DO CNJ. NÃO OCORRÊNCIA. INDÍGENA INTEGRADO À SOCIEDADE CIVIL. EXAME ANTROPOLÓGICO. DISPENSÁVEL. [...]
1. Não há que se falar em nulidade do processo por ofensa às formalidades previstas na Resolução n. 287/2019 do CNJ - falta de intérprete e ausência de realização de estudo antropológico - se os atos ainda não foram realizados na hipótese, pois a instrução não foi encerrada e o acusado sequer foi ouvido em juízo.
2. A nomeação de tradutor-intérprete e antropólogo é desejada, mas não indispensável, como dispõem os artigos 5º e 6º da Resolução n. 287/2019 do CNJ, respectivamente: "A autoridade judicial buscará garantir a presença de intérprete ...I - se a língua falada não for a portuguesa;" e "...a autoridade judicial poderá determinar, sempre que possível, de ofício ou a requerimento das partes, a realização de perícia antropológica...".
3. In casu, denota-se que o réu está perfeitamente adaptado à sociedade civil, tendo suficiente compreensão dos usos e costumes nacionais, possuindo fluência na língua portuguesa, circunstância que reforça sua plena integração social, tornando desnecessária a realização de laudo antropológico e afasta a necessidade de intérprete para a sua inquirição. [...] (BRASIL, SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 2021c_____. Superior Tribunal de Justiça (5. Turma). Recurso em Habeas Corpus n.º 141.827 - MS (2021/0023758-2). Recurso Ordinário em Habeas Corpus. Estupro de vulnerável. Réu declaradamente indígena. Nulidade do processo. Ofensa às formalidades da Resolução n.º 287/2019 do CNJ. Não ocorrÊncia. Indígena integrado à sociedade civil. Exame antropológico dispensável. [...] Recorrente: A.V. (Preso). Recorrido: Ministério Público do Estado do Mato Grosso do Sul. Relator: Min. Ribeiro Dantas, 2021c, 16 de abril de 2021.)
Dispensa-se a participação de intérpretes ou a tradução de documentos judiciais quando há elementos de integração do acusado, como a utilização da língua portuguesa, em afronta às disposições convencionais, declaratórias, constitucionais e infralegais que se relacionam à temática.
Por sua vez, no STF, após a vigência da Resolução n.º 287, de 2019, passou-se a reconhecer, em parte, a relevância da produção de laudo pericial antropológico para melhor definição da responsabilidade criminal do acusado indígena, muito embora as decisões ainda carreguem um viés integracionista em sua fundamentação. Neste sentido, o Agravo Regimental em Recurso Extraordinário com Agravo (AgRg.RE) n.º 1.368.310-MS não conheceu da impugnação feita pela parte agravante, em razão da não demonstração de tema de repercussão geral, limitando-se a colar trecho da decisão do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul, como segue:
1. Trata-se de agravo cujo objeto é decisão que inadmitiu recurso extraordinário interposto contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul, assim ementado:
“RECURSO EM SENTIDO ESTRITO - HOMICÍDIO QUALIFICADO CONSUMADO - PRONÚNCIA - RÉU INDÍGENA - PRELIMINAR DE NULIDADE POR CERCEAMENTO DE DEFESA - AUSÊNCIA DE REALIZAÇÃO DE LAUDO ANTROPOLÓGICO E NOMEAÇÃO DE TRADUTOR - REJEITADA [...]
Não é considerado silvícola, a ponto de exigir o almejado laudo antropológico aquele que é apenas descendente de uma determinada etnia ou região, notadamente quando claro ter absorvido e inserido em seu próprio cotidiano os hábitos, costumes e vícios da sociedade denominada civilizada.
O respeito à cultura, às lendas e às tradições indígenas se afigura relevante, tal como constitucionalmente reconhecido, mas dentro dos limites estabelecidos em nosso ordenamento jurídico, e não de maneira genérica, abstrata e ilimitada, muito menos a ponto de impedir, por si só, a atuação do Estado quando do cometimento de infrações penais, levando-se em conta unicamente o fato de o agente pertencer à mencionada etnia. E, nesse cenário, a ausência de nomeação de tradutor e realização de laudo antropológico não conduz à nulidade arguida, pois, em realidade, são indivíduos perfeitamente integrados aos costumes, à linguagem e comunicação comum, e, sobretudo, às malícias e vícios da civilização atual, a dispensarem, inclusive, qualquer perícia para tal constatação, por se tratar de fato público e notório. [...] (BRASIL, SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2022a_____. Supremo Tribunal Federal. Agravo em Recurso Extraordinário n.º 1.368.310/MS. Direito Processual Penal. Agravo Regimental em Recurso Extraordinário com Agravo. Homicídio qualificado. Preliminar de repercussão geral da matéria. Fundamentação. Necessidade. Análise da legislação infraconstitucional. [...] Agravante: Terso Lopes. Agravado: Ministério Público do Estado de Mato Grosso do Sul. Relator: Min. Roberto Barroso, 2022a, 3 de outubro de 2022.)
Em Recurso Ordinário em Habeas Corpus (RHC) n.º 199.360-MS, decidiu-se que “[...] a perícia antropológica não se restringe à análise do entendimento do acusado sobre os fatos delituosos praticados, mas também se destina a uma perspectiva multiculturalista para perfeito enquadramento do fato criminoso no contexto completo para perfeita compreensão dos julgadores.” (BRASIL, SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2022). Ainda:
Assim, também em cumprimento às normas de direitos fundamentais assumidas pelo Brasil e pelas normas infraconstitucionais que dão concretude àqueles direitos da comunidade indígena, do réu e da segurança até mesmo da vítima, e da garantia de um julgamento justo, com o conhecimento, pelos jurados, da matriz cultural e da moldura sociológica de ambiência dos fatos, não se há desconhecer nem menosprezar a finalidade buscada, insistentemente, pela defesa para a produção do laudo antropológico que lhe foi negado. (BRASIL, SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2022b_____. Supremo Tribunal Federal. Recurso Ordinário em Habeas Corpus n.º 199360/MS. Recurso Ordinário em Habeas Corpus. Constitucional. Penal. Processo Penal. Feminicídio. Tribunal do Júri. Crime praticado por índio contra índia. Ausência de laudo antropológico. Fundamentação inidônea. Inobservância da Convenção n. 169 da Organização Internacional do Trabalho. Afronta ao §2º do art. 5º da Constituição da República. Multiculturalismo. Direito à perícia antropológica. Diálogo intercultural. Recurso Ordinário em Habeas Corpus parcialmente provido. Recorrente: Cledison Lopes Gonçalves. Recorrido: Ministério Público Federal. Relatora: Min. Cármen Lúcia, 2022b, 6 de abril de 2021.)
Logo, a construção de um diálogo intercultural, capaz de, de fato, propiciar a oitiva dos indígenas segundo suas línguas, reconhecendo-lhes a dignidade como sujeitos de direitos com direitos especiais, é um longo caminho ainda a ser percorrido pelo Judiciário nacional, especialmente pelo sistema de justiça criminal, tendo em vista o papel de controle social exercido pela criminalização de supedâneos racista e etnocida.
Considerações finais
A ausência de intérpretes e de tradutores em línguas maternas indígenas em ações judiciais em que os indígenas figurem como parte da relação processual é uma violação aos direitos fundamentais relativos à defesa e, em geral, ao próprio acesso à Justiça: é imprescindível que, especialmente nos casos que envolvam indígenas, haja a estruturação de uma relação processual pautada na diversidade étnico-cultural, de tal forma a permitir a construção de um entendimento entre grupos em evidente assimetria sociopolítica. Parte essencial dessa estrutura corresponde ao acatamento e à viabilidade de utilização de língua não oficial pelas partes, com o intuito de pleno conhecimento dos procedimentos e dos atos decisórios oriundos da comunicação de fatos e argumentos.
No processo penal brasileiro, a dispensa de intérpretes em línguas indígenas diante da presunção, pelo Judiciário, da integração do indígena à sociedade nacional é reveladora tanto da sua inquisitoriedade (por arrogar-se o Estado-juiz a função de atribuição de uma identidade étnica sem a necessidade de produção probatória específica), quanto do racismo e do etnocídio arraigados nos órgãos judiciais.
O racismo estrutural e o etnocídio promovido nos órgãos judiciais retroalimentam o estereótipo criminal vinculado a certos grupos de vulnerabilidade, a ponto de julgá-los à luz de categorias brancocêntricas e classistas da sociedade hegemônica. É neste sentido que o julgamento de indígenas acusados da prática de ilícitos penais realiza-se como um ritual que busca confirmar a sua perigosidade e, portanto, o acerto da política integracionista que os mantém sob constante vigilância. Quando considerado como alguém que foi integrado (ou aculturado) pela sociedade hegemônica, ao acusado indígena não se reconhece o direito à língua materna, bastando a demonstração, ainda que incipiente, de que entende a língua padrão, circunstância que interfere no direito de defesa.
Logo, a não promoção de um diálogo efetivamente intercultural, que parta do acolhimento e da instrumentalização do direito ao uso da língua nativa pelos povos originários, viola o princípio acusatório, base do processo penal brasileiro, e que está assegurado tanto em nível constitucional, quanto convencional. Ainda, a não presença de tradutores e intérpretes indígenas afronta as determinações da Convenção Americana de Direitos Humanos (OEA), da Convenção n.º 169 sobre Povos Indígenas e Tribais (OIT), do PIDESC (ONU), além de se antagonizar à Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (ONU); por razões semelhantes, afronta o texto constitucional, que reconhece o direito às línguas maternas aos indígenas, seja por estas constituírem parte do patrimônio cultural, seja por atuarem como engrenagens do Estado Democrático de Direito e, por fim, fere disposições processuais cíveis e penais que impõem a presença daqueles profissionais nos casos em que as partes ou testemunhas não dominem a língua oficial.
A insuficiente regulamentação (suprida, em parte, pela Resolução n.º 287, de 2019, e n.º 454, de 2022, ambas do CNJ) inviabiliza o exercício pleno do direito de defesa, notoriamente dos réus ou acusados indígenas, e inviabiliza a paridade de armas entre acusação e defesa. Deste modo, o Judiciário mantém-se alheio ao debate pluricultural e reforça o viés integracionista indigenista, como tática de controle da diversidade étnica.
Não basta, contudo, a inclusão dessas línguas no curso do processo sem um devido trabalho de reformulação da própria estrutura judicial no sentido de reconhecer relevância à interculturalidade: apenas a polifonia (compreendida como um fenômeno linguístico de simultaneidade de várias vozes, implícitas ou explícitas, no mesmo texto) não garantirá a troca de perspectivas, saudável à relação processual: é preciso que sejam superados os ruídos desta comunicação, mesmo se considerarmos a relevância produzida nos discursos judiciais pela dissonância da participação de indígenas no curso da relação processual. Entende-se a dissonância como fenômeno linguístico e metáfora para o reconhecimento de vozes inaudíveis ou marginais como as vozes e línguas indígenas. Assim, a antecipação de culpabilidade dos réus ou acusados indígenas apenas em função de sua identidade étnica e a recusa ao diálogo intercultural mantêm os indígenas na subalternidade e na condição de não-sujeitos de direitos. Para que haja, enfim, o diálogo, é necessário que haja inclinação dos emissores à escuta.
As dissonâncias são evitadas quando, em reforço às diretrizes do CNJ, buscam os órgãos judiciais a capacitação de seus servidores sobre a etnicidade e sobre a desconstrução do senso comum quanto aos povos originários. Do mesmo modo, supera-se a discriminação do uso de línguas nativas quando se proveem os órgãos judiciais de capacitados intérpretes e de tradutores para a prestação dos serviços em línguas indígenas, com a anuência de sua participação pelas partes envolvidas. Tal medida reduz as barreiras linguísticas e, por consequência, evita a privação de liberdade de indígenas indevidamente acusados, além de estar em consonância com os direitos humanos.
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- _____. Superior Tribunal de Justiça (5. Turma). Agravo Regimental no Habeas Corpus n.º 604898-MS (2020/0202326-0). Agravo Regimental no Habeas Corpus. Indígena. Autodeclaração. Laudo antropológico. Desnecessidade. Pessoa plenamente integrada e com capacidade de entendimento do suposto ilícito. No mais, não enfrentamento dos fundamentos da decisão agravada. Ofensa à Súmula 182/STJ. Agravo desprovido. Agravante: Cledison Lopes Gonçalves. Agravado: Ministério Público do Estado do Mato Grosso do Sul. Relator: Min. Felix Fischer, 2 de fevereiro de 2021.
- _____. Superior Tribunal de Justiça (5. Turma). Agravo Regimental no Habeas Corpus n.º 621553-PR (2020/0282316-0). Agravo Regimental no Habeas Corpus. Regime de semiliberdade. Art. 56, parágrafo único, da Lei 6.001/1973. Inaplicabilidade. Indígena integrado socialmente. Verificação. Súmula 7 do STJ. Entendimento do STJ. Decisão mantida. Agravante: Hilario Nhembarai Alves. Agravado: Ministério Público Federal/ Ministério Público do Estado do Paraná. Relator: Min. João Otávio de Noronha, 19 de abril de 2022.
- _____. Superior Tribunal de Justiça (6. Turma). Agravo Regimental no Habeas Corpus n.º 698.909-MS (2021/0322033-3). Agravamento Regimental no Habeas Corpus. Homicídio duplamente qualificado. Dispensa de exame antropológico. Aferição por outros elementos. Ausência de ilegalidade. Agravante: Rosiane Ribeiro. Agravado: Ministério Público Federal/ Ministério Público do Estado de Mato Grosso do Sul. Relator: Min. Olindo Menezes (Desembargador convocado do TRF 1ª Região), 2021a, 15 de fevereiro de 2022.
- _____. Superior Tribunal de Justiça (5. Turma). Agravo em Recurso Especial n.º 1889.344-MS (2021/0151995-7). Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial. Estupro de vulnerável. Nulidade. Necessidade de realização de perícia antropológica indígena. Preclusão consumativa. Dispensabilidade. Constatação por outros elementos probatórios. Necessidade de reexame de provas. Incidência da Súmula n.º 7 do Superior Tribunal de Justiça - STJ. Agravo Regimental desprovido. Agravante: N X. Agravado: Ministério Público do Estado de Mato Grosso do Sul. Relator: Min. Joel Ilan Paciornik, 2021b, 5 de outubro de 2021.
- _____. Superior Tribunal de Justiça (6. Turma). Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial n.º 2132094-MS (2022/0153419-4). Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial. Ameaça. Indígena integrado à sociedade civil. Dispensa do exame antropológico devidamente fundamentada. Súmula 83/STJ. Inversão do acórdão. Súmula 7/STJ. Agravante: L B. Agravado: Ministério Público do Estado do Mato Grosso do Sul. Relator: Min. Olindo Menezes (Desembargador convocado do TRF 1ª Região), 22 de novembro de 2022.
- _____. Superior Tribunal de Justiça (5. Turma). Recurso em Habeas Corpus n.º 141.827 - MS (2021/0023758-2). Recurso Ordinário em Habeas Corpus. Estupro de vulnerável. Réu declaradamente indígena. Nulidade do processo. Ofensa às formalidades da Resolução n.º 287/2019 do CNJ. Não ocorrÊncia. Indígena integrado à sociedade civil. Exame antropológico dispensável. [...] Recorrente: A.V. (Preso). Recorrido: Ministério Público do Estado do Mato Grosso do Sul. Relator: Min. Ribeiro Dantas, 2021c, 16 de abril de 2021.
- _____. Supremo Tribunal Federal. Agravo em Recurso Extraordinário n.º 1.368.310/MS. Direito Processual Penal. Agravo Regimental em Recurso Extraordinário com Agravo. Homicídio qualificado. Preliminar de repercussão geral da matéria. Fundamentação. Necessidade. Análise da legislação infraconstitucional. [...] Agravante: Terso Lopes. Agravado: Ministério Público do Estado de Mato Grosso do Sul. Relator: Min. Roberto Barroso, 2022a, 3 de outubro de 2022.
- _____. Supremo Tribunal Federal. Recurso Ordinário em Habeas Corpus n.º 199360/MS. Recurso Ordinário em Habeas Corpus. Constitucional. Penal. Processo Penal. Feminicídio. Tribunal do Júri. Crime praticado por índio contra índia. Ausência de laudo antropológico. Fundamentação inidônea. Inobservância da Convenção n. 169 da Organização Internacional do Trabalho. Afronta ao §2º do art. 5º da Constituição da República. Multiculturalismo. Direito à perícia antropológica. Diálogo intercultural. Recurso Ordinário em Habeas Corpus parcialmente provido. Recorrente: Cledison Lopes Gonçalves. Recorrido: Ministério Público Federal. Relatora: Min. Cármen Lúcia, 2022b, 6 de abril de 2021.
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1
Texto original: “[...] the dominant language is the only language that signifies “progress” and is associated with modernity and advancement. In other words, the dominant language is positioned in a place of privilege and higher status in comparison to Indigenous languages.” (LEE, 2009LEE, Tiffany S. Language, identity, and power: Navajo and Pueblo young adults’ perspectives and experiences with competing language ideologies. Journal of Language, Identity, and Education, v. 8, p. 307-320, 2009. Disponível em: https://doi.org/10.1080/15348450903305106. Acesso em: 15 nov.2022.
https://doi.org/10.1080/1534845090330510... , p. 314) -
2
Texto original: “Recuperando la idea inicial: el derecho al uso del propio idioma de los pueblos indígenas en sede judicial interpela y pone al desnudo las ideas de supremacistas culturales que desprecian el derecho de los pueblos indígenas negándoles la libertad de expresarse en su idioma en los estrados judiciales. Lograr la efectiva garantía del intérprete para el uso del propio idioma indígena abre a los pueblos el desafío con un destino aún incierto, que exigir a los estados nacional y provincial tomar medidas positivas para su adecuación. Mientras tanto los avances dependerán, en buena medida, de la perseverancia e insistencia de los pueblos indígenas en sus planteos para lograr avances en cada estrado judicial, abriéndose paso entre el pensamiento dialógico, acrónico y racista arraigado en gran parte de los operadores judiciales.” (KOSOVSKY, 2021KOSOVSKY, Fernando. El derecho de los Pueblos indígenas al uso del propio idioma en sede judicial. Revista Derechos en Acción, año 6, n. 19, p. 605-638, 2021. Disponível em: https://doi.org/10.24215/25251678e527. Acesso em: 15 nov.2022.
https://doi.org/10.24215/25251678e527... , p. 638) -
3
Texto original: “Hasta fines del siglo XX, derechos y pueblos indígenas parecían dos realidades difíciles de conjugar. Sin embargo, la tenacidad del movimiento indígena a lo largo de muchos años está tornando posible hoy una parte de aquello que el esperanzado Deskaheh, jefe indígena Cayuga, intentó conseguir sin éxito momentáneo en 1923, frente del entonces palacio de la Sociedad de Naciones: que los indígenas tuvieran voz propia en el organismo internacional de los pueblos libres. El desafío le costó a Deskaheh el exilio de por vida. Han pasado casi cien años, y si bien falta un extenso trecho por recorrer, en el presente las demandas indígenas encuentran canales antes insospechados a nivel internacional, tanto en el sistema de las Naciones Unidas como en el sistema interamericano de derechos humanos.” (CELADE, 2014, p. 25)
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4
Texto original: “Indigenous peoples throughout the world have often seen their languages and cultures disregarded, denigrated or even suppressed. The legacy of these practices remain among us even today and can be witnessed through the low retention and success rates in schools teaching in a language alien to many indigenous children, as well as the common and continued refusal of state authorities to use indigenous languages in their contacts and interaction with indigenous populations. This in turn frequently results in poor communications and access to social services and health care, limited employment and advancement opportunities for indigenous peoples, and perhaps worse a view that indigenous languages and cultures are somehow less worthy or useless.” (VARENNES; KUZBORSKA, 2016, p. 282)
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5
Texto original: “A la luz de las normas y estándares anteriormente expuestos, la Corte considera que el ejercicio de los derechos tutelados por la Convención Americana por parte de las personas indígenas privadas de libertad exige como presupuesto que ellas puedan expresarse y recibir información en su idioma o lengua. Consecuentemente, los Estados deben: a) garantizar que cualquier información brindada al resto de la población penitenciaria, en especial aquella relativa a sus derechos, el estado de su proceso, y el tratamiento médico recibido, sea traducido al idioma de las personas indígenas. Si estas no saben leer, deberán ser leídas a ellas por parte de intérpretes; b) brindar interpretación en aquellos procedimientos y diligencias administrativas y judiciales que puedan afectar sus derechos, cuando las personas indígenas no hablen el idioma en que tales procesos sean conducidos, o cuando soliciten expresarse en el idioma propio, y c) abstenerse de prohibir a las personas indígenas privadas de libertad expresarse en el idioma de su elección, lo cual constituye un trato discriminatorio contrario a la Convención Americana.” (CORTE IDH, 2022, p. 114-115)
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Texto original: “A human rights approach to indigenous languages could inspire, for example, awareness of the very existence of indigenous languages; renewed confidence in using one’s language or asking for translation; understanding and healing from the shame of previous generations for whom the language was forbidden by governments; collective action and solidarity among indigenous peoples who seek to learn and transmit their languages to future generations; and a contemporary understanding that indigenous language is relevant not just to culture, but also to development, science, and governance. A human rights approach to indigenous language recognizes that these languages are vital rather than archaic, and that governments along with other institutions and actors must work to realize their potential for reasons of human dignity and societal wellbeing.” (CARPENTER; TSYKAREV, 2020CARPENTER, Kristen; TSYKAREV, Alexey. (Indigenous) Language as a human right. UCLA Journal of International Law and Foreign Affairs, v. 24, n. 49, 2020, p. 49-162. Disponível em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3649091. Acesso em: 15 nov.2022.
https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?... , p. 57) -
7
Texto original: “La totalidad de los intérpretes entrevistados reconoce la distancia cultural que existe entre un sistema judicial basado en el derecho romano y los repertorios culturales a los que se asocian las lenguas indígenas. Esta diferencia se manifiesta, principalmente, en la falta de equivalentes acuñados en la lengua indígena para los conceptos del lenguaje especializado jurídico.[...]” (SHIMABUKURO; GUERRERO; COLOMBIER, 2022SHIMABUKURO, Bryan Matayoshi; GUERRERO, Kerly Montalvo; COLOMBIER, Marco Ramírez. Siempre hemos sido intérpretes: identidades y roles de intérpretes indígenas en el sistema judicial peruano. Revista de Llengua i Dret: Journal of Language and Law, v. 77, p. 126-143, 2022. Disponível em: https://doi.org/10.2436/rld.i77.2022.3683. Acesso em 15 dez.2022.
https://doi.org/10.2436/rld.i77.2022.368... , p. 135) -
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Texto original: “El ejercicio de la interpretación de lenguas indígenas en ámbitos judiciales involucra seguir los lineamientos propuestos por la ética profesional y los códigos deontológicos. Se agregan a ello las apreciaciones y expectativas del grupo de operadores del sistema de justicia, así como las de la ciudadanía indígena respecto al papel del intérprete en un proceso judicial.” (SHIMABUKURO; GUERRERO; COLOMBIER, 2022SHIMABUKURO, Bryan Matayoshi; GUERRERO, Kerly Montalvo; COLOMBIER, Marco Ramírez. Siempre hemos sido intérpretes: identidades y roles de intérpretes indígenas en el sistema judicial peruano. Revista de Llengua i Dret: Journal of Language and Law, v. 77, p. 126-143, 2022. Disponível em: https://doi.org/10.2436/rld.i77.2022.3683. Acesso em 15 dez.2022.
https://doi.org/10.2436/rld.i77.2022.368... , p. 135) -
9
Texto original: “The CNJ took an important step with the publication of Resolution No. 287, which definitively points to judges what to do and how to fulfill the Constitutional text and international treaties on human rights. However, given its resolutive and administrative nature, the scope of the measure is limited to its role of challenging the institutional racism present in the Judiciary Branch. Recognizing the importance of the debate it promotes, Resolution No. 287 is not capable of by itself changing the course of the long-term phenomenon of assimilationism that marks Brazilian Indian politics, even because, even when well-intentioned, used it for the construction of its proposal, considered the direct non-avoidance of the indigenous in free, prior and informed consultation. The haste in the adoption of the resolution may be justified in the use of an administrative composition of the staff for the purpose of renewing the State’s obtuse procedures, proving, however, that haste is not a sure way to change so consolidated integrationist bias.” (CASTILHO, MOREIRA DA SILVA, 2019CASTILHO, Ela Wiecko Volkmer de; MOREIRA DA SILVA, Tédney. Incarceration of indigenous people in Brazil and resolution no. 287 of the National Council of Justice of Brazil. Vibrant: Virtual Brazilian Anthropology [online], v. 19, 2019, p. 1-22. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1809-43412022v19a708. Acesso em: 15 nov.2022.
https://doi.org/10.1590/1809-43412022v19... , p. 18) -
10
Texto original: “En los casos en los que la interculturalidad no se utiliza de manera prescriptiva, sino como una herramienta descriptiva y analítica, ésta se define como el conjunto de interrelaciones que estructuran una sociedad dada, en términos de cultura, etnicidad, lengua, denominación religiosa y/o nacionalidad; se trata de un ensamble que se percibe mediante la articulación de los diferentes grupos de “nosotros” versus “ellos”, los cuales interactúan en constelaciones mayoría-minoría que, a menudo, se encuentran en constante cambio. Frecuentemente estas relaciones son asimétricas en relación con el poder político y socioeconómico establecido y suelen reflejar las maneras históricamente arraigadas de visibilizar o invisibilizar la diversidad, así como la manera de estigmatizar la otredad y de discriminar a ciertos grupos en particular.” (DIETZ, 2017DIETZ, Gunther. Interculturalidad: una aproximación antropológica. Perfiles Educativos, v. XXXIX, n. 156, 2017, p. 192-207. Disponível em: https://www.scielo.org.mx/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0185-26982017000200192. Acesso em: 15 nov.2022.
https://www.scielo.org.mx/scielo.php?scr... , p. 193)
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
19 Jun 2023 -
Data do Fascículo
Apr-Jun 2023
Histórico
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Recebido
30 Nov 2022 -
Aceito
18 Abr 2023