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Dano à propriedade por motivação política

Politically motivated property damage

É possível justificar o dano ou a destruição à propriedade inspirados por motivação política? Se sim, quais condições deveríamos esperar que os atores do dano satisfaçam? Qual é o papel - se é que há algum - que o dano à propriedade pode desempenhar na transgressão justificável da lei (justifiable lawbreaking)? 1 1 Versão original: SCHEUERMAN, William E. Politically motivated property damage. The Harvard Review of Philosophy, vol. 28, p. 89-106, 2021. DOI: 10.5840/harvardreview20218337. Agradeço muitíssimo a Gabriel Busch de Brito, Marina Slhessarenko Barreto e Marcos Nobre por sugestões e revisões de tradução. Eventuais erros são, evidentemente, todos meus. [N. T.]

Essas perguntas dificilmente são de interesse meramente acadêmico. Nos últimos anos, ativistas pró-democracia em Hong Kong quebraram janelas, grafitaram paredes e atearam fogo às vitrines das lojas que eles entendiam ser apoiadoras da repressão autoritária da China continental (Dapiran, 2019Dapiran, A. 2019. “The End of Hong Kong as We Know It,” The Atlantic, 10 September, sec. Global. https://www.theatlantic.com/international/archive/2019/09/hong-kongs -protest-movement-getting-darker/597649/; accessed March 28, 2021.
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). No verão de 2020, manifestantes antirracistas nos Estados Unidos, revoltados com o assassinato de George Floyd pela polícia, incendiaram uma delegacia de polícia, saquearam e também destruíram negócios em Mineápolis e em Saint Paul, em Minnesota (Scheuerman, 2020Scheuerman, W. E. 2020. “Their Violence and Ours,” Public Seminar. 16 July 2020. https:// publicseminar.org/essays/their-violence-and-ours/; accessed March 28, 2021.
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). Atos semelhantes também aconteceram em vários outros lugares. Como parte de uma onda massiva e talvez sem precedentes de protestos antirracistas, ativistas desfiguraram e por vezes derrubaram estátuas e monumentos públicos que comemoravam a supremacia branca (Wikipedia, 2021).

De uma perspectiva histórica abrangente, o dano à propriedade orientado politicamente não traz nada de novo. Ao longo do século XX, anarquistas, combatentes partidários antifascistas, sindicalistas radicais, militantes sul-africanos anti-apartheid, sufragistas e muitos outros o acolheram como ferramenta moralmente legítima e talvez indispensável. Figuras tão diversas quanto Elizabeth Gurley Flynn da IWW2 2 Trabalhadores Industriais do Mundo, ou Industrial Workers of the World, é um sindicato internacional fundado em Chicago em 1905. [N.T.] , a sufragista britânica Emmeline Pankhurst e Nelson Mandela do Congresso Nacional Africano (ANC) participaram de atos de sabotagem e de vandalismo político.3 3 Mandela teve dificuldades com uma questão central que eu irei enfatizar na discussão a seguir: por que e como qualquer pessoa que participa em atos de dano à propriedade deveria minimizar qualquer possível perda de vida humana (Hyslop, 2014). Para a perspectiva de Flynn (claramente proveniente de uma origem anarco-sindicalista), ver Flynn, 1920. Mais recentemente, alguns ambientalistas "espetaram" árvores para obstruir a atividade de empresas madeireiras4 4 Em inglês, a prática recebeu o nome de tree spiking. Consiste em cravar pregos ou outros materiais metálicos em troncos de árvore para causar danos à serra elétrica e para que a madeira perca seu valor para a madeireira. [N. T.] , enquanto outros desfiguraram e por vezes destruíram SUVs para enfatizar seu papel para o aquecimento global. Não é surpreendente que muitos acadêmicos tenham debatido os prós e os contras desses atos, mas - e isso é mais surpreendente - eles discutiram essas questões de maneira menos sistemática do que seria esperado dada sua onipresença.5 5 Ver, entretanto, o artigo recente de Nathan Adams (2017).

No entanto, algo novo pode estar a caminho. Desde Mahatma Gandhi e Martin Luther King Jr., defensores da desobediência civil não-violenta olharam com desconfiança para a violência, não apenas aquela dirigida contra pessoas, mas também contra a propriedade. De acordo com a "cartilha padrão da desobediência civil" (como foi apelidada pela filósofa Candice Delmas) - uma interpretação idealizada e altamente seletiva de casos historicamente canônicos de transgressão não-violenta à lei, que frequentemente serve como base para o pensamento político -, o dano à propriedade está simplesmente fora de cogitação (Delmas, 2021:210-214). Desta perspectiva convencional, o dano à propriedade constitui evidência de transgressão incivil à lei (uncivil lawbreaking), que, especialmente sob condições políticas mais ou menos liberais, não pode ser tolerada. Como o teórico liberal Hugo Bedau declarou, sem rodeios, em 1970, a desobediência civil precisa ser praticada de forma não violenta, ou seja, "de forma não intencionalmente ou negligentemente destrutiva à propriedade ou nociva às pessoas" (Bedau, 1991:51). Para Delmas e outros críticos recentes, a crescente popularidade do dano à propriedade entre ativistas sugere a necessidade de revisar aquela cartilha: na verdade, a transgressão incivil à lei pode ser justificada com base em teorias-padrão da obrigação política e não há razão de princípio para excluir a possibilidade de dano ou destruição legítimos à propriedade.

Delmas está correta em observar que movimentos recentes de protesto por vezes simplesmente ignoraram ideias convencionais sobre desobediência civil; seus atos foram encobertos ou secretos, ofensivos do ponto de vista moral e juridicamente evasivos na medida em que os participantes contornam possíveis sanções. Eles também parecem dispostos a sacrificar ideias rígidas acerca da não-violência. No entanto, como eu argumento a seguir, a resposta apropriada não é colocar o dano à propriedade sob uma rubrica aberta da desobediência incivil, que, inadvertidamente, reproduz fraquezas conceituais existentes ao invés de superá-las. Tal como sua prima civil mais conhecida, a desobediência incivil está baseada em uma visão expansiva da violência que impede a análise mais nuançada que nós precisamos aqui (I).

Se nós quisermos avançar na maneira de pensar sobre o papel adequado do dano à propriedade, precisamos de uma tipologia conceitual mais rica. Extraindo inspiração de algumas observações negligenciadas de Martin Luther King Jr., eu defendo que o dano à propriedade não deve ser equiparado ou confundido com a violência contra pessoas e que ele também assume uma variedade de formas bastante diferentes. Qualquer análise normativa sólida de seus desafios terá que levar essas diferenças a sério. Qualquer pessoa que espera praticar dano à propriedade por motivação política deveria satisfazer pré-condições cujo rigor será principalmente determinado por suas respostas a uma pergunta aparentemente direta - mas, na verdade, complexa: como seus atos se relacionam com a violência contra pessoas? (II) Por fim, nós precisamos nos atentar a outra pergunta que tende a ser posta de lado nas discussões sobre obrigação política: como a propriedade pode ser justificada? No entanto, mesmo ao fazer isso, nós podemos deixar espaço ao dano legítimo à propriedade por motivação política. Algumas justificações normativas para a propriedade reconhecidamente resistem à delimitação estrita entre violência contra pessoas e dano à propriedade que eu defendo neste artigo. Apesar disso, essas perspectivas falham em capturar as realidades da titularidade da propriedade (property ownership)6 6 Em inglês, há diferenciação entre property, traduzido facilmente ao português por "propriedade", e ownership, que é o caráter de ser dono ou proprietário, que também se traduz pela mesma expressão, "propriedade". A solução proposta aqui, em que ownership se torna "titularidade" tem o intuito de resolver a dimensão do caráter de ser dono, mas não corresponde diretamente à diferenciação original, na medida em que acrescenta o caráter de formalização e reconhecimento institucional que é dado pelo título. (N. T.) em várias sociedades existentes, incluindo os Estados Unidos, e, enquanto tais, elas não enfraquecem minha defesa do dano limitado à propriedade sob as condições atualmente existentes (III).

I. Desobediência incivil e dano à propriedade

Delmas interpreta a cartilha padrão da desobediência civil a partir do estabelecimento de linhas nítidas entre a transgressão civil e incivil à lei. A primeira exige "seriedade moral, altruísmo, não-violência e aceitação das sanções legais", enquanto a segunda permite transgressões à lei que sejam encobertas, autointeressadas, disruptivas e (potencialmente) ofensivas moralmente, juntamente com a violência e a evasão da punição (Delmas, 2021: 210-211). Em sua leitura, a maioria dos teóricos liberais - e muitos ativistas que aparentemente são influenciados por eles -, endossam uma interpretação rígida da não-violência que não apenas condena o dano (harm)7 7 Há aqui outra diferenciação em inglês que não encontra correspondência na língua portuguesa, nem mesmo na linguagem técnico-jurídica. Optei por traduzir tanto damage quanto harm por "dano". Ainda que harm possa ser empregado para indicar dano a pessoas e a coisas, é comumente mais utilizado para tratar de danos corporais e psicológicos a pessoas, enquanto damage geralmente é empregado para objetos. A distinção é nuançada também em inglês e, em muitos casos, ambos os termos podem ser utilizados de maneira intercambiável entre si. (N.T.) corporal e psicológico a pessoas, mas até mesmo formas mínimas de dano simbólico à propriedade (como, por exemplo, grafitar um monumento aos confederados). Na verdade, hoje essa interpretação rígida da não-violência política parece ser um lugar-comum entre acadêmicos: as influentes cientistas sociais Erica Chenoweth e Maria J. Stephan, por exemplo, descrevem táticas de protesto violento como aquelas que "incluem bombardeios, tiroteios, sequestros, sabotagem física, como a destruição de infraestrutura e outros tipos de dano físico a pessoas e à propriedade" (Chenoweth e Stephan, 2011:13).

Em parte motivada por protestos que violam essas proibições estritas, Delmas se opôs criativamente à perspectiva da cartilha convencional com uma defesa ampla da transgressão incivil à lei. A partir de perspectivas filosóficas anglófonas padrão sobre a obrigação política, ela sugere que ideias cruciais a respeito de um dever básico de cumprir a lei podem ser interpretadas como justificativas, de maneira não menos sistemática, a uma obrigação de princípio de desobedecer a lei em face da injustiça. Dever de justiça, equidade (fairness), abordagens samaritanas e associativas da obrigação política podem ser lidas a contrapelo, como suporte de uma teoria radical da resistência política e de uma defesa principiológica não apenas da desobediência civil, mas também da desobediência incivil. Além disso, nós devemos levar a sério a ideia de um dever moral de violar a lei. Ainda que se deva esperar daqueles que participam de atos de desobediência incivil que ajam de maneira responsável e que minimizem danos sempre que possível, violar a lei continua sendo justificável - e, por vezes, obrigatório - mesmo em meio ao que John Rawls denominou de sociedades "quase justas" ou simplesmente, liberais. De qualquer maneira, podemos e devemos endossar um papel maior para protestos bagunçados (messy) - e, às vezes, violentos - do que Rawls e outros teóricos liberais alguma vez supostamente reconheceram (Delmas, 2018).

As ideias de Delmas receberam uma quantidade significativa de atenção da academia.8 8 Para um levantamento do debate que se seguiu, ver Scheuerman, 2019. Para nossos propósitos aqui, três lapsos merecem atenção especial.

Em primeiro lugar, ainda que esteja correta em descrever uma "cartilha" estrita da desobediência civil e suas ideias rígidas sobre não-violência como motivadoras de muitos ativistas políticos, Delmas vai longe demais ao atribuir alguns componentes centrais (como, por exemplo, ideias estritas de civilidade e não-violência) a teorias influentes. Na verdade, mesmo filósofos liberais pensaram de maneiras bastante diferentes, por exemplo, quando se trata da violência não apenas contra pessoas, mas também contra a propriedade. Quando, em Uma teoria da justiça, Rawls declarou que a desobediência civil "tenta evitar a violência, especialmente contra pessoas", ele estava reconhecendo, implicitamente, que o dano às pessoas e às coisas (ou à propriedade) constituem dois assuntos diferentes (Rawls, 1971: 366, grifo meu). Mesmo que, por razões táticas ou estratégicas, Rawls e outros liberais criticassem ambos, eles se recusaram a eclipsar diferenças-chave entre eles. Alguns liberais claramente toleram o dano à propriedade, mas não a violência contra pessoas: Marshall Cohen, um dos contemporâneos de Rawls e uma grande influência a suas ideias sobre desobediência civil, defendeu a possibilidade da assim chamada transgressão violenta à lei - assim como Rawls, ela não era contra pessoas, mas contra "propriedade pública de importância simbólica", que era vista por Cohen como "uma maneira dramática e não muito perigosa de abrigar protestos efetivos" (Cohen, 1969:217). O próprio Rawls pode ter deixado espaço aberto para esses atos, mesmo em Estados liberais atualmente existentes.9 9 Rawls sugeriu que sua abordagem estrita da desobediência civil (e não-violência) apenas era aplicável a contextos liberais "quase justos" (Rawls, 1973:363), ao mesmo tempo em que reconhecia que era possível discordar, legitimamente, sobre se os Estados Unidos ou outros Estados liberais contemporâneos poderiam ser classificados dessa forma. Como ele comentou na reunião anual da American Political Science Association, em 1973, "Eu acho muito difícil de entrever como alguém que tenha vivido neste país pela última década ou mais poderia pensar que se trata de uma sociedade justa ou quase justa tal como eu defino justiça" (citado em Forrester, 2019:126).

Em segundo lugar, e mais importante, a defesa de Delmas da desobediência incivil reproduz a definição extremamente ampla - mas problemática do ponto de vista analítico e normativo - de violência que está implícita no modelo da cartilha que ela critica. Ela tende também a agrupar uma variedade de atividades danosas contra pessoas e contra a propriedade sob a rubrica da "violência": violência física, bem como sufragistas quebrando vidraças ou antirracistas desfigurando monumentos - todos constituem exemplos de protesto "incivil" violento. Um problema imediato com essa visão ampla é o fato de que vidraças ou monumentos públicos vandalizados não sofrem desconforto ou dor intensa da mesma maneira que nós associamos ao dano físico às pessoas (e, sim, provavelmente outros seres sencientes também). Violência significa sujeitar seres humanos à violência física (e talvez à violência psicológica extrema); a propriedade e outros objetos não conseguem ter a experiência da violência. Mesmo quando o dano à propriedade pode ser relacionado a um dano tangível, físico ou psicológico (por exemplo, uma casa é incendiada, levando seus moradores ao trauma e à condição de sem-teto), a relação entre começar uma ação e suas consequências é tipicamente mais complicada e menos direta do que em casos comumente reconhecíveis de violência física ou psicológica, por exemplo, quando um pai humilha incessantemente ou bate brutalmente em seu filho ou filha, ou quando um soldado atira ou fere alguém.

No que se segue, eu sugiro que existem razões convincentes para que nós queiramos destacar as relações entre algumas formas de dano à propriedade e de violência contra as pessoas. Apesar disso, nós corremos o risco de confundir os assuntos ao amontoar uma vasta coleção de fenômenos complexos sob uma única rubrica idealizada e excessivamente inclusiva. Violência e dano à propriedade são criaturas distintas, mesmo se algumas formas da última podem abrir a porta para a primeira.

Não é surpreendente que a literatura filosófica esteja repleta de críticas astutas a ideias abertas a respeito da violência. Com muita frequência, noções amplas de violência funcionam como substitutos abrangentes para uma variedade de fenômenos complexos. Elas obstruem uma discussão adequadamente matizada, que captura diferenças vitais em potencial entre elas, em um processo que alimenta a "crença confortável, mas, no limite, invalidadora" de que tipos bastante diferentes de ação continuam semelhantes em seus fundamentos (Coady 2009Coady, C. A. J. 2009. “The Idea of Violence,” in Violence: A Philosophical Anthology, ed.V. Bufacchi, 244-264. London: Palgrave Macmillan.: 255). John Keane faz uma defesa veemente da limitação da violência à "interferência física indesejada, por parte de grupos e/ou indivíduos, nos corpos dos outros que, como consequência, são levados a sofrer uma série de efeitos, que variam do choque, feridas, arranhões, inchaços e dores de cabeça a ossos quebrados, ataques do coração, perda de membros ou mesmo a morte" (Keane, 1996:66-67).10 10 A definição de Keane também abarca - na minha opinião, de maneira acertada - prejuízos psicológicos severos (como, por exemplo, o pai ou a mãe que deprecia implacavelmente a criança, de tal maneira que a automutilação se torna iminente ou real). Como aponta Robert Audi (2009:140), abuso e/ou assédio psicológico sistemático pode ser legitimamente visto como análogo a violações e ferimentos corporais severos. Ele observa que definições mais amplas obscurecem não apenas o que é distintivo, mas também o que é verdadeiramente terrível a respeito da violência, a saber: a maneira como ela viola, de maneiras profundamente nocivas e por vezes traumáticas, o corpo e a psique. Nós estendemos o conceito de violência sob o risco de obscurecer seus traços e consequências mais assustadores na vida real.

Em terceiro lugar, pelo fato de que Delmas reproduz a tendência comum de aglutinar a violência contra pessoas com o dano à propriedade, faltam-lhe os instrumentos necessários para separar diferentes tipos de dano à propriedade por motivação política. As intenções, técnicas e estratégias subjacentes ao dano à propriedade variam; e muitas vezes essas diferenças importam. Desfigurar uma estátua simbólica em termos políticos, por exemplo, não é a mesma coisa que atear fogo a uma pequena loja, em parte porque o primeiro ato comumente não terá consequências existenciais potencialmente terríveis semelhantes àquelas que uma família dependente da loja para sua sobrevivência enfrentaria. Saques e sabotagem motivados por razões políticas também são criaturas diferentes. Não só devemos traçar uma linha entre violência e dano à propriedade, mas nem todos os casos deste último são criados iguais: certos danos à propriedade podem resultar em danos tangíveis e em violações sistemáticas indesejadas de corpos e psiques humanas, mas outros não. Em suma, nós precisamos de uma tipologia do dano à propriedade por motivação política que nos permita fazer as distinções necessárias, em parte por reconhecer como o dano à propriedade por vezes - mas, em hipótese alguma, necessariamente - pode ser plausivelmente visto como ligado ou relacionado à violência contra as pessoas.

Nesse sentido, King - escrevendo logo após as revoltas que abalaram as cidades americanas em meados dos anos 1960 - insistiu em traçar uma linha entre dano à propriedade e violência contra pessoas ao mesmo tempo em que enfatizava a necessidade de ter algum critério que nos permita distinguir entre essas variedades:

Eu estou ciente de que há muitos que franzem o cenho diante da distinção entre propriedade e pessoas - e que têm ambos como sacrossantos. Minhas opiniões não são tão rígidas. Uma vida é sagrada. A propriedade é destinada a servir à vida e não importa o quanto nós a cerquemos de direitos e respeito, ela não tem existência como pessoa (King, 2015a: 148).

Um "núcleo de não-violência em relação às pessoas" era uma questão de princípio fundamental, enquanto a destruição da propriedade - que King também condenava - deveria ser evitada por manifestantes, mas principalmente por razões estratégicas e táticas (King 1968: 57).11 11 A respeito da não-violência de King, ver os vários ensaios na coletânea organizada por Shelby e Terry 2018:78-104. Por mais que fosse compreensível como um ato de rebeldia contra o privilégio branco, a destruição da propriedade se mostraria inevitavelmente como contraproducente, provocando um backlash político ao mesmo tempo em que falharia em lidar com as injustiças estruturais subjacentes que precisavam ser enfrentadas (King, 2010:138).12 12 Considerações críticas tanto sobre a violência contra pessoas quanto sobre dano à propriedade podem ser encontradas ao longo dos discursos e escritos de King. Apesar disso, o dano à propriedade constituía um "crime derivado" que empalidecia em comparação com a violência contra manifestantes, desencadeada pela guarda nacional e pela polícia (King 1968: 9). De maneira enganosa, autoridades estatais confundiam violência e dano à propriedade para legitimar sua própria violação flagrante da proibição, não-violenta por princípio, contra o dano e o prejuízo sofrido por pessoas. Como King assinalou (e comentadores acadêmicos rapidamente confirmaram) (Fogelson, 1970Fogelson, R. M. 1970. “Violence and Grievances: Reflections on the 1960s Riots,” Journal of Social Issues 26(1): 141-163. https://doi.org/10.1111/j.1540-4560.1970.tb01284.x
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), a violência contra pessoas cometida por manifestantes durante as revoltas em Detroit, Newark e em outros lugares foi, de fato, mínima. A vasta maioria de atos desse tipo foi cometida por agentes estatais. Ainda assim, chamados para autodefesa armada e organizada entre pessoas negras eram mal orientados. De acordo com King, eles iriam simplesmente cair nas mãos de uma "direita fanática" que os exploraria com facilidade, provavelmente resultando no "extermínio de milhares de homens, mulheres e crianças negras" (King, 2010:58).

De acordo com a visão cristã e "personalista" de King, a propriedade deveria servir para preservar e proteger a vida humana "sagrada". A propriedade é um meio para um fim, mas apenas esse fim - a vida humana - é inviolável ou sacrossanto. Como criaturas feitas à imagem da divindade, seres humanos são fins em si mesmos, enquanto a propriedade é meramente um dispositivo que os serve. Por implicação, a propriedade que diretamente embasa ou apoia seres humanos tem uma posição privilegiada vis-à-vis à propriedade que apenas o faz indiretamente ou talvez de modo algum.13 13 Acerca do personalismo de King e suas implicações para a propriedade, ver Steinkraus 1976: 25-26, ou, de maneira mais geral, Steinkraus 1973. King não ficaria surpreso com o fato de que muitos de nós ainda franzimos instintivamente o cenho diante do dano à propriedade por motivação política quando ele está conectado a algum prejuízo tangível a pessoas (por exemplo, a destruição do pequeno negócio de um lojista e, como resultado, de seu meio de vida) ao mesmo tempo em que ficamos comumente menos contrariados por atos não relacionados à destruição da vida ou do bem-estar humano (por exemplo, macular um monumento histórico). Nós não precisamos endossar o personalismo cristão de King para apreciar seus principais insights. Em primeiro lugar, precisamos distinguir dano à propriedade da violência contra pessoas. Em segundo, podemos distinguir diferentes tipos de dano à propriedade, em parte por considerar sua relação com a não-violência contra pessoas, uma ideia política que nós devemos continuar a acatar.14 14 Em outras palavras, eu estou defendendo a não-violência estrita contra pessoas, mas não contra propriedade. É desnecessário dizer que isso levanta questões que eu não consigo tratar suficientemente aqui. Para defesas recentes e importantes da não-violência, ver Butler 2020, May 2015 e Vinthagen 2015.

Na verdade, como Rawls notou - em discordância tanto com Gandhi quanto com King -, onde a estrutura básica da sociedade é pensada, de maneira plausível, "como sendo tão injusta ou se afastando tão amplamente de seus próprios ideais professados", mudanças mais radicais "ou mesmo revolucionárias", incluindo atos violentos direcionados contra pessoas e também contra a propriedade, podem ser consideradas (Rawls, 1973: 367-368).15 15 Em outras palavras, Rawls poderia ter endossado protestos militantes (e potencialmente violentos) em contextos não-liberais, como, por exemplo, na Hong Kong dos dias de hoje. Gandhi, e talvez também King, acreditavam que a desobediência civil não-violenta também era adequada para contextos profundamente injustos e autoritários (como, por exemplo, a Índia colonial). Mas também para Rawls, tanto as razões de princípio quanto as táticas militam contra a violência, "especialmente contra pessoas", em associações políticas (polities) mais ou menos liberais nas quais mecanismos básicos para a mudança política pacífica continuavam em operação (Rawls, 1973: 366). Atos que danificam ou desfiguram a propriedade de tal maneira que violam seres humanos de forma mais ou menos direta deveriam ser obrigados, de todo modo, a passar por testes normativos mais exigentes do que aqueles que não estão relacionados com danos às pessoas.

II. Tipos de dano à propriedade e desafios normativos

Nós precisamos de uma linguagem e de conceitos mais precisos para explorar os desafios colocados pelas variedades de dano à propriedade. Os termos comumente utilizados para descrevê-las são, com frequência, tão carregados politicamente que eles inevitavelmente prejudicam a análise cuidadosa. A palavra "vandalismo", por exemplo, sugere uma ação brutal e não civilizada, enquanto "saqueamento" (looting) provavelmente tem suas raízes no império colonial britânico na Índia, quando foi usada para "denegrir e racializar subalternos em levante", retratados como se tivessem um ponto fraco congênito para a pilhagem (Osterweil, 2020Osterweil, V. 2020. In Defense of Looting: A Riotous History of Uncivil Action. First edi- tion. New York: Bold Type Books.:3). Escritores recentes desenvolveram abordagens normativas perspicazes de "revoltas" (riots), outro termo com uma genealogia problemática e com conotações depreciativas.16 16 De acordo com o Oxford English Dictionary, por exemplo, "riot" se referia, inicialmente, a um estilo de vida libertino ou decadente, caracterizado pela devassidão (Oxford English Dictionary Online, 2021). Para uma discussão perspicaz sobre revoltas, ver Pasternak 2018. No entanto, eles ainda falham em nos levar para onde precisamos ir: revoltas abarcam atos violentos contra pessoas bem como uma gama de atos danosos ou destrutivos da propriedade, ao passo que nós exigimos distinções conceituais e normativas mais afinadas.

O que se segue é uma tentativa preliminar de esboçar alguns dos principais tipos de dano à propriedade. É claro que, no universo bagunçado da política e dos protestos da vida real, essas variedades frequentemente caminham de mãos dadas e as distinções entre elas ficam borradas. Mas nós ainda precisamos do que Max Weber chamou de tipos ideais para compreendê-las e avaliá-las adequadamente.17 17 Para uma discussão sobre este tema, ver Ringer 2004: 77-112. Com base nos comentários de King sobre um "núcleo de não-violência contra pessoas", eu sugiro que aquelas variedades de dano à propriedade que não têm qualquer relação clara com a violência contra pessoas tenham um fardo de justificação menos pesado do que aquelas que têm alguma relação plausível com ela. É preciso reconhecer que pode ser ingênuo esperar que manifestantes agindo no "calor do momento" respeitem parâmetros normativos. No entanto, todo movimento genuinamente político é obrigado a pensar muito a respeito de qual é a melhor maneira de convencer os outros acerca da justiça de sua causa, pelo menos se é um movimento que está buscando mudanças duradouras. Se suas ações devem aparecer como justificáveis a públicos mais amplos, provavelmente faria bem aos ativistas tentar respeitar algumas das condições que eu esboço abaixo.

Dano simbólico à propriedade

Todo dano à propriedade por motivação política tem, por definição, sentido ou significado político - assim, inicialmente essa categoria parece ser indiscriminada demais. Apesar disso, ela tem o objetivo de capturar um subgrupo significativo de protestos, a saber, aqueles em que o dano ou à destruição à propriedade, sem autorização legal, é direcionado contra um alvo selecionado principalmente em razão de seu valor simbólico ou expressivo. Nessa linha, no verão de 2020, ativistas antirracistas em Bristol, no Reino Unido, pintaram e depois derrubaram uma estátua de Edward Colston, um rico filantropo que lucrou com o tráfico atlântico de escravos, antes de atirá-la nas águas do porto. Eles o fizeram em apoio aos protestos antirracistas ao redor do mundo, que aconteciam imediatamente após a morte de George Floyd (Farrer, 2020Farrer, M. 2020. “Who Was Edward Colston and Why Was His Bristol Statue Toppled?,” The Guardian, 8 June. http://www.theguardian.com/uk-news/2020/jun/08/who-was-edward-colston-and-why-was-his-bristol- statue-toppled-slave-trader-black-lives-matter-protests; accessed March 21, 2021.
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). No mesmo período, os manifestantes grafitaram as paredes de lojas (com, por exemplo, os dizeres "coma os ricos" - "eat the rich"), incluindo redes de luxo em áreas comerciais afortunadas de Beverly Hills e do Soho, em Nova York, para enfatizar as relações entre o racismo e a crescente desigualdade material (Davis, 2020Davis, D. 2020. “Shattered Storefronts and ‘Eat the Rich’ Graffiti: Photos Show the After- math of Destruction in Luxury Stores That Were Looted and Vandalized during the Protests,” Business Insider, 2 June. https://www.businessinsider.com/luxury-stores-looted-vandalized-nyc-la-george-floyd-murder-protests-2020-6; accessed March 21, 2021.
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).

Nos anos 1960, aqueles que se opunham ao envolvimento militar norte-americano no Vietnã e ao que eles viam como um sistema injusto de recrutamento queimaram cartões de alistamento e jogaram fora os registros que eram mantidos nos campi universitários. De maneira geral, os ativistas compreendiam que seus atos provavelmente não colocariam um ponto final direto à guerra ou mesmo ao alistamento. Ainda assim, eles tinham a esperança de comunicar um sentimento de ultraje e, assim, influenciar a opinião popular (Foley, 2003Foley, M. S. 2003. Confronting the War Machine: Draft Resistance during the Vietnam War. Chapel Hill: University of North Carolina Press.). Em 1911 e 1912, as sufragistas britânicas destruíram vidraças para chamar atenção ao que elas afirmavam ser um maior interesse e cuidado do governo em proteger formas insignificantes de propriedade, se comparado com as mulheres e seus direitos. Elas previram com precisão que policiais e outras autoridades estatais prestariam mais atenção a danos menores à propriedade do que a seus pedidos e demandas por direitos iguais.18 18 Para os detalhes, ver Bearman, 2005.

Ainda que esses protestos quase sempre sejam controversos, eles apresentam uma gama comparativamente menor de desafios normativos, ao menos quando os ativistas se aproximam de modelos de desobediência civil que datam de muito tempo. Quando têm a intenção de ser um ato comunicativo voltado a mudar a opinião pública, não resultando em violações físicas ou psicológicas de pessoas e com os manifestantes aceitando as possíveis consequências legais, esses atos provavelmente podem ser caracterizados como desobediência civil. Não é surpreendente que alguns dos principais teóricos liberais tenham feito exatamente isso (Cohen, 1969Cohen, M. 1969. “Civil Disobedience in a Constitutional Democracy,” The Massachusetts Review 10(2): 211-226.).19 19 No entanto, a defesa de Cohen está focada na possível legitimidade de dano ou destruição à propriedade pública.

No entanto, as coisas ficam mais bagunçadas quando o dano simbólico à propriedade acontece secretamente ou quando os ativistas tentam contornar as consequências legais. Ainda assim, esses atos podem tomar uma forma não-violenta identificável, ao menos quando a violência é definida de uma maneira adequadamente circunscrita. O fato de que os alvos do dano são geralmente de propriedade pública (por exemplo, monumentos ou estátuas) muitas vezes significa que desfigurá-los ou destruí-los implica poucos riscos diretos, se é que existem, a pessoas concretas. Mesmo quando ativistas grafitam uma loja de propriedade privada, as consequências podem ser inconvenientes e, em alguns casos, onerosas, mas dificilmente apresentam risco de vida. Eu me preocupo que nós simplesmente façamos confusão entre os temas ao, por exemplo, descrever o incêndio ou a destruição de um monumento público como mais "violenta" do que sua vandalização. O que importa é o impacto do ato em pessoas: apenas se resultar numa clara violação corporal ou psicológica é que devemos falar em dano à propriedade que resulta em violência. De maneira considerável, quando os manifestantes preferem preservar seu anonimato ou falham em apresentar alguma justificação pública clara, o caráter fundamentalmente simbólico do seu ato significa que, provavelmente, ele ainda irá contribuir de alguma forma ao debate público. Como Ten-Herng Lai (2020Lai, T. 2020. “Political Vandalism as Counter‐speech: A Defense of Defacing and Destroying Tainted Monuments,” European Journal of Philosophy 28(3): 602-616. https://doi.org/10.1111/ejop.12573
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) defendeu, danos a estátuas ou monumentos podem ser interpretados, de maneira plausível, como um contradiscurso político direcionado a interpretações da história e da identidade política privilegiadas pelo Estado. Atos como esses podem ser moralmente permissíveis e talvez até mesmo obrigatórios como uma maneira de lutar contra símbolos políticos oficiais que tratam alguns grupos de forma depreciativa ou exaltam ideologias de ódio que diminuem certas categorias de pessoas.20 20 Ver também Lim, 2020, e Schulz, 2019. Desfigurar ou pôr abaixo um monumento muitas vezes faz uma contribuição política construtiva, mesmo quando os manifestantes ignoram elementos da cartilha padrão da desobediência civil.

É certo que ativistas ainda podem selecionar alvos inapropriados e, no processo, falhar em transmitir a mensagem desejada. Suas causas podem ser injustas ou apenas simplesmente estúpidas: aqueles que têm a esperança de reformar ou melhorar dramaticamente - bem como aqueles que indiscutivelmente querem deformar - os Estados liberais existentes se envolvem com regularidade na prática de danos à propriedade.21 21 Lembre, por exemplo, o ataque ao Capitólio norte-americano no dia 6 de janeiro de 2021, que incluiu violência contra pessoas, bem como a destruição significativa da propriedade e foi motivado por uma tentativa autoritária, populista e de direita de reverter o resultado das eleições. Ao longo da história norte-americana, aqueles que se opuseram ao avanço político e social das pessoas negras destruíram casas, negócios e escolas de propriedade de pessoas negras ou geridos por elas e seus aliados políticos (Jackson, 2019). Com base no julgamento político ou na ideologia, nós podemos decidir, de maneira bastante legítima, condenar seus atos. Qualquer pessoa que tomar parte em atos de dano simbólico à propriedade, em qualquer nível, precisará prestar atenção a possíveis repercussões políticas. Como Rawls corretamente notou, mesmo que as pré-condições da desobediência civil tenham sido satisfeitas, considerações de prudência ainda podem nos levar, de maneira sensata, a rejeitar esses atos quando eles são suscetíveis a "provocar a retaliação severa da maioria" e um backlash político. Essas considerações parecem ser ainda mais importantes no contexto de atos de dano à propriedade com inspiração política que sejam controversos (Rawls, 1973:376).

Dano disruptivo à propriedade

Enquanto atos ilegais que se encaixam nessa rubrica terão geralmente um significado simbólico mais ou menos direto, além disso eles miram a disrupção ou obstrução imediata de algumas práticas que os manifestantes veem como injustas ou ilegítimas, com a propriedade-alvo vista como essencial para a prática disputada. Esses atos são geralmente mais controversos do que aqueles de caráter simbólico, mas não-disruptivo. Eles serão com frequência caracterizados como "sabotagem", em parte porque os manifestantes podem agir secretamente para escapar das repercussões jurídicas.22 22 John Medearis (2015:29) contrasta a transgressão à lei "coercitiva" e disruptiva, que tipicamente estão direcionadas a desigualdades estruturais de poder, da desobediência civil "deliberativa" preferida por liberais e democratas deliberativos. Medearis aponta para algo importante, mas ele exagera no contraste. Mesmo formas relativamente familiares de desobediência civil, reconhecidas dessa forma tanto por Gandhi e por King, continham elementos "coercitivos". A maioria dos exemplos de dano disruptivo à propriedade da vida real contém tanto traços deliberativos (ou ao menos simbólicos) e coercitivos. Nessa linha, "hackativistas" com inclinações políticas desativaram clandestinamente e, por vezes, danificaram os servidores de grandes empresas e agências estatais, com a esperança de obstruir práticas que eles consideram inaceitáveis, sem assumir suas ações ou aceitar as consequências jurídicas. Ainda que por vezes tenham sido criativamente repaginados por ativistas como versões atualizadas de desobediência civil, juízes e júris nem sempre responderam favoravelmente a esses atos, em parte em razão de preocupações com desvios da visão adotada pela cartilha padrão.23 23 Para uma análise deste tema, ver Scheuerman 2018: 122-139.

No entanto, o dano disruptivo à propriedade também adquire, com frequência, formas abertas e públicas. Em 2017, membros do Catholic Worker de Des Moines que haviam se oposto ao oleoduto Dakota Access "aprenderam a usar maçaricos de solda com oxigênio e acetileno para queimar o aço dos canos" antes de começar a destruir equipamentos em vários locais de construção (Malm, 2021Malm, A. 2021. How to Blow up a Pipeline: Learning to Fight in a World on Fire. London: Verso.:97). Eles confessaram seus atos publicamente, declarando que

Depois de explorar e esgotar todas as vias do processo, inclusive participar de audiências públicas, coletar assinaturas para submeter reivindicações válidas por Estudos de Impacto Ambiental, participar em atos de desobediência civil, greves de fome, marchas e protestos, boicotes e acampamentos, nós vimos as claras deficiências do nosso governo para ouvir as demandas das pessoas (citado em Malm, 2021Malm, A. 2021. How to Blow up a Pipeline: Learning to Fight in a World on Fire. London: Verso.:98).

Em seguida os autores se apresentaram ao tribunal e se declararam culpados da acusação de conspiração para danificar uma instalação de energia.

Outros exemplos de resistência aberta e voltada para o público incluem os manifestantes antiaborto da Operation Rescue, ambientalistas que participam de "eco-sabotagem" e defensores dos direitos dos animais que danificam laboratórios e libertam animais do confinamento. Em algumas ocasiões, todos eles forneceram justificativas públicas ao mesmo tempo em que visavam colocar um ponto final no "business as usual" ao danificarem ou mesmo destruírem propriedades decisivas para as práticas em disputa.24 24 Sobre a Operation Rescue, ver Risen e Thomas, 1998; sobre os direitos dos animais e transgressão à lei por razões ambientais, ver Milligan, 2013: 103-136; sobre eco-sabotagem, ver Welchman, 2001. Alguns também aceitaram as consequências jurídicas que se seguiram.

Em princípio, nada impede que o dano disruptivo à propriedade permaneça não-violento ao evitar danos e ferimentos severos a pessoas. Ainda assim, por vezes esses atos envolvem assumir riscos que potencialmente abrem a porta para a violência. Cravar pregos em árvores, por exemplo, apresenta ameaças físicas óbvias aos madeireiros, mas talvez não aos donos e acionistas das grandes empresas que os empregam. Um incêndio sempre parece mais perigoso do que desfigurar ou quebrar vidraças de lojas, pela razão óbvia de que o fogo pode rapidamente ficar fora de controle, ameaçando pessoas, bem como propriedades que não estão relacionadas a qualquer injustiça relevante.

Sem muita deliberação ou planejamento contínuos - se é que houve algum -, e instigados pelo que agora parecem ter sido agent provocateurs, o Black Lives Matter (BLM) e manifestantes aliados atearam fogo à Terceira Delegacia de Polícia de Minneapolis em parte em razão de sua associação direta com a discriminação e com a violência da polícia (Stockman, 2020Stockman, F. 2020. “‘They Have Lost Control’: Why Minneapolis Burned,” New York Times, 3 July 2020. https://www.nytimes.com/2020/07/03/us/minneapolis-govern ment-george-floyd.html.
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). Um símbolo do policiamento racista, felizmente a destruição da delegacia de polícia não resultou na perda de qualquer vida ou talvez nem mesmo na ameaça à subsistência dos policiais; aqueles que estavam alocados àquela delegacia haviam sido transferidos para outro lugar. No entanto, atear fogo a um edifício em um bairro populoso de uma cidade é sempre arriscado e provavelmente imprudente. Se o prefeito de Minneapolis, Jacob Frey, tivesse ouvido aqueles que queriam que os policiais defendessem a delegacia, um derramamento substantivo de sangue poderia ter se seguido.

A pesquisa em ciências sociais também sugere que o dano à propriedade tende a aumentar tensões e gerar medos quando há protestos que, do contrário, seriam pacíficos, provocando, com frequência, um backlash feroz por parte da polícia e, inadvertidamente, abrindo caminho para a violência contra pessoas (Nassauer, 2019Nassauer, A. 2019. Situational Breakdowns: Understanding Protest Violence and Other Surprising Outcomes. Situational Breakdowns. New York: Oxford University Press. https://doi.org/10.1093/oso/9780190922061.001.0001
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: 71-86). Ainda que essa expectativa acompanhe todo dano à propriedade, as formas menos controláveis de dano disruptivo à propriedade (como incêndio, por exemplo) certamente aumentam os perigos.

Seria inocente e irresponsável ignorar posicionamentos contrários ao dano à propriedade. Consequentemente, aqueles que, por fim, decidem participar de atos disruptivos de dano à propriedade devem esperar se deparar com alguns testes exigentes. Eles devem minimizar, acima de tudo, qualquer perda possível em termos de vida humana, agindo com "respeito pelos interesses de outras pessoas… na vida e na integridade corporal", sempre procurando pelo plano de ação menos nocivo concebível (Delmas, 2018Delmas, C. 2018. A Duty to Resist: When Disobedience Should Be Uncivil. New York: Oxford University Press. https://doi.org/10.1093/oso/9780190872199.001.0001
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:49).25 25 Em uma linha parecida, ver Pasternak, 2018: 122-139. Seus atos devem ser "contidos, proporcionais e discernentes, de tal maneira que os impactos pretendidos estejam concentrados o máximo possível na transgressão (wrongdoing)", sendo qualquer dano necessariamente apropriado, bem como proporcional, à injustiça em questão (Smith, 2018Smith, W. 2018. “Disruptive Democracy: The Ethics of Direct Action,” Raisons Politiques: Études de Pensée Politique 69(1): 13-27. https://doi.org/10.3917/rai.069.0013
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:18). Danos colaterais à propriedade (ou a pessoas) não relacionados à injustiça que está no centro do protesto devem ser evitados. Ativistas pelos direitos dos animais que estragam equipamentos de laboratório, por exemplo, precisam limitar o dano àqueles equipamentos necessários aos experimentos que eles consideram inaceitáveis.

Fundamentalmente, é "difícil imaginar qualquer circunstância em que… campanhas deveriam usar ou ameaçar com força letal ou ataques psicológicos vigorosos" e "nenhum risco de dano físico ou psicológico a pessoas" deveria ser permitido (Smith, 2018Smith, W. 2018. “Disruptive Democracy: The Ethics of Direct Action,” Raisons Politiques: Études de Pensée Politique 69(1): 13-27. https://doi.org/10.3917/rai.069.0013
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:19). Tanto por razões estratégicas como de princípio, a violência contra pessoas continua fora dos limites normativos. Apenas injustiças iminentes e severas, que exigem resposta urgente, devem acelerar danos disruptivos à propriedade (Malm, 2021Malm, A. 2021. How to Blow up a Pipeline: Learning to Fight in a World on Fire. London: Verso.:13), e, mesmo nesses casos, os atos só devem ser levados adiante quando outros métodos políticos (como, por exemplo, advocacy e protesto legais, modos mais convencionais de desobediência civil) falharam ou podem, de maneira plausível, ser interpretados como provavelmente ineficientes (Smith, 2018:22-23). O dano disruptivo à propriedade é provavelmente mais justificável quando adota um caráter predominantemente defensivo - por exemplo, quando afasta algum dano manifesto ou uma injustiça extrema e quando aqueles que participam dos atos fazem apenas o mínimo necessário para obstruí-los (Brennan, 2019Brennan, J. 2019. When All Else Fails: The Ethics of Resistance to State Injustice. Prince- ton: Princeton University Press. https://doi.org/10.1515/9780691183886
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:46-47).

Dessa perspectiva, é difícil de ver como alguns atos recentes de dano à propriedade por motivação política podem ser justificados. Por exemplo, quando manifestantes antirracistas de Minneapolis e Saint Paul, intencionalmente ou não, incendiaram o restaurante etíope Bole, um negócio de propriedade de uma família imigrante e pertencente a uma minoria, provavelmente seus atos tiveram consequências não menos devastadoras do que as de um incendiário em uma residência pessoal (Saavedra-Weis, 2020Saavedra-Weis, I. 2020. “Bolé Tops $100,000 Rebuilding Goal in a Day; Ethiopian Res- taurant Destroyed in Riot Fires,” Pioneer Press, 31 May 2020. https://www.twincities.com/2020/05/31/bole-tops-100000- rebuilding-goal-in-a-day-ethiopian-restau rant-destroyed-in-riot-fires/.
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). Essa foi uma agressão a uma propriedade que não apenas sustentava diretamente uma família imigrante, mas também não estava relacionada com o racismo sistêmico ou com o policiamento racista. O mesmo pode ser dito sobre outros negócios e empreendimentos severamente atingidos pelos protestos, incluindo Migizi, uma organização sem fins lucrativos de Minneapolis que desenvolve programas para a juventude indígena. Alguém poderia ter pensado que aqueles que queriam se opor ao racismo teriam, em vez disso, feito questão de respeitar a propriedade de negócios e organizações sem fins lucrativos solidários a minorias raciais e étnicas desfavorecidas.

Apreensão de propriedade

A visão de senso comum sobre apreensões de propriedade por motivação política - que entende os atos como "saques" irracionais, geralmente relacionados com "motins" sanguinários - atrapalha o caminho para uma avaliação equilibrada. Em todos os lugares em que a propriedade é tida em alta conta, aqueles que dela se apropriam para usos próprios se defrontarão com uma condenação praticamente universal. Assim, qualquer ator político esperto, interessado em mudar a opinião pública em uma direção favorável, deve, obviamente, agir com extremo cuidado. Mais fundamentalmente, apreensões de propriedade por motivação política podem se mostrar não menos destrutivas e potencialmente ameaçadoras à vida do que seu primo, o dano disruptivo à propriedade.26 26 Bloquear estradas públicas ou ocupações ilegais de propriedade pública e privada provavelmente constituem tipos relacionados de protesto. No entanto, eles tipicamente têm, como resultado, a "devolução" da propriedade ocupada a seu dono - por exemplo, a um órgão público ou privado - e, portanto, não se caracterizam por um dano mais durável à propriedade ou por sua apreensão. Para algumas das questões que são levantadas por ocupações, ver Kohn, 2013.

Durante os protestos antirracistas de 2020 nos Estados Unidos, por exemplo, mesmo simpatizantes ficaram alarmados quando manifestantes esvaziaram as prateleiras de lojas de varejo, o que incluiu lojas pequenas de propriedade de imigrantes e minorias raciais. Essa foi uma reação sensata? Assim como no caso do restaurante etíope Bole, em Saint Paul, esses negócios às vezes sustentam diretamente seres humanos que dependem deles para sua sobrevivência. Quando os manifestantes saqueiam e os colocam em perigo, suas ações podem ter um impacto existencial desastroso. Especificamente, negócios de proprietários locais que podem ser forçados a fechar as portas permanentemente são mais propícios a ser mais negativamente impactados. Com algum contraste, redes com base nacional podem ter os recursos econômicos e os meios em termos de infraestrutura para reabrir rapidamente. Também aqui, aqueles que roubam de negócios locais podem nunca ter buscado danificar ou colocar pessoas em perigo, no entanto, seus atos se tornam parte de uma cadeia complexa, mas claramente rastreável, de eventos que gera dificuldades econômicas e todos os seus conhecidos efeitos corporais e psicológicos tangíveis. Com muita frequência, são os "peixes pequenos" (pequenos proprietários de negócios, empregados) - e talvez não os CEOs ou acionistas de cadeias nacionais - que vão pagar o preço mais alto.

Por causa desses riscos, também deve-se esperar, daqueles que optam por apreender propriedades por motivação política, que passem em testes exigentes. Assim como acontece com o dano disruptivo à propriedade, suas iniciativas devem tipicamente representar um último recurso que deve ser adequadamente contido, proporcional e discernente, com redução de quaisquer ameaças tangíveis à vida humana e, idealmente, com sua eliminação. Outros protestos, tanto legais quanto ilegais (o que inclui a desobediência civil), devem sempre ser preferidos se comparados à apreensão de propriedade. Também há razões sólidas, tal como acontece com os casos de desobediência civil, para que os manifestantes apresentem uma defesa ou explicação públicas de seus atos, ao menos se eles esperarem convencer aqueles que, de outra forma, estariam propensos a ser céticos ou hostis. Mesmo que aqueles que participam da apreensão de propriedade por motivação política normalmente tentem escapar da punição jurídica, pode não ser irrealista esperar que representantes dos movimentos compareçam aos tribunais e façam apelos a seus concidadãos. Ao fazê-lo, eles podem demonstrar que, na realidade, eles não são bandidos ou criminosos - como seus oponentes certamente irão descrevê-los -, mas, em vez disso, são participantes em um projeto político comum que luta por um sistema de direito melhor. Quando apropriado, eles podem assinalar, por exemplo, que teorias influentes sobre a propriedade privada admitem universalmente que direitos de propriedade "precisam ceder diante da necessidade humana extrema", entendida em termos de necessidades humanas urgentes (Alexander e Peñalver, 2012Alexander, G. S., and E. M Peñalver. 2012. An Introduction to Property Theory. Cam- bridge Introductions to Philosophy and Law. New York: Cambridge University Press. Audi, R. 2009. “On the Meaning and Justification of Violence,” in Violence: A Philosophical Anthology, ed. V. bufacchi, 136-167. London: Palgrave Macmillan.: 204-205).

Apesar de seus perigos, parece injusto condenar todas as violações de direitos de propriedade com inspiração política. Aaron Swartz hackeou o JSTOR e tornou sua coleção acadêmica acessível a todos aqueles que não teriam acesso de outra forma, argumentando que leis obsoletas sobre direitos autorais e propriedade intelectual haviam transformado vastos tesouros de conhecimento, muitos dos quais foram obtidos por meio de investimento público, em propriedade privada de um punhado de grandes corporações. Em uma série de declarações públicas, Swartz explicou e justificou suas ações com vigor. Implacavelmente perseguido pelo FBI, ele se suicidou tragicamente. Ainda é difícil ver como os atos de Swartz ameaçaram a vida humana ou poderiam ser possivelmente interpretados como violência. Não há qualquer dúvida de que ele levantou uma série de questões vitais acerca dos direitos de propriedade intelectual (Swartz e Lessig, 2016:26-28).

Apreensões de propriedade com base política que se encaixam na rubrica do que podemos descrever como robinhoodismo também parecem ser potencialmente justificáveis. Quando o governo municipal de Detroit cortou o benefício-desemprego em 1932, crianças visivelmente famintas responderam pegando comida de mercearias, com "homens desempregados, geralmente em grupos de dois ou três", entrando em lojas de rede e mandando levar "toda a comida que eles pudessem carregar" e depois saindo sem pagar. É interessante que "os gerentes de lojas de rede se recusaram a reportar os incidentes à polícia para que a prática não fosse encorajada pela publicidade decorrente" (Hallgreen, 1933:99). No mesmo período, os mineiros de carvão de West Virginia ameaçaram tomar medidas parecidas para alimentar suas famílias, com um dirigente sindical anunciando que "nenhum Estado tem o direito de te chamar de criminoso se você tomar o que você precisa para viver" (Hallgreen, 1933:58). Em Charleston, um xerife local conseguiu que os mineiros desistissem apenas por convencer os oficiais do condado a prover ajuda alimentar emergencial. Em casos como esses, a apreensão de propriedade por motivação política pode ser tragicamente necessária para prevenir perdas desnecessárias à vida.

Ainda que King tenha condenado os saques generalizados que aconteceram em Detroit, Newark, Watts e em outros lugares, ele os interpretou como um ato desesperado por parte de moradores pobres da classe trabalhadora - como ele observou com precisão, tanto por pessoas negras e, por vezes, pessoas brancas -, excluídos dos símbolos da sociedade norte-americana afluente que representavam o bem-estar da classe média (como, por exemplo, aparelhos de TV a cor). Ao invés de simplesmente condenar a irracionalidade dos saques, ele atribuiu a eles um simbolismo político implícito: os alvos dos manifestantes eram negócios de propriedade de pessoas brancas e especialmente aqueles que eles acreditavam que os exploravam ao aumentar os preços artificialmente, porque eles representavam símbolos diretos do privilégio econômico e político branco. Nas palavras de King, "[uma] prova curiosa do aspecto simbólico dos saques para alguns que participaram dos atos é o fato de que, depois das revoltas, a polícia recebeu centenas de ligações de Negros27 27 Aqui se mantém o uso original do termo na citação de King, "Negroes". [N. T.] tentando devolver as mercadorias que eles haviam pegado. Essas pessoas queriam a experiência de pegar, de compensar o desequilíbrio de poder que a propriedade representa. A posse em seguida era secundária" (King, 1968:57).

Assim, mesmo em casos dos chamados "saques", nós precisamos fazer distinções normativas e políticas. A tendência generalizada de rejeitar a apreensão de propriedade por inspiração política sumariamente falha em apreender porque, em circunstâncias extremas, manifestantes podem levar tais atos adiante de forma justificável.

Infelizmente, algumas defesas recentes falham em traçar as distinções necessárias de modo similar. Nessa linha, a escritora anarquista Vicky Osterweil ofereceu uma defesa aberta dos saques ao interpretá-los como um ataque direto ao capitalismo supremacista branco, que ela abomina. Os saques, ela argumenta, necessariamente "rejeitam a legitimidade dos direitos de propriedade e da própria propriedade", ao mesmo tempo em que, imediatamente, acarretam uma economia mais justa - uma afirmação que pode surpreender aqueles que roubaram uma televisão nova ou um celular simplesmente para ter a propriedade privada de bens de consumo que eles não podiam pagar (Osterweil, 2020:3). Sua análise está amparada em noções amplas de violência similares àquelas que eu critiquei anteriormente neste ensaio. Ela também sofre de algumas tensões internas. Por um lado, Osterweil vê os saques como, em seu núcleo, um ataque legítimo ao capitalismo racializado; por outro, ela reconhece que pessoas brancas saquearam periodicamente a propriedade de pessoas negras para defender o status quo racial e econômico (Osterweil, 2020:98, 113-114, 117). Ainda que seja marxisant do ponto de vista da teoria, Osterweil falha em distinguir, como marxistas tipicamente fazem, entre diferentes formas de propriedade (como a propriedade pequeno burguesa, monopolista etc.) (Osterweil, 2020:228). Assim, mesmo quando direcionados contra pequenos negócios de propriedade de imigrantes, os saques supostamente representam um ataque ao capitalismo racializado contemporâneo e à sua burguesia (branca) dominante, uma reivindicação que parece forçada e obscurece algumas diferenças importantes.

III. Obrigação política e teorias da propriedade

A maioria das referências ao dano à propriedade por motivação política põe entre parênteses qualquer discussão acerca das teorias concorrentes sobre a propriedade, mesmo que pressuponham premissas extraídas delas.28 28 Ver, por exemplo, Morreall, 1991. Apesar disso, prestar atenção a essas teorias pode ajudar a iluminar as questões difíceis que estão em jogo e a melhor desenvolver o argumento que eu tentei formular aqui. Simultaneamente, nós precisamos explorar como teorias normativas da propriedade estão potencialmente relacionadas às realidades empíricas da propriedade (property ownership) que existem no mundo. Ao longo dessas linhas, minha tentativa necessariamente preliminar sugere que a minha defesa de alguns tipos limitados de dano à propriedade ainda prevalece.

De maneira útil, a literatura acadêmica categoriza as teorias sobre a propriedade dentro de dois tipos principais: teorias instrumentalistas que vêem a propriedade como um meio para um fim mais elevado, em contraste com o que Alan Ryan (1984Ryan, A. 1984. Property and Political Theory. Oxford: B. Blackwell.) chama de perspectivas "auto-desenvolvimentistas", que atribuem um status normativo superior à propriedade e, por vezes, a retratam como um fim em si mesma.29 29 Ver também Macpherson, 1985. Uma abordagem instrumentalista retrata a propriedade sem qualquer valor ou significado intrínseco. Se os direitos de propriedade rendem benefícios sociais ou não é uma questão que permanece fundamentalmente aberta, com a expectativa de que as relações de propriedade sempre devem servir a um objetivo mais elevado. Em nítido contraste, uma abordagem auto-desenvolvimentista vê a relação entre as pessoas e o que elas têm como "intrinsecamente significativa; existe um vínculo substantivo entre um homem [sic] e sua propriedade", com a propriedade concebida como indispensável à personalidade individual e ao desenvolvimento moral (Ryan, 1984:11). Na primeira perspectiva, que tem sido amplamente endossada por utilitaristas, ainda que não exclusivamente por eles, a propriedade, junto com a forma institucional específica que a propriedade adquire, é simplesmente uma questão de conveniência: o que conta, em última análise, é algum tipo de bem moral superior (por exemplo, a felicidade para o maior número de pessoas). Na segunda perspectiva, tal como adotada por Kant, Hegel e alguns de seus discípulos, um sistema particular de propriedade (geralmente privada) é necessário, em vez disso, se os seres humanos devem cultivar suas capacidades éticas com sucesso e adquirir liberdade. Personalidade e propriedade estão relacionadas de maneira inextricável e inevitável: seres humanos demandam a existência de propriedade para serem autônomos e moralmente "completos".

Obviamente eu não tenho condições de resolver o conflito entre essas abordagens rivais aqui. No entanto, parece claro que as breves considerações de King, em que eu me baseei para a discussão, pressupõem uma visão basicamente instrumentalista, ou seja, elas concebem a propriedade a serviço de um objetivo mais elevado - ou o que King chamou de "vida" humana. King recusava atribuir, em qualquer nível, à propriedade o mesmo status moral concedido às pessoas humanas. Nós também sabemos, a partir de muitos outros discursos e escritos, que ele era crítico do capitalismo e um democrata social, ou talvez até mesmo um socialista democrático.30 30 Ver Jackson, 2007. Como muitos na esquerda naquela época e agora, ele se preocupava que o capitalismo contemporâneo iria desfigurar a relação apropriada entre pessoas e objetos materiais: no capitalismo, nós cultuamos as coisas ao mesmo tempo em que rebaixamos os seres humanos. Em contraposição, uma economia mais justa daria prioridade à vida humana ao tratar objetos materiais como um meio para um fim mais elevado. Porque o capitalismo subordina os valores humanos a "forças econômicas cegas, seres humanos podem se tornar sucata humana" (King, 2011:27). Portanto, o que nós precisamos é uma ordem econômica drasticamente revisada, mais capaz de garantir segurança econômica universal, de tal maneira que todas as pessoas possam viver e florescer. Ao mesmo tempo em que rejeitava o ateísmo de Karl Marx e criticava o comunismo ao estilo soviético, King dava créditos a Marx por ter visto que

O capitalismo sempre arrisca inspirar os homens a se preocuparem mais em ganhar a vida do que construir uma vida.31 31 A oposição de expressões do original não encontra correspondência imediata em português. Em inglês: "making a living than making a life" (N.T.). Nós estamos propensos a julgar o sucesso pelo índice dos nossos salários ou pelo tamanho dos nossos carros ao invés de pela qualidade do nosso serviço e da nossa relação com a humanidade - assim, o capitalismo pode levar a um materialismo prático que é tão pernicioso quanto o materialismo ensinado pelo comunismo. (King, 2015bKing, M. L. 2015b. “Pilgrimage to Nonviolence [1960],” in The Radical King, ed. C. West, 39-54. Boston: Beacon Press.:43)

Não é coincidência que as visões de King se sobrepõem àquelas de um teórico da propriedade, proeminente e de esquerda, C. B. Macpherson, que adotou uma teoria instrumentalista de acordo com a qual a propriedade abarcava nada mais do que o acesso "aos meios de vida" (Macpherson, 1973:136). Macpherson argumentava que a noção tradicional de propriedade privada, que implica o controle exclusivo de um objeto ou coisa, deveria ser abandonada em favor da ideia de um direito universal básico aos bens materiais necessários para ter a plena "satisfação das capacidades humanas de cada um" (Macpherson, 1973:138). Nessa abordagem, ideias liberais tradicionais de propriedade não mais correspondem às realidades sociais das democracias de Estados de bem-estar social existentes, que mudam rapidamente; já está na hora de reconfigurar os direitos de propriedade, na qualidade de direitos individuais sociais, a um pouco de bem-estar econômico.32 32 É apropriado que, em uma coleção de ensaios editada por Macpherson, ele tenha incluído um ensaio influente escrito por Charles Reich (1978) que desenvolve essa intuição em um registro muito mais longo. Em uma linha parecida, King (2011:133) buscava uma renda mínima generosa e garantida.

Na medida em que a minha análise se baseou, implicitamente, não apenas em teorias instrumentalistas, mas talvez também nas ideias econômicas radicais de King, ela se depara com sérios desafios. Se, ao invés disso, nós endossarmos uma teoria auto-desenvolvimentista e enxergarmos a propriedade a partir de um status normativo mais elevado, a minha defesa de tipos limitados de danos à propriedade por motivação política teria que superar obstáculos adicionais. Mesmo quando o dano à propriedade não consegue ser plausivelmente relacionado a prejuízos tangíveis ou danos claros a pessoas concretas, a partir dessa visão alternativa, ainda haveria razões sólidas para reconhecer a "santidade" da propriedade. A partir da visão auto-desenvolvimentista, por exemplo, danificar ou roubar de um negócio de propriedade privada poderia ser interpretado como um ataque à autonomia ou à dignidade individual do proprietário. De acordo com essa abordagem, nós potencialmente "cometeríamos violência contra uma pessoa, portanto, não apenas ao causar dano corporal ou ao diminuir sua autonomia por meio da coerção, mas também por não respeitar seu direito de ter e controlar propriedade" (Morreall, 1991:133). As distinções que eu procurei traçar entre a violência contra pessoas e o dano à propriedade ficariam, assim, ofuscadas. Se a propriedade privada é algo que todos precisam para efetivar a liberdade ou suas capacidades morais, então mesmo formas mínimas de dano à propriedade potencialmente abarcam um ataque direto a pessoas, mesmo que o dano corporal ou psicológico esteja ausente.

Este é um grande desafio que requer uma resposta teórica mais prolongada do que eu posso oferecer aqui. No entanto, uma observação final pode nos permitir atenuar isso, ao menos provisoriamente. Mesmo que nós estivéssemos a favor de uma teoria auto-desenvolvimentista da propriedade, não há boas razões para pressupor que as relações de propriedade existentes nos Estados Unidos ou em outros lugares podem ser vistas, de maneira plausível, como se estivessem embasadas nessa teoria ou como parte de sua construção. Como Jeremy Waldron aponta corretamente, a ideia de que "ter propriedade é necessário para o desenvolvimento ético" geralmente implica que esse status de proprietário deve ser universal e também que o desinteresse generalizado nos dias de hoje na "condição moral e material daqueles que não têm nada" é injustificável (Waldron, 1988:4).33 33 A partir de Hegel, Waldron oferece uma imponente teoria auto-desenvolvimentista. A noção de que a propriedade é um bem moral fundamental ou até mesmo talvez um fim em si mesma certamente permite uma grande margem de manobra institucional e em termos de políticas públicas no que diz respeito à melhor maneira de efetivá-la. Apesar disso, ela não fornece uma "justificativa pronta para uma sociedade em que algumas pessoas têm muita propriedade e muitas quase não têm nada". Uma abordagem auto-desenvolvimentista da propriedade pode "legitimar a desigualdade massiva que nós encontramos em países capitalistas modernos (…) apenas de maneira dissimulada" (Waldron, 1988:5). Uma teoria como essa exige uma distribuição muito mais igualitária de recursos econômicos do que provavelmente existe hoje em qualquer sociedade capitalista. Mesmo que fosse o caso de aceitarmos uma abordagem auto-desenvolvimentista, na melhor das hipóteses ela possui uma relevância limitada como base para entender a propriedade sob as condições existentes.

Consequentemente, mesmo que nós compliquemos as coisas ao trazer as teorias da propriedade para o jogo, ainda podem existir boas razões para permitir casos justificados e restritos de dano à propriedade por motivação política. Sob as condições materiais ideais delineadas nas teorias auto-desenvolvimentistas, a propriedade pode de fato merecer um status normativo mais privilegiado. Mas é duvidoso que essas condições tenham sido alcançadas em sociedades existentes: seria muito difícil e provavelmente impossível justificar as desigualdades massivas em termos de propriedade dos dias atuais com base em uma teoria auto-desenvolvimentista. Dada essa lacuna, provavelmente faz sentido continuar a dar prioridade aos seres humanos - e a sua necessidade de sobreviver e, com sorte, florescer - e permitir espaço para o dano à propriedade por motivação política, contanto que os atos evitem a violência contra pessoas ao mesmo tempo em que atendam outras condições que eu delineei acima. Como King ainda pode corretamente nos lembrar, dano e destruição à propriedade geram, com frequência, um backlash político terrível e contraproducente. Eles não devem ser levados adiante sem cuidado, muito menos de forma imprudente. Razões estratégicas e táticas irão frequentemente militar contra eles. Apesar disso, pode haver circunstâncias raras de injustiça extrema em que o dano à propriedade é apropriado e talvez necessário.

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  • 1
    Versão original: SCHEUERMAN, William E. Politically motivated property damage. The Harvard Review of Philosophy, vol. 28, p. 89-106, 2021. DOI: 10.5840/harvardreview20218337. Agradeço muitíssimo a Gabriel Busch de Brito, Marina Slhessarenko Barreto e Marcos Nobre por sugestões e revisões de tradução. Eventuais erros são, evidentemente, todos meus. [N. T.]
  • 2
    Trabalhadores Industriais do Mundo, ou Industrial Workers of the World, é um sindicato internacional fundado em Chicago em 1905. [N.T.]
  • 3
    Mandela teve dificuldades com uma questão central que eu irei enfatizar na discussão a seguir: por que e como qualquer pessoa que participa em atos de dano à propriedade deveria minimizar qualquer possível perda de vida humana (Hyslop, 2014Hyslop, Jonathan. 2014. “Mandela on War,” in The Cambridge Companion to Nelson Mandela, ed. R. Barnard, 162-181. New York: Cambridge University Press. https://doi.org/10.1017/CCO9781139003766.010
    https://doi.org/10.1017/CCO9781139003766...
    ). Para a perspectiva de Flynn (claramente proveniente de uma origem anarco-sindicalista), ver Flynn, 1920Flynn, E. G. 1920. Sabotage: The Conscious Withdrawal of the Workers’ Industrial Efficiency. Chicago: I. W. W. Publishing Bureau..
  • 4
    Em inglês, a prática recebeu o nome de tree spiking. Consiste em cravar pregos ou outros materiais metálicos em troncos de árvore para causar danos à serra elétrica e para que a madeira perca seu valor para a madeireira. [N. T.]
  • 5
    Ver, entretanto, o artigo recente de Nathan Adams (2017).
  • 6
    Em inglês, há diferenciação entre property, traduzido facilmente ao português por "propriedade", e ownership, que é o caráter de ser dono ou proprietário, que também se traduz pela mesma expressão, "propriedade". A solução proposta aqui, em que ownership se torna "titularidade" tem o intuito de resolver a dimensão do caráter de ser dono, mas não corresponde diretamente à diferenciação original, na medida em que acrescenta o caráter de formalização e reconhecimento institucional que é dado pelo título. (N. T.)
  • 7
    Há aqui outra diferenciação em inglês que não encontra correspondência na língua portuguesa, nem mesmo na linguagem técnico-jurídica. Optei por traduzir tanto damage quanto harm por "dano". Ainda que harm possa ser empregado para indicar dano a pessoas e a coisas, é comumente mais utilizado para tratar de danos corporais e psicológicos a pessoas, enquanto damage geralmente é empregado para objetos. A distinção é nuançada também em inglês e, em muitos casos, ambos os termos podem ser utilizados de maneira intercambiável entre si. (N.T.)
  • 8
    Para um levantamento do debate que se seguiu, ver Scheuerman, 2019Scheuerman, W. E. 2019. “Why Not Uncivil Disobedience?” Critical Review of International Social and Political Philosophy, 1-20. https://doi.org/10.1080/13698230.2019.1693158
    https://doi.org/10.1080/13698230.2019.16...
    .
  • 9
    Rawls sugeriu que sua abordagem estrita da desobediência civil (e não-violência) apenas era aplicável a contextos liberais "quase justos" (Rawls, 1973:363), ao mesmo tempo em que reconhecia que era possível discordar, legitimamente, sobre se os Estados Unidos ou outros Estados liberais contemporâneos poderiam ser classificados dessa forma. Como ele comentou na reunião anual da American Political Science Association, em 1973, "Eu acho muito difícil de entrever como alguém que tenha vivido neste país pela última década ou mais poderia pensar que se trata de uma sociedade justa ou quase justa tal como eu defino justiça" (citado em Forrester, 2019Forrester, K. 2019. In the Shadow of Justice: Postwar Liberalism and the Remaking of Political Philosophy. Princeton: Princeton University Press. https://doi.org/10.2307/j.ctvfb6zcv
    https://doi.org/10.2307/j.ctvfb6zcv...
    :126).
  • 10
    A definição de Keane também abarca - na minha opinião, de maneira acertada - prejuízos psicológicos severos (como, por exemplo, o pai ou a mãe que deprecia implacavelmente a criança, de tal maneira que a automutilação se torna iminente ou real). Como aponta Robert Audi (2009:140), abuso e/ou assédio psicológico sistemático pode ser legitimamente visto como análogo a violações e ferimentos corporais severos.
  • 11
    A respeito da não-violência de King, ver os vários ensaios na coletânea organizada por Shelby e Terry 2018Shelby, T., and B. M. Terry, eds. 2018. To Shape a New World: Essays on the Political Philosophy of Martin Luther King, Jr. Cambridge, MA: Harvard University Press. https://doi.org/10.4159/9780674919860
    https://doi.org/10.4159/9780674919860...
    :78-104.
  • 12
    Considerações críticas tanto sobre a violência contra pessoas quanto sobre dano à propriedade podem ser encontradas ao longo dos discursos e escritos de King.
  • 13
    Acerca do personalismo de King e suas implicações para a propriedade, ver Steinkraus 1976Steinkraus, W. E. 1976. “Martin Luther King’s Contributions to Personalism,” Idealistic Studies 6(1): 20-32. https://doi.org/10.5840/idstudies1976613
    https://doi.org/10.5840/idstudies1976613...
    : 25-26, ou, de maneira mais geral, Steinkraus 1973.
  • 14
    Em outras palavras, eu estou defendendo a não-violência estrita contra pessoas, mas não contra propriedade. É desnecessário dizer que isso levanta questões que eu não consigo tratar suficientemente aqui. Para defesas recentes e importantes da não-violência, ver Butler 2020Butler, J. 2020. The Force of Nonviolence: An Ethico-Political Bind. New York: Verso., May 2015May, T. 2015. Nonviolent Resistance: A Philosophical Introduction. Cambridge: Polity. e Vinthagen 2015Vinthagen, S. 2015. A Theory of Nonviolent Action: How Civil Resistance Works. A Theory of Nonviolent Action. London: NBN International. https://doi.org/10.5040/9781350251212
    https://doi.org/10.5040/9781350251212...
    .
  • 15
    Em outras palavras, Rawls poderia ter endossado protestos militantes (e potencialmente violentos) em contextos não-liberais, como, por exemplo, na Hong Kong dos dias de hoje. Gandhi, e talvez também King, acreditavam que a desobediência civil não-violenta também era adequada para contextos profundamente injustos e autoritários (como, por exemplo, a Índia colonial).
  • 16
    De acordo com o Oxford English Dictionary, por exemplo, "riot" se referia, inicialmente, a um estilo de vida libertino ou decadente, caracterizado pela devassidão (Oxford English Dictionary Online, 2021). Para uma discussão perspicaz sobre revoltas, ver Pasternak 2018Pasternak, A. 2018. “Political Rioting: A Moral Assessment,” Philosophy & Public Affairs 46(4): 384-418. https://doi.org/10.1111/papa.12132
    https://doi.org/10.1111/papa.12132...
    .
  • 17
    Para uma discussão sobre este tema, ver Ringer 2004Ringer, F. K. 2004. Max Weber: An Intellectual Biography. Chicago: University of Chicago Press. https://doi.org/10.7208/chicago/9780226720067.001.0001
    https://doi.org/10.7208/chicago/97802267...
    : 77-112.
  • 18
    Para os detalhes, ver Bearman, 2005Bearman, C. J. 2005. “An Examination of Suffragette Violence,” The English Historical Review 120 (486): 365-397. https://doi.org/10.1093/ehr/cei119
    https://doi.org/10.1093/ehr/cei119...
    .
  • 19
    No entanto, a defesa de Cohen está focada na possível legitimidade de dano ou destruição à propriedade pública.
  • 20
    Ver também Lim, 2020Lim, C. 2020. “Vandalizing Tainted Commemorations,” Philosophy & Public Affairs 48(2): 185-216. https://doi.org/10.1111/papa.12162
    https://doi.org/10.1111/papa.12162...
    , e Schulz, 2019Schulz, J. 2019. “Must Rhodes Fall? The Significance of Commemoration in the Struggle for Relations of Respect,” The Journal of Political Philosophy 27(2): 166-186. https://doi.org/10.1111/jopp.12176
    https://doi.org/10.1111/jopp.12176...
    .
  • 21
    Lembre, por exemplo, o ataque ao Capitólio norte-americano no dia 6 de janeiro de 2021, que incluiu violência contra pessoas, bem como a destruição significativa da propriedade e foi motivado por uma tentativa autoritária, populista e de direita de reverter o resultado das eleições. Ao longo da história norte-americana, aqueles que se opuseram ao avanço político e social das pessoas negras destruíram casas, negócios e escolas de propriedade de pessoas negras ou geridos por elas e seus aliados políticos (Jackson, 2019Jackson, K. A. 2019. Force and Freedom: Black Abolitionists and the Politics of Violence. America in the Nineteenth Century. Philadelphia: University of Pennsylvania Press.).
  • 22
    John Medearis (2015Medearis, J. 2015. Why Democracy Is Oppositional. Cambridge, MA: Harvard University Press. https://doi.org/10.4159/9780674286627
    https://doi.org/10.4159/9780674286627...
    :29) contrasta a transgressão à lei "coercitiva" e disruptiva, que tipicamente estão direcionadas a desigualdades estruturais de poder, da desobediência civil "deliberativa" preferida por liberais e democratas deliberativos. Medearis aponta para algo importante, mas ele exagera no contraste. Mesmo formas relativamente familiares de desobediência civil, reconhecidas dessa forma tanto por Gandhi e por King, continham elementos "coercitivos". A maioria dos exemplos de dano disruptivo à propriedade da vida real contém tanto traços deliberativos (ou ao menos simbólicos) e coercitivos.
  • 23
    Para uma análise deste tema, ver Scheuerman 2018Scheuerman, W. E. 2018. Civil Disobedience. Cambridge: Polity Press.: 122-139.
  • 24
    Sobre a Operation Rescue, ver Risen e Thomas, 1998Risen, J., and J. L. Thomas. 1998. Wrath of Angels: The American Abortion War. Wrath of Angels. 1st ed. New York, NY: Basic Books.; sobre os direitos dos animais e transgressão à lei por razões ambientais, ver Milligan, 2013Milligan, T. 2013. Civil Disobedience: Protest, Justification and the Law. New York: Bloomsbury.: 103-136; sobre eco-sabotagem, ver Welchman, 2001Welchman, J. 2001. “Is Ecosabotage Civil Disobedience?” Philosophy and Geography 4(1): 97-107. https://doi.org/10.1080/10903770124815
    https://doi.org/10.1080/10903770124815...
    .
  • 25
    Em uma linha parecida, ver Pasternak, 2018Pasternak, A. 2018. “Political Rioting: A Moral Assessment,” Philosophy & Public Affairs 46(4): 384-418. https://doi.org/10.1111/papa.12132
    https://doi.org/10.1111/papa.12132...
    : 122-139.
  • 26
    Bloquear estradas públicas ou ocupações ilegais de propriedade pública e privada provavelmente constituem tipos relacionados de protesto. No entanto, eles tipicamente têm, como resultado, a "devolução" da propriedade ocupada a seu dono - por exemplo, a um órgão público ou privado - e, portanto, não se caracterizam por um dano mais durável à propriedade ou por sua apreensão. Para algumas das questões que são levantadas por ocupações, ver Kohn, 2013Kohn, M. 2013. “Privatization and Protest: Occupy Wall Street, Occupy Toronto, and the Occupation of Public Space in a Democracy,” Perspectives on Politics 11(1): 99-110. https://doi.org/10.1017/S1537592712003623
    https://doi.org/10.1017/S153759271200362...
    .
  • 27
    Aqui se mantém o uso original do termo na citação de King, "Negroes". [N. T.]
  • 28
    Ver, por exemplo, Morreall, 1991.
  • 29
    Ver também Macpherson, 1985Macpherson, C. B. 1985. “Property as Means or End,” in The Rise and Fall of Economic Justice, and Other Papers, 86-91. Oxford: Oxford University Press..
  • 30
    Ver Jackson, 2007Jackson, T. F. 2007. From Civil Rights to Human Rights: Martin Luther King, Jr., and the Struggle for Economic Justice. Philadelphia: University of Pennsylvania Press. https://doi.org/10.9783/9780812200003
    https://doi.org/10.9783/9780812200003...
    .
  • 31
    A oposição de expressões do original não encontra correspondência imediata em português. Em inglês: "making a living than making a life" (N.T.).
  • 32
    É apropriado que, em uma coleção de ensaios editada por Macpherson, ele tenha incluído um ensaio influente escrito por Charles Reich (1978Reich, C. 1978. “The New Property,” in Property, Mainstream and Critical Positions, ed. C. B. Macpherson, 177-198. Toronto: University of Toronto Press. https://doi.org/10.3138/9781442627918-012
    https://doi.org/10.3138/9781442627918-01...
    ) que desenvolve essa intuição em um registro muito mais longo. Em uma linha parecida, King (2011King, M. L. 2011. All Labor Has Dignity. Boston: Beacon Press. First published 1986. King, M. L. 2015a. “Nonviolence and Social Change [1967],” in The Radical King, ed. C. West, 147-154. Boston: Beacon Press.:133) buscava uma renda mínima generosa e garantida.
  • 33
    A partir de Hegel, Waldron oferece uma imponente teoria auto-desenvolvimentista.
  • 34
    Agradeço muitíssimo a Gabriel Busch de Brito, Marina Slhessarenko Barreto e Marcos Nobre por sugestões e revisões de tradução. Eventuais erros são, evidentemente, todos meus. [N. T.]

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2024

Histórico

  • Recebido
    24 Jan 2023
  • Aceito
    07 Fev 2023
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