Resumo
A criminalização de lideranças indígenas é uma realidade onde há presença destas populações. A prática, recorrentemente utilizada pelos Estados nacionais, serve para inibir ou impedir povos indígenas de se manifestarem e protestarem em prol de seus direitos. No ano de 2020, por iniciativa da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e do Indigenous Peoples Rights International (IPRI), as autoras realizaram um estudo sobre a criminalização de lideranças indígenas no Brasil e identificaram importantes aspectos formais desta criminalização, entre eles a manipulação equivocada das categorias “índio integrado” e “índio aculturado”. O presente artigo se propõe a realizar um aprofundamento deste aspecto, tanto atualizando as discussões do seu uso na configuração da culpabilidade dos indígenas no atual sistema penal brasileiro, quanto investigando com maior detalhamento e intensidade o significado e aplicação da categoria “índio integrado” pelo poder judiciário. Ao se desvelar um comportamento judicial centrado na análise jurisprudencial, busca-se evidenciar a mentalidade judicante que perpetua o uso indiscriminado e discriminatório dessas categorias como uma manobra ao hiperpunitivismo de indígenas. Quanto à metodologia, de viés quanti-qualitativo, a pesquisa se utiliza de revisão bibliográfica, do levantamento de jurisprudências e estudos de casos, não se excetuando o material coletado outrora em entrevistas com lideranças indígenas.
Palavras-chave:
Criminalização; Indígenas; Culpabilidade Criminal; Integrado; Aculturado
Abstract
The criminalization of indigenous leaders occurs in many countries where these populations live. The practice, recurrently used by national States, serves to inhibit or prevent indigenous peoples from demonstrating and protesting in favor of their rights. On the initiative of the Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) and Indigenous Peoples Rights International (IPRI), the authors carried out a study on the criminalization of indigenous leaders in Brazil in 2020 and identified important formal aspects of this criminalization. Among them is the mistaken use of the categories “integrated indian” and “acculturated indian”. The present article proposes to deepen this aspect, by updating the discussions of its use in the configuration on the culpability of indigenous peoples in the current Brazilian criminal justice system, and by investigating in greater detail and intensity the meaning and application these categories by the judiciary. Unveiling a judicial behavior centered on jurisprudential analysis, we seek to highlight the judicial mentality that perpetuates the indiscriminate and discriminatory use of these categories as a maneuver to hyperpunitivism against indigenous people. As for the methodology, of a quanti-qualitative nature, the research uses a bibliographic review, a survey of jurisprudence and case studies, not excluding the material collected in interviews with indigenous leaders.
Keywords:
Criminalization; Indigenous; Criminal Culpabilitiy; Integrated; Acculturated
1. Introdução: a iniciativa global para abordar e prevenir a criminalização e a impunidade contra os povos indígenas
Em abril de 2021, um relatório de pesquisa elaborado pela Articulação dos Povos Indígenas no Brasil (APIB) em parceria com o Indigenous Peoples Rights International (IPRI) foi publicado com o objetivo de contribuir com a documentação e o monitoramento de casos de criminalização e assédio de lideranças indígenas no Brasil. Realizado ao longo do ano de 2020 a partir de análises de processos judiciais, de inquéritos policiais e de realização de entrevistas com lideranças indígenas, o relatório - intitulado "Uma anatomia das práticas de silenciamento indígena: relatório sobre criminalização e assédio de lideranças indígenas no Brasil (2021)" - divulgou resultados parciais de uma campanha global evidenciando que há "um padrão de criminalização e assédio no contexto brasileiro que atuam no silenciamento dos povos indígenas ao defenderem seus direitos coletivos” e apresentou “ações efetivas e recomendações de estratégias para a proteção à vida de lideranças indígenas, familiares e, em alguns casos, de suas comunidades” (IPRI et al., 2021, p.21).
Sabe-se que a criminalização é fenômeno conhecido de controle social institucionalizado que, orientado a evitar comportamentos tidos por desviantes e/ou indesejados, propõem-se a legitimar a imposição do poder punitivo estatal sobre determinados indivíduos estrategicamente escolhidos com a intenção de silenciar lutas coletivas. É nesse contexto que a utilização de recursos do poder punitivo estatal é capaz de operar como uma seleção penalizante de lutas sociais por direitos humanos, que estão a tensionar o fortalecimento democrático. A consequência imediata, como vêm se observando, é o silenciamento de movimentos, organizações, associações e outras formas de representação coletiva social que passam a temer o encarceramento, a repressão policial, a cassação de direitos políticos, entre outras privações a direitos fundamentais.
No Brasil, diante da tentativa de se definir um padrão de criminalização e assédio que atue no silenciamento de lideranças indígenas quando estejam a defender seus direitos coletivos, o relatório mencionado buscou resgatar premissas teóricas da criminologia, sem negar todo um conjunto de concepções elaboradas pelos indígenas entrevistados sobre o que seja "criminalizar" e "assediar judicialmente e institucionalmente". A partir da confluência de casos emblemáticos de criminalização em acompanhamento, foi verificada a reprodução de forma análoga de fatos e ocorrências, permitindo-se traçar algumas características compartilhadas. A regularidade constatada desses aspectos foi sistematizada e, de forma conclusiva, apresentada como um padrão de práticas que atuam no silenciamento de lideranças indígenas, são capazes de caracterizar um conceito de criminalização e assédio, bem como de delinear aspectos específicos de vieses subjetivos e formais.
Com o decurso do tempo desde a publicação do relatório, e de forma cumulativa, o constante acompanhamento da situação jurídica-penal de lideranças indígenas, sentiu-se a necessidade de aprofundar a análise de um dos padrões identificados. Cabe relembrar que o relatório, além de discorrer sobre preocupantes indícios de violação de garantias processuais, destacou o uso recorrente pelo poder judiciário de categorias discriminatórias.
Naquele contexto, verificou-se que as categorias “índio aculturado” ou “índio integrado” aparecem de forma reiterada nos estudos de casos que envolviam o processamento de ações penais. É, portanto, sobre essas categorias, “índio integrado” e do "índio aculturado”, que este estudo se detém, investigando com maior detalhamento e intensidade o seu significado e aplicação.
Esse artigo se estrutura em duas partes. Inicia-se com a revisão de fundamentos teóricos e normativos que caracterizam a culpabilidade indígena no atual sistema penal brasileiro, demonstrando os marcos e avanços gerados nessas últimas décadas. Em seguida, contrastando com esse contexto, percorre-se o emprego das categorias em análise pelo poder judiciário. Para tanto, apresenta-se os resultados de uma pesquisa que se pauta no levantamento e análise de decisões judiciais do Supremo Tribunal Federal brasileiro, permitido desvelar aspectos da mentalidade jurídica por trás da lógica punitivista. Ao final, são apresentadas conclusões tecendo aportes que venham a aprofundar a caracterização do padrão de criminalização de lideranças indígenas no Brasil, aqui definido a partir da utilização da categoria de "índio integrado” e "índio aculturado”. Quanto à metodologia, de viés quanti-qualitativo, a pesquisa se utiliza de revisão bibliográfica, do levantamento de jurisprudências e estudos de casos, não se excetuando o material coletado outrora em entrevistas com lideranças indígenas.1 1 As entrevistas realizadas constituíram fonte de documentação que compõem o relatório mencionado. Para mais informações sobre as técnicas empregadas, ver: IPRI, APIB; 2021, p. 24-25.
As contribuições tecidas objetivam trazer aportes para uma melhor compreensão acerca desse padrão de criminalização de lideranças indígenas no Brasil, dedicando-se a evidenciar a mentalidade judicial operante por trás dessas categorias. Como ensina Posner (2011POSNER, Richard A. Cómo deciden los jueces. Trad. Victoria Roca Pérez. Madrid; Barcelona; Buenos Aires: Marcial Pons, 2011., p.16), “alcançar uma compreensão adequada do comportamento judicial tem um interesse muito maior do que meramente acadêmico; é uma chave para a reforma do direito”.
Com isso, esse estudo intenciona contribuir com o eixo temático “Sistema criminal estatal e acesso à justiça”, do Observatório de Justiça Criminal e Povos Indígenas, atribuindo-se ênfase ao uso indiscriminado às categorias “índio integrado” e "índio aculturado” como uma manobra para o hiper punitivismo de indígenas no sistema penal estatal. Intenta-se, a partir desse estudo, reforçar a denúncia sobre essa prática ainda vigente, como também refletir a respeito das múltiplas facetas com que o racismo institucional opera sobre corpos indígenas que vêm atuando na defesa de direitos humanos individuais e coletivos.
2. A culpabilidade do indígena no atual sistema penal brasileiro: das normas às alternativas teóricas diante da diferença cultural
Diz-se que é culpável penalmente todos aqueles que sejam considerados imputáveis, que tenham potencial consciência da antijuridicidade de sua conduta e que à época do ato lhe era possível exigir conduta diversa diante de determinada situação.2 2 Os três elementos estão descritos conforme a teoria normativa pura da culpabilidade. Para mais, ver: ZAFFARONI et al, 2015, p. 607-608.
De forma sucinta, pode-se afirmar que a imputabilidade é característica que define a aptidão que tem o indivíduo de compreender que determinado fato não é lícito e de agir em conformidade com esse entendimento (JESUS, 1999JESUS, Damásio Evangelista de. Código Penal Anotado. São Paulo: Saraiva, 9ª edição, 1999.; FRAGOSO, 1995FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal. 15ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1995.). Ser imputável significa, em outras palavras, ter capacidade de compreensão e se autodeterminar. É por deter essas capacidades que indivíduos podem ser responsabilizados por suas condutas, inclusive ser condenado penalmente se esse algo praticado for um ato tipificado como crime.
Essa aptidão de reconhecer um ato como ilícito e ser capaz de atribuir responsabilidade a quem o pratica, somente é reconhecida àqueles que possuem um desenvolvimento mental completo ou uma capacidade de entender o caráter criminoso dos fatos e de responder por eles. Além daqueles com doença mental ou com desenvolvimento mental incompleto ou retardado, essa capacidade não pode ser exigida daqueles considerados em menoridade penal, do completo embriagado decorrente de caso fortuito ou força maior ou daqueles em dependência ou intoxicação involuntária decorrente do consumo de drogas ilícitas. Definidos pela legislação penal como inimputáveis (art. 26, Decreto-Lei n.º 2.848/1940),3 3 “Art. 26. É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. Parágrafo único. A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, em virtude de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento” (BRASIL, Código Penal, 1940). esses casos recaem numa das hipóteses legais de exclusão da imputabilidade previstas.4 4 São causas de exclusão da imputabilidade: a) doença mental e desenvolvimento mental incompleto ou retardado (CP, art. 26); b) menoridade penal (CP, art. 27, e CF, art. 228); c) embriaguez completa proveniente de caso fortuito ou força maior (CP, art. 28, § 1º); d) dependência ou intoxicação involuntária decorrente do consumo de drogas ilícitas (Lei n. 11.343/2006, art. 45, caput). A Lei n.º 11.343/2006, art. 45, também define como uma hipótese de exclusão de imputabilidade a dependência ou intoxicação voluntária decorrente do consumo de drogas ilícitas: “É isento de pena o agente que, em razão da dependência, ou sob o efeito, proveniente de caso fortuito ou força maior, de droga, era, ao tempo da ação ou da omissão, qualquer que tenha sido a infração penal praticada, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.” (BRASIL, Código Penal, 1940).
A potencial consciência da ilicitude de determinado fato, frise-se, esse conhecimento mesmo que potencial de que determinados atos são contrários ao direito estatal, é característica que se exige também para configurar a culpabilidade como mencionado. Considera-se que esse potencial consciência pode ser afetada em duas situações: quando há erro inevitável sobre o elemento constitutivo do tipo (essencial ou acidental), ou um erro inevitável de proibição do fato, isto é, sobre a ilicitude do fato.5 5 Dispõe o Código Penal a respeito do Erro sobre elementos do tipo: Art. 20 - “O erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei. [Descriminantes putativas] § 1º - É isento de pena quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima. Não há isenção de pena quando o erro deriva de culpa e o fato é punível como crime culposo. [Erro determinado por terceiro] § 2º - Responde pelo crime o terceiro que determina o erro. [Erro sobre a pessoa] § 3º - O erro quanto à pessoa contra a qual o crime é praticado não isenta de pena. Não se consideram, neste caso, as condições ou qualidades da vítima, senão as da pessoa contra quem o agente queria praticar o crime. [Erro sobre a ilicitude do fato] Art. 21 - O desconhecimento da lei é inescusável. O erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta de pena; se evitável, poderá diminui-la de um sexto a um terço. Parágrafo único - Considera-se evitável o erro se o agente atua ou se omite sem a consciência da ilicitude do fato, quando lhe era possível, nas circunstâncias, ter ou atingir essa consciência”. (BRASIL, Código Penal, 1940).
Quanto à exigibilidade de conduta diversa, o terceiro elemento da culpabilidade, relaciona-se com a real possibilidade situacional de se exigir uma conduta dentro da legalidade, restando prejudicada diante da coação moral irresistível ou da obediência hierárquica.6 6 Assim consta no Código Penal sobre a coação irresistível e obediência hierárquica: “Art. 22 - Se o fato é cometido sob coação irresistível ou em estrita obediência a ordem, não manifestamente ilegal, de superior hierárquico, só é punível o autor da coação ou da ordem”.
A respeito da culpabilidade específica dos indígenas no sistema penal brasileiro, o tema não é novo, mas nem por isso desprovido de confusões e perplexidades. Faz-se necessário enfatizar também que o tema é tão amplo, quanto complexo, impondo-se como uma exceção à essas premissas doutrinárias relatadas. Sua compreensão perpassa o comportamento do estado diante da diversidade cultural, deriva da aplicação conjunta de outros institutos normativos, e encontra no desenvolvimento histórico sua definição.
Por um longo período da história brasileira, esteve vigente na doutrina penal a compreensão de que os indígenas eram considerados, de forma presumida, como inimputáveis. Mesmo não havendo quaisquer disposições expressas de que estariam eles classificados dentre as causas de exclusão de imputabilidade, sua inimputabilidade esteve relacionada à noção de que, em termos culturais, não estariam adaptados a conviver com a sociedade nacional.7 7 É dessa mesma noção que também deriva sua declarada incapacidade para certos atos da vida civil. Dizia-se que os indígenas eram considerados incapazes de exercer relativamente certos atos, tornando os atos jurídicos por eles praticados anuláveis (art. 6, IV, c/c 147, I, Lei n.º 3.071/1916). A solução encontrada foi colocar os indígenas sob tutela estatal (natureza civil).
Em 1928, uma primeira previsão normativa surge associando-se à responsabilidade criminal dos indígenas.8 8 Menciona-se o Decreto n.º 5.484, de 27 de junho de 1928, que declarava a emancipação da tutela orfanológica vigente aos que estivessem inteiramente adaptados, em conformidade com os graus de integração a serem avaliados pelo órgão indigenista competente à época. Para Silva (2015, p.82), a classificação dos indígenas em “índios nômades”, “índios arranchados ou aldeiados”, “índios pertencentes a povoações indígenas” e “índios pertencentes a centros agrícolas ou que vivem promiscuamente com civilizados” (art. 2) “tinha, também, o condão de determinar a responsabilidade criminal de indígenas, representando-se, em termos legais, a primeira acolhida das construções criminológicas positivistas desenvolvidas em fins do século XIX”. O Decreto n.º 5.484/1928 equiparava à menoridade penal aqueles considerados “nômades”, “aldeados” ou os que estivessem há menos de 5 anos em estabelecimentos, à época, tidos como “povoações indígenas”. Quanto à pena cabível, determinava o recolhimento às colônias correcionais ou estabelecimentos industriais disciplinares pelo limite de 5 anos (art. 28). Os indígenas que não se enquadrassem nesta classificação - como os indígenas que estavam há mais de 5 anos residindo em povoações - sujeitar-se-iam à legislação penal comum, com pena reduzida pela metade, sendo cabível a aplicação de circunstâncias atenuantes, mas não as agravantes de pena (art.29 e 30). Aos indígenas que passassem pelos chamados centros agrícolas, por sua vez, ficavam submetidos ao regime comum de qualquer cidadão (art. 32).
Tem-se, a partir disso, inaugurado a ideia que relacionaria a responsabilidade penal de indígenas aos graus de civilização, como conclui Silva (2015SILVA, Tédney Moreira da. No banco dos réus, um índio: criminalização de indígenas no Brasil. 2015. 243f. Dissertação (Mestrado em Direito, Estado e Constituição) - Universidade de Brasília, Brasília, 2015, p.84-85):
[...] a responsabilidade penal dos indígenas era determinada por seu grau de civilização, aferido pelo exercício de atividade remunerada, idade e utilização da língua nacional oficial, critérios possibilitados por sua habitação nos centros agrícolas gerenciados pelo SPI. Tais critérios, com poucas alterações, [...], mantiveram-se como norteadores da criminalização de indígenas na atualidade, segundo a jurisprudência majoritária.
Com o advento do Estatuto do Índio (Lei n.º 6.001, de 1973), na medida em que passa a prever, expressamente, a possibilidade de condenação dos indígenas por infração penal - considerando a aplicação de penas de reclusão e detenção - também estabelece direitos específicos a eles atinentes à matéria.9 9 Prevê o artigo 56, caput e parágrafo único, da Lei n.º 6.001/73: “Art. 56. No caso de condenação de índio por infração penal, a pena deverá ser atenuada e na sua aplicação o Juiz atenderá também ao grau de integração do silvícola. Parágrafo único. As penas de reclusão e de detenção serão cumpridas, se possível, em regime especial de semiliberdade, no local de funcionamento do órgão federal de assistência aos índios mais próximos da habitação do condenado.”
Vigia à época a crença de que os indígenas estariam em um processo de transição cultural, em direção à aculturação plena e integração à sociedade nacional.10 10 Cabe mencionar que a Convenção n.º 107, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de 1957, previa expressamente em seu art. 2, a competência aos governos para “por em prática programas coordenados e sistemáticos com vistas à proteção das populações interessadas e sua integração progressiva na vida dos respectivos países”. Em decorrência dessa mentalidade, os indígenas foram classificados por “critérios de indianidade” (CUNHA, 2012CUNHA, Manuela Carneiro da. Índios no Brasil: História, direitos e cidadania. São Paulo: Claro Enigma, 2012., p.102), como restou determinado no art. 4, do Estatuto do Índio, ainda em vigor:
Art. 4º Os índios são considerados:
I - Isolados: quando vivem em grupos desconhecidos ou de que se possuem poucos e vagos informes através de contatos eventuais com elementos da comunhão nacional;
II - Em vias de integração: quando, em contato intermitente ou permanente com grupos estranhos, conservam menor ou maior parte das condições de sua vida nativa, mas aceitam algumas práticas e modos de existência comuns aos demais setores da comunhão nacional, da qual vão necessitando cada vez mais para o próprio sustento;
III - Integrados: quando incorporados à comunhão nacional e reconhecidos no pleno exercício dos direitos civis, ainda que conservem usos, costumes e tradições característicos da sua cultura.
Se, por um lado, a discussão sobre a inimputabilidade dos indígenas parecia estar superada, abrindo-se possibilidade para sua condenação penal, por outro, criava-se uma nova dimensão de distinção entre os indígenas que iria ressoar sobre sua culpabilidade, bem como sobre a fruição de direitos específicos declarados normativamente.
Com isso, no decorrer das décadas desde a promulgação do Estatuto do Índio e em interpretação conjunta com seus dispositivos, sedimentou-se o entendimento de que os indígenas estariam enquadrados numa categoria de “semi-imputáveis”. A imputabilidade ou inimputabilidade dos indígenas estaria dependente, por sua vez, de um suposto alcance de maturidade mental, diretamente relacionada ao grau de integração à sociedade nacional. Ou seja, refletindo essa concepção em matéria penal, estabeleceram-se graus de imputabilidade dos indígenas, em que os isolados eram considerados inimputáveis, os integrados imputáveis e aqueles em vias de integração, carecendo de exame pericial para aferição do seu desenvolvimento mental para arcar com a responsabilidade penal (SANTOS FILHO, 2007SANTOS Filho, Roberto Lemos dos. Índios e imputabilidade penal. Revista do Tribunal Regional Federal 3ª Região, São Paulo, n. 85, p. 37-45, set./out., 2007. Disponível em: https://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr6/documentos-e-publicacoes/artigos/docs/artigos/docs_artigos/indios_imputabilidade_Penal.pdf.
https://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/c...
).
Tem-se que esse entendimento de estarem os indígenas fadados a se integrarem à comunhão nacional, que permitiu inclusive fixar uma gradação normativa sobre sua integração, esteve em vigência até a promulgação da Constituição Federal de 1988. A partir de então, o estado brasileiro passou a reconhecer as organizações sociais, os costumes, as línguas, as crenças e as tradições dos povos indígenas (art. 231, CF/88), assim como sua plena capacidade de autodeterminação (Pactos dos Direitos Civis e Políticos c/c Pacto dos Direitos Econômicos Sociais e Culturais, Convenção n.º 169, da Organização Internacional do Trabalho, Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas e Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas).11 11 “Todos os povos têm direito à autodeterminação”, conforme o artigo 1, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (promulgado no Brasil por meio do Decreto n.º 592, de 06 de julho de 1992) e o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Decreto n.º 591, de 06 de julho de 1992). O artigo 7, item 1, da Convenção n.º 169, da Organização Internacional do Trabalho (consolidada no Decreto n.º 10.088, de 05 de novembro de 2019, art. 2, inciso LXXII, Anexo LXXII), estabelece que “Os povos interessados deverão ter o direito de escolher suas, próprias prioridades no que diz respeito ao processo de desenvolvimento, na medida em que ele afete as suas vidas, crenças, instituições e bem-estar espiritual, bem como as terras que ocupam ou utilizam de alguma forma, e de controlar, na medida do possível, o seu próprio desenvolvimento econômico, social e cultural. Além disso, esses povos deverão participar da formulação, aplicação e avaliação dos planos e programas de desenvolvimento nacional e regional suscetíveis de afetá-los diretamente”.
Essa mudança na orientação do estado diante da diferença cultural e na capacidade dos indígenas de se autodeterminarem conforme sua tradição e costumes, também expõe uma mudança que operou na racionalidade técnica sobre a própria compreensão da cultura. É certo que as transformações a que estão permanentemente submetidas as culturas, tornam-nas dinâmicas por sua essência. Esse contínuo processo de transformação pode se dar tanto em nível interno, quanto externo; isto é, ser uma “resultante da dinâmica do próprio sistema cultural” ou um “resultado do contato de um sistema cultural com um outro” (PERRONE-MOISÉS, 1992, p. 123). São diversas as teorias antropológicas que convergem nas tentativas de descrever as resultantes do contato, seja ele único, intermitente ou esporádico entre culturas distintas.
A concepção sobre o fenômeno da aculturação havia aparecido, em seu tempo histórico, para referir-se ao meio pelo qual uma cultura absorve externamente os elementos culturais de um outro grupo, encaixando-os e acomodando-os em seus próprios padrões (BROOM e SIEGEL, 1954BROOM, Leonard; SIEGEL, Bernard J., VOGT, Evon Z. e WATSON, James B. "Acculturation: An Exploratory Formulation". American Anthropologist, v.56, p. 973-1000, 1954.). A expressão, porém, caiu em desuso entre os indígenas e indigenistas em virtude das falhas e equívocos que comporta, uma vez que está fundada na concepção de cultura como um conjunto de traços que podem ser perdidos ou obtidos. A cultura, neste contexto, era entendida como unidade fechada, limitada a um grupo, como se as culturas fossem sistemas fechados que se “encontram” apenas quando há forças políticas e geográficas maiores (cf. MURPHY, 1964, OKA, on-line).
O Estatuto do Índio (Lei 6.001/73), ao dividir os indígenas em isolados, em vias de integração e integrados, foi influenciado pela concepção de integração a partir da aculturação. Fundada em uma noção, atualmente ultrapassada, de hierarquias civilizacionais (HERSKOVITS, 1953), mascarando as relações de poder envolvidas entre as diferentes culturas, essa noção desconsiderou as possibilidades de resistência, inventividade e criatividade da cultura tida como dominada (OKA, on-line). 12 12 Por esta razão, outros conceitos foram sendo elaborados e adotados pela antropologia, como hibridismo (cf. NEDERVEEN PIETERSE, 1994; PAPASTERGIADIS, 1995; HANNERZ, 1997), culturas de fronteiras (NEWMAN, 2007; NEWMAN & PAASI 1998; SADOWSKI-SMITH 2002; VILA, 2003), terceiras culturas (cf. USEEM, 1963; HANNERZ, 1997) e fricção interétnica (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1963).
Inobstante, com o início de um novo marco normativo relacional entre o estado e os povos indígenas, de 1988, substitui-se o paradigma integracionista por outro de viés multicultural e participativo. É assim que as antigas concepções de que os povos indígenas estariam fadados à integração à sociedade nacional são deslocadas da racionalidade jurídica para dar lugar à uma política de respeito e tolerância à diferença cultural (LUNELLI, 2019LUNELLI, Isabella Cristina. Estado intercultural de direito: contribuições da antropologia jurídica latino-americana para o direito à autonomia indígena. 2019. 330f. Tese (Doutorado em Direito, Política e Sociedade) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Ciências Jurídicas, Programa de Pós-Graduação em Direito, Florianópolis, 2019.).13 13 Como proposta alternativa ao multiculturalismo, emerge no século XXI, o paradigma da interculturalidade. A interculturalidade delineia não apenas um contexto de tolerância diante do diferente, como previa o multiculturalismo, mas aceitando a ideia de que as culturas estão em constante estado de contato e em sua maioria, gerando conflitos, tece-se a noção de inter-relação dialógica (LUNELLI, 2019). Em outras palavras, segundo as novas premissas constitucionais, não há que se falar mais em implementar políticas de integração progressiva dos indígenas à comunhão nacional, (como previa o art. 1, da Lei n.º 6.001/73), mas de respeito às organizações sociais, aos costumes, línguas, crenças e tradições dos povos indígenas (art. 231, CF/88). E, consecutivamente, perde-se o sentido de classificar os indígenas em integrados ou atribuí-los algum estágio de integração.
Voltando à questão da imputabilidade dos indígenas, diante das mudanças operadas em nível constitucional e internacional, a doutrina considera que o critério da inimputabilidade não seria mais adequado para discutir a culpabilidade do indígena no atual sistema penal brasileiro ante as diferenças culturais. Embora ainda se configure uma hipótese a ser considerada, como para qualquer cidadão brasileiro, ao invés da imputabilidade propõem-se trazer o enfoque a alternativas quando o intuito seja afastar a responsabilidade penal por causas (ou divergências) culturais, essas mais condizentes com a atual ordem constitucional, como sustentam alguns teóricos abaixo.
Autores (VILLARES, 2009VILLARES, Luiz Fernando. Direito e povos indígenas. Curitiba: Juruá Editora, 2009.; CASTRO, 2013CASTRO, Marcela Baudel de. A culpabilidade dos indígenas à luz das exculpantes penais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3553, 24 mar. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23972. Acesso em: 18 dez. 2022.
https://jus.com.br/artigos/23972...
) relembram que, distinta do elemento da imputabilidade, a potencial consciência da antijuridicidade de sua conduta deve ser considerada, sobretudo quanto à hipótese de erro de proibição gerado em razão das práticas culturais de determinados povos. Note-se aqui que o erro culturalmente condicionado, tida como um erro de proibição, refere-se a uma falsa ideia sobre o caráter antijurídico de um fato e não com a incapacidade de conhecer e se autodeterminar por ela. Como o nome sugere, trata-se de um erro sobre a ilicitude do fato, isto é, conhece-se a norma e tem-se consciência sobre o que está fazendo, mas não internaliza o seu caráter antijurídico por razões culturais. Explica Villares (2009VILLARES, Luiz Fernando. Direito e povos indígenas. Curitiba: Juruá Editora, 2009., p.300):14
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Castro (2013) também difere o erro de proibição do erro de tipo: “O erro de proibição difere do chamado erro de tipo porquanto este último recai não sobre a ilicitude do fato, mas sobre os requisitos típicos do delito, excluindo, por consequência, a tipicidade. [...], uma coisa é não ter consciência só da ilicitude do fato (mas saber o que está fazendo), outra bem distinta é não saber o que se faz (é não ter consciência dos requisitos típicos do delito)”.
[...] uma conduta que é penalmente reprovada, através da figura do crime e de sua punição, pode ser interiorizada na cultura indígena como ato obrigatório ou mesmos um ato lícito, que reside na esfera da liberdade individual, ou mesmo um ato moralmente tolerado. O Brasil é um país riquíssimo de exemplos de costumes indígenas que são, numa análise rasa, repudiados pelo Direito Penal, mas protegidos pela Constituição, logo, devem ser internalizados em todos os ramos do direito.
Assim, considerando os mais de 300 povos indígenas em território nacional (IBGE, 2012), culturalmente diferentes, é de se ter em consideração que se reconheça a esses a plena capacidade de compreender e autodeterminar-se, estando eles sujeitos às mesmas situações de inimputabilidade que todos os outros indivíduos não-indígenas. Contudo, em determinados casos, a exclusão da culpabilidade pode se dar por erro de acreditarem que, por questões culturais, estão agindo de forma legítima, quando não estão. Em outras palavras, como em qualquer situação, se tratando de um erro de proibição inevitável - quando os traços culturais indígenas gerar uma incapacidade quanto à compreensão da ilicitude do fato - exclui-se a culpabilidade. No entanto, tratando-se de erro de proibição evitável, a culpabilidade deve ser atenuada.
Em via distinta, sustenta Rezende (2005REZENDE, Guilherme Madi. Critérios para o tratamento jurídico-penal do índio. 2005. 127f. Dissertação (Mestrado em Direito) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2005.) que tanto a imputabilidade como a potencial consciência da ilicitude do fato como elementos a serem verificados para afastar a culpabilidade dos indígenas é eivado de etnocentrismo e discriminação. Para o autor, a hipótese mais aplicável de acordo com a atual ordem constitucional seria considerar se seria exigível dos indígenas, ou não, conduta diversa diante dos valores, crenças, tradições e costumes dos povos indígenas. E complementa o autor:
Quando não houver conflito de valores, mas dificuldade por parte do agente indígena de assimilação dos valores contidos na norma, a sua conduta contrária ao direito recebe uma reprovação menor, sua culpabilidade será atenuada e, via de consequência, a pena. A combinação deste critério como critério da individualização da pena poderá permitir a fixação da pena abaixo do mínimo legal, bem como o seu cumprimento em regime outro que não o fechado. Esse critério se aproxima do critério de erro de compreensão culturalmente condicionado, sem, no entanto, precisar de qualquer alteração legislativa, já que a doutrina reconhece haver a possibilidade de causas supralegais de inexigibilidade de conduta diversa, bem como sem tratar os valores culturais internalizados no índio como errados (REZENDE, 2005REZENDE, Guilherme Madi. Critérios para o tratamento jurídico-penal do índio. 2005. 127f. Dissertação (Mestrado em Direito) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2005., p.119-120).
Esse seria o caso de que, mesmo possuindo capacidade de compreensão e de autodeterminar-se a partir desse conhecimento, ou ainda que culturalmente tenha consciência do caráter antijurídico de um fato, podem os indígenas, “apesar de conhecerem devidamente o conteúdo proibitivo de norma jurídica, apresentarem extrema dificuldade em cumpri-la, tendo em vista a distinção em suas práticas e costumes” (CASTRO, 2013CASTRO, Marcela Baudel de. A culpabilidade dos indígenas à luz das exculpantes penais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3553, 24 mar. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23972. Acesso em: 18 dez. 2022.
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). Nesses casos, diante da possibilidade de um “choque de valores”, enquadram-se os indígenas numa outra causa de exclusão de culpabilidade; essa não decorreria de um erro culturalmente condicionado propriamente dito, mas de uma condição cultural que impediria exigir-lhe conduta diversa.
Pode-se concluir que, para a verificação da culpabilidade do indígena no sistema penal brasileiro, ao invés de ter como premissa que a diferença cultural coloca os indígenas numa situação de imaturidade intelectual ou inadequação social coletiva, faz-se necessário partir do questionamento acerca da expressividade do condicionamento cultural que recai sobre ele. Constatação essa apenas possível mediante conhecimento cultural, social, econômico, em suma, cosmológico de caráter técnico.
Há, por fim, que ressaltar que, superada a dúvida quanto à culpabilidade dos indígenas, tanto o Estatuto do Índio, quanto a Convenção n.º 169, da OIT, preveem que diante da imposição de sanções penais, devem “ser levadas em conta as suas características econômicas, sociais e culturais”, dando “preferência a tipos de punição outros que o encarceramento”. Não obstante, em 2019, o Conselho Nacional de Justiça publicou a Resolução n.º 287, estabelecendo procedimentos ao tratamento das pessoas indígena acusadas, rés, condenadas ou privadas de liberdade, e atribuindo diretrizes para assegurar os direitos dessa população no âmbito criminal do Poder Judiciário.
Tal resolução, parte da excepcionalidade do encarceramento indígena (art. 8, 9 e 10, da Convenção nº 169) para reafirmar garantias processuais como a presença de intérprete (em qualquer etapa do processo, inclusive a pedido de qualquer pessoa interessada) e a perícia antropológica (de ofício ou a requerimento das partes). Ainda, ante a responsabilização de acusados, prevê a realização de consulta prévia sobre os mecanismos da própria comunidade indígena, cabendo ainda aos magistrados considerar as características culturais, sociais e econômicas, suas declarações, bem como a perícia antropológica na sua condenação, entre outras orientações que visem adequar a atuação judicial à diferença cultural, bem como às normativas nacionais e internacionais de direitos humanos dos povos indígenas.15 15 Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/files/resolucao_287_25062019_08072019182402.pdf
Apesar de toda a mudança operada na perspectiva constitucional acerca da capacidade indígena, e posteriormente no Código Civil - que definiu que a capacidade dos indígenas seria “regulada por legislação especial” (§ único, do art. 4, da Lei n.º 10.406/2002) - possibilitando uma renovação doutrinária sobre o assunto, o Estatuto do Índio foi recepcionado à atual ordem normativa, mantendo em vigência a integralidade de seu texto. É dizer, não há, até o presente momento nenhuma norma que o revogue, integral ou parcialmente (derrogação), ou decisão judicial que o tenha declarado integral ou parcialmente inconstitucional.16 16 Cabe enfatizar que há décadas tramita no Congresso Nacional projetos de leis substitutos ao Estatuto do Índio, como o Projeto de Lei do Senado n° 169, de 2016, e Projeto de Lei na Câmara dos Deputados n.º 2057, de 1991. Esse cenário instaura uma conflituosa situação em matéria penal, permitindo que o uso das categorias “índio integrado” e “índio aculturado” permaneça sendo utilizado para fundamentar decisões judiciais.
Aliás, cabe ressaltar que o próprio emprego do temos “índio” mostra-se por si só desatualizada. Há algum tempo intelectuais e movimentos sociais indígenas reivindicam o desuso dessa terminologia carregada de preconceito (BANIWA, 2006, p.29-34). Como resultado, acompanha-se mudanças simbólicas recentes, como a substituição do “Dia do Índio” que passa a ser chamado em 2022 oficialmente como “Dia dos Povos Indígenas” (SOUZA, 2022SOUZA, Mateus. Dia dos Povos Indígenas, em 19 de abril, substitui Dia do índio após derrubada de veto. Agência Senado, 2022. Disponível em https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2022/07/11/dia-dos-povos-indigenas-em-19-de-abril-substitui-dia-do-indio-apos-derrubada-de-veto. Acesso em 24 jan. 2023.
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), e renomeações de instituições, como a Fundação Nacional do Índio, que passa a se designar Fundação Nacional dos Povos Indígenas (CRISTINA et al., 2023CRISTINA, Lucélia; OLIVEIRA, José Carlos. Ministério dos Povos Indígenas e nova Funai. Rádio Câmara, 2023. Disponível em: https://www.camara.leg.br/radio/programas/933977-ministerio-dos-povos-indigenas-e-nova-funai/. Acesso em 24 jan. 2023.
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).
Diante desse cenário, pouco se tem vinculado a interpretação e aplicação processual penal aos estândares atuais de direitos humanos em matéria de direitos dos povos indígenas. Estática no tempo, alheia à todas as alterações normativas e transformações paradigmáticas em termos de política indigenista, não é nada incomum encontrar decisões judiciais que massificam a compreensão de que os indígenas estariam cada vez mais próximos de um estado de aculturação. E, em que pese acompanhar a abertura desses outros institutos aos direitos humanos internacionais, como veremos a seguir, amplia-se a lógica totalizante da imputabilidade dos indígenas para restringir direitos específicos.
3. O uso das categorias “índio integrado” e “índio aculturado” nas decisões do Supremo Tribunal Federal
Mesmo sedimentada toda uma mudança doutrinária e normativa acerca da culpabilidade dos indígenas em matéria penal, como se veio demonstrando, o emprego de certas categorias de vieses etnocêntricas e discriminatórias pelos operadores do direito permanece. O emprego inadequado da categoria de “integrado”, “integração” ou “aculturação” segue sendo frequente em normativas vigentes, caso do já mencionado Estatuto do Índio, mas é certo que aqui não se limita. Tanto estudos anteriores, quanto o monitoramento da situação jurídica-penal de lideranças indígenas em realização nesses últimos anos, vêm indicando uma necessidade de aprofundamento sobre a apropriação e o uso recorrente dessas categorias no âmbito judicial.17 17 Veja-se, por exemplo, a Lei 6.001/73, especialmente os artigos 29 e 52 e a recente decisão judicial do STF no HC 183.598 MS, em 2021.
Em pesquisa anterior na qual alguns estudos de casos foram descritos (IPRI et al., 2021), verificou-se que o uso das categorias “índio integrado” e “índio aculturado”, quando utilizado pelo judiciário, indicavam o indígena que já não mais manteria traços de sua cultura, ou que, embora mantendo sua cultura, já dominaria os signos da sociedade não indígena. Essa situação, em matéria penal, acabava representando uma limitação aos pedidos de observância de legislação específica aos povos indígenas, restringindo garantias processuais, sobretudo quando utilizada para se pedir o cumprimento de penas privativas de liberdade próximos aos territórios de ocupação tradicional coletiva.
Nos casos analisados, foi verificado que essa denominação é especialmente aplicada na esfera penal, ora de modo defensivo (no sentido de buscar garantir a presença de um intérprete, de um julgamento culturalmente adequado e outras flexibilizações da norma padrão que possam resultar em maior acessibilidade), ora em desfavor do indígena, significando que nenhuma ação culturalmente orientada seria necessária, uma vez que já haveria plena compreensão do indivíduo acerca da língua portuguesa, da ilicitude do fato, etc. Ambas costumam ser pronunciadas pelos magistrados sem qualquer suporte pericial antropológico, note-se, e acabam contribuindo para a criminalização de lideranças indígenas.
Essa constatação não é solitária. Silva (2015SILVA, Tédney Moreira da. No banco dos réus, um índio: criminalização de indígenas no Brasil. 2015. 243f. Dissertação (Mestrado em Direito, Estado e Constituição) - Universidade de Brasília, Brasília, 2015) ao realizar um estudo baseado em levantamento jurisprudencial de decisões oriundas de Tribunais de Justiças Estaduais e do Distrito Federal, Tribunais Regionais Federais e dos Tribunais Superiores (Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal) e em alguns estudos de casos, averiguou alguns aspectos no tratamento jurídico-penal de indígenas.18 18 Na ocasião, Silva (2015, p. 105) analisou cinco aspectos em sua pesquisa: a) “realização de exame pericial para aferição da culpabilidade do acusado”; b) “participação do órgão assistencial (Funai), por meio da Procuradoria Federal Especializada, na hipótese de acusado indígena”; c) “competência para julgamento, se da justiça estadual ou federal”; d) “direitos do indígena criminalizado, como a aplicação da atenuante de pena ou de regime prisional diferenciado, previstos no artigo 56 do Estatuto do Índio”; e) “respeito aos usos e costumes do povo indígena ao qual se vincula o acusado, com o reconhecimento de outras formas de punição diversas da prisão.” Concluiu o autor pela existência de um “alinhamento do Judiciário com o discurso criminológico majoritário acerca da criminalização de indígenas segundo o qual se afirma concretizado o ideal integracionista da legislação ordinária sempre que presentes indícios de contato interétnico” (SILVA, 2015SILVA, Tédney Moreira da. No banco dos réus, um índio: criminalização de indígenas no Brasil. 2015. 243f. Dissertação (Mestrado em Direito, Estado e Constituição) - Universidade de Brasília, Brasília, 2015, p. 161).
Um outro traço característico das pesquisas jurisprudenciais, têm apontado também a dispensabilidade da perícia antropológica a partir de um exame superficial realizado pelos magistrados, como se fosse possível determinar os imperativos culturais sobre o comportamento social a partir de meras informações imparciais trazidas nos autos processuais (VILLARES, 2009VILLARES, Luiz Fernando. Direito e povos indígenas. Curitiba: Juruá Editora, 2009.). A dispensa de realização de laudo antropológico nos processos penais retira da seara jurisdicional instrumentos técnicos que determinem as especificidades culturais (VITORELLI, 2016VITORELLI, Edson. Estatuto do Índio. Salvador: JusPodivm, 2016.).
Via regra, o que se pode constatar a partir da revisão bibliográfica de estudos produzidos na área tem sido a imprescindibilidade de um olhar mais atento à aplicação das normas pelo poder judiciário. No entanto, não são apenas constatações teóricas que preocupam. Esse uso deturpado pelo judiciário encontra-se em tal nível que o Conselho Nacional de Justiça chegou a redigir um manual orientador aos magistrados, no ano de 2019, a esse respeito:
O marco normativo vigente de proteção aos povos indígenas se baseia, primeiramente, na Constituição Federal de 1988, a qual determina a valorização da diversidade cultural e o respeito à pluralidade étnica. A vigência da Constituição Cidadã marcou a superação do paradigma integracionista, que vinha expresso na Lei nº 6.001/73, o Estatuto do Índio, cujo propósito era o de que o indígena assimilasse os valores da “comunhão nacional” e, progressivamente, perdesse suas características culturais como língua, religião, costumes e desaparecesse como grupo étnico diferenciado. Com isso, tornou-se incompatível com a ordem constitucional vigente o tratamento jurídico da questão indígena por meio das categorias de civilizados, de aculturados ou não aculturados, aldeados e não aldeados, integrados ou em vias de integração. (BRASIL, 2019, p. 12)
É diante dessa conjuntura que se propõe realizar um aprofundamento acerca do uso dessas categorias - a do “índio integrado” e do “índio aculturado” - em decisões do Supremo Tribunal Federal. A escolha deste Tribunal específico é porque suas decisões tendem a ter tanto uma maior visibilidade, quanto uma maior repercussão na vida social, tornando-se substancial na renovação do direito (POSNER, 2011POSNER, Richard A. Cómo deciden los jueces. Trad. Victoria Roca Pérez. Madrid; Barcelona; Buenos Aires: Marcial Pons, 2011.).19 19 Para Posner (2011, p.26), é no âmbito da Suprema Corte que “os interesses em jogo costumam ser mais importantes, não só pela natureza das questões sobre as quais recai o direito constitucional, mas também pela dificuldade de modificar o direito constitucional se não for através do STF revogando suas decisões anteriores” (tradução nossa).
Portanto, mais do que reafirmar estudos anteriores - que oportunamente contribuem para estimular ações que venham a transformar essa realidade - busca-se investigar com maior detalhamento e intensidade o significado atribuído pela lógica jurisdicional a essas categorias. O que se objetiva, portanto, é desvelar um comportamento judicial centrado na análise jurisprudencial, isto é, que informações as decisões judiciais anunciam sobre o uso dessas categorias a partir da mentalidade judicial. Considera-se, para tanto, a margem de discricionariedade dada ao intérprete do direito,20 20 Explica Posner (2011, p.16) que “estudar a mentalidade judicial seria de pouco interesse se os juízes não fizessem outra coisa mais do que aplicar regras jurídicas claras criadas pelos legisladores, pelos órgãos ou serviços administrativos, pelos constituintes e outras fontes extrajudiciais (incluindo a lex mercatória) a fatos que tanto juízes como jurados consideram comprovados sem mediar preconceitos, nem préconcepções”. como os distintos róis de juízes que se apresentam (POSNER, 2010); aflorando um certo realismo jurídico21 21 Para mais informações sobre o realismo jurídico, ver: JORGE, 2012; LAURINDO, 2017. latente que prevalece sobre a aplicação da legislação penal brasileira atinente aos povos indígenas.
Com isso, ao passar a explorar o conteúdo de decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) que vinculam as teses do “índio integrado” e do “índio aculturado” em matéria penal, faz-se primeiramente indispensável destacar a constatação de estar sua utilização pelo órgão sendo intensificada com o transcurso do tempo, ao contrário do que se esperaria com as mudanças anteriormente mencionadas. Ao realizar um levantamento jurisprudencial online, verificou a ocorrência de 30 decisões em referência à categoria "índio integrado” e “índio aculturado”,22 22 Quanto à metodologia empregada no levantamento das decisões, convém explicar que o período temporal abordado na pesquisa se concentrou entre 1999, ano em que a primeira decisão é encontrada, até outubro de 2022. Uma única decisão foi encontrada em 1986, mas que por estar fora do período de vigência da Constituição de 1988 foi retirada da série histórica, mesmo sendo mencionada no texto para fins de comparação. Assim também foram retiradas as decisões encontradas que não utilizam as categorias como limitadoras de garantias penais aos indígenas, mesmo tratando-se de matéria penal; e, de outra forma, as decisões que se utilizavam dessa categoria, mas tratavam-se de matéria distinta, também foram retiradas. As decisões, no âmbito do STF que se detiveram apenas na análise processual, mesmo não adentrando ao mérito, mas que em seu conteúdo traziam informações relativas à temática abordada na pesquisa, foram mantidas considerando a importância do conteúdo, sobretudo, do relatório da decisão. No total, foram encontradas 76 decisões sob as palavras chaves “índio”, “indígena”, integrado”, “integração”, “aculturado”, “aculturação”; que, após serem submetidas aos filtros explicitados, resultaram em 30 decisões que tiveram seu conteúdo analisado. distribuída na série histórica (1999 a 2022) como se pode depreender do gráfico abaixo:
Número de decisões do STF, por ano, que utilizam da categoria “índio integrado” e "índio aculturado” (STF, 1999-2022)
Como se pode averiguar, o número de decisões da Suprema Corte que passam a empregar como fundamento as categorias "índio integrado" e “índio aculturado” em matéria penal é crescente, elevando-se abruptamente em 2021 e chegando ao seu ápice em 2022 (mantendo-se a observância dos limites temporais da pesquisa realizada). Chama a atenção que das 30 decisões encontradas, 25 sejam desta última década (2013-2022).
A propósito, essa curva ascendente acompanha o crescimento de indígenas encarcerados constatado em estudos anteriores (BARBOSA DA SILVA et al., 2020BARBOSA DA SILVA, Frederico Augusto; LUNELLI, Isabella Cristina. Retratos do encarceramento indígena: uma análise sobre presos e presas indígenas no sistema prisional brasileiro. Revista brasileira de ciências criminais, v. 28, n. 173, p. 351-391, nov. 2020.; CASTILHO et al, 2022CASTILHO, Ela Wiecko Volkmer de; SILVA, Tédney Moreira da. Incarceration of indigenous people in Brazil and resolution no. 287 of the National Council of Justice of Brazil. Vibrant, Dossier “Indigenous Peoples, tribunals, prisons, and legal and public processes in Brazil and Canada”, v.19, 2022.). Ao contrário do que possa parecer, não se está apenas julgando mais indígenas como se melhor acesso à justiça estivesse sendo ofertado ou sendo disponibilizadas jurisprudências em maior quantidade no método de pesquisa proposto; mas, sim, criminalizando-os em maior intensidade, como vem denunciando os estudos já citados. O contexto de criminalização estaria relacionado tanto ao fortalecimento da luta social por direitos individuais e coletivos reconhecidos aos povos indígenas face o deterioramento das condições de vida nesses últimos anos, quanto ao tensionamento das estruturas de poder que encontram no controle social punitivo uma forma de silenciamento (IPRI et al., 2021; LUNELLI, 2021).
O que se pode concluir, desde já, é que a criminalização de lideranças indígenas, aqui entendida como uma manobra para o hiperpunitivismo de indígenas pelo sistema penal, a partir desse padrão analisado, estaria se dando com o uso indiscriminado e discriminatório das categorias “índio integrado” e "índio aculturado” pelo poder judiciário. No entanto, mais do que constatar isso, que não deixa de ser uma denúncia também diante de sua clara contrariedade às normativas de direitos humanos internacional como mencionado, mostra-se imperioso revelar e entender os fundamentos das decisões judiciais. Sabe-se que as decisões judiciais devem ser fundamentadas, princípio esse que garante que a atuação dos órgãos jurisdicionais não seja eivada de arbitrariedades, ao mesmo tempo em que asseguraria uma maior segurança jurídica.24 24 Dispõe o § 1, do art. 489, do Código de Processo Civil (Lei n.º 13.105/2015): “Art. 489. São elementos essenciais da sentença: § 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: I - se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida; II - empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso; III - invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão; IV - não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador; V - se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos; VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento. É nesse sentido que ao se perquirir a fundamentação das decisões judiciais, o emprego e manipulação dessas categorias nos julgados, se busca alcançar a mentalidade judicante.
Assim, quanto ao conteúdo das decisões, a análise discursiva tanto dos relatórios, quanto dos votos e acórdãos proferidos permite traçar algumas reflexões sobre a mentalidade judicial.
A princípio, é possível afirmar que a mentalidade judicante da Suprema Corte brasileira vem considerando, como regra geral, que todo indígena é integrado, admitindo-se, inclusive, seu reconhecimento de ofício (RE 580666/MA). Integrado, nesse universo, além de outros elementos de convicção dos magistrados que abaixo nos deteremos, relaciona-se com a “consciência das consequências jurídicas de seus atos” (RHC 216.252/PR) ou sobre o “conhecimento da ilicitude de seu ato” (RHC 210.066/PR). Em alguns casos, não apenas o indígena é considerado integrado, como toda a aldeia a que pertence (ARE 1.380.818/MS).
Dessa forma, qualquer autodeclaração indígena no curso do processo penal tende a ser considerada, preliminarmente, como uma invocação que busca “eximi-lo das consequências resultantes da prática de uma conduta delitiva” (RHC 216.252/PR). Isso porque, o fato de pertencer a uma determinada etnia não pode configurar um impedimento para “a atuação do Estado quando do cometimento de infrações penais” (ARE 1.368.310/MS).
Em decorrência desse entendimento, direitos penais específicos previstos aos indígenas - seja no Estatuto do Índio, seja na Convenção n.º 169,25 25 No mesmo sentido dispõe a ementa do RE 1252104/PR: “Art. 10 da Convenção 169 da OIT. inaplicabilidade. indígenas integrados à sociedade. [...]. Inaplicáveis as regras especiais do art. 56, caput, do Estatuto do Índio e do art. 10 da Convenção 169 da OIT - que é mais genérico do que dito estatuto -, quando os acusados, embora indígenas, são totalmente integrados à comunhão nacional, exercendo plenamente seus direitos civis.” (decisão monocrática, 2020). ou quaisquer outras normas - “somente se aplica ao réu indígena não integrado socialmente ou em fase de aculturação” (THC 210.066/PR). Dentre essa lógica judicial predominante, “a singela condição de indígena” para a aplicação desses direitos previstos é insuficiente, sendo necessário então, verificar “o grau de integração do índio ou silvícola com a sociedade civil [...] para a aplicação dos preceitos do estatuto” (RHC 216.252/PR). Acontece que em alguns casos, sequer concebem a existência de graus de integração” ou “fase de aculturação” (sic), decidindo que “a proteção conferida aos índios pela legislação pátria diz respeito exclusivamente aos índios não integrados” (RE 580666/MA, RE 1.093.407/PR).
Essa compreensão não é exclusiva do STF, como se pode constatar. Ao reproduzir muitas vezes de forma acrítica precedentes fixados no âmbito do Superior Tribunal de Justiça (STJ) como alicerces argumentativos - cita-se, a exemplo, o AgRg no AREsp n. 1.467.017/MT - tem-se que esse “possui jurisprudência firme” sobre o assunto (HC 221.551/BA). Nesse sentido, as decisões tendem de forma contumaz a buscar uma adequação das decisões à uma “harmonia com o entendimento majoritário adotado” por esse tribunal (RHC 210.066/PR).
Aliás, cabe relembrar que é do STJ a criação da Súmula n.º 140, de 1995, que dispõe competir “à Justiça Comum Estadual processar e julgar crime em que o indígena figure como autor ou vítima”, em referência aos artigos 109, XI e 129, V, da CF/1988.26 26 Precedentes: Conflito de Competência (CC) 575-MS (3ª S, 21.09.1989 — DJ 16.10.1989), CC 3.910-RO (3ª S, 17.12.1992 — DJ 1º.03.1993), CC 4.469-PE (3ª S, 17.06.1993 — DJ 02.08.1993), CC 5.013-RR (3ª S, 16.12.1993 — DJ 20.06.1994), CC 7.624-AM (3ª S, 16.06.1994 — DJ 05.12.1994), CC 8.733-MA (3ª S, 16.06.1994 — DJ 22.08.1994), RHC 706-RS (6ª T, 16.10.1990 — DJ 29.10.1990). Terceira Seção, em 18.05.1995, DJ 24.05.1995, p. 14.853. Disponível em: https://www.stj.jus.br/docs_internet/revista/eletronica/stj-revista-sumulas-2010_10_capSumula140.pdf. A competência da Justiça Federal restaria devida apenas para os casos em que houver disputa sobre direitos indígenas. O problema aqui reside não somente nas circunstâncias de que o julgado foi anterior à internalização da Convenção n.º 169. Diante da individualização dos fatos, esses acabam retirando-os de um contexto mais amplo, muitas vezes suprimindo a disputa por direitos coletivos e criminalizando defensores de direitos humanos.
Voltando à análise do conteúdo das decisões, segundo a lógica hermenêutica empregada que mantém atual o uso das categorias “índio integrado” e “índio aculturado”, é majoritário o entendimento de tratar-se de um dever do réu alegar a inexistência de sua integração com a sociedade, assim como instaurar incidentes processuais que venham a convergir para o deferimento da realização de exame antropológico como meio probatório (RHC 216.252/PR). Em raras ocasiões admite-se que a realização da perícia antropológica possa ter sua determinação tanto de ofício, como a requerimento da parte (ARE 1.380.818/MS). No entanto, mesmo tomadas essas precauções pelas partes, corriqueiramente se verifica o indeferimento dos pedidos de exame antropológico.
A principal razão para o indeferimento da prova pericial antropológica é de que essa “somente se faz necessária na existência de dúvida acerca da condição e capacidade de índio (sic) de compreender os atos que praticou” (RE 1.093.407/PR). O exame antropológico se torna, assim, dispensável se “o Juiz afirma sua imputabilidade plena com fundamento na avaliação” de determinados elementos de convicção (HC n. 85.198/MA) ou quando “constata-se que o indígena está integrado à sociedade civil e tem conhecimento dos costumes a ela inerentes” (RHC 199.360/MS, RE 1.252.104/PR).27 27 Como assevera decisão em ARE 1.358.462/MS: “Com efeito, o juiz é o destinatário das provas, cabendo a ele indeferir aquelas que considera inúteis, desnecessárias ou meramente protelatórias, além de determinar, de ofício, a realização dos atos que entender necessários; se as provas constantes nos autos são suficientes para formar o convencimento motivado do julgador a respeito da questão, torna-se prescindível a produção de outras provas”. Via de regra, “o exame antropológico só é considerado necessário quando o indígena vive em estado natural (sic), longe da civilização e desconhece as normas de convivência em sociedade” (RHC 199.360/MS)
Tem-se aceitado, recorrentemente, o argumento de que a ausência da perícia não constitui nulidade, pois é “conferido ao prudente arbítrio do juiz o deferimento de perícia requerida pela parte, [...] mediante provas da sua conveniência” (RE 580.666/MA).28 28 A decisão referenciada menciona: “a nulidade, no entanto, não decorre propriamente da ausência de perícia, que pode ser dispensada (v.g., HC 79.530, 1ª T., 16.12.99, Ilmar Galvão, RTJ 172/582; e HC 85.198, 1ª T., 17.11.05, Eros Grau). Somente haverá nulidade se as perícias forem realmente necessárias. Certo, entenderam as instâncias de mérito que, por outros elementos, seria possível concluir tanto que os pacientes estavam absolutamente integrados, como que eram maiores de idade ao tempo do crime”. Não obstante, quando se tratar em reexame do pedido de realização de exame antropológico outrora indeferido, como menciona certas decisões, não é cabível “ao STJ modificar o entendimento das instâncias de origem de que o apenado enquadra-se na posição de integrado à sociedade” (RHC 216.252/PR), ou ao STF “afastar a conclusão implementada pelas instâncias antecedentes”, no caso, a conclusão pela integração do indígena (RHC 210.066/PR).29 29 Cabe um esclarecimento de que, não é incomum também a verificação da aplicação da Súmula n.º 279, do STF, que em seu enunciado afirma que “para simples reexame de prova não cabe recurso extraordinário”. Ou seja, sem adentrar no mérito, acabam decidindo baseado estritamente em questões processuais. A exemplo: ARE 1.358.462/MS.
O mesmo argumento é reproduzido para afastar a incidência do art. 56, parágrafo único, do Estatuto do Índio, em pedidos relacionados ao cumprimento de pena em semiliberdade. Se “evidenciado, nos autos, que o apelante está integrado à sociedade” (RE 1.270.202/PR; HC 201.186/PR, ARE 1.394.644/MS), “já adaptado à sociedade brasileira” (HC 221.551/BA) ou “submetido a processo de aculturação” (RHC 216.252/PR), não há que se falar na concessão do regime especial de semiliberdade - “aplicação de regime mais benéfico previsto” - ou em cumprimento da pena em estabelecimento da Fundação Nacional do Índio (FUNAI).
Disso decorre que somente faz jus ao regime de semiliberdade os indígenas não integrados ou em “fase de aculturação” (sic). É jurisprudência já pacificada do STJ que não somente limita a aplicação do art. 6º aos não aculturados ou integrados, como reforçam que “os índios e as comunidades indígenas ainda não integrados à comunhão nacional ficam sujeito ao regime tutelar estabelecido” no art. 7º,30 30 Dispõe o art. 7º: “Os índios e as comunidades indígenas ainda não integrados à comunhão nacional ficam sujeito ao regime tutelar estabelecido nesta Lei. § 1º Ao regime tutelar estabelecido nesta Lei aplicam-se no que couber, os princípios e normas da tutela de direito comum, independendo, todavia, o exercício da tutela da especialização de bens imóveis em hipoteca legal, bem como da prestação de caução real ou fidejussória. § 2º Incumbe a tutela à União, que a exercerá através do competente órgão federal de assistência aos silvícolas”. do Estatuto do Índio (RHC 210.066/PR). Note-se que em alguns casos não somente se suprimem as gradações do processo de aculturação, mesmo já ultrapassada, como reafirmam um regime tutelar já extinto com a Constituição de 1988.
A dúvida quanto à integração ou não dos indígenas, frise-se, deve ser do magistrado que, em inúmeras situações, acaba concluindo estarem os indígenas em enquadramento visível ou “na posição de integrado na sociedade”. Ou seja, parte-se da premissa de que todo índio é integrado, dispensando a produção de prova mesmo que solicitada porque convencido está o julgador de primeira instância de sua premissa. Premissa essa que, na maioria das vezes, é corroborada pelo Ministério Público em seu pedido e que, uma vez decidida, irá vincular todas as instâncias recursais. Qualquer recurso quanto ao indeferimento da prova pericial ou pedido da defesa baseado argumento que leve em consideração uma divergência cultural será negado nas instâncias superiores, por simplesmente considerarem impertinente alterar o entendimento das instâncias antecedentes.
Causa certo desconforto a superficialidade da tese empregada sobre os preceitos da condição de integrado quando se detêm sobre elas. Desprovida de qualquer embasamento teórico ou técnico, os elementos de convicção de juízes acabam restringindo-se na avaliação fática. Veja-se:
[...], no caso dos autos, não há comprovação de que o paciente seja realmente um índio, tendo ficado evidenciada, ao contrário, a sua adaptação à vida do meio civilizado, tanto assim que, ao ser interrogado em juízo, declarou ser caso e alfabetizado, tendo afirmado, também, que é eleitor e vota em Itacarambi, além de informar que morou quatro anos em São Paulo, onde trabalhou na Sadia, numa metalúrgica da Mercedes Benz e na Metalúrgica Cobrasma. [...], a alegada condição de índio em vias de integração está posta em dúvida no acórdão, com sólidos argumentos probatórios, não podendo prevalecer contra fatos concretos mera afirmação [...]”. (RHC 64.476-7/MG, 1986)
[...] prova robusta de tratar-se de pessoa integrada à comunhão nacional, ou seja, o fato de ser o paciente funcionário da FUNAI, residir na cidade em imóvel por ele mesmo adquirido, sem a assistência de quem quer que seja [...], de falar o português, de ser eleitor, de possuir passaporte por ele mesmo requerido, de possuir conta bancária e habilitação para dirigir veículos automotores e, ainda, de possuir empresa por meio da qual realiza comércio de exportação de óleo de castanha para a Inglaterra [...]. (HC 79.530/PA, 1999)
[...] dispensável o exame antropológico destinado a aferir o grau de integração do paciente na sociedade se o Juiz afirma sua imputabilidade plena com fundamento na avaliação do grau de escolaridade, da fluência na língua portuguesa e do nível de liderança exercida na quadrilha, entre outros elementos de convicção. (HC n. 85.198/MA, 2005)
[...], havendo provas de que os agentes convivem há muito com o homem branco e já incorporaram hábitos e costumes da civilização deste, a eles se aplicam as regras comuns de direito. [...]. É válido frisar que a interação dos réus com a sociedade civilizada se dá também em razão da localização da aldeia em que vivem [...], localizada às margens da BR 226, que interliga os municípios de [...], constituindo trecho da malha viária maranhense de grande movimentação de veículos de passageiros e cargas. As aldeias localizadas às margens da BR 226, há muito iniciaram seu processo de integração com a civilização branca, seus moradores, descendentes de índios ligados à etnia Guajajara, ao longo de um lento e constante processo foram perdendo características e costumes das culturas indígenas e adquirindo novos hábitos e incorporando costumes próprios do homem civilizado. Convém se ressalte que nas referidas aldeias a presença do homem branco é uma constante, e a imagem do índio selvagem, afastado da civilização, embrenhado nas matas, destoa da realidade, onde se pode observar casas construídas à maneira dos homens brancos, com energia elétrica, aparelhos eletrodomésticos, e carros, que diariamente conduzem os moradores para as cidades próximas, onde são feitas compras, consultas, internações hospitalares e buscados outros recursos que faltam nas aldeias. [...]. Daí não se extrai, todavia, que eventualmente alguns índios, - dentre eles os pacientes - preservem hábitos culturais próprios, com valores e costumes de extrema relevância para o deslinde do caso, inclusive sobre se lhes aplica ou não o regime especial (RE 580.666/MA).
[...] O réu em ação civil pública por improbidade administrativa, índio, e servidor público federal, Chefe do Posto Indígena de Guarapuava, é evidentemente integrado à sociedade, cessando a tutela e qualquer necessidade dela pela FUNAI/União.[...] A qualidade de integrado do requerido é indisputável, na medida que, consoante a prova existente [...], resta informado que ‘[...] é Funcionário Público Federal do quadro Ativo Permanente desta Fundação e está subordinado e amparado pelo Estatuto do Servidor Público Federal, Lei n. 8112/90;' ̧ tendo tomado posse no cargo em 03 de novembro de 1998, exercendo o cargo em comissão de Chefe do Posto Indígena de Guarapuava, código DAS-101.2. [...]. (RE 1.093.407/PR, 2018).
[...]. Aliás, conforme se verifica em seu interrogatório judicial, o recorrente respondeu à acusação normalmente, negando-a inclusive, presumindo-se sua plena capacidade de presumindo-se sua plena capacidade de entendimento, assim como declarou que estudou até a quarta série, sabe ler e escrever, o que deixa indene sua integração à sociedade. (ARE 1.380.818/MS, 2002).
[...] o paciente está habituado com tecnologia e redes sociais, domina a língua portuguesa, possui título de eleitor e habilitação para dirigir veículo automotor (moto e carro) e já cumpriu pena restritiva de direitos pelo crime de ameaça; [...] (RHC 216.252/PR, 2022).
A respeito dos “sólidos argumentos comprobatórios” ou das “provas robustas” que corroboram a motivação das decisões judiciais, convém destacar que esses não se alteraram mesmo com a Constituição de 1988. Comparando-se o teor de decisão proferidas em 1986 (RHC 64476)31 31 De 1986 é também a seguinte ementa: 'HABEAS CORPUS'. INDIGENA. SE O ÍNDIO JÁ E ACULTURADO E TEM DESENVOLVIMENTO MENTAL QUE LHE PERMITE COMPREENDER A ILICITUDE DE SEUS ATOS, E PENALMENTE IMPUTÁVEL. RECURSO DESPROVIDO (RHC 64476, Rel. Carlos Madeira, data de julgamento: 10/10/1986; data de publicação: 31/10/1986). com as recentes decisões, como se pode atentar-se nas citações acima, a lógica permanece a mesma. Ao se perpetuar o uso dessas categorias nas decisões judiciais, continua-se a reproduzir um precedente não somente inadequado à ordem normativa atuai, como discriminatória no sentido de criar distinções entre os indígenas.32 32 A distinção “que tenha por objeto ou resultado anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício em um mesmo plano (em igualdade de condições) de direitos humanos e liberdades fundamentais” é expressamente vedada na Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, ratificada pelo Decreto n.º 65.810, de 8 de dezembro de 1969. Sobre o tema, ver BARBOSA DA SILVA et al., 2019).
Uma das questões que permanecem inalteradas no tempo é a requisição da presença de intérprete. A demanda parece existir apenas quando o indígena não for “alfabetizado, eleitor e integrado à civilização, falando fluentemente a língua portuguesa" (HC 79.530/PA) ou quando não for “capaz de entender e se fazer ser entendido usando a língua portuguesa” (ARE 1.380.818/MS). Mesmo com a recente publicação da Resolução n.º 287, do CNJ, desponta-se um entendimento de que “a nomeação de tradutor-intérprete e antropólogo é desejada, mas não indispensável”, fazendo-se menção à garantia da presença de intérprete “se a língua falada não for a portuguesa” como se excludente fosse esse requisito de outras hipóteses previstas na referida normativa (ARE 1.363.039/MS).
Outra questão versa sobre restringir a discussão da culpabilidade dos indígenas ao elemento da imputabilidade quando abordada a questão da diferença cultural, que subsiste mesmo diante das alternativas expostas. A condição de inimputável como excludente de culpabilidade ainda é determinante, exigindo-se comprovação da “completa “ou parcial” incapacidade de entendimento do caráter ilícito dos fatos imputados” (RHC 199.360) Em alguns casos, verificou-se que mesmo quando alegada a inexigibilidade de conduta diversa, tem-se decidido pela ausência de provas - ainda que se tenha dispensado o exame pericial em momento anterior (RE 1.270.202/PR). Em outros, sugere-se não haver “dúvidas razoáveis” acerca das “condições de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar se conforme este entendimento” (ARE 1.380.818/MS). Os elementos de convicção do magistrado servem tanto para determinar sua integração, quanto sua imputabilidade, confundindo-se:
[...]. Segundo os elementos contidos no processo, não há dúvida razoável acerca da imputabilidade do recorrente, que em seus interrogatórios se mostrou totalmente inserido à civilização e aos costumes da sociedade, tanto que sabe falar, ler e escrever na língua portuguesa, tendo escrito corretamente o seu nome nos termos dos interrogatórios e depoimentos (ARE 1.380.818/MS, 2022).
[...] a ausência de nomeação de tradutor e realização de laudo antropológico não conduz à nulidade arguida, pois, em realidade, são indivíduos perfeitamente integrados aos costumes, à linguagem e comunicação comum, e, sobretudo, às malícias e vícios da civilização atual, a dispensarem, inclusive, qualquer perícia para tal constatação, por se tratar de fato público e notório. (ARE 1.368.310/MS, 2022).
Por fim, ao contrário do que se vem retratando, merecem destaque decisões com mudanças na mentalidade judicial, ainda que sutis e mesmo não configurando um posicionamento majoritário do órgão. O primeiro destaque refere-se à decisão no HC n. 85.198, de 2005, que determinou que o “[...] regime de semiliberdade previsto no parágrafo único do artigo 56 da Lei n. 6.001/73” é “direito conferido pela simples condição de se tratar de indígena”. Outro julgado de 2020, pela Min. Carmen Lúcia no RE 1.270.202/PR, declarou “a inaplicabilidade de regime diverso daquele especial de semiliberdade pela condição de indígena do paciente, sendo aquele o único regime possível de ser definido” e “se for o caso de descumprimento da pena restritiva de direitos de prestação de serviços à comunidade, a ser decidido pelo juízo da execução penal”.
O segundo destaque, refere-se à decisão em Recurso Ordinário em Habeas Corpus (RHC 199.360/MS), na qual o direito à perícia antropológica é reconhecido. Tido como “essencial para o exercício do direito à defesa”, seu reconhecimento resultou na anulação da sentença de pronúncia, determinando-se a realização da perícia. Como destaca, “a defesa insiste na produção do laudo para que o julgador tenha compreensão completa do quadro no qual se deu o injusto, sobre as qualificadoras, as condições culturais nas quais se desdobrou o quadro delituoso”, e, ainda, “se teria havido outras circunstâncias ou peculiaridades do réu a serem consideradas pelos julgadores”. Abaixo correlaciona-se a ementa da decisão:
RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL. PENAL. PROCESSO PENAL. FEMINICÍDIO. TRIBUNAL DO JÚRI. CRIME PRATICADO POR ÍNDIO CONTRA ÍNDIA. AUSÊNCIA DE LAUDO FUNDAMENTAÇÃO ANTROPOLÓGICO: INIDÔNEA. INOBSERVÂNCIA DA CONVENÇÃO N. 169 DA ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO: AFRONTA AO § 2º DO ART. 5º DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. MULTICULTURALISMO. DIREITO À PERÍCIA ANTROPOLÓGICA: DIÁLOGO INTERCULTURAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS PARCIALMENTE PROVIDO (RHC 199.360/MS; Rel. Min. Cármen Lúcia; data de julgamento 06/04/2021; data de publicação 20/04/2021).
O último destaque refere-se à decisão no âmbito da Pet. 3388, processo que resultou na validação do processo demarcatório da Raposa Serra do Sol e, embora não tratando especificamente de matéria penal, a importância do julgado faz-se por merecer divulgação. Segue extrato da ementa:
[...] 4. O SIGNIFICADO DO SUBSTANTIVO "ÍNDIOS" NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. O substantivo "índios" é usado pela Constituição Federal de 1988 por um modo invariavelmente plural, para exprimir a diferenciação dos aborígenes por numerosas etnias. Propósito constitucional de retratar uma diversidade indígena tanto interétnica quanto intra-étnica. Índios em processo de aculturação permanecem índios para o fim de proteção constitucional. Proteção constitucional que não se limita aos silvícolas, estes, sim, índios ainda em primitivo estádio de habitantes da selva. [...] 9. A DEMARCAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS COMO CAPÍTULO AVANÇADO DO CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL. [...] Era constitucional compensatória de desvantagens historicamente acumuladas, a se viabilizar por mecanismos oficiais de ações afirmativas. No caso, os índios a desfrutar de um espaço fundiário que lhes assegure meios dignos de subsistência econômica para mais eficazmente poderem preservar sua identidade somática, linguística e cultural. Processo de uma aculturação que não se dilui no convívio com os não-índios, pois a aculturação de que trata a Constituição não é perda de identidade étnica, mas somatório de mundividências. Uma soma, e não uma subtração. Ganho, e não perda. Relações interétnicas de mútuo proveito, a caracterizar ganhos culturais incessantemente cumulativos. Concretização constitucional do valor da inclusão comunitária pela via da identidade étnica.” (Pet 3388)
Apesar do uso de categorias rudemente desatualizadas e inadequadas, as salvaguardas que discutiram aculturação dos indígenas reconheceram a condição do indígena em sua totalidade, bem como a inclusão comunitária pela via da identidade étnica.33 33 Em seu voto, o Min. relator Carlos Ayres Britto assim se manifestou “[...] é direito dos indígenas [...] poder inteirar-se do modus vivendi ou do estilo de vida dos brasileiros não-índios, para, então, a esse estilo se adaptar por vontade livre e consciente. É o que se chama de aculturação, compreendida como um longo processo de adaptação social de um indivíduo ou de um grupo, mas sem a necessária perda da identidade pessoal e étnica. Equivale a dizer: assim como os não-índios conservam a sua identidade pessoal e étnica no convívio com os índios, os índios também conservam a sua identidade étnica e pessoal no convívio com os não índios, pois a aculturação não é um necessário processo de substituição de mundividências (a originária a ser absorvida pela adquirida), mas a possibilidade de experimento de mais de uma delas. É um somatório, e não uma permuta, menos ainda uma subtração”. E, mais, garantem a proteção constitucional igualmente a todos os indígenas, não se confundindo o valor da inclusão social comunitária como perda identitária ou, menos ainda, como perda de características culturais.
Conclusões
Não se pode negar que há um duplo e preocupante movimento observado no tocante à criminalização de lideranças indígenas no Brasil. Enquanto situações que ensejam maior mobilização social destes atores estão sendo trazidas para a arena política - como o avanço de projetos de leis para regulamentar a implementação de atividades econômicas ligadas ao comércio internacional de commodities, mineração em terras indígenas e flexibilização de legislação ambiental - a mentalidade majoritária do poder judiciário, por seu turno, como se veio demonstrando no decorrer desse estudo, apoia-se em práticas consideradas ultrapassadas e subclassificações legislativas que acabam por violar direitos fundamentais.
Da simples análise quantitativa das decisões que estariam utilizando as categorias “índio integrado” e “índio aculturado”, decorre a preocupação de que esses argumentos equivocados estariam não apenas se reproduzindo em uma escala maior, como fortalecendo uma mentalidade incompatível com a ordem constitucional que se espraia por todo o sistema jurisdicional.
Ao se utilizar de forma indiscriminada de classificações e conceitos que discriminam os indígenas entre si, criando subcategorias capazes de desqualificar a aplicação de normas, inclusive internacionais, de direitos humanos dos povos indígenas - como a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas de 2008, e a Convenção da Organização Internacional do Trabalho (OIT) n.º 169, em vigência no Brasil desde 2004 - o poder judiciário atua como agente incapaz de superar ultrapassadas concepções do integracionismo, e até reforçando-as, como se pode constatar nos casos analisados. Essa situação desperta mais inquietação ao se verificar a contundência do seu uso pelo STF, órgão jurisdicional que deveria impor uma revisão desses precedentes.
Vale recordar que a fundamentação na qual se apoiam essas práticas criminalizantes - sobretudo o artigo 4 e 7, da Lei n. 6001 de 1973 - quando analisado à luz do contexto constitucional inaugurado com a Carta Magna de 1988 não encontra abrigo capaz de permitir a sua razoável aplicabilidade. Ainda assim, inúmeros magistrados reproduzem-na, inclusive com o intuito de avaliar, unilateralmente, se o indígena faz jus ou não a um intérprete durante os atos processuais penais, da necessidade de laudo pericial que impacta as possibilidades de sua defesa ou mesmo a determinar o local de cumprimento da pena, como demonstrou na análise das decisões proferidas.
Ao invés do STF estar orientando à interpretação constitucional em conformidade com paradigmas adequados à atualidade, sujeitando-o inclusive à um controle de convencionalidade, majoritariamente exime-se de enfrentar a questão. Ora apenas reproduzindo decisões de instâncias inferiores, ora limitando-se à análise de requisitos meramente processuais, sem enfrentar o mérito das ações.
Necessário enfatizar que o cenário não é determinado somente pela mentalidade judicante das altas cortes brasileiras. No cumprimento de missão institucional de acusador (art. 257, do Código de Processo Penal), o Ministério Público tem ininterruptamente invocado essa anomalia jurisprudencial, expondo uma completa deturpação dessas categorias, mas que acaba corroborando as ideias de magistrados alheios à necessidade de um conhecimento multidisciplinar.
O indígena, mesmo quando compartilha de alguns signos da sociedade nacional pode, ainda assim, não compreender a ilicitude de um fato ou, até mesmo, não ser capaz de evitar a ilicitude em virtude de razões culturais. Eliel Benites, professor indígena da Universidade Federal da Grande Dourados nos explica isso com maestria:
Vou dar um exemplo concreto para falar sobre isso. Pense numa estátua que representa um herói, um herói da guerra do Paraguai, ou o herói de uma revolução, em momentos desses os heróis aparecem. Então você faz uma imagem dele e coloca na praça. Ela é uma mensagem para a sociedade que vem chegando de que aquele herói existiu e que tem sentido ele estar ali naquele lugar. Mas para ele permanecer como estátua precisa ser constantemente rebocado, novas pinturas, novos letreiros, para estar vivo dentro da praça. Se não ele vai se decompondo com o tempo, as pedras vão caindo, o material original vai caindo, vai se desestruturar se não forem colocados novos elementos para que ele permaneça vivo. Então, como ser original sem compor coisas novas? A originalidade, a tradicionalidade já traz embutida a necessidade de compor novos elementos que transformem a realidade. A gente é alguém quando é capaz de fazer negociações com novos elementos que estão chegando. Então o indígena de hoje para ser tradicional obtém novos elementos da sociedade não indígena, novos sentidos, nova linguagem, novas expressões culturais, novas necessidades, para se manter como indígena. Esse é um primeiro ponto, sem discutir que esses novos elementos são opressores. (...) o não indígena pensa que ser índio [não aculturado] é aquilo que se construiu na sua cabeça, pelado, tanguinha, arco e flecha, no mato, genuíno indígena. Mas a realidade é outra e esse preconceito não pode ser usado para embasar uma decisão judicial. Sinal de que falta o conhecimento básico do que é um ser humano, feito de relações, sempre compondo novos elementos para se manter vivo.34 34 Entrevista concedida à Carolina Santana em 10 de fevereiro de 2019, em Dourados/MS.
As categorias são estratégias utilizadas para melhorar a comunicação e a compreensão das coisas entre os seres humanos. Elas buscam classificar conjuntos de pessoas ou de coisas a fim de que possam ser abrangidas ou referidas por um conceito ou concepção genérica. Porém, quando tratamos de direitos humanos de minorias, e mais, minorias étnicas, há que se ter atenção redobrada. Neste contexto, as categorias são potenciais violadores destes direitos, uma vez que podem solapar o direito à diversidade - especialmente quando passam a aparecer de forma reiterada e corriqueira como fundamento penal em processos que visam a privação de liberdade.
Observamos que as categorias de “índio aculturado” e “índio integrado” têm sido aplicadas não apenas de forma genérica, como é típico do uso de categorias, mas, também, desatualizada e sem aprofundamento por parte dos magistrados, que parecem, por vezes, se esquivam de enfrentar causas complexas que demandem um deslocamento de sua zona de conforto. Assim, acabam por, apenas, repetir decisões de seus pares, por falta de compreensão. Num ciclo contínuo e atemporal, fecham-se a qualquer inovação normativa e doutrinária. É nesse contexto que se propõe ir além, divulgando os tímidos precedentes positivos, mas também inovando a epistemologia judicante ante a diversidade, a pluralidade e as dinâmicas culturais.
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As entrevistas realizadas constituíram fonte de documentação que compõem o relatório mencionado. Para mais informações sobre as técnicas empregadas, ver: IPRI, APIB; 2021, p. 24-25.
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Os três elementos estão descritos conforme a teoria normativa pura da culpabilidade. Para mais, ver: ZAFFARONI et al, 2015ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 11 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015., p. 607-608.
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“Art. 26. É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. Parágrafo único. A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, em virtude de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento” (BRASIL, Código Penal, 1940).
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São causas de exclusão da imputabilidade: a) doença mental e desenvolvimento mental incompleto ou retardado (CP, art. 26); b) menoridade penal (CP, art. 27, e CF, art. 228); c) embriaguez completa proveniente de caso fortuito ou força maior (CP, art. 28, § 1º); d) dependência ou intoxicação involuntária decorrente do consumo de drogas ilícitas (Lei n. 11.343/2006, art. 45, caput). A Lei n.º 11.343/2006, art. 45, também define como uma hipótese de exclusão de imputabilidade a dependência ou intoxicação voluntária decorrente do consumo de drogas ilícitas: “É isento de pena o agente que, em razão da dependência, ou sob o efeito, proveniente de caso fortuito ou força maior, de droga, era, ao tempo da ação ou da omissão, qualquer que tenha sido a infração penal praticada, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.” (BRASIL, Código Penal, 1940).
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Dispõe o Código Penal a respeito do Erro sobre elementos do tipo: Art. 20 - “O erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei. [Descriminantes putativas] § 1º - É isento de pena quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima. Não há isenção de pena quando o erro deriva de culpa e o fato é punível como crime culposo. [Erro determinado por terceiro] § 2º - Responde pelo crime o terceiro que determina o erro. [Erro sobre a pessoa] § 3º - O erro quanto à pessoa contra a qual o crime é praticado não isenta de pena. Não se consideram, neste caso, as condições ou qualidades da vítima, senão as da pessoa contra quem o agente queria praticar o crime. [Erro sobre a ilicitude do fato] Art. 21 - O desconhecimento da lei é inescusável. O erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta de pena; se evitável, poderá diminui-la de um sexto a um terço. Parágrafo único - Considera-se evitável o erro se o agente atua ou se omite sem a consciência da ilicitude do fato, quando lhe era possível, nas circunstâncias, ter ou atingir essa consciência”. (BRASIL, Código Penal, 1940).
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Assim consta no Código Penal sobre a coação irresistível e obediência hierárquica: “Art. 22 - Se o fato é cometido sob coação irresistível ou em estrita obediência a ordem, não manifestamente ilegal, de superior hierárquico, só é punível o autor da coação ou da ordem”.
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É dessa mesma noção que também deriva sua declarada incapacidade para certos atos da vida civil. Dizia-se que os indígenas eram considerados incapazes de exercer relativamente certos atos, tornando os atos jurídicos por eles praticados anuláveis (art. 6, IV, c/c 147, I, Lei n.º 3.071/1916). A solução encontrada foi colocar os indígenas sob tutela estatal (natureza civil).
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Menciona-se o Decreto n.º 5.484, de 27 de junho de 1928, que declarava a emancipação da tutela orfanológica vigente aos que estivessem inteiramente adaptados, em conformidade com os graus de integração a serem avaliados pelo órgão indigenista competente à época. Para Silva (2015SILVA, Tédney Moreira da. No banco dos réus, um índio: criminalização de indígenas no Brasil. 2015. 243f. Dissertação (Mestrado em Direito, Estado e Constituição) - Universidade de Brasília, Brasília, 2015, p.82), a classificação dos indígenas em “índios nômades”, “índios arranchados ou aldeiados”, “índios pertencentes a povoações indígenas” e “índios pertencentes a centros agrícolas ou que vivem promiscuamente com civilizados” (art. 2) “tinha, também, o condão de determinar a responsabilidade criminal de indígenas, representando-se, em termos legais, a primeira acolhida das construções criminológicas positivistas desenvolvidas em fins do século XIX”.
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Prevê o artigo 56, caput e parágrafo único, da Lei n.º 6.001/73: “Art. 56. No caso de condenação de índio por infração penal, a pena deverá ser atenuada e na sua aplicação o Juiz atenderá também ao grau de integração do silvícola. Parágrafo único. As penas de reclusão e de detenção serão cumpridas, se possível, em regime especial de semiliberdade, no local de funcionamento do órgão federal de assistência aos índios mais próximos da habitação do condenado.”
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Cabe mencionar que a Convenção n.º 107, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de 1957, previa expressamente em seu art. 2, a competência aos governos para “por em prática programas coordenados e sistemáticos com vistas à proteção das populações interessadas e sua integração progressiva na vida dos respectivos países”.
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“Todos os povos têm direito à autodeterminação”, conforme o artigo 1, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (promulgado no Brasil por meio do Decreto n.º 592, de 06 de julho de 1992) e o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Decreto n.º 591, de 06 de julho de 1992). O artigo 7, item 1, da Convenção n.º 169, da Organização Internacional do Trabalho (consolidada no Decreto n.º 10.088, de 05 de novembro de 2019, art. 2, inciso LXXII, Anexo LXXII), estabelece que “Os povos interessados deverão ter o direito de escolher suas, próprias prioridades no que diz respeito ao processo de desenvolvimento, na medida em que ele afete as suas vidas, crenças, instituições e bem-estar espiritual, bem como as terras que ocupam ou utilizam de alguma forma, e de controlar, na medida do possível, o seu próprio desenvolvimento econômico, social e cultural. Além disso, esses povos deverão participar da formulação, aplicação e avaliação dos planos e programas de desenvolvimento nacional e regional suscetíveis de afetá-los diretamente”.
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Por esta razão, outros conceitos foram sendo elaborados e adotados pela antropologia, como hibridismo (cf. NEDERVEEN PIETERSE, 1994NEDERVEEN, Pieterse. Globalisation as Hybridisation. International Sociology, v. 9, p. 161-184, jan. 1994.; PAPASTERGIADIS, 1995PAPASTERGIADIS, Nikos. Restless Hybrids. Third Text, v. 32. p. 9-18, 1995.; HANNERZ, 1997HANNERZ, Ulf. Fluxos, fronteiras, híbridos: palavras-chave da antropologia transnacional. Mana. v. 3, abr. 1997.), culturas de fronteiras (NEWMAN, 2007NEWMAN, David. The Lines that Continue to Separate Us: Borders in Our “Borderless World”. Johan Schimanski & Stephen Wolfe (eds): Border Poetics De-limited, Hannover: Wehrhahn, 2007.; NEWMAN & PAASI 1998; SADOWSKI-SMITH 2002SADOWSKI-SMITH, Claudia (ed.) Globalization on the Line: Culture, Capital and Citizenship at U.S. Borders, New York: Palgrave, 2002.; VILA, 2003VILA, Pablo. Introduction: Border Ethnographies. Ethnography at the Border. London: University of Minnesota Press, 2003.), terceiras culturas (cf. USEEM, 1963USEEM, John. The Community of Man: A Study in the Third Culture. Centennial Review, v. 7, p. 481-498, 1963.; HANNERZ, 1997) e fricção interétnica (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1963CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. Aculturação e “fricção interétnica”. América Latina, v. 6, n. 3, p. 33-46, 1963.).
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Como proposta alternativa ao multiculturalismo, emerge no século XXI, o paradigma da interculturalidade. A interculturalidade delineia não apenas um contexto de tolerância diante do diferente, como previa o multiculturalismo, mas aceitando a ideia de que as culturas estão em constante estado de contato e em sua maioria, gerando conflitos, tece-se a noção de inter-relação dialógica (LUNELLI, 2019LUNELLI, Isabella Cristina. Estado intercultural de direito: contribuições da antropologia jurídica latino-americana para o direito à autonomia indígena. 2019. 330f. Tese (Doutorado em Direito, Política e Sociedade) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Ciências Jurídicas, Programa de Pós-Graduação em Direito, Florianópolis, 2019.).
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Castro (2013CASTRO, Marcela Baudel de. A culpabilidade dos indígenas à luz das exculpantes penais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3553, 24 mar. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23972. Acesso em: 18 dez. 2022.
https://jus.com.br/artigos/23972... ) também difere o erro de proibição do erro de tipo: “O erro de proibição difere do chamado erro de tipo porquanto este último recai não sobre a ilicitude do fato, mas sobre os requisitos típicos do delito, excluindo, por consequência, a tipicidade. [...], uma coisa é não ter consciência só da ilicitude do fato (mas saber o que está fazendo), outra bem distinta é não saber o que se faz (é não ter consciência dos requisitos típicos do delito)”. - 15
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Cabe enfatizar que há décadas tramita no Congresso Nacional projetos de leis substitutos ao Estatuto do Índio, como o Projeto de Lei do Senado n° 169, de 2016, e Projeto de Lei na Câmara dos Deputados n.º 2057, de 1991.
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Veja-se, por exemplo, a Lei 6.001/73, especialmente os artigos 29 e 52 e a recente decisão judicial do STF no HC 183.598 MS, em 2021.
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Na ocasião, Silva (2015SILVA, Tédney Moreira da. No banco dos réus, um índio: criminalização de indígenas no Brasil. 2015. 243f. Dissertação (Mestrado em Direito, Estado e Constituição) - Universidade de Brasília, Brasília, 2015, p. 105) analisou cinco aspectos em sua pesquisa: a) “realização de exame pericial para aferição da culpabilidade do acusado”; b) “participação do órgão assistencial (Funai), por meio da Procuradoria Federal Especializada, na hipótese de acusado indígena”; c) “competência para julgamento, se da justiça estadual ou federal”; d) “direitos do indígena criminalizado, como a aplicação da atenuante de pena ou de regime prisional diferenciado, previstos no artigo 56 do Estatuto do Índio”; e) “respeito aos usos e costumes do povo indígena ao qual se vincula o acusado, com o reconhecimento de outras formas de punição diversas da prisão.”
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Para Posner (2011POSNER, Richard A. Cómo deciden los jueces. Trad. Victoria Roca Pérez. Madrid; Barcelona; Buenos Aires: Marcial Pons, 2011., p.26), é no âmbito da Suprema Corte que “os interesses em jogo costumam ser mais importantes, não só pela natureza das questões sobre as quais recai o direito constitucional, mas também pela dificuldade de modificar o direito constitucional se não for através do STF revogando suas decisões anteriores” (tradução nossa).
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Explica Posner (2011POSNER, Richard A. Cómo deciden los jueces. Trad. Victoria Roca Pérez. Madrid; Barcelona; Buenos Aires: Marcial Pons, 2011., p.16) que “estudar a mentalidade judicial seria de pouco interesse se os juízes não fizessem outra coisa mais do que aplicar regras jurídicas claras criadas pelos legisladores, pelos órgãos ou serviços administrativos, pelos constituintes e outras fontes extrajudiciais (incluindo a lex mercatória) a fatos que tanto juízes como jurados consideram comprovados sem mediar preconceitos, nem préconcepções”.
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Para mais informações sobre o realismo jurídico, ver: JORGE, 2012JORGE, Claudia Chaves Martins. Realismo Jurídico e Hart: um debate sobre a indeterminação do Direito. Rio de Janeiro: Lúmen Iuris, 2012.; LAURINDO, 2017LAURINDO, Marja Mangili. Entre Common Law e Civil Law: o poder judiciário brasileiro em tempos de neoconstitucionalismo e neoliberalismo. 2017. 147f. Dissertação (Mestrado em Direito) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Ciências Jurídicas, Programa de Pós-Graduação em Direito, Florianópolis, 2017..
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Quanto à metodologia empregada no levantamento das decisões, convém explicar que o período temporal abordado na pesquisa se concentrou entre 1999, ano em que a primeira decisão é encontrada, até outubro de 2022. Uma única decisão foi encontrada em 1986, mas que por estar fora do período de vigência da Constituição de 1988 foi retirada da série histórica, mesmo sendo mencionada no texto para fins de comparação. Assim também foram retiradas as decisões encontradas que não utilizam as categorias como limitadoras de garantias penais aos indígenas, mesmo tratando-se de matéria penal; e, de outra forma, as decisões que se utilizavam dessa categoria, mas tratavam-se de matéria distinta, também foram retiradas. As decisões, no âmbito do STF que se detiveram apenas na análise processual, mesmo não adentrando ao mérito, mas que em seu conteúdo traziam informações relativas à temática abordada na pesquisa, foram mantidas considerando a importância do conteúdo, sobretudo, do relatório da decisão. No total, foram encontradas 76 decisões sob as palavras chaves “índio”, “indígena”, integrado”, “integração”, “aculturado”, “aculturação”; que, após serem submetidas aos filtros explicitados, resultaram em 30 decisões que tiveram seu conteúdo analisado.
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Para composição do gráfico foram excluídos os anos em que não se registrou nenhuma decisão. Sobre o número de decisões encontradas em cada ano: 1999 (1); 2000 (0); 2001 (0); 2002 (0); 2003 (0); 2004 (0); 2005 (2); 2008 (2); 2009 (0); 2010 (0); 2011 (0); 2012 (0); 2013 (0); 2014 (0); 2015 (1); 2016 (0); 2017 (1); 2018 (2); 2019 (2); 2020 (3); 2021 (7); 2022 (9).
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Dispõe o § 1, do art. 489, do Código de Processo Civil (Lei n.º 13.105/2015): “Art. 489. São elementos essenciais da sentença: § 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: I - se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida; II - empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso; III - invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão; IV - não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador; V - se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos; VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.
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25
No mesmo sentido dispõe a ementa do RE 1252104/PR: “Art. 10 da Convenção 169 da OIT. inaplicabilidade. indígenas integrados à sociedade. [...]. Inaplicáveis as regras especiais do art. 56, caput, do Estatuto do Índio e do art. 10 da Convenção 169 da OIT - que é mais genérico do que dito estatuto -, quando os acusados, embora indígenas, são totalmente integrados à comunhão nacional, exercendo plenamente seus direitos civis.” (decisão monocrática, 2020).
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Precedentes: Conflito de Competência (CC) 575-MS (3ª S, 21.09.1989 — DJ 16.10.1989), CC 3.910-RO (3ª S, 17.12.1992 — DJ 1º.03.1993), CC 4.469-PE (3ª S, 17.06.1993 — DJ 02.08.1993), CC 5.013-RR (3ª S, 16.12.1993 — DJ 20.06.1994), CC 7.624-AM (3ª S, 16.06.1994 — DJ 05.12.1994), CC 8.733-MA (3ª S, 16.06.1994 — DJ 22.08.1994), RHC 706-RS (6ª T, 16.10.1990 — DJ 29.10.1990). Terceira Seção, em 18.05.1995, DJ 24.05.1995, p. 14.853. Disponível em: https://www.stj.jus.br/docs_internet/revista/eletronica/stj-revista-sumulas-2010_10_capSumula140.pdf.
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Como assevera decisão em ARE 1.358.462/MS: “Com efeito, o juiz é o destinatário das provas, cabendo a ele indeferir aquelas que considera inúteis, desnecessárias ou meramente protelatórias, além de determinar, de ofício, a realização dos atos que entender necessários; se as provas constantes nos autos são suficientes para formar o convencimento motivado do julgador a respeito da questão, torna-se prescindível a produção de outras provas”.
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A decisão referenciada menciona: “a nulidade, no entanto, não decorre propriamente da ausência de perícia, que pode ser dispensada (v.g., HC 79.530, 1ª T., 16.12.99, Ilmar Galvão, RTJ 172/582; e HC 85.198, 1ª T., 17.11.05, Eros Grau). Somente haverá nulidade se as perícias forem realmente necessárias. Certo, entenderam as instâncias de mérito que, por outros elementos, seria possível concluir tanto que os pacientes estavam absolutamente integrados, como que eram maiores de idade ao tempo do crime”.
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Cabe um esclarecimento de que, não é incomum também a verificação da aplicação da Súmula n.º 279, do STF, que em seu enunciado afirma que “para simples reexame de prova não cabe recurso extraordinário”. Ou seja, sem adentrar no mérito, acabam decidindo baseado estritamente em questões processuais. A exemplo: ARE 1.358.462/MS.
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Dispõe o art. 7º: “Os índios e as comunidades indígenas ainda não integrados à comunhão nacional ficam sujeito ao regime tutelar estabelecido nesta Lei. § 1º Ao regime tutelar estabelecido nesta Lei aplicam-se no que couber, os princípios e normas da tutela de direito comum, independendo, todavia, o exercício da tutela da especialização de bens imóveis em hipoteca legal, bem como da prestação de caução real ou fidejussória. § 2º Incumbe a tutela à União, que a exercerá através do competente órgão federal de assistência aos silvícolas”.
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De 1986 é também a seguinte ementa: 'HABEAS CORPUS'. INDIGENA. SE O ÍNDIO JÁ E ACULTURADO E TEM DESENVOLVIMENTO MENTAL QUE LHE PERMITE COMPREENDER A ILICITUDE DE SEUS ATOS, E PENALMENTE IMPUTÁVEL. RECURSO DESPROVIDO (RHC 64476, Rel. Carlos Madeira, data de julgamento: 10/10/1986; data de publicação: 31/10/1986).
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32
A distinção “que tenha por objeto ou resultado anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício em um mesmo plano (em igualdade de condições) de direitos humanos e liberdades fundamentais” é expressamente vedada na Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, ratificada pelo Decreto n.º 65.810, de 8 de dezembro de 1969. Sobre o tema, ver BARBOSA DA SILVA et al., 2019BARBOSA DA SILVA, Frederico Augusto; LUNELLI, Isabella Cristina. Subsídio ao relatório Brasil sobre o cumprimento da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (2003-2017): Povos Indígenas. Rio de Janeiro: IPEA, 2019,).
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Em seu voto, o Min. relator Carlos Ayres Britto assim se manifestou “[...] é direito dos indígenas [...] poder inteirar-se do modus vivendi ou do estilo de vida dos brasileiros não-índios, para, então, a esse estilo se adaptar por vontade livre e consciente. É o que se chama de aculturação, compreendida como um longo processo de adaptação social de um indivíduo ou de um grupo, mas sem a necessária perda da identidade pessoal e étnica. Equivale a dizer: assim como os não-índios conservam a sua identidade pessoal e étnica no convívio com os índios, os índios também conservam a sua identidade étnica e pessoal no convívio com os não índios, pois a aculturação não é um necessário processo de substituição de mundividências (a originária a ser absorvida pela adquirida), mas a possibilidade de experimento de mais de uma delas. É um somatório, e não uma permuta, menos ainda uma subtração”.
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Entrevista concedida à Carolina Santana em 10 de fevereiro de 2019, em Dourados/MS.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
19 Jun 2023 -
Data do Fascículo
Apr-Jun 2023
Histórico
-
Recebido
10 Abr 2023 -
Aceito
18 Abr 2023