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A maximização dos “inimigos descartáveis” pela crise sanitária da covid-19: o (seletivo) controle de fronteiras e a descartabilidade da vida do migrante como práticas biopolíticas do estado brasileiro

Maximizing the “disposable enemies” through the health crisis of covid-19: the (selective) control of borders and the disposable life of migrants as biopolitical practices of the brazilian state

Resumo

Os deslocamentos humanos foram diretamente impactados pelas medidas necropolíticas adotadas pelos Estados para conter a pandemia da COVID-19. O Brasil, especialmente, adotou medidas seletivas, excludentes típicas de um (permanente e generalizado) estado de exceção, que impactaram de forma severa e desproporcional em especial os migrantes de nacionalidade venezuelana. Como metodologia, utiliza-se o método dedutivo, partindo-se do estudo do controle seletivo de fronteiras como prática do estado de exceção e a compreensão do migrante internacional como um refugo humano, para, a partir disso, estudar a (des)proporcionalidade das medidas (necropolíticas) adotadas pelo Estado brasileiro para conter a expansão do novo coronavírus, em especial, a destinada aos fluxos venezuelanos ao país. Como método de procedimento, o histórico, e a técnica de pesquisa, a documentação indireta. Assim, evidenciou-se que por meio do controle seletivo de fronteiras o estado brasileiro buscou, como respostas à crise sanitária da COVID-19, oportunamente, impedir o acesso daqueles desinteressantes ao país e, em nome do controle e proteção de algumas “vidas superiores”, discriminou e promoveu a descartabilidade daquelas “inferiores”, como as de nacionalidade venezuelana.

Palavras-chave:
Brasil; Migrações Internacionais; Estado de exceção; Necropolítica; COVID-19

Abstract

Human displacements were directly impacted by the necropolitical measures adopted by States to contain the COVID-19 pandemic. Brazil, in particular, adopted selective, excluding measures typical of a (permanent and widespread) state of exception, which had a severe and disproportionate impact, especially on migrants of Venezuelan nationality. As a methodology, the deductive method is used, starting from the study of selective border control as a practice of the state of exception and the understanding of the international migrant as a human refuse, to, from this, study the (dis)proportionality of (necropolitical) measures adopted by the Brazilian State to contain the expansion of the new coronavirus, especially those aimed at Venezuelan flows to the country. As a method of procedure, the history and research technique are indirect documentation. Thus, it was evident that through selective border control, the Brazilian state sought, as responses to the COVID-19 sanitary crisis, opportunely to prevent the access of uninteresting people to the country and, in the name of control and protection of some "higher lives”, discriminated and promoted the disposability of those “inferior”, such as those of Venezuelan nationality.

Keywords:
Brazil; International migrations; State of exception; Necropolitics; COVID-19

Introdução

Os contornos do mundo foram dados e continuam sendo definidos pelas lógicas de movimentação tendo os deslocamentos humanos alcançado, nas últimas décadas, números expressivos. Muito embora sejam impulsionados pelas mais variadas razões, as migrações internacionais se dão, especialmente, pelas desigualdades sociais e exclusão do mercado de trabalho, consequências de um capitalismo avassalador e desenfreado.

As fronteiras, que sempre figuraram como expediente necessário para a manutenção da soberania dos Estados, passam a ter um papel decisivo na questão migratória: a fim de barrar o acesso desse “excedente populacional”, reforçam-se os instrumentos biopolíticos de controle e fiscalização nos postos de controle fronteiriços.

Normalizado o estado de exceção nas democracias contemporâneas, a guerra se tornou parte permanente do aparato estatal e a supressão de direitos tornou-se regra. A emergência da crise sanitária da COVID-19, constitui campo fértil para o acirramento de tais práticas, afetando de forma dramática a mobilidade internacional. O fechamento das fronteiras, a impossibilidade de regularização migratória diante da suspensão das atividades oficiais, a necessidade de buscar pelo mercado de trabalho informal para a sobrevivência e, consequentemente, a impossibilidade de realização das medidas profiláticas de prevenção da doença, acirraram as condições de vulnerabilidade dos migrantes.

A associação da doença com o estrangeiro, de forma a encontrar um “responsável” pela crise sanitária, constitui uma prática comum da história mundial, o que acirra discursos misóginos, xenofóbicos e contribuem para a construção do estigma do migrante internacional como um não-ser, como o Outro que não pode ocupar o mesmo espaço do Eu, do nacional, cidadão “protegido” pelo Estado.

Pelo Estado brasileiro, o enfrentamento da pandemia foi norteado a partir do negacionismo científico e pelo impasse entre o Presidente da República, a comunidade científica e as orientações dos Organismos Oficiais. O fechamento das fronteiras foi uma das primeiras medidas adotadas pelo país, especialmente, a proibição seletiva dos migrantes de nacionalidade venezuelana.

De uma forma geral, “em situações de normalidade”, os migrantes internacionais são destinatários diretos das práticas biopolíticas dos Estados: seja na sujeição às práticas securitárias nas fronteiras, no controle dos corpos e no gerenciamento da vida destes sujeitos no território nacional a partir do não reconhecimento da sua condição de sujeito de direitos. No Brasil, o entendimento de que o corpo do migrante está permanentemente sujeito ao controle do Estado se dá desde o período escravocrata, das políticas higienistas para a construção do país, na elaboração do Estatuto do Estrangeiro (e a sua vigência até o ano de 2017), até mesmo no recente Decreto regulamentador da Nova Lei de Migrações (Lei 13.445/17), que foi redigido em completa dissonância ao dispositivo legal, que demonstram que apesar do avanço temporal, ainda subsiste a compreensão da figura do estrangeiro enquanto mão-de-obra barata, um “não-ser”, controlável e permanentemente excluído de todos os aspectos da vida.

A postura do país no enfrentamento da crise sanitária da COVID-19, especialmente o fechamento de fronteiras e a seletiva (e até exclusiva) proibição de acesso aos migrantes venezuelanos, concretizou não apenas a realização desse controle populacional (biopolítico), mas também, aquilo que Achille Mbembe nomeou de “necropolítica”, que consiste no gerenciamento da morte das camadas subalternizadas, a partir da adoção de critérios racistas que selecionam as vidas em superiores e inferiores.

Neste sentido, o problema da presente pesquisa consiste em identificar a forma como ocorreu o gerenciamento da crise sanitária da COVID-19 pelo Estado brasileiro e o impacto de tais medidas nas migrações internacionais, em especial aos migrantes de nacionalidade venezuelana. A hipótese que se vislumbra inicialmente, é no sentido de que as respostas foram desproporcionais, seletivas e oportunas, a partir da adoção de critérios racistas, típicas de um controle necropolítico.

Para analisar a problemática arguida, este trabalho adota o método dedutivo, partindo da compreensão do migrante internacional como um “excedente populacional”, fruto e consequência das desigualdades promovidas pelo desenvolvimento do capitalismo para, enfim, estudar a resposta do Estado brasileiro à crise sanitária da COVID-19 e a (des)proporcionalidade das medidas (necropolíticas) destinadas à população migrante no enfrentamento da crise sanitária da COVID-19. . Como método de procedimento, utiliza-se o método monográfico e a técnica de pesquisa se dá a partir do uso da documentação indireta.

Por fim, o trabalho é dividido em três etapas: a primeira delas analisa a sujeição das migrações internacionais ao controle biopolítico dos Estados, especialmente diante do fortalecimento das fronteiras a partir da compreensão do migrante como “estranho”, na sequência, estuda-se o tratamento conferido ao migrante internacional pelo Estado brasileiro e, por fim, as práticas adotadas pelo Brasil no gerenciamento da crise sanitária da COVID-19 e os impactos de tais ações nos deslocamentos humanos para o país, em especial, o venezuelano.

1. A MOBILIDADE HUMANA SUJEITA AO CONTROLE BIOPOLÍTICO DOS ESTADOS: ENTRE MUROS, FRONTEIRAS E O DIREITO HUMANO DE MIGRAR

Os deslocamentos humanos são inerentes à humanidade, tendo sido os contornos do mundo dados (e permanentemente definidos) pelas lógicas de movimentação. Muito embora diversas sejam as razões que motivam tais deslocamentos, as consequências de um capitalismo avassalador e insaciável desempenham papel fundamental na motivação dos fluxos migratórios.

O atravessamento de fronteiras, na busca por fixar residência temporária ou permanente em país diverso da sua origem, impulsionado drasticamente nas últimas décadas, permitiu que esse fenômeno alcançasse números expressivos: de acordo com a Organização das Nações Unidas - ONU, o número de migrantes internacionais alcançou 281 milhões de pessoas no ano de 2020, contra os 173 milhões em 2000 e os 221 milhões em 2010. (IMDH, 2021).

As desigualdades sociais e econômicas, originadas a partir de estruturas políticas e econômicas que se retroalimentam a partir de ações humanas individuais e coletivas, impedem milhares de pessoas a viverem dignamente1 1 Neste sentido, Lélio Mármora (2010, p. 73) refere que os fluxos migratórios representam clara e direta consequência deste modelo desenvolvimentista, neoliberal e globalizante que, “por suas características assimétricas, monopolistas e excludentes, aprofundou o fosso econômico-social entre os países e dentro de alguns países que se tornaram grandes expulsores populacionais.” ”. . Conforme Éric Alliez e Maurizio Lazzarato (2021Éric Alliez; LAZZARATO, Maurizio. Guerras e Capital. Traduzido por Pedro Paulo Pimenta. São Paulo: Ubu Editora. 2021.),

a monetarização da economia permite conjurar a guerra civil e representa uma ameaça mortal para a polis e suas instituições, pois a apropriação e a acumulação ‘ilimitadas’ que a moeda carrega e libera, juntamente com os seus efeitos de captação, podem incrementar o ‘excesso de riqueza e de pobreza’. (ALLIEZ; LAZZARATO, 2021Éric Alliez; LAZZARATO, Maurizio. Guerras e Capital. Traduzido por Pedro Paulo Pimenta. São Paulo: Ubu Editora. 2021., p. 42)

O crescimento descontrolado de tais desigualdades promovem aquilo que Saskia Sassen (2016SASSEN, Saskia. Expulsões: brutalidade e complexidade na economia global. Tradução: Angélica Freitas. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 2016.) denomina de “uma forma brutal de expulsão” destes excedentes da população”2 2 De acordo com Saskia Sassen (2016, p. 21), “para aqueles que estão na parte mais baixa da escala, ou em sua metade pobre, isso significa a expulsão de um espaço de vida. Para os que estão no topo, parece ter significado o fim das responsabilidades como membros da sociedade por meio da autosseparação, a extrema concentração de riqueza disponível numa sociedade e a falta de inclinação a redistribuir essa riqueza”. , não absorvidos pela lógica desenvolvimentista do Capital. Neste sentido, é perversa a compreensão das migrações, exclusivamente, sob o prisma da voluntariedade, tendo em vista que a globalização se tornou a mais profícua e menos controlada “linha de produção” de “refugos humanos”3 3 Está-se diante de um mundo “global” seletivamente poroso para os diferentes tipos de trocas: aqueles que são destituídos de formas e meios de subsistência, não são reconhecidos como sujeitos e, portanto, são “excessivos”, redundantes”, “extranumerários” e, desnecessários. (BAUMAN, 2005) . (BAUMAN, 2005BAUMAN, Zygmunt. Vidas Desperdiçadas. Rio de Janeiro: Zahar, 2005)

Desta forma, diversas são as estratégias biopolíticas desenvolvidas pelos Estados visando o controle, monitoramento e exclusão de tais populações, desinteressantes aos Estados. Quando comparado a períodos anteriores, a resistência ao livre fluxo de pessoas é maior no mundo globalizado. Os direitos de residência e circulação, proclamados como universais no início da Idade Moderna, legitimaram as guerras de conquistas e a ocupação colonial. A fim de alcançar ritmo a esse processo de redistribuição global de populações, a colonização funcionou como uma tecnologia de regulação dos movimentos migratórios, pois, execrava aqueles tidos como supérfluos ou excedentes no seio das nações colonizadoras4 4 Conforme Achille Mbembe (2020, p. 81) “o repovoamento do mundo muitas vezes assumiu os contornos de incontáveis atrocidades e massacres, de experiências inéditas de ‘limpeza étnica’, de expulsões e transferências e reagrupamentos de populações inteiras em campos e até mesmo de genocídios. (...) O mundo colonial era um mundo cuja propensão a acomodar a destruição de seus objetos, incluindo os nativos, era alucinante. Acreditava-se que qualquer objeto, caso se perdesse, podia ser facilmente substituído por outro”. . (MBEMBE, 2020______. Políticas da Inimizade. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: n-1 edições. 2020.)

A partir do fim do século XIX e início do século XX, especialmente, o controle e regulação dos movimentos das pessoas dentro das fronteiras se intensificou, de forma que os Estados reservaram para si o monopólio do controle da mobilidade de forma a consolidar a identidade nacional (para tanto, utilizaram-se do registro dos lugares, da expedição de documentos, cédulas de identidade, passaportes, vistos de entrada, realização de censos, etc)5 5 No período entre a Primeira Guerra Mundial e até a Guerra Fria, tem-se uma alteração no cenário migratório: tem-se o fim do livre trânsito de trabalhadores, eis que, tanto pela guerra, como pela reconstrução dos países destruídos e de outros recentemente declarados independentes, a mão de obra havia se tornado, um bem ainda mais valioso, porém, concomitantemente, se revelado uma grave ameaça. (SICILIANO, 2016) . (VELASCO, 2016)

Como um dos principais fenômenos do século, o poder exercido sobre a vida e busca gerenciá-la integralmente, ao longo de todo o seu desenrolar. De acordo com Foucault (2010FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collége de France (1975-1976). Trad. Maria Ermantina Galvão. 2º ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes. 2010., p .213), o poder “conseguiu cobrir toda a superfície que se estende do orgânico ao biológico, do corpo à população, mediante o jogo duplo das tecnologias de disciplina, de uma parte, e das tecnologias de regulamentação, de outra6 6 O biopoder é fundamental para o desenvolvimento do capitalismo, uma vez que os fenômenos naturais (nascimento, reprodução, morte etc.) passam a ser ajustados e controlados para proporcionarem ganhos econômicos. (FOUCAULT, 2010) .”

O que está em jogo é a produção e reprodução da própria vida, ou seja, é um poder que regula a vida social por dentro, de forma integral, absorvendo-a e a rearticulando, seja por meio de leis ou políticas públicas destinadas à gestão da vida humana, para segundo Ariadna Estévez (2018, p. 10) “garantizar que la población, la sociedad en su dimensión existencial y biológica, mantenga su statu quo racial”.

Nesse sentido, compreender a imigração exige entender toda a arquitetura do Estado nacional. Ao condicionar a legitimidade da imigração aos interesses nacionais, determinando, seletivamente, quem está autorizado a entrar e permanecer em um determinado território, representa um tema fundamental de análise do biopoder. Nesse sentido refere Ariadna Estévez (2018, p.13), “a aquellos que amenazan la sobrevivencia de la mayoría se les deja morir al ser omitidos como objetos de política pública y otras tecnologías, como sucede, por ejemplo, con la negación de servicios de salud primaria a migrantes indocumentados”.

Criou-se, aquilo que Michel Foucher denominou de “obsessão por fronteiras”, especialmente após os ataques de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos, em que a migração passou a ser associada com práticas terroristas. Esse “novo risco”, impulsionou os Estados a reinvestirem nas suas funções eminentemente estatais e a segurança a qualquer preço, passou a figurar com prioridade na agenda política.

Trata-se de um terror de origem molecular e pretensamente defensivo que tenta se legitimar, turvando as relações entre violência, entre a liberdade, a perseguição e a segurança. A violência até então mais ou menos velada nas democracias, volta à tona e desenvolve um círculo mortífero. (MBEMBE, 2020______. Políticas da Inimizade. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: n-1 edições. 2020.)

Assim, os dispositivos de controle e violência sobre a população constituem extensões da guerra por outros meios7 7 Ainda referem os autores: “de fato, se há na acumulação primitiva uma estreita relação entre biopoder e guerra, a tal ponto que é impossível separá-los, resta que os dispositivos identificados por Foucault constituem, na realidade, o prolongamento das guerras de acumulação primitiva por outros meios. (ALLIEZ; LAZARRATO, 2021, p. 78) . Passa-se da guerra às guerras, uma sequência ininterrupta de guerras múltiplas que se dão no seio da população a partir de divisões próprias das práticas biopolíticas. (ALLIEZ; LAZZARATO, 2021Éric Alliez; LAZZARATO, Maurizio. Guerras e Capital. Traduzido por Pedro Paulo Pimenta. São Paulo: Ubu Editora. 2021.) Assim,

A economia-mundo acopla a seus dispositivos de poder certos saberes e uma nova concepção da “verdade” adequados às funções de controle e de governo das populações, adotando um “procedimento de controle contínuo” (é uma apropriação do corpo, e não do produto; é uma apropriação do tempo em sua totalidade, e não do serviço). É um modelo que se estenderá à superfície do globo como um todo. (ALLIEZ; LAZZARATO, 2021Éric Alliez; LAZZARATO, Maurizio. Guerras e Capital. Traduzido por Pedro Paulo Pimenta. São Paulo: Ubu Editora. 2021., p. 76)

Desta forma, a guerra, inscrita como “fim e como necessidade”, (MBEMBE, 2020______. Políticas da Inimizade. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: n-1 edições. 2020., p. 14), se revela indispensável para a organização política e exercício do poder, especialmente sobre o corpo do migrante. Enquanto phármakon, a guerra atua como remédio e veneno, simultaneamente, forçando as sociedades para fora da democracia e transformando-as em “sociedades da inimizade”, tal qual ocorrida com a colonização. (MBEMBE, 2020)

É um cenário de confinamento e separação institucionalizada no Estado-Nação que banaliza a violência segregadora em relação ao imigrante. Segundo Sayad (1998SAYAD, Abdelmalek. A imigração ou os paradoxos da alteridade. Tradução: Cristina Murachco. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. 1998., p.269), a imigração se prolonga por toda a vida e “isso é o mesmo que ser privado durante toda a vida do direito mais fundamental, o direito do nacional, o direito a ter direitos, o direito de pertencer a um corpo político, de ter um lugar nele.

A assunção da vida pelo poder, constitui uma ruptura com a clássica concepção de soberania, pois, outrora o soberano ao deter o poder em relação à vida e à morte do súdito, poderia fazê-lo morrer ou deixá-lo viver, agora, a fim de complementar o antigo direito de soberania, a biopolítica produz “um poder exatamente inverso: poder de ‘fazer’ viver e de ‘deixar’ morrer”. (FOUCAULT, 2010FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collége de France (1975-1976). Trad. Maria Ermantina Galvão. 2º ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes. 2010., p. 202).

Avançando na compreensão da biopolítica, Achille Mbembe (2020______. Políticas da Inimizade. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: n-1 edições. 2020.) afirma que as práticas violentas no controle populacional desenham um círculo mortífero, tendo em vista que a ordem política, em quase todos os lugares, reconstitui-se como forma de organização para a morte. Assim, está-se diante da necropolítica, pois a ordem política tem como “projeto central não a luta pela autonomia, mas a instrumentalização generalizada da existência humana e a destruição material de corpos humanos e populações”8 8 O Estado nazista foi o mais completo exemplo de um Estado exercendo o direito de matar. Ele é visto como aquele que abriu caminho para uma tremenda consolidação do direito de matar, que culminou no projeto da “solução final”. (FOUCAULT, 2010) . (MBEMBE, 2020______. Políticas da Inimizade. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: n-1 edições. 2020., p. 19)

Compreendendo que a morte está no centro da biopolítica, a preocupação teórica do autor reside nos modos pelas quais, na contemporaneidade, há a instrumentalização e produção da morte pelo Estado, uma vez que “vastas populações são submetidas a condições de vida que lhes conferem o status de ‘mortos-vivos’”. (MBEMBE, 2016, p. 141). O poder se manifesta, segundo o autor, na capacidade de ditar quem merece viver e quem deve morrer, exercendo-se, assim, total controle sobre a mortalidade9 9 A escravidão pode ser considerada uma das primeiras manifestações da experimentação biopolítica, segundo Mbembe (2018, p.27), “em muitos aspectos, a própria estrutura do sistema de plantation e suas consequências manifesta a figura emblemática e paradoxal do estado de exceção. (...) De fato, a condição de escravo resulta de uma tripla perda: perda de um ‘lar’, perda de direitos sobre o seu corpo e perda de estatuto político. Essa tripla perda equivale a uma dominação absoluta, uma alienação de nascença e uma morte social (que é a expulsão fora da humanidade).” .

Ariadna Estévez (2018) argumenta que, por serem elementos constitutivos de fenômenos sociais - como as migrações-, há estreita conexão entre a biopolítica e a necropolítica. Apesar dessa última ser responsável por produzir situações de morte e ser encontrada na violência criminal-estatal, é a biopolítica é a responsável por administrar a migração de pessoas que fogem de “cenários necropolíticos”. Segundo a autora,

“es común, pues, que em los estudios del biopoder y el necropoder el enfoque esté en la regulación de la vida racializada para dejar morir a los migrantes y preservar la vida de las mayorías a través de dispositivos y leyes que producen subjetividades determinadas. Las investigaciones del necropoder, en específico, examinan las expresiones de violencia espectacular y massiva que destruyen o mercantilizan cuerpos. De esta forma, el biopoder tiene expresiones jurídicas pero el necropoder no, porque se asume que las expresiones necropolíticas ocurren al margen de la ley -a través del Estado de excepción-, y no dentro de ella.” (ESTÉVEZ, 2018, p. 36)

Está-se diante de uma realidade que denuncia os limites estruturais do Estado moderno, como garantidor e promotor dos direitos humanos. Reduzidos a meros “objetos” de uma ação política, trata-se de vidas já negadas, perdidas ou, ainda que nunca tenham sido consideradas e, a manutenção deste status quo relega ao imigrante a qualidade de um “não-sujeito”, que ocupa um “não-lugar”.

Desta forma, não se pode tentar compreender o fenômeno migratórios sem considerar a arquitetura biopolítica dos Estados e as consequências de um capitalismo avassalador, que explora a mão-de-obra e expulsa os “não absorvidos” pelo sistema. Assim, as fronteiras, a brutalidade e a violência nas democracias se revelam especialmente, nas inúmeras construções sociais, políticas, culturais e simbólicas que excluem os migrantes da esfera pública e dos recursos comuns.

2. ENTRE O UTILITARISMO E A CONVENIÊNCIA: AS PRÁTICAS BIOPOLÍTICAS ADOTADAS PELO ESTADO BRASILEIRO NO TRATAMENTO AO MIGRANTE INTERNACIONAL

Um dos redutos em que o Estado sustenta a sua soberania, diz respeito à definição de seus cidadãos e de sua “comunidade política”. A homogeneidade da população e seu arraigamento no solo de um dado território passam a ser os requisitos do Estado-nação em toda parte. (ARENDT 2018ARENDT, Hannah. Liberdade para ser livre. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo. Trad. Pedro Duarte. Edição do Kindle. 2018.)

Os direitos passam a ser realizados no interior das fronteiras geográficas e políticas de cada Estado, levando Arendt (2018ARENDT, Hannah. Liberdade para ser livre. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo. Trad. Pedro Duarte. Edição do Kindle. 2018., p. 90), a afirmar que “um cidadão é, por definição, um cidadão entre cidadãos de um país entre países”. Nesse sentido, a partir de critérios de etnicidade, a homogeneidade étnica passou a ser encarada como condição vital para a construção de uma identidade nacional e para o consequente fortalecimento do Estado-nação.

Enquanto um modelo de Estado-nação europeu, o Estado brasileiro buscou a unicidade e consolidação do seu povo a partir da constituição de uma identidade homogênea e pertença única, atribuindo a titularidade do gozo do exercício dos direitos de cidadania (e da participação política) como uma prerrogativa do cidadão brasileiro nacional ou naturalizado.

Seguindo a lógica de um Estado-nação como único produtor jurídico, em uso monopolístico da soberania, a partir da modernidade, a vida natural começa a ser incluída nos mecanismos e nos cálculos do poder estatal, estando todos sujeitos ao poder de império do Estado, que faz da vida humana a base de sua própria soberania. Assim, o controle de nascimentos e o pertencimento a determinado grupo étnico, são considerados determinantes da vida política e da organização da sociedade politicamente organizada. (AGAMBEN, 2010)

Sob uma perspectiva histórica, identifica-se que a temática das migrações no Brasil é assentada em fundamentos de controle biopolíticos, de exclusão e descartabilidade da vida desta população. Isso pode ser evidenciado seja através dos projetos escravocratas, colonizadores, imigrantistas do século XIX, ou pelas posturas seletivas e excludentes dominantes no país no século XXI, o que permite inferir que a presença do estrangeiro no país, desde sempre, necessitou ser justificada para ser “tolerada” a partir dos interesses nacionais fundados no desenvolvimento econômico.

Dessa forma, o imigrante “ideal” era aquele que, além da questão racial10 10 A miscigenação representava um viés estritamente negativo: acreditava-se que os mestiços herdavam todas as características negativas de cada raça e, diante disso, o branqueamento da sociedade brasileira era imprescindível para a constituição de uma sociedade “pura”, “sadia”, desenvolvida e civilizada . (SEYFERTH, 2002). , contribuísse para o desenvolvimento econômico do país. Nesse sentido, Giralda Seyferth (2002SEYFERTH, Giralda. Colonização, imigração e a questão racial no Brasil. In: Revista USP. São Paulo, n.53, p. 117-149, março/maio 2002. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/33192 Acesso em: 14 de novembro de 2021.
https://www.revistas.usp.br/revusp/artic...
) refere:

Nesse caso, o melhor imigrante é aquele que não só se deixa assimilar, mas também se integra, pela mestiçagem, com os nacionais, cumprindo o desígnio do branqueamento. Aqui, assimilação é a mesma coisa que caldeamento ou fusão racial. Daí a conveniência da imigração lusitana, ou até mesmo da imigração italiana - segundo seus termos, menos perigosas por serem gentes latinas e mais assimiláveis. (SEYFERTH, 2002SEYFERTH, Giralda. Colonização, imigração e a questão racial no Brasil. In: Revista USP. São Paulo, n.53, p. 117-149, março/maio 2002. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/33192 Acesso em: 14 de novembro de 2021.
https://www.revistas.usp.br/revusp/artic...
, p. 131).

A perspectiva utilitarista do imigrante é uma característica estratégica do fundamento biopolítico do Estado que pode ser identificada no disposto pelo parágrafo único do artigo 16 do Estatuto do Estrangeiro (Lei 6.815/1980), que descreve o objetivo da imigração no país: “propiciar mão-de-obra especializada aos vários setores da economia nacional, visando à Política Nacional de Desenvolvimento em todos os aspectos e, em especial, ao aumento da produtividade, à assimilação de tecnologia e à captação de recursos para setores específicos”. (BRASIL, 1980)

A docilidade, outro elemento indispensável ao controle e gerenciamento populacional, também constituía um fim a ser perseguido pelo governo brasileiro, podendo ser demonstrado em face do temor pela insurgência contra o governo central e pela reivindicação de autonomia de determinadas nacionalidades de migrantes, como é o caso das migrações alemãs e japonesas. Assim é que, a partir de 1920, temendo o surgimento de uma economia, cultura e políticas paralelas no país, promoveu-se o enrijecimento das fronteiras brasileiras e, as políticas de “atração” se transformaram em políticas de controle a partir de leis profundamente autoritárias e restritivas.11 11 Isso pode ser evidenciado nos dispositivos legais que se utilizavam da expressão “estrangeiro” como uma conotação pejorativa, evidenciando que o migrante era um ser indesejável e “inimigo” da nação brasileira. Era proibido ao estrangeiro exercer qualquer atividade de natureza política; de organizar desfiles, passeatas, comícios e reuniões de qualquer natureza ou deles participar; ser representante de sindicato ou associação profissional; ou de entidade fiscalizadora do exercício profissional; possuir, manter ou operar, mesmo como amador, aparelho de rádio fusão, de radiotelegrafia e similar; ou ainda, prestar assistência religiosa a estabelecimentos de internação coletiva. (BRASIL, 1980) (WERMUTH, 2018)

Dessa forma, a busca pelo controle e docilidade populacional conduziu a elaboração do Estatuto do Estrangeiro (Lei nº 6.815 de 1980), que desumanizava o imigrante, negando-lhe os direitos básicos e fundamentais e os mantinha em situação constante de suspeição e à disposição de julgamentos de oportunidade e conveniência das autoridades administrativas.

Assentado em estratégias biopolíticas de controle da vida humana em sua dimensão coletiva, essa realidade reflete, nitidamente, as características de um estado de exceção, tal como ocorrido no período da escravidão, no processo imigratório e de urbanização das cidades, tais políticas desqualificavam as diferenças, de forma que estigmatizavam e excluíam o “outro” em detrimento da busca por um “nós” homogêneo, unívoco e fundado no pertencimento12 12 No início do século XXI, o país se tornou destino de fluxos migratórios variados, em especial os latino-americanos, africanos e asiático. Diferentemente das migrações do século XIX e até a década de 1930, em que os europeus (Norte-Global) constituíam os principais fluxos migratórios no país, no século XXI - especialmente no primeiro quinquênio da presente década- tem-se o incremento da mobilidade humana no cenário do Sul-Global, como, por exemplo, senegaleses, congoleses, angolanos, haitianos e venezuelanos, entre outros. .

Apesar de reconhecidamente retrógrado, autoritário e em pleno descompasso com o Estado Democrático de Direito, o Estatuto do Estrangeiro vigeu no país até o ano de 2017, servindo como respaldo legal no tratamento ao imigrante no país por mais de 37 anos. A busca por um novo diploma legal que considerasse a humanidade do imigrante a partir da garantia de direitos, foi um árduo caminho percorrido. O texto do projeto que culminou na edição da nova Lei (Lei 13.445/17), teve início no ano de 2013 e, desde a sua propositura, promoveu intensos debates assentados em argumentos conservadores em defesa da segurança nacional, do nacionalismo exacerbado e dos (supostos) riscos que o imigrante representa para o brasileiro. Quando submetido à sanção, o Projeto de Lei sofreu incontáveis vetos pelo Presidente da República a partir de argumentos conservadores, dentre eles, o veto acerca da possibilidade de o imigrante exercer, no país, função, emprego ou cargo público, sob a justificativa de que “afrontaria a Constituição Federal”. (AGÊNCIA SENADO, 2017)

A nova Lei, muito embora atenda a uma demanda histórica, traga respostas à temática migratória que considerem a centralidade dos Direitos Humanos e reconheça a migração como um direito inalienável de todas as pessoas (artigo 3º, XX), deixou de contemplar a garantia de importantes direitos fundamentais, como o direito à participação política dos migrantes. Igualmente, ainda é presente a previsão de procedimentos de regularização altamente burocratizados e previsão de multa por estada irregular (artigo 109, incisos II e III).

Isso demonstra que mesmo após a adequação da lei ao arcabouço jurídico nacional e internacional, a arbitragem sobre o corpo do migrante ainda se mantem presente. Cristiane Maria Sbalqueiro Lopes (2020LOPES, Cristiane Maria Sbalqueiro. In: FRIEDRICH, Tatyana Scheila; SOUZA, Isabella Louise Traub Soares de; CRUZ, Taís Vella (Orgs.). Comentários à Lei 13.445/2017: a Lei de Migração. Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2020. Disponível em: https://www.editorafi.org/15comentarios Acesso em: 20 de novembro de 2021.
https://www.editorafi.org/15comentarios ...
), alerta que é preciso ter em mente que,

embora a ideologia que sustentou o antigo estatuto do estrangeiro tenha sido superada no texto da nova Lei de Migração, não se pode afirmar que tenha sido varrida das mentes e corações de uma maneira definitiva. Lamentavelmente, neste ano de 2020, o que vemos é o recrudescimento de posturas xenófobas, racistas, supremacistas e excludentes que, definitivamente, desautorizam o cultivo a solidariedade, que deveria ser a mola mestra de um Estado que se pretende “social”. (LOPES, 2020LOPES, Cristiane Maria Sbalqueiro. In: FRIEDRICH, Tatyana Scheila; SOUZA, Isabella Louise Traub Soares de; CRUZ, Taís Vella (Orgs.). Comentários à Lei 13.445/2017: a Lei de Migração. Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2020. Disponível em: https://www.editorafi.org/15comentarios Acesso em: 20 de novembro de 2021.
https://www.editorafi.org/15comentarios ...
, p. 17)

A manutenção do estado de exceção sobre o corpo do migrante também resta evidenciado a partir do Decreto regulamentador da Lei, o de n. 9.199/2017 que, alheio ao debate que acompanhou o longo processo de elaboração do novo diploma, desvirtua o espírito da nova lei. O texto utiliza-se do termo “clandestino” (artigo 172), ignorando o entendimento de que nenhum ser humano pode ser considerado ilegal, assim como, prevê a possibilidade de prender o deportando (contrário ao artigo 123 do Lei). Outrossim, o Decreto é omisso em relação a criação da Política Nacional sobre Migrações, Refúgio e Apatridia (previsto no artigo 120 da Lei), que prevê a regra de participação da sociedade civil, bem como de outros atores sociais e governamentais.

Tais disposições demonstram a fragilidade do tema, que apesar de elaborada após amplo debate democrático foi desvirtuada pelo pensamento autoritário do Poder Executivo. Segundo Ramos el al (2017RAMOS, André de Carvalho; et al. Regulamento da nova Lei de Migração é contra legem e praeter legem. Consultor Jurídico: Boletim de notícias ConJur. 2017. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-nov-23/opiniao-regulamento-lei-migracao-praetem-legem Acesso em: 20 de fevereiro de 2021.
https://www.conjur.com.br/2017-nov-23/op...
, s.p), representa “uma grave ameaça a conquistas históricas, tanto no que se refere ao direito dos migrantes como no que tange à capacidade do Estado brasileiro de formular políticas adequadas em relação a esta matéria de relevância crescente”.

O Decreto, desta forma, de acordo com Maiquel Dezordi Wermuth (2020WERMUTH, Maiquel Dezordi. As políticas migratórias brasileiras do século XXI: uma leitura biopolítica do movimento pendular entre democracia e autoritarismo. Revista Direito e Práxis. Rio de Janeiro. Vol. 11, N. 4, Out./Dec. 2020. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S2179-89662020000402330&script=sci_arttext&tlng=pt
https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S21...
, p. 108), “evidencia um ‘ranço’ autoritário que não se coaduna com o ambiente de um Estado Democrático de Direito que tem justamente na dignidade da pessoa humana, um dos seus pilares de sustentação”. Ou seja, muito embora a “guinada democrática” tenha ocorrido nos anos 1980, com a vigência de uma Carta Constitucional vanguardista assentada em direitos e garantias fundamentais, assim como, a ratificação da integralidade dos tratados internacionais de proteção aos direitos humanos pelo país, a percepção do migrante enquanto “estrangeiro” e a consequente negação de direitos, ainda é dominante no imaginário estatal e social.

Isso é alarmante, especialmente quando as ações do Estado brasileiro são analisadas em conjunto, por exemplo, com o rompimento do país com o Pacto Global sobre Migração Segura, Ordenada e Regular, da ONU em 2019, desconsiderando a importância global do tema e atinente à toda comunidade internacional.

Na prática, os recentes fluxos migratórios para o país, os de origem latino-americanos, têm sua vulnerabilidade agravada pelas medidas adotadas pelo Brasil. Em razão da permeabilidade das fronteiras que integram os países da América Latina, num contexto de integração econômica regional, haitianos, venezuelanos, paraguaios, argentinos e bolivianos constituem as principais nacionalidades de migrantes no país. (CAVALCANTI et al, 2020CAVALCANTI, L.; OLIVEIRA, W. F. Os efeitos da pandemia de COVID-19 sobre a imigração e o refúgio no Brasil: uma primeira aproximação a partir dos registros administrativos. In. Cavalcanti, L; Oliveira, T.; Macedo, M., Imigração e Refúgio no Brasil. Relatório Anual 2020. Série Migrações. Observatório das Migrações Internacionais; Ministério da Justiça e Segurança Pública/ Conselho Nacional de Imigração e Coordenação Geral de Imigração Laboral. Brasília, DF: OBMigra, 2020.)

Destacam-se os migrantes de nacionalidade haitiana, que não foram reconhecidos pelo Estado brasileiro na condição de refugiados - mesmo após o devastamento do território pelo terremoto ocorrido em 2010 e, em 2016, atingido por um furacão. As respostas oferecidas pelo Estado brasileiro (“visto humanitário”)13 13 Ver Resolução Normativa n. 08/2006 do Conselho Nacional de Imigração -CNIg. A insegurança a que estavam submetidos, pode ser evidenciada pela Resolução Normativa n. 97, de 12 de janeiro de 2012, do CNIg, que limitava o tempo de permanência no território brasileiro (máximo de 5 anos, conforme), bem como, restringia a concessão de vistos (somente 1200 vistos anuais). Após incontáveis críticas e pressões da sociedade civil, por meio da Resolução Normativa n. 102/2013, eliminou-se o limite de Vistos estabelecido naquela Resolução e tornou possível a concessão do Visto de Permanência por outros Consulados brasileiros, inclusive em outros países. Concomitantemente, voltou-se a utilizar a solicitação de refúgio como forma inicial de regularização da situação migratória dos haitianos no Brasil. (SILVA; JULIBUT, 2015) acirraram a vulnerabilidade desta população, mantendo-os reféns da discricionariedade do governo, uma vez que a medida não encontrava respaldo um direito legalmente assegurado.

Mais recentemente, a população venezuelana, desde o ano de 2015, ganhou destaque na mídia nacional e internacional. O Brasil, enquanto um dos destinos destes migrantes, esteve inerte no enfrentamento da questão até o ano de 2018, tendo sido tomadas as primeiras providências somente após a divulgação do (suposto) caos promovido pela imigração.14 14 No ano de 2018, o Governo Federal deu início ao programa de interiorização dos migrantes venezuelanos por meio da intitulada “Operação Acolhida", estruturada sob três pilares: ordenamento da fronteira (documentação, vacinação e operação controle do Exército Brasileiro); acolhimento (oferta de abrigo, alimentação e atenção à saúde); interiorização (deslocamento voluntário de migrantes e refugiados venezuelanos de Roraima para outras Unidades da Federação, com objetivo de inclusão socioeconômica). (BRASIL, 2018)

A percepção irreal da situação migratória esteve assentada em narrativas que buscavam dar uma dimensão dos volumes dos fluxos migratórios bem superior ao que sinalizavam as evidências empíricas do fenômeno. (BRIGNOL, et al, 2020BRIGNOL, Liliane Dutra; CURI, Guilherme; RIBEIRO, Bibiana Pinheiro; TEIXEIRA, Leandra Cruber. A Representação midiática dos migrantes venezuelanos na mídia brasileira: uma análise dos portais Folha De São Paulo e Gaúchazh. In: REDIN, Giuliana (Org.). Migrações internacionais: experiências e desafios para a proteção e promoção de direitos humanos no Brasil. Recurso eletrônico. Santa Maria, RS: Ed.UFSM, 2020. Disponível em: https://editora.fgv.br/produto/migracoes-internacionais-experiencias-e-desafios-para-a-protecao-e-promocao-de-direitos-humanos-no-brasil-3549
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) A difusão da ideia de desordem, superpovoamento e da violência, promoveram discursos políticos xenofóbicos e misóginos que, visavam a defesa da pátria e do cidadão brasileiro. Como medida única e exclusiva, o fechamento da fronteira Brasil-Venezuela, era a necessário para “recuperar a ordem” no país, que acabou legitimando práticas violentas contra a população venezuelana que se encontrava no país15 15 Como as ocorridas no ano de 2018 por um grupo de brasileiros que, munidos de um nacionalismo desenfreado, ateou fogo em um abrigo de venezuelanos, em Pacaraima (Roraima), ou então os protestos na fronteira dos países por brasileiros que, orgulhosos, entoaram o hino nacional, a fim de evidenciar que os migrantes não eram desejados. .

O controle de fronteiras para barrar a imigração e (supostamente) estabelecer a “ordem social e econômica”, além de ineficaz, contribui, inexoravelmente, para alimentar o temor público que tem na figura do migrante um vilão, capaz de comprometer o modo de vida confortável das pessoas (nacionais) ou, até mesmo, responsável por colapsar um país. O pânico moral se instaura na sociedade de tal forma, que alimenta a retórica de criminalização das migrações, reiterando, diuturnamente no imaginário social, o estigma do imigrante como um alienígena, um não sujeito, um “não humano”. Nesse mesmo sentido, referem Brignol et al (2020BRIGNOL, Liliane Dutra; CURI, Guilherme; RIBEIRO, Bibiana Pinheiro; TEIXEIRA, Leandra Cruber. A Representação midiática dos migrantes venezuelanos na mídia brasileira: uma análise dos portais Folha De São Paulo e Gaúchazh. In: REDIN, Giuliana (Org.). Migrações internacionais: experiências e desafios para a proteção e promoção de direitos humanos no Brasil. Recurso eletrônico. Santa Maria, RS: Ed.UFSM, 2020. Disponível em: https://editora.fgv.br/produto/migracoes-internacionais-experiencias-e-desafios-para-a-protecao-e-promocao-de-direitos-humanos-no-brasil-3549
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)

O medo ao outro, ao estrangeiro migrante, e a compreensão de diferença étnica e nacional demonstram ser assim construções discursivas, narrativas jornalísticas, sócio-históricas, culturais, repletas de significados flutuantes, argumentos políticos, não autônomos ou estáticos, mas móveis, que, em última instância, acarretam privilégios ou exclusões sociais. (BRIGNOL, et al, 2020BRIGNOL, Liliane Dutra; CURI, Guilherme; RIBEIRO, Bibiana Pinheiro; TEIXEIRA, Leandra Cruber. A Representação midiática dos migrantes venezuelanos na mídia brasileira: uma análise dos portais Folha De São Paulo e Gaúchazh. In: REDIN, Giuliana (Org.). Migrações internacionais: experiências e desafios para a proteção e promoção de direitos humanos no Brasil. Recurso eletrônico. Santa Maria, RS: Ed.UFSM, 2020. Disponível em: https://editora.fgv.br/produto/migracoes-internacionais-experiencias-e-desafios-para-a-protecao-e-promocao-de-direitos-humanos-no-brasil-3549
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, p. 204)

Nesse sentido, é imprescindível que se questione acerca da produção e manutenção de certas concepções excludentes de quem é considerado normativamente humano. Judith Butler (2018BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Trad. Sérgio Tadeu de Niemeyer Lamarão e Arnaldo Marques da Cunha. 5ªed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2018.), questionando acerca da importância da vida dos migrantes e refletindo sobre a distribuição diferencial da condição de ser passível de luto, afirma que somente algumas vidas são dignas de proteção contra a destruição, enquanto outros, por sua vez, são relegadas à destruição. De acordo com Butler (2018, p. 38), “a questão não é saber se determinado ser é vivo ou não, nem se ele tem o estatuto de ‘pessoa’; trata-se de saber, se as condições sociais de sobrevivência e prosperidade são ou não possíveis.”

Escancaram-se, com isso, os privilégios e o interesse do Estado na proteção e manutenção somente de determinadas vidas, atribuindo ao imigrante o espaço do não-ser. O uso de mecanismos biopolíticos (ou necropolíticos) que categorizam a pessoa humana em raças superiores -e, portanto, passíveis de luto e, de outro lado, inferiores e destrutíveis. Segundo Mbembe (2020______. Políticas da Inimizade. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: n-1 edições. 2020., p. 68) trata-se de “vidas supérfluas, cujo preço é tão baixo, que não possui equivalência própria, nem em termos mercantis, muito menos em termos humanos.”

Desta forma, as movimentações humanas dizem muito sobre como a vida é percebida e como ela define padrões de normalidade para as pessoas, de forma a categorizá-las e determinar atributos comuns e naturais dos indivíduos. Quando não há o preenchimento destes requisitos- nesse caso, a legalidade ou a nacionalidade-, o sujeito insere-se nesse não-espaço, na invisibilidade social, institucional, econômica etc.

3. A PANDEMIA DA COVID-19 E A MAXIMIZAÇÃO DOS “INIMIGOS DESCARTÁVEIS”: O TRATAMENTO DISPENSADO AOS MIGRANTES INTERNACIONAIS PELO ESTADO BRASILEIRO

Se já vivíamos, no Brasil, a maximização dos inimigos descartáveis, por meio da lógica das múltiplas guerras de subjetividade e, consequentemente, da “construção forjada” dos inimigos sociais, a pandemia do novo coronavírus alargou ainda mais o espaço de discriminação e exclusão do não-nacional.

Inicialmente localizado na cidade de Wuhan, na China, o novo coronavírus logo se espalhou pelo mundo e, até o final do ano de 2021, atingiu 210 países e territórios e contaminou cerca de 270.155.054 pessoas no mundo, contabilizando, ainda, 5.305.991 milhões de óbitos. Somente no Brasil, durante o mesmo período, há o registro de 22.193.479 pessoas contaminadas e ocasionou 617.095 óbitos em decorrência da doença.

Para o enfrentamento do novo inimigo mundial, foram normalizadas medidas, instrumentos e dispositivos excepcionais, de forma que, as respostas efetivas somente ocorreriam por meio da gestão populacional, de vida e de morte. Agamben (2020______. Reflexões sobre a peste. São Paulo: Boitempo Editorial. Versão Kindle. 2020.) publicou uma série de textos durante o cenário pandêmico refletindo sobre o novo coronavírus como um campo fértil para a institucionalização do estado de exceção e da difusão do medo coletivo como estratégia oportuna aos governos na supressão e violação de direitos.

A decretação da exceção é prevista na Constituição Federal de países democráticos, como uma resposta do Estado a eventos extremos. Diante disso, a limitação da liberdade imposta pelos governos, se torna aceitável em nome de um desejo de segurança que “reduz a vida a uma condição puramente biológica que perdeu qualquer dimensão não apenas social e política, mas humana e afetiva”.

Proteger o Estado de Direito, portanto, exige violentar a própria lei ou a constitucionalizar aquilo que está fora do direito, materializando, assim, o estado de exceção Agambeniano. Há a flexibilização dos direitos e garantias individuais e, de acordo com Bauman (2006, p.37), “tudo aquilo que costumávamos associar à democracia, como a liberdade pessoal de falar e de agir, o direito à privacidade, o acesso à verdade, choca-se com a necessidade suprema de segurança e, portanto, deve ser cortado ou suspenso”.

Governos, instituições e população naturalizam a gestão da vida em nome da sobrevivência, evidenciando que a soberania estatal depende da exceção para o controle populacional, para a captura da vida por completo sendo, propriamente, a “forma legal daquilo que não tem forma legal” (AGAMBEN, 2004AGAMBEN, Giorgio. Não à tatuagem biopolítica. São Paulo. Jornal Folha de São Paulo. 2004. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft1801200404.htm Acesso em: 15 de novembro de 2021.
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/...
).

Nesse sentido, a emergência da crise sanitária da COVID-19 constitui uma justificativa plausível para os decretos de exceção. A promulgação de decretos de proibições, suspensões e isolamento previstos por “razões de higiene e segurança pública” não são mais que os efeitos da normatização dos regimes de exceção nas democracias contemporâneas, sendo esse um dos fatores que, segundo o autor, levam a democracia à ruína. (AGAMBEN, 2020______. Reflexões sobre a peste. São Paulo: Boitempo Editorial. Versão Kindle. 2020.)

Muito embora as orientações da Organização Mundial da Saúde - OMS tenham sido no sentido da desnecessidade do fechamento de fronteiras, tal prática foi adotada mundialmente. Segundo a Organização do Turismo Mundial - Agência Especializada das Nações Unidas, identificou que em abril de 2020, 96% de todos os destinos em todo o mundo introduziram restrições de viagens.

Historicamente, a fim de salvaguardar a soberania dos Estados, as fronteiras constituem formas primitivas de afastamento dos inimigos e de todos que não sejam dos “nossos”. A associação da “doença” com o “estrangeiro, acompanha a história das epidemias e reforça a discriminação dos migrantes. Estudos históricos sobre as grandes epidemias revelam que o primeiro impulso das pessoas é o de nomear supostos culpados, provavelmente como forma de tornar compreensível um fenômeno que parece inexplicável, sobretudo quando se trata de uma doença desconhecida. E neste cenário, em geral, os potenciais culpados são os viajantes, os estrangeiros ou qualquer pessoa que não se encontre perfeitamente integrada à comunidade em questão. (VENTURA; YUJRA, 2019VENTURA, Deisy; YUJRA, Veronica. Saúde de migrantes e refugiados. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz. 2019.)

Todavia, dificultar ou impedir o acesso legal pelas fronteiras, além de não impedir os deslocamentos, contribui decisivamente para o aumento da migração irregular, tornando os deslocamentos mais perigosos e arriscados, uma vez que, capazes de contribuir para a propagação de doenças pela absoluta ausência de controle de sua presença no território e, consequentemente, sem possibilidade de realizar o controle sanitário16 16 Como pode ser exemplificado a partir do naufrágio de venezuelanos ocorrido no final do ano de 2020, a caminho de Trinidad e Tobago. . (VENTURA, 2016)

Ademais, sob a justificativa de impedir a disseminação da doença, o cenário se revelou oportuno para impedir o acesso dos seletivamente indesejáveis, como é o caso dos migrantes internacionais. As medidas adotadas pelo Estado brasileiro - típicas de um cenário de exceção e a partir da edição de incontáveis e sucessivas Portarias Interministeriais, desconsideraram preceitos legais, constitucionais e internacionais, visando, oportunamente, salvaguardar os interesses da nação.

Dentre as restrições de entrada ao país, destacam-se as proibições de acesso elaboradas especificamente à população venezuelana, constantes nas Portarias de nº 120 e 158 que, oportunamente, restringiram o acesso ao país e a circulação em cidades fronteiriças de migrantes venezuelanos. A justificativa da restrição, segundo o artigo 3º da Portaria n. 120 consistiu diante da dificuldade de impedir a disseminação do vírus e pelas “dificuldades de o Sistema Único de Saúde brasileiro comportar o tratamento de estrangeiros infectados pelo coronavírus SARS-CoV”. (BRASIL, 2020)

Na sequência, em Portaria que restringiu, temporariamente, o acesso de estrangeiros, de qualquer nacionalidade, ao país, (Portaria Conjunta n. 255, de 22 de maio de 2020), novamente os migrantes de nacionalidade venezuelana encontraram previsão específica: ao dispor das exceções às proibições de acesso (artigo 4º), a Portaria destacou que estas não eram aplicáveis aos estrangeiros venezuelanos.

Impõe destacar que à época da Portaria, dados indicavam pouco mais de 40 mil casos confirmados e cerca de 350 óbitos decorrentes da doença, ou seja, média melhor que muitos outros países da América Latina e que faziam fronteira com o Brasil. Conforme os dados oficiais, a Venezuela permanece com a melhor situação dos países fronteiriços com o Brasil, contabilizando 544 mil casos confirmados e 5.814 óbitos em decorrência da doença . Dessa forma, pode-se inferir que a situação da Venezuela estava (e está) longe de constituir uma grave ameaça sanitária ao Brasil. (DASA ANALYTIC, 2021)

As medidas, além de discriminatórias e xenofóbicas, desconsideraram a grave crise política, econômica e social que assolava o país. As medidas desproporcionais atingiram também os venezuelanos que já estão no Brasil, tanto em processo de regularização migratória, ou portadores do visto humanitário, quanto aqueles reconhecidos como refugiados no país, caso decidam retornar a Venezuela, o reingresso no Brasil estava impossibilitado.

Assim, a prática seletiva, misógina e discriminatória do governo brasileiro, se evidencia especialmente pela inclusão dos migrantes venezuelanos na “exceção das exceções”17 17 Art. 4º A restrição de que trata esta Portaria não se aplica ao: I - brasileiro, nato ou naturalizado; II - imigrante com residência de caráter definitivo, por prazo determinado ou indeterminado, no território brasileiro; III - profissional estrangeiro em missão a serviço de organismo internacional, desde que devidamente identificado; IV - passageiro em trânsito internacional, desde que não saia da área internacional do aeroporto e que o país de destino admita o seu ingresso; V - funcionário estrangeiro acreditado junto ao Governo brasileiro; e VI - estrangeiro: a) cônjuge, companheiro, filho, pai ou curador de brasileiro; b) cujo ingresso seja autorizado especificamente pelo Governo brasileiro em vista do interesse público ou por questões humanitárias; e c) portador de Registro Nacional Migratório. VII - transporte de cargas. §5º: As hipóteses de que tratam o inciso II e as alíneas "a" e "c" do inciso VI do caput não se aplicam a estrangeiros provenientes da República Bolivariana da Venezuela. (BRASIL, 2020) , demonstrando a sistemática negação de direitos e proteção estatal. A discriminação da população venezuelana também ocorre quando nova Portaria impediu a circulação de Venezuelanos residentes em Santa Elena de Uairén, única cidade-gêmea venezuelana que faz fronteira com o Brasil, mesmo que os venezuelanos portassem o documento de residente fronteiriço. Essa é a única exceção entre todas as demais fronteiras brasileiras (artigo 5º, § 1º).

A abertura das fronteiras para estrangeiros, por sua vez, se deu no mês de julho do ano de 2020, porém, foram mantidas as restrições de ingresso pelas vias terrestres e por transporte aquaviário, ou seja, impediu-se o acesso daqueles mais necessitados economicamente e em condições de grave vulnerabilidade (Portaria n. 652, de 2021), como é o caso dos Venezuelanos. Assim, ao migrante pobre no processo socioeconômico e, consequentemente, mais necessitado da proteção estatal, o país fecha as portas e encerra as atividades de regularização migratória; em contrapartida, aquele que dispõe de meios econômicos suficientes para ingressar no país por via aérea e aqui se manter financeiramente, está permitido seu ingresso.

Desta forma, tais medidas se mostram exacerbadas, violadoras dos direitos dos migrantes e excederam o exercício do poder regulamentar, pois restringiram um direito previsto em lei, qual seja, o artigo 49 da Lei 13.445/17, que objetiva a proteção de grupos vulneráveis específicos (ao menor de dezoito anos desacompanhado ou separado de sua família, ou a quem necessite de acolhimento humanitário ou, ainda, à pessoa em situação de refúgio ou de apatridia).

Muito embora o enfrentamento de uma crise sanitária carregue consigo inúmeras dificuldades e exija a adoção de medidas excepcionais, o tratamento dispensado aos venezuelanos se defrontou, com toda a legislação nacional sobre as migrações, com a vasta gama de tratados internacionais sobre Direitos Humanos ratificados pelo Brasil e, contraria, especialmente, a prática humanitária realizada por meio da Operação Acolhida, criada no ano de 2018 com o fim de receber com dignidade os migrantes e refugiados venezuelanos, fugidos da Venezuela em face da grave crise político-econômica lá instaurada.

Em abril de 2022, por meio da Portaria nº 670 foi instituída nova política de restrição do trânsito internacional de viajantes: tornou obrigatória a apresentação do comprovante de imunização completa para todos os indivíduos elegíveis à vacinação e que pretendam ingressar no Brasil. Segundo informações da OMS, 63% da população mundial já está vacinada, porém, 21 países - a maioria no continente africano- ainda não vacinaram nem 10% da população. Curiosamente são países pobres no desenvolvimento socioeconômico, o que reforça a afirmação de que não se está diante somente de uma crise sanitária global, mas, também, de uma crise humanitária, que escancara as desigualdades mundiais, na garantia e no acesso à saúde às questões econômicas, sociais, etc. (OPAS, 2022)

O biopoder do Estado se escancara tanto pelas medidas de restrição da mobilidade humana, quanto pelas violações dos direitos dos migrantes que já se encontram no país, como, por exemplo, as dificuldades para obtenção do auxílio emergencial, para cujo processamento exige-se o número de CPF do requisitante, e, durante a pandemia, a emissão de CPF ficou prejudicada devido à suspensão dos serviços presenciais na Polícia Federal.

A seletividade das vidas que importam e das que não importam, se evidenciam, também, com a lenta e burocrática tramitação do Projeto de Lei nº. 2.699, apresentado à Câmara dos Deputados, no mês de maio de 2020 e que até hoje não foi votado. Busca-se, a partir de tal Projeto, instituir “medidas emergenciais de regularização migratória no contexto da pandemia de COVID-19”. Reconhecendo que a população migrante foi afetada de maneira diferenciada pela pandemia, especialmente pela dificuldade de acesso a serviços e políticas públicas, o Projeto de Lei prevê a autorização de residência ao imigrante que ingressou no território nacional até a data de início de vigência da Lei, independentemente de sua situação migratória prévia e assim o requeira. (artigo 1º)

Isso tudo permite reforçar que a situação de vulnerabilidade dos migrantes foi (e está sendo) maximizada neste cenário de “guerra” ao novo coronavírus18 18 De acordo com Butler (2018, p. 85), “(...)certos tipos de corpos parecerão mais precariamente que outros, dependendo de que versões do corpo, ou da morfologia em geral, apoiam ou endossam a ideia da vida humana digna de proteção, amparo, subsistência e luto. Esses enquadramentos normativos estabelecem de antemão que tipo de vida ser digna de ser vivida, que vida será digna de ser preservada e que vida será digna de ser lamentada.” . Ademais, reiteram a postura histórica brasileira em utilizar-se de critérios seletivos e excludentes para agir em conformidade com os interesses da administração pública, reforçando o estigma do estrangeiro como um não-sujeito e pertencente a uma “raça inferior”.

A dicotomia “nós-eles” e a ideia de que é do “nacional” a legitimidade da presença nos Estados, são potencializadas, ao passo que, o não nacional, sempre precisa legitimar-se, uma vez que não é natural e legítima sua presença por si mesma. (SAYAD, 1998SAYAD, Abdelmalek. A imigração ou os paradoxos da alteridade. Tradução: Cristina Murachco. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. 1998.). Dessa forma, os migrantes não aparecem como “vidas”, mas como uma ameaça à vida. Segundo Butler (2018BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Trad. Sérgio Tadeu de Niemeyer Lamarão e Arnaldo Marques da Cunha. 5ªed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2018.), temos que aceitar a ideia de que

nossa própria sobrevivência depende não do policiamento de uma fronteira - e a estratégia de determinado país soberano em relação ao seu território-, e sim do reconhecimento da nossa estreita relação com os outros, então isso nos leva a reconsiderar nossa maneira de conceituar o corpo no campo da política. (BUTLER, 2018BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Trad. Sérgio Tadeu de Niemeyer Lamarão e Arnaldo Marques da Cunha. 5ªed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2018., p. 84)

A dogmática jurídica e o próprio Estado de Direito não são capazes de oferecer respostas ao cenário dinâmico, globalizado e heterogêneo. É um movimento de culmina na produção de um quadro de indistinção entre direito e violência, responsável pela produção de vidas que se encontram vulneráveis às mais diferentes formas de violência. (WERMUTH, 2020WERMUTH, Maiquel Dezordi. As políticas migratórias brasileiras do século XXI: uma leitura biopolítica do movimento pendular entre democracia e autoritarismo. Revista Direito e Práxis. Rio de Janeiro. Vol. 11, N. 4, Out./Dec. 2020. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S2179-89662020000402330&script=sci_arttext&tlng=pt
https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S21...
)

Dessa forma, o modo como a vida é mantida depende, fundamentalmente, das redes sociais e políticas em que o corpo vive e, conforme referido anteriormente, a pandemia no novo coronavírus legitimou a adoção de práticas necropolíticas a partir do controle e “proteção” de vidas vivíveis que importam ao Estado e, por outro lado, do descarte daquelas que não o são.

Conclusão

Os fluxos migratórios promovem a reordenação do espaço público idealizado pelo projeto do Estado-nação, de forma que o nacional o compartilha com o “estrangeiro”, promovendo um espaço diversificado social e culturalmente. Muito embora possuam as mais diversas motivações, o destaque se dá para aqueles deslocamentos humanos que são fruto da exclusão e das desigualdades promovidas pelo avançar do capitalismo. Aquelas minorias não absorvidas pela estrutura capitalista, são “refugos”, “extranumerários” e, portanto, desinteressantes tanto ao Estado de origem como para qualquer outro Estado de destino.

Neste sentido, diversas são as estratégias biopolíticas utilizadas pelo Estado para o exercício do controle populacional, especialmente, a fim de impedir o ingresso de tais “desinteressantes” ao país. Restringir a concepção do fenômeno migratório, que é demasiadamente multifacetado, ao prisma da segurança, possibilita que uma questão de direitos humanos seja alvo de medidas “urgentes” e excepcionais, como é o caso do fechamento das fronteiras (cada vez mais violento, militarizado e tecnologicamente estruturado), a restrição da liberdade e a derradeira desconsideração da pessoa humana.

Muito embora a evolução de todo o arcabouço jurídico no país, a estrangeiridade é cada vez mais cristalizada como um critério racial de segregação. No Estado brasileiro, a dicotomia nacional-estrangeiro cria condições desiguais de desenvolvimento da vida. A postura histórica de discriminação e de compreensão do migrante como um não-ser acompanha o desenvolvimento do país. Desde o período colonial, escravocrata; as políticas higienistas e o uso de critérios “utilitaristas” para a atração de migrantes para o desenvolvimento econômico e industrial do país; a longa vigência do Estatuto do Estrangeiro por mais de 37 anos (mesmo com a retomada do Estado de Direito e pelo alcance dos Direitos Humanos à nível mundial); as diversas medidas adotadas pelo atual Presidente da República (retirada do país do Pacto Global das Migrações); o decreto regulamentador da Nova Lei de Migrações (Lei 13.445/17), assentado em medidas misóginas e excludentes e; recentemente, as respostas conferidas pelo país à crise sanitária global da COVID-19.

O enfrentamento de uma pandemia traz consigo inúmeros desafios aos Estados, sendo indispensável a atuação responsável e conjunta de pesquisadores e políticos. No Brasil, especialmente, o enfrentamento à pandemia aconteceu sem a coordenação de ações e discursos entre os três níveis federativos, tendo o Presidente da República, Jair Bolsonaro, desafiado a severidade do vírus e duvidado das orientações da comunidade científica para o enfrentamento da doença.

Muito embora a emergência da crise sanitária exija ações específicas e, até mesmo excepcionais, as medidas afetaram drasticamente a mobilidade humana internacional. Contrariando as orientações dos organismos internacionais, a aposta no fechamento das fronteiras dos Estados, como medida para prevenir a disseminação da doença, constitui uma estratégia oportuna para barrar o acesso daqueles que historicamente não são bem-vindos.

A medida é oportuna e perversa quando adota-se o fechamento seletivo de fronteiras, como é o caso do Estado brasileiro que editou medidas específicas aos migrantes venezuelanos, já tão fragilizado pela crise humanitária que assola o país. Isso revela não apenas a desumanidade e desproporcionalidade da medida, como também, o quão facilmente a árdua conquista do Estado de Direito e os Direitos Humanos são deixados de lado quando confrontada com o momento de crise.

É imperativa a consciência de que o Estado se constitui como megamáquina de poder, e a guerra constitui parte permanente do aparato estatal, com potencialidade constante para irromper em qualquer lugar, em qualquer situação. Os períodos de crise, aliados à generalização do paradigma da segurança, constituem excelentes tática de governo para a supressão de direitos, que pouco a pouco enraíza no consciente coletivo a fim de tornar um objetivo que todos devem compartilhar.

Para tanto, exige-se um perfil ativo e vigilante da sociedade acerca das ações estatais durante o enfrentamento das crises, sob pena das medidas adotadas representarem elevado risco aos “autóctones”, que tem suas vidas tradicionalmente protegidas: a naturalização das medidas violadoras de direitos dos “refugos humanos” e a suspensão da Lei (típica de um estado de exceção) pode, facilmente, ser estendida a toda a população. Os direitos dos “nacionais”, supostamente protegidos pelo Estado, podem ser atacados e “novas vidas” passarem a ser classificadas como superiores e inferiores e as conquistas tão caras à humanidade, como a vida, a liberdade, a dignidade, a democracia e o próprio Estado de Direito podem ser livremente dispostos pelos Estados.

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    » https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S2179-89662020000402330&script=sci_arttext&tlng=pt
  • 1
    Neste sentido, Lélio Mármora (2010, p. 73) refere que os fluxos migratórios representam clara e direta consequência deste modelo desenvolvimentista, neoliberal e globalizante que, “por suas características assimétricas, monopolistas e excludentes, aprofundou o fosso econômico-social entre os países e dentro de alguns países que se tornaram grandes expulsores populacionais.” ”.
  • 2
    De acordo com Saskia Sassen (2016SASSEN, Saskia. Expulsões: brutalidade e complexidade na economia global. Tradução: Angélica Freitas. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 2016., p. 21), “para aqueles que estão na parte mais baixa da escala, ou em sua metade pobre, isso significa a expulsão de um espaço de vida. Para os que estão no topo, parece ter significado o fim das responsabilidades como membros da sociedade por meio da autosseparação, a extrema concentração de riqueza disponível numa sociedade e a falta de inclinação a redistribuir essa riqueza”.
  • 3
    Está-se diante de um mundo “global” seletivamente poroso para os diferentes tipos de trocas: aqueles que são destituídos de formas e meios de subsistência, não são reconhecidos como sujeitos e, portanto, são “excessivos”, redundantes”, “extranumerários” e, desnecessários. (BAUMAN, 2005BAUMAN, Zygmunt. Vidas Desperdiçadas. Rio de Janeiro: Zahar, 2005)
  • 4
    Conforme Achille Mbembe (2020______. Políticas da Inimizade. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: n-1 edições. 2020., p. 81) “o repovoamento do mundo muitas vezes assumiu os contornos de incontáveis atrocidades e massacres, de experiências inéditas de ‘limpeza étnica’, de expulsões e transferências e reagrupamentos de populações inteiras em campos e até mesmo de genocídios. (...) O mundo colonial era um mundo cuja propensão a acomodar a destruição de seus objetos, incluindo os nativos, era alucinante. Acreditava-se que qualquer objeto, caso se perdesse, podia ser facilmente substituído por outro”.
  • 5
    No período entre a Primeira Guerra Mundial e até a Guerra Fria, tem-se uma alteração no cenário migratório: tem-se o fim do livre trânsito de trabalhadores, eis que, tanto pela guerra, como pela reconstrução dos países destruídos e de outros recentemente declarados independentes, a mão de obra havia se tornado, um bem ainda mais valioso, porém, concomitantemente, se revelado uma grave ameaça. (SICILIANO, 2016SICILIANO, André Luiz. O papel da universalização dos Direitos Humanos e da migração na formação da nova governança global. In: Revista Internacional de Direitos Humanos - SUR. 2016. Disponível em: https://sur.conectas.org/o-papel-da-universalizacao-dos-direitos-humanos-e-da-migracao-na-formacao-da-nova-governanca-global/ Acesso em: 20 de maio de 2019.
    https://sur.conectas.org/o-papel-da-univ...
    )
  • 6
    O biopoder é fundamental para o desenvolvimento do capitalismo, uma vez que os fenômenos naturais (nascimento, reprodução, morte etc.) passam a ser ajustados e controlados para proporcionarem ganhos econômicos. (FOUCAULT, 2010FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collége de France (1975-1976). Trad. Maria Ermantina Galvão. 2º ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes. 2010.)
  • 7
    Ainda referem os autores: “de fato, se há na acumulação primitiva uma estreita relação entre biopoder e guerra, a tal ponto que é impossível separá-los, resta que os dispositivos identificados por Foucault constituem, na realidade, o prolongamento das guerras de acumulação primitiva por outros meios. (ALLIEZ; LAZARRATO, 2021Éric Alliez; LAZZARATO, Maurizio. Guerras e Capital. Traduzido por Pedro Paulo Pimenta. São Paulo: Ubu Editora. 2021., p. 78)
  • 8
    O Estado nazista foi o mais completo exemplo de um Estado exercendo o direito de matar. Ele é visto como aquele que abriu caminho para uma tremenda consolidação do direito de matar, que culminou no projeto da “solução final”. (FOUCAULT, 2010FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collége de France (1975-1976). Trad. Maria Ermantina Galvão. 2º ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes. 2010.)
  • 9
    A escravidão pode ser considerada uma das primeiras manifestações da experimentação biopolítica, segundo Mbembe (2018MBEMBE, Achille. Necropolítica. Tradução e edição de Elisabeth Falomir Archambault. São Paulo: N-1 Edições. 2018, p.27), “em muitos aspectos, a própria estrutura do sistema de plantation e suas consequências manifesta a figura emblemática e paradoxal do estado de exceção. (...) De fato, a condição de escravo resulta de uma tripla perda: perda de um ‘lar’, perda de direitos sobre o seu corpo e perda de estatuto político. Essa tripla perda equivale a uma dominação absoluta, uma alienação de nascença e uma morte social (que é a expulsão fora da humanidade).”
  • 10
    A miscigenação representava um viés estritamente negativo: acreditava-se que os mestiços herdavam todas as características negativas de cada raça e, diante disso, o branqueamento da sociedade brasileira era imprescindível para a constituição de uma sociedade “pura”, “sadia”, desenvolvida e civilizada . (SEYFERTH, 2002SEYFERTH, Giralda. Colonização, imigração e a questão racial no Brasil. In: Revista USP. São Paulo, n.53, p. 117-149, março/maio 2002. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/33192 Acesso em: 14 de novembro de 2021.
    https://www.revistas.usp.br/revusp/artic...
    ).
  • 11
    Isso pode ser evidenciado nos dispositivos legais que se utilizavam da expressão “estrangeiro” como uma conotação pejorativa, evidenciando que o migrante era um ser indesejável e “inimigo” da nação brasileira. Era proibido ao estrangeiro exercer qualquer atividade de natureza política; de organizar desfiles, passeatas, comícios e reuniões de qualquer natureza ou deles participar; ser representante de sindicato ou associação profissional; ou de entidade fiscalizadora do exercício profissional; possuir, manter ou operar, mesmo como amador, aparelho de rádio fusão, de radiotelegrafia e similar; ou ainda, prestar assistência religiosa a estabelecimentos de internação coletiva. (BRASIL, 1980)
  • 12
    No início do século XXI, o país se tornou destino de fluxos migratórios variados, em especial os latino-americanos, africanos e asiático. Diferentemente das migrações do século XIX e até a década de 1930, em que os europeus (Norte-Global) constituíam os principais fluxos migratórios no país, no século XXI - especialmente no primeiro quinquênio da presente década- tem-se o incremento da mobilidade humana no cenário do Sul-Global, como, por exemplo, senegaleses, congoleses, angolanos, haitianos e venezuelanos, entre outros.
  • 13
    Ver Resolução Normativa n. 08/2006 do Conselho Nacional de Imigração -CNIg. A insegurança a que estavam submetidos, pode ser evidenciada pela Resolução Normativa n. 97, de 12 de janeiro de 2012, do CNIg, que limitava o tempo de permanência no território brasileiro (máximo de 5 anos, conforme), bem como, restringia a concessão de vistos (somente 1200 vistos anuais). Após incontáveis críticas e pressões da sociedade civil, por meio da Resolução Normativa n. 102/2013, eliminou-se o limite de Vistos estabelecido naquela Resolução e tornou possível a concessão do Visto de Permanência por outros Consulados brasileiros, inclusive em outros países. Concomitantemente, voltou-se a utilizar a solicitação de refúgio como forma inicial de regularização da situação migratória dos haitianos no Brasil. (SILVA; JULIBUT, 2015SILVA, João Carlos Jarochinski; JUBILUT, Liliana Lyra. As fronteiras do Norte do Brasil e o acesso aos direitos sociais. 2015. In: Revista Textos e Debates - Revista de Ciências Humanas da Universidade Federal de Roraima. Disponível em: https://revista.ufrr.br/textosedebates/article/view/3212 Acesso em: 17 de novembro de 2021.
    https://revista.ufrr.br/textosedebates/a...
    )
  • 14
    No ano de 2018, o Governo Federal deu início ao programa de interiorização dos migrantes venezuelanos por meio da intitulada “Operação Acolhida", estruturada sob três pilares: ordenamento da fronteira (documentação, vacinação e operação controle do Exército Brasileiro); acolhimento (oferta de abrigo, alimentação e atenção à saúde); interiorização (deslocamento voluntário de migrantes e refugiados venezuelanos de Roraima para outras Unidades da Federação, com objetivo de inclusão socioeconômica). (BRASIL, 2018)
  • 15
    Como as ocorridas no ano de 2018 por um grupo de brasileiros que, munidos de um nacionalismo desenfreado, ateou fogo em um abrigo de venezuelanos, em Pacaraima (Roraima), ou então os protestos na fronteira dos países por brasileiros que, orgulhosos, entoaram o hino nacional, a fim de evidenciar que os migrantes não eram desejados.
  • 16
    Como pode ser exemplificado a partir do naufrágio de venezuelanos ocorrido no final do ano de 2020, a caminho de Trinidad e Tobago.
  • 17
    Art. 4º A restrição de que trata esta Portaria não se aplica ao: I - brasileiro, nato ou naturalizado; II - imigrante com residência de caráter definitivo, por prazo determinado ou indeterminado, no território brasileiro; III - profissional estrangeiro em missão a serviço de organismo internacional, desde que devidamente identificado; IV - passageiro em trânsito internacional, desde que não saia da área internacional do aeroporto e que o país de destino admita o seu ingresso; V - funcionário estrangeiro acreditado junto ao Governo brasileiro; e VI - estrangeiro: a) cônjuge, companheiro, filho, pai ou curador de brasileiro; b) cujo ingresso seja autorizado especificamente pelo Governo brasileiro em vista do interesse público ou por questões humanitárias; e c) portador de Registro Nacional Migratório. VII - transporte de cargas. §5º: As hipóteses de que tratam o inciso II e as alíneas "a" e "c" do inciso VI do caput não se aplicam a estrangeiros provenientes da República Bolivariana da Venezuela. (BRASIL, 2020)
  • 18
    De acordo com Butler (2018BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Trad. Sérgio Tadeu de Niemeyer Lamarão e Arnaldo Marques da Cunha. 5ªed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2018., p. 85), “(...)certos tipos de corpos parecerão mais precariamente que outros, dependendo de que versões do corpo, ou da morfologia em geral, apoiam ou endossam a ideia da vida humana digna de proteção, amparo, subsistência e luto. Esses enquadramentos normativos estabelecem de antemão que tipo de vida ser digna de ser vivida, que vida será digna de ser preservada e que vida será digna de ser lamentada.”

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2024

Histórico

  • Recebido
    29 Nov 2021
  • Aceito
    17 Out 2022
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