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Dos protestos, escrachos e ocupações à Vara Agrária: o direito de propriedade nos conflitos por terra em Alagoas

From Protests, Public Shaming, and Occupations to the Agrarian Court: Property Rights in Land Conflicts in Alagoas

Resumo

O presente artigo objetiva analisar as disputas em torno da categorização do direito de propriedade privada em Alagoas a partir dos conflitos agrários julgados na Vara Agrária do estado. Criada em 2009, a Vara Agrária de Alagoas é destinada exclusivamente para a conciliação e o julgamento de conflitos agrários no estado. Nela, não raro, as manifestações dos movimentos sem terra são enquadradas a partir da ideia de ameaça e dano à propriedade e ao direito de propriedade, em ações de reintegração de posse ajuizadas por proprietários de terra. Por outro lado, os movimentos sociais sem terra têm reivindicado, cada vez mais, espaços para os seus próprios enquadramentos sobre direito de propriedade e uso da terra, especialmente a partir do argumento da função social da propriedade. Para a realização do estudo, utilizamos a teoria da mobilização do direito (legal mobilization theory), a fim de investigar a estrutura de oportunidades legais e os recursos disponíveis, além de elementos dos processos de enquadramento (framing process). A teoria da mobilização do direito nos auxilia na compreensão da relação entre movimentos sociais, direito e Poder Judiciário. O artigo está ancorado na análise de 241 processos judiciais que tramitaram na Vara Agrária durante o período de 2009 a 2014, bem como entrevistas com magistrados e integrantes dos movimentos sociais sem terra em Alagoas. A pesquisa abrangeu a atuação de três magistrados titulares. A hipótese principal do artigo é que a vara se transforma em um espaço de tensões, nos quais os diferentes enquadramentos estão em colisão na busca por influenciar a decisão judicial, ao mesmo tempo em que as decisões judiciais impactam a dinâmica dos conflitos agrários em Alagoas e a própria leitura e entendimento dos movimentos sociais sobre a propriedade. Acrescenta-se como hipótese a consolidação de uma disputa em torno de argumentos jurídicos sobre a questão da posse e da propriedade, de um lado, e, do outro, o direito à manifestação e a função social da propriedade; para que seus argumentos sejam juridicamente considerados, os movimentos sociais precisam traduzir os enquadramentos próprios da mobilização de rua para um enquadramento jurídico, o que é feito por meio das categorias da função social da propriedade. Tais enquadramentos tensionam os limites do direito de propriedade, ao justificar em uma linguagem jurídica o que, a princípio, é enquadrado como dano ou violência.

Palavras-chave:
Vara Agrária; Direito de propriedade; Mobilização do direito; Movimento sem-terra

Abstract

This article aims to analyze the disputes surrounding the categorization of property rights in Alagoas, focusing on agrarian conflicts adjudicated in the state's agrarian court. Established in 2009, the agrarian court of Alagoas is exclusively dedicated to the conciliation and adjudication of agrarian conflicts in the state. In this court, it is common for the actions of landless movements to be framed as threats and damages to property and property rights in repossession lawsuits filed by landowners. On the other hand, landless social movements have increasingly sought to assert their own perspectives on property rights and land use, particularly using the argument of the social function of property. To conduct the study, we will utilize legal mobilization theory to investigate the structure of legal opportunities and available resources, along with elements of framing processes. Legal mobilization theory helps us understand the relationship between social movements, law, and the judiciary. The article is based on the analysis of 241 judicial cases processed in the agrarian court between 2009 and 2014, as well as interviews with judges and members of landless social movements in Alagoas. The research encompassed the actions of three main judges. The main hypothesis of the article is that the agrarian court becomes a space of tension where different framings clash in their attempt to influence judicial decisions, while judicial decisions simultaneously impact the dynamics of agrarian conflicts in Alagoas and the social movements' own understanding of property. Additionally, we hypothesize the consolidation of a dispute over legal arguments regarding possession and property on one side, and the right to protest and the social function of property on the other. For their arguments to be legally considered, social movements need to translate their street mobilization framings into legal framings, which is done through the categories of the social function of property. These framings challenge the boundaries of property rights by justifying in legal language what is initially framed as damage or violence.

Keywords:
Agrarian court; Property rights; Legal mobilization; Landless movement

Introdução

A teoria da mobilização do direito - legal mobilization theory - trouxe para os estudos sobre o direito e os movimentos sociais uma perspectiva que buscou equilibrar e complexificar o debate como até então vinha se desenvolvendo nos Estados Unidos e alguns países da Europa.

Partindo de uma concepção que compreende os movimentos sociais, direito e o Poder Judiciário não como fenômenos apartados, mas como elementos em constante troca e influência mútua, Michel McCann, um dos principais representantes da teoria, argumenta que o litígio é uma complementação das estratégias de ação dos movimentos sociais, e não uma substituição. Nesse sentido, deve-se pensar sobre como os litígios podem influenciar outros processos em seus efeitos radiantes (McCann, 1994).

A mobilização do direito reúne uma série de trabalhos que se preocupam em compreender como movimentos sociais constroem e utilizam repertórios de ação, especialmente as estratégias jurídicas. Segundo a definição de Vanhala (2011VANHALA, L. “Social movements lashing back: law, social change and intra-social movement backlash in Canada”, in Austin Sarat (ed.), special issue social movements/legal possibilities, Bingley, Emerald Group Publishing (Studies in Law, Politics and Society, 54). 2011.), atribui-se o conceito de mobilização do direito diante de qualquer tipo de processo em que um desejo ou uma vontade é traduzido em uma demanda de afirmação de direitos, buscando-se, com isso, mudanças sociais: “[...] tem sido utilizado para descrever qualquer tipo de processo pelo qual atores individuais ou coletivos invocam normas legais, discursos ou símbolos para influenciar políticas ou comportamentos” (Vanhala, 2011). Assim, na mobilização do direito, o cerne da investigação é direcionado para os “usuários” do direito, ao invés de focar no protagonismo dos tribunais ou das elites estatais (Maciel, 2011MACIEL, D. A. Ação coletiva, mobilização do direito e instituições políticas: o caso da campanha da lei Maria da Penha. Revista brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 26, n. 77, p. 97-112, 2011.).

Nesse contexto, torna-se cada vez mais corrente a mobilização de espaços e instrumentos legais por esses atores para que suas demandas sejam, para além de legítimas, enquadradas no âmbito da legalidade, ocupando espaços de disputa por direitos junto ao poder público, valendo-se, especialmente, da dimensão legal como estratégia para conquistar vitórias para os movimentos, que vão além das decisões judiciais em si.

Esses estudos abordam a compreensão tanto dos “padrões de ação, [d]a mobilização das instituições de Justiça e [d]os efeitos sobre seus atores, quanto [d]as consequências objetivas e simbólicas desse tipo de mobilização” (Losekann; Bissoli, 2007, p.5). Assim, a mobilização do direito envolve o uso de oportunidades legais, o uso de um enquadramento legal e as interações entre atores do campo jurídico (Fanti, 2016FANTI, F. Mobilização Social e Luta por Direitos: um estudo sobre o movimento feminista. Tese de Doutorado-Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2016.; Losekann, 2013; Maciel, 2011MACIEL, D. A. Ação coletiva, mobilização do direito e instituições políticas: o caso da campanha da lei Maria da Penha. Revista brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 26, n. 77, p. 97-112, 2011.; McCann, 1994, 2008; Vanhala, 2011VANHALA, L. “Social movements lashing back: law, social change and intra-social movement backlash in Canada”, in Austin Sarat (ed.), special issue social movements/legal possibilities, Bingley, Emerald Group Publishing (Studies in Law, Politics and Society, 54). 2011.).

As dimensões normativas e estratégicas do direito, portanto, são analiticamente inseparáveis (Maciel, 2011MACIEL, D. A. Ação coletiva, mobilização do direito e instituições políticas: o caso da campanha da lei Maria da Penha. Revista brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 26, n. 77, p. 97-112, 2011.). Ao mesmo tempo em que as normas jurídicas fornecem a moldura que constrange as possibilidades de ação dos agentes, elas podem ser utilizadas estrategicamente para se conseguir determinados objetivos. Além disso, o direito, como um fenômeno pluralístico, possui variadas possibilidades interpretativas, complexas e contraditórias. Ainda que se reconheça a tendência à defesa de uma relação hierárquica de poder por meio da lei, é necessário observar as práticas legais em seus contextos, pois a ordem do sistema hegemônico é mantida por um processo complexo e volátil de dominação e resistência (McCann, 1994). Assim, o direito é discutido a partir de uma abordagem interpretativa na qual há uma mobilização dessas normas e das lógicas discursivas no jogo das lutas sociais (Fanti, 2016FANTI, F. Mobilização Social e Luta por Direitos: um estudo sobre o movimento feminista. Tese de Doutorado-Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2016.).

No presente artigo, a teoria da mobilização do direito será utilizada para refletir sobre um contexto no qual a estratégia de litigância é empregada pelos movimentos a partir da posição de réus dos processos judiciais, posição a partir da qual constroem seus enquadramentos de justiça/injustiça. Analisam-se, especificamente, as disputas em torno da categorização do direito de propriedade em Alagoas a partir dos conflitos agrários no estado, no contexto da Vara Agrária alagoana, envolvendo disputas fundiárias. Tal fenômeno empírico nos permitirá refletir sobre a complexa relação entre protesto e propriedade a partir da análise de dois contextos distintos, porém interligados: a mobilização da rua e a mobilização nos tribunais.

A consolidação do movimento social sem terra em Alagoas, levada adiante por trabalhadores rurais, comunidades tradicionais e empobrecidos urbanos têm se destacado como um dos fenômenos sociais mais debatidos e examinados no que diz respeito aos conflitos agrários no estado. No artigo, analisaremos o processo de formação e espacialização da luta pela terra, conduzindo ao debate do dano e do direito à propriedade como uma das pautas centrais das reivindicações sociais buscadas pelo movimento.

1- O movimento social sem terra em Alagoas: entre escrachos e ocupações de terra, um enquadramento sobre propriedade

A luta pela terra, organizada principalmente a partir dos anos 1990, passou a usar ações de ocupações de terra como estratégia na disputa por território de latifúndio improdutivo em todo o país. Em Alagoas, não foi diferente. Os primeiros passos na luta pela terra tiveram início na primeira metade de 1980, no sertão. Esse foi o espaço onde a resistência camponesa ocupou território e deu seguimento a sua espacialização com as ocupações nas duas outras mesorregiões do estado: Agreste e Leste1 1 O Leste é a maior mesorregião em aspecto territorial, abrangendo o Litoral e a Zona da Mata. É a mesorregião de maior concentração de conflitos fundiários no estado. Para mais detalhes, Castro, 2017; Lima, 2020. .

Na região Nordeste, já no início da década de 1960, as Ligas Camponesas protagonizaram diversos conflitos por terras. Essas organizações populares conduziram pautas políticas de acesso à terra e à renda que repercutiram em todo país. Esse movimento camponês, iniciado em Pernambuco, foi um verdadeiro vulto que assombrou a elite brasileira agrária (Arakem Lima, 2006LIMA, A. A. Alagoas e o complexo agroindustrial canavieiro no processo de integração nacional. Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Economia. - Campinas, SP, 2006.). Em Alagoas, no entanto, não houve luta pela terra via movimento social nesse momento em razão, especialmente, do cerco político dos latifundiários no estado (Cosme, 2019COSME, C. M. A resistência do campesinato assentado em uma formação territorial marcada pela contrarreforma agrária: da luta pela terra à luta para permanecer no território dos assentamentos rurais no Sertão alagoano. Tese (doutorado em Geografia) - Universidade Federal de Pernambuco. Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Departamento de Ciências Agrárias. Recife - PE, 2019. 523 p.), que impediu que trabalhadores rurais dos canaviais alagoanos desenvolvessem experiência de organização política.

Durante o período da ditadura militar no Brasil, houve um impulso para a concentração de terras nas mãos de grandes latifundiários, como parte de um plano de colonização destinado a promover a agricultura em larga escala, a fim de apoiar uma agenda de industrialização. Em Alagoas, esse foi o momento em que o movimento social sem terra começou a se organizar em torno da defesa do direito à terra, diante da expulsão de agricultores familiares e trabalhadores rurais das terras que garantiam seu sustento (Lima, 2020LIMA, W. M. S. Do conflito à re-volta: o deslocamento campo-cidade-campo entre camponeses em Alagoas. Universidade Federal de Alagoas. Dissertação de mestrado. 157 p. 2020.).

Uma ala da igreja católica teve papel fundamental na organização do movimento em Alagoas. Influenciados pela Teologia da Libertação, agentes da igreja impulsionaram a luta pela terra no estado. Em 1984, por meio da atuação da Diocese de Maceió, criou-se a Coordenação Executiva dos Sem Terras no STR/Inhapi, em Alagoas, inaugurando às discussões formais sobre a formação do MST/AL. Tal fenômeno também foi observado no contexto nacional e em outros países da América Latina (Gohn, 2013GOHN, M. G. Movimentos sociais na atualidade: manifestações e categorias analíticas. In: Movimentos sociais no início do século XXI: artigos e novos atores sociais. 6. ed. - Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2013.), no qual os movimentos e lideranças na luta fundiária conduziram processos modernizadores, de rupturas de relações sociais e novos valores protagonizados, especialmente pela Igreja católica (Medeiros, 2003MEDEIROS, L. S. Reforma agrária no Brasil: história e atualidade da luta pela terra. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2003.).

A tática da ocupação como saída apontada para os conflitos agrários foi ressaltada no I Congresso Nacional do MST, em 1985, no Paraná, e levada para Alagoas. De 1985 a 1986 - dois anos após a fundação do movimento nacional -, as orientações de ocupação estavam apenas no campo das ideias. Foi somente em 1986, com o primeiro encontro do departamento rural da Central Única dos Trabalhadores - CUT, de Alagoas e Sergipe, que a primeira ocupação começou a ser pensada. O local escolhido foi o município de Inhapi, no sertão alagoano, lugar marcado por inúmeros conflitos que vinham sendo acompanhados pela pastoral.

A primeira ocupação do MST em Alagoas se deu no dia 26 de janeiro de 1987, na fazenda Peba, em Delmiro Gouveia, em uma ação que envolveu 76 famílias. A ocupação foi motivada pelo conflito entre os trabalhadores rurais e o fazendeiro Miguel Grande. Na ocasião, inaugurou-se o repertório de ocupação e de acampamento como formas de luta pela reforma agrária no território alagoano, provocando ações do Judiciário:

Com a ocupação, o juiz de Delmiro Gouveia foi pessoalmente efetuar o despejo, e as famílias acamparam, então, à beira da estrada. Meses depois, ocuparam a fazenda Lameirão, no mesmo município, mas foram novamente despejadas e retornaram para o mesmo local. Na madrugada do dia 26 de fevereiro de 1988 ocuparam a fazenda Peba (Silva, 2018SILVA, J. R.. Um pouco da história do MST em Alagoas: dos começos até 2007. In. ALMEIDA, L. S.; LIMA, J. C. S.; VERÇOZA, L. V. (Orgs.). In: A questão agrária em Alagoas: índios, semterras e canavieiros. Maceió: CBA Editora, 2018., p. 95).

Após dois anos da ocupação, segundo dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), foi implementado o primeiro assentamento em Alagoas, no dia 1º de janeiro de 1989. Desde então, o movimento social de luta pela terra avançou em todo território nacional, ganhando mais visibilidade e avanços na luta.

Com base no art. 186 da Constituição Federal, o MST passou a ocupar terras reivindicando do governo a expropriação para fins de reforma agrária, diante do não cumprimento da função social da propriedade. A ocupação de terra não é compreendida como um dano à propriedade, mas como uma ação necessária no contexto de mobilização do movimento para viabilizar os assentamentos.

Nesse sentido, Josenildo, assentado da reforma agrária, falou da importância das ocupações de terra para o cumprimento da função social da propriedade: “É direito nosso ocupar uma terra para que seja cumprida a função social dela. E é dever do Estado fazer valer a lei. Por isso, a gente ocupa terra, queima pneu e faz protesto quando tem que ser feito” (Josenildo, 2020).

Para os movimentos sem terra, os protestos e escrachos compõem o repertório de ação do movimento e estão ancorados em um direito constitucional. Nas palavras de Mírian Oliveira, militante e advogada do MST:

São permitidas manifestações independentes de autorização. O que necessita é que seja satisfeita a veiculação da informação à autoridade competente. Isso significa que, se a manifestação for divulgada, como por exemplo, em redes sociais ou em panfletos, como acontece no MST, a necessidade de aviso prévio oficial do protesto à autoridade competente é sanada (Entrevista concedida às autoras, 2023).

A partir desse enquadramento jurídico, são deflagrados protestos e escrachos em praças públicas, avenidas, residências ou locais de trabalho de autoridades do direito e em margens de prédios públicos, cobrando-se a resolução de conflitos fundiários. Os escrachos, em sua maioria, acontecem com ações dos militantes entoando frases, levantando cartazes e performando com cenas teatrais que remetem à reivindicação do momento.

Quando o conflito é judicializado, há um remodelamento da mobilização e performance dos movimentos sociais. Longe de representar uma substituição, argumentaremos que os movimentos sociais mobilizam o direito como mais uma estratégia de ação dentro do quadro mais amplo de mobilização, aproveitando-se da oportunidade legal que se abriu a partir da criação da Vara Agrária. A Vara Agrária, no entanto, impõe uma série de limitações ao movimento diante, sobretudo, da proteção ao direito de propriedade nesse contexto.

A seguir, de maneira sucinta, trataremos da criação da Vara Agrária em Alagoas. Em seguida, na última seção, analisaremos primeiramente como o direito de propriedade é apresentado pelos proprietários de terra e os recursos institucionais e simbólicos que o protege, para, por fim, discutirmos como os movimentos sociais têm se mobilizado.

2. O Judiciário entra em cena: a criação da Vara Agrária alagoana e a configuração do conflito agrário judicializado

Como visto, o estado de Alagoas tem sido marcado, em sua história, por conflitos entre proprietários de terra e movimentos sociais de luta pela terra. Nesse contexto, o Judiciário, não raro, torna-se o local no qual as disputas desaguam, diante da alegação de ameaça ou de violação ao direito de propriedade.

Em Alagoas, com a criação da 29ª Vara Cível da capital ou vara de conflitos agrários, por meio da lei estadual nº 6.895, promulgada em 10 de dezembro de 2007, o Poder Judiciário passou a atuar de maneira mais sistemática nesses conflitos, em razão da especialização. O estado foi um dos pioneiros na implementação de uma vara especializada em conflitos agrários, mesmo diante do seu histórico de grande concentração de terras e violência rural (Castro et. al. 2018CASTRO, A. C; LAGES, A. S.; ASSIS, W. F.. Da violência opressora à negociação institucional: a judicialização dos conflitos agrários no cenário alagoano. Estudos Sociedade e Agricultura, jun. 2018, v. 26, n. 2, p. 309-330.).

A Vara, de acordo com a citada lei, trata dos conflitos agrários, ou seja, aqueles litígios coletivos no qual a disputa gira em torno da posse de um imóvel rural, sendo este um prédio rústico de área contínua, em qualquer localização, que se destine ou possa se destinar à exploração agrícola, pecuária, extrativa vegetal, florestal ou agroindustrial.

Para a condução das atividades da Vara Agrária, são nomeados um juiz titular e um juiz substituto. A escolha e a designação são feitas pelo presidente do Tribunal de Justiça do estado, que submete a escolha à aprovação pelo pleno do TJ. Aprovada, aos magistrados é atribuído um mandato de dois anos à frente da vara, prorrogável por igual período.

Na Vara Agrária, conforme determinação legal, a busca por mecanismos consensuais de resolução dos conflitos deve ser sempre priorizada. Os juízes tendem a conduzir os processos a partir de interpretações que possibilitem uma conduta razoável, buscando superar os conflitos e estabelecer a ordem, por meio, prioritariamente, da conciliação. Mesmo se tratando de uma imposição legal, contudo, a caracterização e concretização desse perfil conciliador variam de acordo com cada juiz que assume a titularidade da vara, ainda que, em qualquer hipótese, os magistrados reivindiquem para si o perfil conciliador.

Essa, contudo, nem sempre foi a realidade do estado de Alagoas. Antes da criação da vara, havia uma tendência predominante de criminalização dos movimentos sociais, seja por meio da atuação do Poder Executivo, pela Polícia Militar, seja pelo Poder Judiciário, (realidade, de certa maneira, transformada a partir da criação da Vara Agrária). As questões agrárias revelavam ainda mais um entrelaçamento entre o poder burocrático-estatal e o poder dos fazendeiros, o que imprimia nessas “ações legais” caracteres “ao mesmo tempo, de intolerância das instituições para com as ações dos movimentos de luta por terra e de defesa institucional do direito de propriedade dos latifundiários.” (Castro et. al, p. 312).

No Judiciário, a criminalização se evidenciava na concessão indiscriminada de liminares nas ações de reintegração de posse, autorizando a retirada, com o uso de força policial, dos acampados das propriedades ocupadas. Além disso, era frequente a determinação de prisões de integrantes dos movimentos sociais e sua condenação sob a acusação, por exemplo, do cometimento de crimes de formação de quadrilha, dano ao patrimônio, roubo qualificado e extorsão. Nesse contexto, o número de assassinatos de lideranças camponesas era considerável: dados levantados pela CPT apontam que, entre os anos de 1997 e 2007, 11 pessoas ligadas aos movimentos sociais de luta pela terra foram assassinadas no estado de Alagoas. Somado a isso, 24 pessoas foram ameaçadas de morte e 20 morreram em consequência do conflito, 102 pessoas foram agredidas e 69 ficaram feridas. As investigações desses crimes dificilmente resultavam em punição aos autores ou tinham um tempo lento de resolução (Castro et. al, 2018CASTRO, A. C; LAGES, A. S.; ASSIS, W. F.. Da violência opressora à negociação institucional: a judicialização dos conflitos agrários no cenário alagoano. Estudos Sociedade e Agricultura, jun. 2018, v. 26, n. 2, p. 309-330.).

A criação da Vara Agrária se propunha a combater esse tipo de violência, a partir de um projeto que priorizasse a escuta e conciliação dos envolvidos nas demandas: movimentos sociais, proprietários de terra e Estado. Com esse intuito, o Fórum Agrário foi criado em 2009, após ampla discussão sobre o projeto de lei pelo pleno do Tribunal de Justiça e pela Assembleia Legislativa. Além da Vara Agrária, o fórum comportava a defensoria pública agrária, a promotoria agrária e a polícia civil e militar agrária.

Alguns dados sobre o funcionamento da vara podem ser extraídos a partir da análise dos primeiros três mandatos de magistrados que assumiram sua titularidade entre os anos de 2009 e 2016. A tabela 1 apresenta os dados sobre os tipos de ações judiciais encontradas na Vara Agrária:

Tabela 1
Tipos de ações judiciais

Constatou-se que a grande maioria dos processos que tramitaram na Vara Agrária, 94%, foi de ações de manutenção ou reintegração de posse, enquanto 6% são ações de interdito proibitório. A totalidade das ações em curso na Vara Agrária dizia respeito a reivindicações de proprietários sobre ocupações em suas terras. Essa constatação se confirma diante do perfil de “acionadores” e “demandados” da justiça agrária, apresentado na tabela a seguir:

Tabela 2
Polo ativo das ações judiciais

As ações foram protocoladas por pessoas físicas ou jurídicas contra movimentos sociais de luta pela terra. Os autores das ações, em sua maioria, destinavam suas terras ou para a plantação de cana de açúcar (55%) ou para a pecuária (30%), conforme demonstrado na tabela 3:

Tabela 3
Finalidade econômica da propriedade fundiária

Em nenhum dos processos analisados, os movimentos sociais figuraram como autores da ação. É na posição de réus dos processos que os movimentos constroem seus enquadramentos de justiça/injustiça, reivindicando o reconhecimento de um direito ou a politização de um dano, a partir de novas interpretações sobre os direitos em disputas e sobre as formas de atuação dentro do processo.

O principal dispositivo mobilizado pelos autores das ações judiciais é a o art. 5º, inciso XXII, da Constituição Federal, que assegura o direito de propriedade, além do inciso LIV, que estabelece que ninguém será privado de sua liberdade e de sua propriedade sem um processo legal. Além disso, o antigo Código Civil também é mobilizado, especialmente os dispositivos que tratam da propriedade e dos direitos dos proprietários, como o direito de manter a propriedade em casos de violações e de restituição diante de violações, e o Código de Processo Civil, que prevê a ação de reintegração de posse como instrumento processual contra atos ilegais praticados contra a propriedade.

Outro dado que nos chamou a atenção foi a relativa velocidade com que os processos judiciais na Vara Agrária são “resolvidos”, seja pela prolação de uma sentença, seja pela realização de um acordo judicial: 56% foram solucionados em menos de 12 meses e 79% em menos de 24 meses. Também em menos de 24 meses, cerca de 80% dos processos haviam sido arquivados definitivamente (Castro et. al, 2018CASTRO, A. C; LAGES, A. S.; ASSIS, W. F.. Da violência opressora à negociação institucional: a judicialização dos conflitos agrários no cenário alagoano. Estudos Sociedade e Agricultura, jun. 2018, v. 26, n. 2, p. 309-330.).

Na maior parte das ações judiciais, a resolução do processo se deu com a realização de acordo de saída pacífica dos movimentos, mediante a concessão de cestas básicas ou lona ou ainda de prazo maior para a saída definitiva2 2 Em outra oportunidade, foi possível discutir os principais tipos de acordos realizados na vara agrária (Castro et. al., 2018). O principal acordo realizado é para a saída pacífica mediante concessão de lonas, transporte ou indenização pela plantação (19 casos). Em seguida, tem-se a concessão de prazo para a permanência (17 casos), seguido de acordo pela saída apenas, sem contrapartida do proprietário (sete casos). Alguns acordos são firmados para a saída para que o INCRA realize vistoria (4). Em dois casos houve a cessão da terra e em um único caso o movimento foi deslocado para outra área da propriedade. O que se percebe é que a composição consensual, nesses casos, não necessariamente resulta na fórmula “ganho-ganha”, tendo em vista a disparidade dos termos acordados e do poder de barganha dos atores. . Em seguida, há a determinação de reintegração de posse e seu cumprimento. Essas soluções de resolução do processo se referem a 57% dos casos analisados. Em um número muito inferior de casos, houve proposta de aquisição por parte do INCRA e do Instituto de Terras e Reforma Agrária de Alagoas (Iteral), seja por meio de proposta de compra e venda seja pela constatação da improdutividade da terra, ou questionamento da legitimidade do autor da ação judicial e de seu direito de propriedade.

É importante ressaltar que, embora a concessão de reintegração de posse figure como o segundo tipo de resolução mais recorrente nos processos judiciais, na maior parte dos processos, 76% dos casos, ela só foi concedida após a instrução processual, respeitando-se a previsão legal que prioriza a realização de audiências de conciliação e de constatações judiciais in loco. Dentre aquelas liminares concedidas antes da instrução processual, 20% dos casos, a grande maioria (75%) foi realizada durante o mandato do juiz A. É também o juiz A aquele que mais concedeu liminares de reintegração nos processos (Castro et. al. 2018CASTRO, A. C; LAGES, A. S.; ASSIS, W. F.. Da violência opressora à negociação institucional: a judicialização dos conflitos agrários no cenário alagoano. Estudos Sociedade e Agricultura, jun. 2018, v. 26, n. 2, p. 309-330.).

Como é possível perceber, os tipos de resolução judiciais dos processos são limitados pela superioridade do direito de propriedade dos autores das ações judiciais e pela diferença do poder de barganha dos envolvidos, medido pela extensão dos direitos de propriedade detidos pelos atores, seja o direito de propriedade propriamente dito, seja a posse. Se, em abstrato, a adoção do acordo é uma maneira de buscar soluções não violentas para os conflitos fundiários, na prática, a imposição do discurso conciliador resulta numa aceitação tácita do enquadramento apresentado pelo autor da petição inicial - em geral, fazendeiros e proprietários de terra - impossibilitando a produção de outros enquadramentos que não o de proteção ao direito de propriedade.

Não há um trabalho jurídico de produção de interpretações alternativas à construção hegemônica do direito de propriedade porque sequer há uma análise do material fático apresentado no processo. Se o juiz, diante de uma ação de reintegração de posse, busca construir um acordo entre as partes já na primeira audiência, como determina a lei, questões sobre a posse legítima, validade do direto alegado pelo autor ou a produtividade da terra - elementos essenciais no enquadramento produzido pelos movimentos sociais - nem superficialmente são tratadas.

Essa constatação vai ao encontro dos achados das pesquisadoras Bianca Damin e Danielle Klintowitz (coordenadoras), em pesquisa contratada pelo Conselho Nacional de Justiça, publicada em 2020, sobre conflitos fundiários coletivos urbanos e rurais. A pesquisa, entre outros pontos, constatou que o título de propriedade tem sido considerado demonstração da melhor posse em ações possessórias em outras regiões do país. Diante do título de propriedade, não há “outros significativos fundamentos nas decisões judiciais acerca da situação fática ensejadora da posse ou mesmo sobre a função social da propriedade alegada” (CNJ, 2021, p. 102).

O direito alegado pelo autor é aprioristicamente tomado como legítimo. Isso ocorre, na Vara Agrária, mesmo em processos nos quais a descrição da propriedade foi feita de maneira bastante imprecisa ou em casos de indícios de ilegitimidade da parte autora.

Na próxima seção, discutiremos como os enquadramentos em torno do direito de propriedade são mobilizados no processo judicial.

3. Nos termos do direito: enquadramentos em disputa

Nessa seção, buscaremos contrapor os diferentes enquadramentos observados na Vara Agrária em torno do direito de propriedade: dano à propriedade como violação ao direito de propriedade - a voz dos proprietários de terra; dano como luta: função social da propriedade e direito à manifestação na voz dos movimentos sem terra.

3.1 Dano à propriedade como violação ao direito de propriedade - a voz dos proprietários de terra

Do total de processos analisados, somente nos processos judiciais que tramitaram durante o primeiro ano de funcionamento da Vara Agrária, encontramos casos em que houve negativas do pedido de reintegração de posse em razão do inconteste descumprimento da função social da propriedade. Esses processos representam, contudo, uma quantidade muito pequena no universo analisado. E, mesmo nesses casos, o enquadramento do direito de propriedade condicionado pela função social da propriedade não foi mantido pelo Tribunal de Justiça.

Esses dados novamente dialogam com os achados do Relatório do CNJ (2021), no qual se constatou a baixa incidência da menção da função social da propriedade nas ações possessórias coletivas. As maiores frequências encontradas pela equipe de pesquisa foi no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios e no Tribunal de Justiça do Pará, com 4,35% e 4,31% de processos com menções, respectivamente.

No caso da Vara Agrária, para demonstrar essa afirmação, utilizaremos o Processo n. 0500091-96.2009.8.02.0095 como exemplo. O processo foi iniciado a partir de petição inicial protocolada por uma pessoa física que alegou que sua propriedade, destinada à criação de gado na cidade de Craíbas, agreste alagoano, havia sido invadida em 20 de julho de 2007, pelo MST. Ao realizar inspeção judicial na fazenda, o magistrado constatou a existência de quinze barracas que abrigavam 70 famílias na propriedade. Em contato com o juiz, os acampados afirmaram que a terra era improdutiva, afirmação consubstanciada pelo INCRA que, em 2006, classificou a fazenda como grande propriedade improdutiva. Na ocasião, o magistrado, o juiz C, conversou com um funcionário da empresa e detectou a possível caracterização de irregularidades nas relações de trabalho.

Em audiência realizada uma semana após a inspeção, o magistrado ouviu o depoimento de três empregados do autor da ação, a fim de produzir provas sobre irregularidades na relação de trabalho. É importante ressaltar que o artigo 186 da Constituição Federal estabelece que a função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, aos seguintes requisitos: aproveitamento racional e adequado; utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; observância das disposições que regulam as relações de trabalho; e exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

Diante do juiz, um dos declarantes apresentou o seguinte depoimento:

PRIMEIRO DECLARANTE: [...] que foi trabalhar na fazenda há, aproximadamente, dezoito anos; [...] que nunca teve carteira assinada pelo seu patrão; que nunca ganhou salário mínimo e, atualmente, não está trabalhando ‘porque ele [o patrão] vendeu a máquina’ [...] desde que seu patrão [nome ocultado] vendeu a máquina, o declarante está encostado, sem trabalhar, e não vem recebendo nenhum salário há, aproximadamente, três anos; que às vezes faz alguns bicos para proprietários vizinhos a fim de sobreviver; que às vezes as suas filhas lhe ajudam e a sua mulher, que não trabalha, recebe o Bolsa Família; que há muito tempo atrás, na época de carnaval, o declarante falou o seguinte: ‘ô, seu Zé, o senhor vai assinar minha carteira? Então esse respondeu que depois das festas resolveria o problema e isso perdura até hoje [...] (Processo n. 0500091-96.2009.8.02.0095. Dado colhido pela autora).

Diante dos depoimentos, o Ministério Público produziu o enquadramento constitucional que determina que toda propriedade deve cumprir a sua função social, diante do descumprimento das disposições que regulam as relações de trabalho. O autor, em contrapartida, reafirmou a necessidade de concessão imediata da liminar pela “invasão da propriedade”, produzindo um novo enquadramento acerca da finalidade da vara: “esta vara especializada foi criada justamente para que os conflitos dessa natureza pudessem ser dirimidos com a maior brevidade possível” (Processo n. 0500091-96.2009.8.02.0095. Dado colhido pelas autoras). Por esse enquadramento, a Vara Agrária seria uma espécie de acelerador da concessão de reintegração de posse, dando, portanto, maior agilidade à proteção do direito de propriedade.

O magistrado, aderindo ao enquadramento constitucional do direito de propriedade, em atenção à função social, valeu-se de quatro argumentos principais: (a) dúvidas sobre a área específica a ser reintegrada; (b) ausência de aproveitamento racional e adequado do imóvel; (c) dano ambiental; (d) descumprimento das disposições que regulam as relações de trabalho.

O autor, por sua vez, reafirmou o enquadramento de proteção do direito de propriedade independentemente do cumprimento da função social da propriedade, um direito de propriedade absoluto. Para tanto, posicionou-se mobilizando argumentos jurídicos de proteção do direito de propriedade, de um lado, e de outro, elementos de descaracterização da juridicidade dos enquadramentos construídos tanto pelo Ministério Público quanto pelo magistrado.

Buscando afastar a necessidade de observar a função social da propriedade na ação de reintegração de posse na Vara Agrária, o autor afirmou que “o legislador pátrio nunca, jamais mesmo, estabeleceu que para fins de ingresso de ação de reintegração de posse necessário seria a juntada, por parte do possuidor esbulhado, de comprovante oficial de que a terra que foi invadida é tida como produtiva”. Por outro lado, buscando eliminar a juridicidade das decisões judiciais, o autor se valeu de estratégias de desqualificação das decisões judiciais ou ministeriais. Afirmou, nesse sentido, que o parecer ministerial estaria fundado em sofismas e, por essa razão, não serviria ao processo judicial; além disso, qualificou o parecer como “canhestro, insubsistente, e porque não dizer estapafúrdio”. Quanto às decisões judiciais, diante do indeferimento do pedido de concessão de liminar de reintegração de posse, exclamou: “Tremam os céus! Será direito alternativo ou alternativa ao direito?”, afirmando ser um “retrocesso inaceitável”:

[...] é algo de tão canhestro que dispensa maiores considerações e deve ser incisivamente repelido, porque se vira moda, pode vir a gerar verdadeiros “Frankensteins Jurídicos”, surgidos da pura e simples discricionariedade do magistrado, voltando-se ao estado de coisas que se verifica no ancién regime.

A estratégia de desqualificação e descaracterização do parecer ministerial e da decisão judicial é utilizada pelo autor não apenas para derrotar juridicamente a aplicação da função social da propriedade dentro do processo, mas para retirar sua legitimidade enquanto argumento jurídico, expulsando-a da arena de disputa jurídica.

O Tribunal de Justiça, que em uma semana analisou o recurso impetrado pelo autor da ação, não acatou o argumento constitucional da função social da propriedade, aderindo ao enquadramento produzido pelo autor da ação, deferindo, assim, o pedido de liminar. Argumentou que havia prova inequívoca da verossimilhança das alegações, do dano irreparável ou de difícil reparação e, por fim, que a media de concessão de liminar seria reversível. O enquadramento do direito de propriedade absoluto, nos parâmetros defendidos pelo proprietário da terra, fica evidente na afirmação do desembargador de que a medida de concessão de liminar é “plenamente reversível” e, em caso de não comprovação do direito ao final da ação, poderia ser dado adequado atendimento à função social, permitindo o uso da terra pelo MST.

Por esse enquadramento, há uma hierarquização clara dos direitos em disputas, de modo que a função social só deverá ser aplicada em não sendo comprovado o direito do autor, ao final da demanda. Ou seja, a função social da propriedade não é mobilizada enquanto condicionante do direito de propriedade. Ao contrário, o direito de propriedade seria absoluto.

Diante da decisão do Tribunal, o juiz da Vara Agrária concedeu a liminar de reintegração. No entanto, frisou que sua decisão anterior se baseou na aplicação do artigo 927 e incisos do antigo Código de Processo Civil e da Constituição Federal. Reivindicou para si, portanto, a mobilização de um enquadramento legal, afastando a acusação de produção de uma decisão meramente política.

Mesmo diante da decisão inicial que negara a liminar de reintegração de posse, a partir da decisão do Tribunal, e tendo o movimento social permanecido no imóvel, o juiz C autorizou a reintegração com uso da força policial do BOPE, o que não foi cumprido. A desocupação só foi realizada seis meses depois, de forma “mansa e pacífica”.

Nos processos que correm na Vara Agrária, a atuação dos magistrados é limitada pela inserção em um corpo fortemente integrado de instâncias superiores, ainda que se reconheça a existência de um espaço para o arbitrário da decisão, dado que a interpretação da lei nunca se impõe de maneira absolutamente imperativa. Se a instância superior apresenta uma interpretação restritiva do direito, em que deve prevalecer o direito de propriedade de maneira absoluta, decisões que levam a função social da propriedade em consideração, prolatadas pelos juízes agrários serão, inevitavelmente, reformadas. Nesse sentido, o juiz C afirmou que:

É uma realidade que se encontra, né? [a dificuldade em se aplicar dispositivos para o cumprimento do direito de propriedade em seu sentido constitucional] Então, por exemplo, aplicar numa situação concreta o princípio da função social da propriedade e não conceder a reintegração de posse ao proprietário, sob o ponto de vista que aquela área ocupada ela não atende a função social e, por não atender a função social, ela não merece a proteção jurisdicional num âmbito de uma ação de reintegração de posse, essa é uma matéria ainda muito polêmica, que muitas vezes convence o juiz agrário, especializado, mas quando há um recurso, os tribunais, normalmente, modificam essa decisão por entender que, se há a propriedade, independente de uma análise mais detida da função social, ela merece a proteção estatal. Esse é um aspecto que, sem dúvida, ainda precisa ser melhor trabalhado para que exista uma padronização. E essa padronização, sem dúvida, viria por meio da especialização de unidades judiciárias nos estados em que a ocorrência dos conflitos agrários é maior (entrevista realizada com o juiz C, em 11 de dezembro de 2015).

Além disso, no caso da Vara Agrária, instituiu-se um sistema de rotatividade do juiz titular, o que representa mais um elemento a interferir na disputa. É o Tribunal de Justiça do Estado que designa o juiz titular e é o TJ quem irá decidir sobre a renovação ou não do mandato do magistrado escolhido. Além de o Tribunal representar um controle das interpretações, possui, diretamente, poder para destituir os juízes de seu cargo, guiado pelas relações de força existente dentro do campo.

O CNJ (2021) chegou à conclusão similar ao analisar a atuação do Grupo de Apoio às Ordens Judiciais de Reintegração de Posse (Gaorp), criado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. O Gaorp também é dependente da nomeação do presidente do TJ. O perfil do juiz que coordenará a Gaorp está muito mais relacionado a essa escolha do que a uma experiência prévia com a temática da habitação e do urbanismo.

Como no Gaorp, na Vara Agrária, a complexa rede de hierarquia em torno do direito de propriedade certamente é um fator que explica a pouca incidência de decisões que favoreçam um enquadramento de priorização da função social da propriedade.

Por outro lado, a alegação e defesa de um direito de propriedade absoluto se manifestam de diferentes formas dentro dos processos, desenhando-se em cada caso apresentado. Em determinado processo, por exemplo, baseia-se em uma série de documentos registrados em cartório e que dariam veracidade às alegações do autor da ação. Em outros, a existência do direito é comprovada pelo reconhecimento do agir como proprietário pelas pessoas da comunidade na qual os autores da ação vivem. Como afirma Grossi (2006GROSSI, P. História da propriedade e outros ensaios. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.) sobre a propriedade

Síntese de poderes, não tem um conteúdo determinável e repugna-lhe toda definição conteudista. A sua abstração é total: abstrato é o seu sujeito titular e abstrata é a sua linha mestra com uma capacidade ilimitada de tolerar os conteúdos mais variados (GROSSI, 2006GROSSI, P. História da propriedade e outros ensaios. Rio de Janeiro: Renovar, 2006., p. 82).

O que confere legitimidade ao direito de propriedade é a alegação por parte do autor da demanda, mesmo que as provas utilizadas para comprová-lo sejam precárias. Em casos nos quais a propriedade não consegue ser comprovada, mobiliza-se o argumento de que as reintegrações de posse em tramitação na Vara Agrária são destinadas à proteção da posse, não da propriedade, razão pela qual a comprovação jurídica da propriedade do imóvel não é elementar:

Processo número 0000029-79.2010.8.02.0095

Réu: CPT / Data da ocupação: 30 de março de 2010

Documento: decisão de concessão de liminar concedida pelo juiz A

[...] o autor conseguiu comprovar todos os requisitos necessários e mesmo se assim não fosse, é inconcebível discutir domínio no bojo de Ação Possessória, e desta forma também entendeu a eminente relatora desembargadora [...] a ação possessória é instrumento destinado à defesa do jus possessioni e não do jus possidendi, razão pela qual é imprescindível se esteja a proteger por ela aquele que detém a posse, pouco importando quem é o titular do respectivo direito de propriedade.

É certo que as ações possessórias efetivamente se destinam à proteção da posse, não da propriedade. No entanto, o que percebemos, nas ações judiciais analisadas, é que há uma intercambialidade entre posse e propriedade, favorecendo-se as reivindicações dos autores das ações judiciais. A predileção por ações possessórias na gramática jurídica das ocupações do Judiciário é justificada pela possibilidade de concessão de liminares, em um procedimento mais célere em favor dos autores da ação (CNJ, 2021) - ainda que, para tanto, os autores tenham que participar de uma audiência de conciliação.

Outra estratégia utilizada pelos proprietários é se valer de precedentes históricos para conferir legitimidade ao direito alegado, tornando críveis as origens históricas de suas alegações. Como os autores devem provar a posse ao ajuizar uma ação possessória, eles buscam comprovar a cadeia de domínio daquela terra, o que é feito, algumas vezes, não pela apresentação do registro da propriedade, mas pela reconstituição de uma história de posse. Busca-se atribuir à posse uma centralidade no estabelecimento de relações jurídicas entre o autor da ação e a terra objeto de disputa3 3 Tal centralidade, como observou Dias Paes (2018), era comum no século XIX, contexto no qual a posse era uma das principais categorias jurídicas estruturantes da relação entre pessoas e coisas. Os títulos de propriedade não tinham a centralidade na determinação de direito, como se observa nos dias atuais. . Nesse contexto, o ato de entrar com uma ação judicial na vara agrária se torna também uma oportunidade de legitimar a propriedade. O direito e o Judiciário funcionam como mais um mecanismo, uma estratégia a que se recorre para dar legitimidade ao que é dito, corroborando, assim, o direito alegado pelo autor da ação.

Nesse sentido, em um determinado processo, o autor entrou com uma ação em decorrência da ocupação de uma fazenda destinada à plantação de cana de açúcar e à pecuária no município de Flexeiras, em 30 de março de 2010. Tratava-se de uma área que pertencia à fazenda Prazeres, cuja propriedade era de uma companhia açucareira, mas que foi desapropriada para a reforma agrária. Em audiência, diante da impossibilidade de acordo, o juiz concedeu 10 dias para que o autor apresentasse documentos que comprovassem a posse ou a propriedade do imóvel. Em contestação, a CPT afirmou que não havia no cartório registro do imóvel. O autor afirmou que essa parte da terra não pertencia às terras da falida companhia, mas sim ao autor, razão pela qual não fora desapropriada. Diante do posicionamento do Ministério Público pelo indeferimento da liminar em razão da ausência de provas da posse, o autor contestou, afirmando que apresentou as seguintes provas: cópia de ação de reintegração anterior, datada de 2007, em que afirma que o INCRA reconheceu a posse ao elaborar a planta do imóvel, excluindo a área; juntou ainda cópia da sentença proferida nessa ação, do recurso interposto e da decisão do TJ julgando improcedente o agravo; BOs; relatório da Associação dos Plantadores de Cana de Alagoas e declarações da usina Guaxuma para demonstrar a moagem da cana desde 1978. Confirmando o argumento, o juiz concedeu a liminar.

Nesse caso exemplificativo, o autor juntou uma série de documentos que, por si só, não conseguiriam comprovar a posse alegada, mas que ali, lida em conjunto no contexto da Vara Agrária, serviu para a obtenção da tutela jurídica. O que notamos é um esforço, por parte do autor, em forjar uma fachada burocrática e jurídica para conferir legalidade à sua propriedade. Encampada a tese apresentada pelo autor nos processos de reintegração de posse, a decisão terá, então, uma força comprobatória que ultrapassa o próprio processo em que ela foi concedida.

Além disso, em alguns processos, ser proprietário de terra faz com que determinadas ilicitudes cometidas sejam desconsideradas, afastando a aplicação da função social da propriedade. Em uma fazenda em Porto de Pedra, ocupada pela Liga dos Camponeses Pobres, a reintegração foi concedida e cumprida por diversas vezes, em razão da reocupação da propriedade. Ao final do processo, o Ministério do Trabalho e Emprego encaminhou um ofício para a Vara Agrária informando que foi constada uma série de irregularidades trabalhistas na usina: a empresa não realizava a pesagem de cana de açúcar de forma regular; os salários estavam sendo pagos em valores abaixo do que efetivamente deveriam; os trabalhadores eram transportados em veículos de transporte coletivo de passageiros sem autorização da autoridade competente, além de não comportar todos eles sentados; as ferramentas fornecidas não eram seguras e eficientes. Mesmo assim, foi concedida a reintegração de posse e a propriedade foi desocupada.

Há, assim, uma aplicabilidade seletiva da lei que reflete o peso de influências econômicas, sociais e políticas, em que pese o esforço discursivo em afirmar a lei como universal e neutra (Repolês, 2013REPOLÊS, M. F. S.. O direito na teoria e o direito na prática com o reconhecimento de novos sujeitos constitucionais. Rev. Fac. Direito UFMG, número especial: jornadas jurídicas Brasil-Canadá, p. 211-227, 2013.). O direito de uns vale mais do que o de outros; a violação de alguns direitos pesa menos do que a de outros. Os princípios jurídicos, na grande maioria dos casos, são evocados para dar mais legitimidade aos pedidos dos proprietários. As decisões judiciais tendem, predominantemente, a estar em consonância com o direito de propriedade privada, entendido como absoluto.

Nas análises das decisões judiciais, o que se percebe é uma avaliação do direito de propriedade reivindicado pelo autor como se ele fosse revestido de uma objetividade e clareza que faltaria, em alguma medida, ao direito evocado pelos movimentos sociais. Há uma tendência de argumentação com base na literalidade da lei civil, ignorando-se outros diplomas normativos (CNJ, 2021). Na Vara Agrária, a tendência também tem sido de se privilegiar o direito de propriedade sem a função social da propriedade em detrimento da posse com função social (CNJ, 2021). E, ainda quando mobilizado o enquadramento da função social não é capaz de produzir grande impacto no comportamento geral da Vara Agrária e do TJ-AL.

Melo (2012MELO, T. de. Direito e ideologia: um estudo a partir da função social da propriedade rural. 2 ed. São Paulo: Outras expressões, Dobra Editorial, 2012.) argumenta que a previsão constitucional da função social da propriedade e a sua regulamentação ordinária pode provocar um esvaziamento e uma negação da própria função social. O que percebemos, pelas análises dos processos judiciais, é que nos argumentos apresentados pelos proprietários de terra, que acabam ecoando na maioria das decisões, “a função social da propriedade [...] se vê reduzida à aferição de índices de produtividade” (Melo, 2012, p. 113). Ainda que a dimensão do dano ambiental ou das relações trabalhistas seja trazida em algum dos casos analisados, ela não é suficientemente utilizada para afastar o enquadramento do direito de propriedade absoluto, resultando em uma associação direta entre produtividade e função social da propriedade na grande maioria dos processos judiciais. Ou seja, se o proprietário de terra consegue comprovar a produtividade da terra, essas outras dimensões perdem força. E mesmo que se questionem os índices de produtividade da terra, a análise é feita de maneira superficial, especialmente porque a conciliação é imposta como a solução desejada.

Quanto aos integrantes dos movimentos sociais, poucos são os casos em que há um manifesto reconhecimento de algum de seus direitos. Os direitos relacionados aos acampados precisam sempre de uma complementação, seja de outras normas, seja da necessidade de atuação de outros órgãos. Inexiste, no nosso corpo de análise, processo em que a sentença final tenha sido favorável aos movimentos, no sentido, por exemplo, de afirmação da aplicação da função social da propriedade ou da afirmação da necessidade de prevalência dos direitos humanos fundamentais frente ao direito de propriedade privada.

Em geral, o direito dos acampados é reconhecido de forma indireta, concretizado em não decisões, ou em decisões que concedem uma permanência muito precária. Agir dentro do processo, de alguma maneira, dando visibilidade aos movimentos sociais, é fazer um uso marginal do direito. Não raro tais decisões são enquadradas como ideológicas ou não condizentes com o direito, especialmente pelos proprietários de terra, como demonstramos na primeira seção.

Essa limitação das soluções da vara agrária é sentida pelos integrantes dos movimentos sem terra:

Por mais que na Vara Agrária já tenham passado alguns juízes que têm uma sensibilidade maior, que tem uma compreensão, uma leitura mais avançada sobre o papel da reforma agrária, mas assim, no que diz respeito à função social da terra, a nossa compreensão é que o Poder Judiciário por natureza é um poder conservador. E é um poder que não contribui efetivamente para a realização da reforma agrária. [Na Vara] todos os processos passam a ser centralizados, porque também havia situações do próprio juiz... a situação de o próprio juiz ir à área dar o despejo. A Vara tem esse ganho, esse elemento de ter uma centralidade maior, de se estabelecer uma mesa de negociação. Contudo, é uma mesa de negociação que não vem pra resolver estruturalmente o problema. Como o direito por sua essência também ele é patrimonialista, a preocupação maior sempre é a questão da propriedade. Não se coloca ali na mesa que há outros direitos. O direito à propriedade é uma questão que se questiona o direito à manutenção dele. Mas, por outro lado, há direitos também colocados dos trabalhadores. Que, pra muita gente, ali é o local de moradia e subsistência. Então [a Vara Agrária] é uma mesa de negociação, mas num processo totalmente desigual. E que muitas vezes permite um diálogo pra se dar um prazo pra as famílias poderem sair da terra, não pra resolver o problema (Entrevista concedida às autoras por uma liderança do MST em 2016).

Poucos são os casos em que não foi possível a realização de acordos de saída dos movimentos sociais da propriedade ocupada. Em 57% dos casos analisados, ou houve a realização de acordos (31%) ou, diante da impossibilidade de firmá-lo, foi determinada a reintegração de posse (26%). Os processos mais céleres caminharam em uma dessas duas direções. Em 10% dos casos, o processo foi finalizado sem que houvesse uma decisão de mérito, seja porque o autor da ação desistiu do processo seja porque não cumpriu os atos de diligência a ele atribuídos. Em 16% dos casos, ou os movimentos sociais saíram espontaneamente da propriedade (8%), sem intervenção do Judiciário, ou os processos judiciais foram encaminhados para outras instâncias ou varas (8%). Em 6% dos casos, não foi possível identificar qual foi a solução final dos processos4 4 É preciso ressaltar, primeiramente, que a despeito da tentativa de criação de categorias, esses resultados/ações alcançados nos processos, em alguns casos, não acontecem isoladamente. Assim, por exemplo, em processos em que se questiona se o autor da ação tem legitimidade, se é proprietário/possuidor da terra em disputa, o INCRA ou ITERAL apresentaram interesse na aquisição da terra ou esse interesse foi apresentado em processos que foram encaminhados para outra vara ou para a segunda instância, entre outras possibilidades de combinação. Aqui tentamos usar o critério de escolha do elemento que mais se sobressaiu dentro dos processos, dando-lhe o perfil mais expressivo, reconhecendo, contudo, a arbitrariedade da escolha, no sentido de não ser uma distinção natural. .

A tabela 4 apresentada abaixo consolida esses dados:

Tabela 4
Tipos de resolução dos processos judiciais

Há um universo de 11% dos processos analisados em que ou o INCRA ou o Iteral demonstraram o expresso interesse na aquisição da propriedade para realização do assentamento dos acampados (7%) ou em que há um questionamento mais sistemático dos direitos de propriedade, em sentido absoluto, do autor da ação (4%). É dentro desse universo que detectamos uma morosidade que contrasta com a celeridade com que os processos normalmente são julgados na vara agrária.

É importante ressaltar, primeiramente, que a velocidade com que um processo é julgado na vara agrária está diretamente relacionada ao perfil do magistrado que assumiu a sua titularidade. Com o juiz B, a resolução dos processos é menos acelerada especialmente porque há uma insistência na realização de acordos e de saídas conciliadas, evitando-se decisões de reintegração de posse com uso de violência policial. Até se construir um acordo final no caso, não raro, esse magistrado se vale de atos que protelam a decisão final.

Se a maior ou menor percepção dessa morosidade se relaciona diretamente com o perfil do magistrado, ela se torna mais evidente no universo de processos em que há um interesse do INCRA e do Iteral na compra do imóvel e naqueles em que há um questionamento mais sistemático do direito de propriedade do autor. Não raro são os casos relacionados a ocupações e conflitos históricos no estado, nos quais os movimentos sociais há anos buscam uma forma de assentar definitivamente os acampados e cujas origens são anteriores à própria criação da Vara Agrária.

A morosidade também pode estar atrelada ao maior poder de organização e articulação dos movimentos nesses casos concretos, diante de uma capacidade de mobilizar não só recursos financeiros, mas também uma estrutura de apoio maior, o que garante maior visibilidade e uma maior mobilização de outros atores institucionais, no mesmo sentido apontado na pesquisa CNJ (2021).

Nesses casos, observamos de maneira mais evidente um tipo de morosidade que Santos (2007SANTOS, B. S.. Para uma revolução democrática da justiça. São Paulo: Cortez Editora, 2007.) denominou de morosidade ativa:

Interposição, por parte não só de operadores concretos do sistema judicial (magistrados, funcionários, membros do Ministério Público, advogados), mas também de algumas das partes e terceiros envolvidos no processo, de obstáculos para impedir que a sequência normal dos procedimentos desfeche o caso. [...] As situações de morosidade ativa são situações de processo “na gaveta”, de intencional não decisão em que, em decorrência do conflito de interesses em que estão envolvidos, é natural que os envolvidos e os responsáveis por encaminhar uma decisão utilizem todos os tipos de escusas protelatórias possíveis (SANTOS, 2007SANTOS, B. S.. Para uma revolução democrática da justiça. São Paulo: Cortez Editora, 2007., p. 30).

O que se evidencia nesses processos é a dificuldade em sair do enquadramento de um direito de propriedade absoluto, ao mesmo tempo em que há entraves burocráticos e políticos para fora do Poder Judiciário que influenciam diretamente na irresolução desses processos na Vara Agrária, evidenciando-se a clara tendência de se prestigiar em maior medida o direito alegado pelo autor da ação (CNJ, 2021). Há uma produção por diferentes atores de uma confusão e de procedimentos que não se resolvem. Em paralelo à confusão e irresolução, buscam-se soluções extrajudiciais, políticas que podem ou conduzir à legalização de algum tipo de usurpação (Holston, 1961) ou possibilitar, finalmente, o assentamento dos acampados.

Na Vara Agrária, dentro desse universo menor de processos, há casos que tramitam há anos, cuja complexidade é tão grande que conduz a uma perspectiva de não solução do conflito. Esses processos são postergados pela ação dos agentes, jurídicos ou não, por meio da constante repetição de atos (audiências, intimações, inspeções, questionamentos) em um mesmo processo. São casos enquadrados como complexos e nos quais não se vislumbra um resultado final definitivo, seja para a concessão da reintegração de posse, seja para adoção de alguma medida que possibilite o assentamento dos integrantes da ocupação. Tal como concluiu Holston (1991HOLSTON, J. Legalizando o ilegal. Trad.: João Vargas. In: The misrule of law: land and usurpation in Brazil: comparative studies in Society and History. 33 (4) pp. 695-725, 1991.), essa irresolução não visa necessariamente atingir um fim fraudulento. Muitas vezes, é utilizada como forma de trazer o conflito para a arena jurídica e assim deixá-lo contido, aguardando-se uma vontade política necessária para a sua resolução. Ao invés de decidir, o magistrado vai adotando uma série de atos protelatórios, que não resolvem o conflito, mas ao menos o deixa controlado no aguardo de uma vontade política necessária para resolvê-lo.

O caso da fazenda Sede ou São Simeão é especialmente esclarecedor. A fazenda Sede é uma fazenda pertencente a uma usina que fica localizada no município de Murici. Foi ocupada em 17 de fevereiro de 2005, pelo Movimento de Libertação dos Sem Terra (MLST), nela permanecendo, a despeito das incontáveis decisões de reintegração de posse.

O elemento que complexifica a demanda é a existência de um débito que a fazenda possui com a Previdência, estimado, à época, em R$ 16.871.100,81 (dezesseis milhões oitocentos e setenta e um mil cem reais e oitenta e um centavos). O INSS afirmou que a fazenda estaria empenhada e seria leiloada. O movimento reivindicava que a dívida fosse revertida em assentamento dos acampados que habitavam a fazenda há mais de onze anos. Em sentido contrário, a defesa argumentou que a dívida teria sido parcelada e a empresa estava realizando o pagamento. A despeito de a dívida datar dos anos 1990, somente com a promulgação da lei de parcelamento, em 2009, é que a usina se interessou em realizar o pagamento. Até então, a usina se favorecia das tramas jurídicas que possibilitavam a utilização da burocracia a seu favor. Diante do argumento de que a dívida estava sendo paga, o movimento argumentou que as provas apresentadas não comprovavam o alegado, requerendo que os autores apresentassem novas provas. O juiz A negou o pedido do movimento social alegando se tratar de pedido alheio ao processo, que deveria tratar unicamente da posse da terra. Caracterizou o pedido do movimento como tentativa de tumultuar o trâmite processual.

O INCRA se posicionou favorável à demanda do MLST. No entanto, o Ministério Público, afirmando que a dívida estaria mitigada, e diante do não interesse do autor em vender o imóvel, defendeu que a reintegração de posse seria a única saída. Foi, então, concedida a liminar, pelo juiz A, em 27 de setembro de 2011. O MLST conseguiu mobilizar suas redes interpessoais, acionando pessoas de diferentes instituições, especificamente o Tribunal de Justiça e o Governo do Estado, conseguindo que o processo fosse, inicialmente, suspenso por 60 dias, depois por mais 60. O tempo foi suficiente para que o juiz A terminasse o seu mandato e o juiz B e um novo promotor de justiça assumissem. Na nova configuração, a reintegração foi suspensa, priorizando-se a realização de audiências e inspeções judiciais - exceto quando o juiz A voltou, em substituição, determinando novamente a reintegração, mas que foi suspensa por 45 dias quando do retorno do juiz B.

Até a realização da análise do processo judicial, diversas audiências tinham sido realizadas, mas nenhuma solução fora encontrada. O caso mostra a dificuldade em se concretizar uma decisão que resguarde o enquadramento constitucional do direito de propriedade. Mesmo diante da existência do débito milionário junto ao poder público, a Vara Agrária teve dificuldades em relativizar o direito de propriedade. Diante da complexidade do caso, os juízes marcaram novas audiências, questionaram o Ministério Público e outros órgãos, como o INCRA, o Iteral, por diversas vezes e sobre os mesmos pontos, em um ciclo de não resolução.

Tais decisões, contudo, são também estratégias utilizadas pelos movimentos dentro das estruturas de mobilização social e coletiva, como discutiremos a seguir.

3.2 Dano como luta: função social da propriedade e direito à manifestação na voz dos movimentos sem terra

Embora a Vara Agrária evidencie uma prevalência do enquadramento do direito de propriedade absoluto em suas decisões e acordos, os movimentos enxergam nela espaços de disputas. Valendo-se da oportunidade legal aberta com a criação da Vara Agrária, os movimentos atuam de modo a conseguir produzir algumas respostas positivas da Vara Agrária. A criação da Vara, embora não tenha conduzido a uma priorização do enquadramento da função social da propriedade, ao tempo em que resultou em uma moderação da violência do Estado nas reintegrações, transformou-se em uma nova arena de disputas não apenas jurídicas, mas também políticas.

Como exemplo, cita-se o acordo de trégua que fora firmado, durante o mandato do juiz A, para impedir a concessão de reintegrações de posse, privilegiando-se as audiências de conciliação. Mesmo crítico a tais audiências, um integrante do MST afirmou que “ninguém gosta de apanhar da polícia”, por isso era importante parar com as reintegrações violentas e priorizar as audiências de conciliação. Essa percepção aponta para uma apropriação, por parte dos movimentos sociais, desses mecanismos institucionais, reforçando suas ações e criando ciclos que possibilitam mudanças, fenômeno já observado em outros contextos (Tarrow, 2009TARROW, S. Poder em Movimento: Movimentos Sociais e Confronto Político. Petrópolis, Vozes, 2009.; Silva e Oliveira, 2011SILVA, M.; OLIVEIRA, G. L. “A Face Oculta(da) dos Movimentos Sociais: Trânsito Institucional e Intersecção Estado-Movimento: Uma Análise do Movimento de Economia Solidária no Rio Grande do Sul”. Sociologias, vol. 13, no 28, 2011.; Losekann, 2013LOSEKANN, C. “Mobilização do direito como repertório de ação coletiva e crítica institucional no campo ambiental Brasileiro”. Dados, v. 56, n. 2, p. 311-349, 2013.). A atuação na Vara Agrária vai além de uma conotação estritamente jurídica, ganhando outros significados, que inclui até mesmo o “confronto político” (Losekann, 2013).

Assim como constatou Losekann (2013LOSEKANN, C. “Mobilização do direito como repertório de ação coletiva e crítica institucional no campo ambiental Brasileiro”. Dados, v. 56, n. 2, p. 311-349, 2013.), ao analisar o contexto das estruturas de mobilização social e coletiva da mobilização ambientalista, a performance na Vara Agrária está inserida em um conjunto de ações estratégicas dos movimentos sociais que passa pela articulação de instrumentos institucionais, como as audiências de conciliação, e a articulação interpessoal entre diferentes sujeitos posicionados nas instituições do Estado e da sociedade (Losekann, 2013). Nesse sentido, por exemplo, os movimentos sociais atuaram para influenciar a escolha do juiz que substituiria o juiz A. Reivindicaram a presença de um magistrado com um perfil mais sensível às questões sociais e, portanto, capaz de produzir enquadramentos favoráveis à função social da propriedade e que não transformasse a Vara Agrária em um “balcão de reintegração de posse”, nas palavras de uma advogada entrevistada, acusação que pesava contra o juiz A.

E, de fato, com o mandato do juiz B, há novamente um tensionamento do direito de propriedade diante do alargamento da compreensão dos sentidos da função social da propriedade. O magistrado assim declarou:

[...] Eu chego a ser corajoso. Às vezes, eu extrapolo. Eu cito muito um exemplo de que cinco fazendas foram invadidas de um proprietário e o proprietário, e muita gente nessas fazendas, e o proprietário não abria mão de nada. Queria que todos saíssem de todas as fazendas porque precisava plantar a cana dele. E, é difícil a situação. Quer dizer, estava certo ele. Porque a terra não podia ser desapropriada, comprovadamente era produtiva, não se enquadrava na questão de desapropriar. Mas eu via aquelas famílias que já estavam ali plantando, e eram numerosas as famílias... que é que eu decidi, contrariando a própria lei? Se eram cinco fazendas, eu chamei os líderes dos movimentos e eu orientei para que ficassem apenas em uma e o proprietário pudesse plantar em quatro fazendas. Então, com isso, eu consegui resolver o problema, quer dizer, ao arrepio da lei, com muita coragem. (entrevista concedida pelo juiz B em 2015).

A atuação dos movimentos sociais na Vara Agrária, portanto, passa pela articulação dessas redes interpessoais e por uma busca de resposta do Judiciário que vai além dos contornos do direito de propriedade, numa tentativa de provocar uma ação responsiva do Estado, tal como identificou Losekann (2013LOSEKANN, C. “Mobilização do direito como repertório de ação coletiva e crítica institucional no campo ambiental Brasileiro”. Dados, v. 56, n. 2, p. 311-349, 2013.) e Maciel (2011MACIEL, D. A. Ação coletiva, mobilização do direito e instituições políticas: o caso da campanha da lei Maria da Penha. Revista brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 26, n. 77, p. 97-112, 2011.), e, assim, redesenhar a própria Vara Agrária.

A mobilização dessas redes implica também em uma capacidade de os movimentos sociais identificarem a quem cabem as responsabilidades nesse contexto, manejarem a linguagem do direito em suas performances e, assim, cobrar a atuação dos magistrados no sentido de suas demandas:

Que nem eu disse na cara dele [do juiz B], ele aí e eu sentado aqui [...] que ele disse uma coisa assim, “vamos pedir a Deus!”, uma coisa assim que ele falou, não foi? Aí eu disse a ele: primeiramente Deus sim, nosso pai! E o segundo o senhor, que o senhor pode acabar com isso! É só dar a ordem, dar a causa ganha pra gente, que está tudo acabado! Aí ele ficou olhando pra minha cara assim, aí ele ficou rindo. Aí ele disse “Vamos ver!”, uma coisa assim, que não tô me lembrando mais (acampado da LCP em entrevista concedida em 2016).

Por outro lado, assim como acontecera em relação ao juiz C, a flexibilização, em certo nível, do enquadramento do direito de propriedade absoluto é vivida pelo magistrado B como uma atitude ousada, com potencialidade de comprometer a sua atividade funcional. E tal como acontece com os movimentos sociais, os magistrados também necessitam estar e reforçar essas redes interpessoais para que suas próprias decisões não sejam reformadas ou que resulte em algum procedimento administrativo contra o magistrado. Nesse sentido, continuando o relato anterior, o juiz C afirmou:

Mas de sorte que houve um recurso do proprietário e isso foi para o Tribunal. Mas o Tribunal, de sorte, caiu na mão de um desembargador que ele tem uma visão social, e manteve a minha decisão. Quer dizer, pra o juiz agir assim, ele tem que ter muita coragem. Porque primeiro ele tá contrariando a lei, depois tá enfrentando o próprio Tribunal. Administrativamente ele está se expondo, né? Então eu tenho usado dessa coragem para que os líderes e componentes dos movimentos entendam que eu tô sendo o Estado nesse momento, eu tô tendo a coragem de decidir de forma responsável (entrevista concedida pelo juiz B em 2015).

A mobilização do direito é observada em sua dupla dimensão: instrumental e simbólica. Conforme já constatado na pesquisa realizada pelo CNJ (2021), a publicização de eventos críticos, que expõem a ameaça a direitos fundamentais dando-lhes repercussão midiática, funcionam como “catalisadores de respostas mais efetivas do Sistema Judiciário para viabilizar tratamento específico para a resolução de conflitos coletivos fundiários” (CNJ, 2021, p. 118).

A presença dos movimentos sociais traz para as demandas outros elementos e direitos que não apenas o direito de propriedade. Na discussão da fazenda Sede, em audiência, um dos acampados afirmou: “a questão aqui não é financeira, porém trata-se de vidas sacrificadas, que estão no imóvel há dez anos, produzindo, e que não têm para onde ir.”. A dimensão simbólica da mobilização permite a utilização da lei de maneira diferente, gerando efeitos distintos. Em outro processo, o juiz B afirmou que “hoje em dia, é inviável a visão desse direito [de propriedade] de forma absoluta e individualista, de modo que o proprietário não mais pode utilizar o seu bem egoística e indiscriminadamente”, negando-se a conceder liminar de reintegração de posse. Um desembargador, analisando recurso interposta pelo autor - uma usina de cana de açúcar - concedeu efeito suspensivo à decisão até o julgamento do mérito do processo, sob a alegação de que a concessão de liminar, nessa etapa do processo, causaria dano irreversível ao movimento. Apontou que o dano sofrido pelo autor deve ser concreto e irreversível e não hipotético. Na votação no pleno do TJ, foi dado provimento ao recurso do movimento, em razão da falta de prova da propriedade da usina, configurando um grave dano de impossível ou difícil reparação a desocupação em sede de liminar.

A dimensão simbólica, tal como observa Losekann (2013LOSEKANN, C. “Mobilização do direito como repertório de ação coletiva e crítica institucional no campo ambiental Brasileiro”. Dados, v. 56, n. 2, p. 311-349, 2013.), evidencia que, ao divulgar suas posições nesses contextos institucionais, os movimentos conseguem conquistar o apoio de certas elites, podendo até conquistar novos ativistas, tanto fortalecendo os movimentos, como impulsionando a criação de novas doutrinas jurídicas. Por essa razão, é importante considerar a mobilização em uma perspectiva processual ampla e contextual. Processos que possuem um maior apoio da mídia ou maior repercussão social confirmam a tendência observada em outros processos de conflitos fundiários, de maior permeabilidade a processos negociais e a argumentos que considerem os “efeitos da sentença e vulnerabilidade das partes envolvidas” (CNJ, 2021, p.84).

Longe de representar um fim em si mesmo, a atuação dos movimentos sociais na Vara Agrária tem uma visão mais realista sobre as expectativas dos efeitos da decisão nas mudanças sociais e institucionais. O uso da mobilização do direito se baseia, antes de tudo, na crença de indivíduos e grupos na eficácia dos recursos legais, mesmo que os movimentos critiquem a legislação e reivindiquem novos direitos (Fofana, 2021FOFANA, Habibou. Vérité et justice pour Norbert Zongo: une mobilisation conjointe du droit et de la rue au Burkina Faso, in e-legal, Revue de droit et de criminologie de l’ULB, Volume n°5, février 2021.), numa relação ambivalente. Embora críticos à vara, os movimentos incorporam em suas performances não apenas a linguagem do direito, mas também seus instrumentos:

O juiz teve aqui e falou coisa que agradou. Mas só de boca não me convém, não! Eu quero é escrito por ele, pra botar um no cartório e o outro ficar nos meus cuidados. E quando chegar alguém pra reclamar, eu mostrar! “Olhe aqui, nós estamos aqui à toa, não!”. É isso que nós queremos dele [...] (Trabalhador rural da Liga dos Camponeses Pobres, 2016).

Diante do império do direito de propriedade, os movimentos também reivindicam para si a força desse direito ao reforçar o sentido da ocupação em sua relação com a posse de um papel escrito que será levado ao cartório. É a mágica do direito ou seu poder de nomear.

O caso da Vara Agrária demonstra como, em um contexto desfavorável, o direito pode ser mobilizado favoravelmente pelos movimentos sociais. No sentido trazido por McCann, os “direitos” podem dar origem à “consciência de direitos”, de modo que os indivíduos e grupos podem imaginar e agir à luz de direitos que não foram formalmente reconhecidos ou aplicados pelas instituições oficiais. A consciência de direitos é, portanto, “o processo contínuo e dinâmico de construção da compreensão e da relação do indivíduo com o mundo social a partir do uso de convenções e discursos jurídicos” (McCann, 1994, p. 7). Assim, embora as vitórias judiciais na Vara Agrária, muitas vezes, não se traduzam automaticamente em mudança social desejada, elas podem ajudar a redefinir os termos de lutas imediatas e de longo prazo entre os grupos sociais.

Considerações finais

A partir do artigo, demonstra-se a existência de uma diversidade de enquadramentos em torno da categoria de direito de propriedade, evidenciando como os movimentos sem terra articulam argumentos jurídicos sobre a função social da propriedade e o direito à manifestação como parte de sua atuação na Vara Agrária. Demonstraram-se, além disso, padrões de negociações e decisões em torno do direito de propriedade nos conflitos agrários, indicando a eficácia ou limitação desse espaço institucional e sua influência na organização dos movimentos sociais. Por fim, os dados evidenciem ainda as transformações dos enquadramentos em torno da categoria do direito de propriedade que transita do contexto das ruas para o contexto institucional.

Em que pese as limitações encontradas na Vara Agrária, impostas, sobretudo, pela preponderância do direito de propriedade, é possível encontrar um espaço para se posicionar contra o sistema e buscar conquistas, especialmente em razão da visibilidade dada ao conflito. Essa resistência, em que pese não ter o poder de trazer grandes alterações estruturais, causa um desgaste nesse sistema, abrindo brechas para que os movimentos possam disputar sentidos e significações em outros espaços, e, assim, alcançar mudanças efetivas no combate às injustiças sociais no campo brasileiro, num busca pela concretização da reforma agrária. É preciso estar atento, no entanto, às limitações do poder transformador do direito.

Consciente dos múltiplos obstáculos, limitações e determinações que se impõem sobre a Vara Agrária, é preciso lutar, reivindicando-a como um instrumento auxiliar, não principal, único e exclusivo, na busca de uma sociedade menos injusta. É por meio da ação e da resistência dos movimentos sociais que se torna possível questionar a tendência conservadora do direito (Santos, 2007SANTOS, B. S.. Para uma revolução democrática da justiça. São Paulo: Cortez Editora, 2007.), fazendo com que a Vara Agrária deixe de ser um canal unicamente utilizado para atender aos interesses dos proprietários de terra. É imprescindível, nesse sentido, manter a luta política para além das disputas jurídicas travadas na Vara Agrária, compreendendo, assim, que esta, por si só, não representa uma conquista, em que pese a possibilidade de ser instrumentalizada nesse sentido.

Referências

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  • 1
    O Leste é a maior mesorregião em aspecto territorial, abrangendo o Litoral e a Zona da Mata. É a mesorregião de maior concentração de conflitos fundiários no estado. Para mais detalhes, Castro, 2017; Lima, 2020.
  • 2
    Em outra oportunidade, foi possível discutir os principais tipos de acordos realizados na vara agrária (Castro et. al., 2018). O principal acordo realizado é para a saída pacífica mediante concessão de lonas, transporte ou indenização pela plantação (19 casos). Em seguida, tem-se a concessão de prazo para a permanência (17 casos), seguido de acordo pela saída apenas, sem contrapartida do proprietário (sete casos). Alguns acordos são firmados para a saída para que o INCRA realize vistoria (4). Em dois casos houve a cessão da terra e em um único caso o movimento foi deslocado para outra área da propriedade. O que se percebe é que a composição consensual, nesses casos, não necessariamente resulta na fórmula “ganho-ganha”, tendo em vista a disparidade dos termos acordados e do poder de barganha dos atores.
  • 3
    Tal centralidade, como observou Dias Paes (2018), era comum no século XIX, contexto no qual a posse era uma das principais categorias jurídicas estruturantes da relação entre pessoas e coisas. Os títulos de propriedade não tinham a centralidade na determinação de direito, como se observa nos dias atuais.
  • 4
    É preciso ressaltar, primeiramente, que a despeito da tentativa de criação de categorias, esses resultados/ações alcançados nos processos, em alguns casos, não acontecem isoladamente. Assim, por exemplo, em processos em que se questiona se o autor da ação tem legitimidade, se é proprietário/possuidor da terra em disputa, o INCRA ou ITERAL apresentaram interesse na aquisição da terra ou esse interesse foi apresentado em processos que foram encaminhados para outra vara ou para a segunda instância, entre outras possibilidades de combinação. Aqui tentamos usar o critério de escolha do elemento que mais se sobressaiu dentro dos processos, dando-lhe o perfil mais expressivo, reconhecendo, contudo, a arbitrariedade da escolha, no sentido de não ser uma distinção natural.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2024

Histórico

  • Recebido
    17 Maio 2024
  • Aceito
    11 Jun 2024
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