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A dualidade do Estado brasileiro pós-88

The duality of Brazilian State after 88

Resumo

O trabalho desenvolve hipótese apresentada por Paulo Arantes (2010), acerca da necessidade de se reabrir o capítulo da economia política da exceção brasileira (1964-1985), por meio da categoria do Estado dual. Em um primeiro movimento, de revisão bibliográfica, é resgatado o contexto de produção da obra The dual state e analisado seu conteúdo em contraste com a clássica interpretação de Neumann (2009) sobre o Nacional Socialismo. Na segunda parte, por meio de uma análise interpretativa indutiva, lastreada em evidências empíricas, demonstramos como a noção de dualidade estatal é talvez a mais adequada para descrever como a repactuação constitucional pós-88 aproxima-se perigosamente de um ponto de ruptura.

Palavras-Chave:
Estado dual; Ernst Fraenkel; Franz Neumann; Desdemocratização; (Neo)Facismo

Abstract

The present work unfolds hypothesis presented by Paulo Arantes (2010), concerning the need to reopen the political economy chapter of the Brazilian exception (1964-1985) through the category of the dual state. In a first movement, based on bibliographic revision, we rescue the context within The Dual State was produced and then analyze its content in contrast with Neumann’s (2009) classic interpretation of national socialism. In the second section, through an inductive interpretation analysis based on empiric evidences, I argue the state duality notion is perhaps the most adequate tool to describe how the post-88 Brazilian democratic regime is dangerously approaching a breaking point.

Keywords:
Dual State; Ernst Fraenkel; Franz Neumann; Dedemocratization; (Neo)Fascism

Introdução1 1 Este trabalho foi antes uma conferência, apresentada no 2º Congresso Crises da Democracia, organizado pelo grupo de pesquisa Politeia em dezembro de 2021. Agradeço aos comentários recebidos, na figura dos organizadores do evento, Raoni Bielschowsky e Maria Clara Santos. Agradeço ainda ao professor Martonio Lima, pela leitura atenta e comentada de uma versão preliminar.

Em um texto de 2010, intitulado 1964: o ano que não acabou, Paulo Arantes (2010ARANTES, Paulo. “1964, o ano que não terminou”. In: TELES, E.; SAFATLE, V. (Orgs.). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010., p. 231) apontava para o fato de ainda ser necessário “reabrir o capítulo da economia política da exceção brasileira de 1964 a 1985”. Passados pouco mais de uma década, esta necessidade se apresenta com ainda mais urgência.

Isto porque parte da estratégia da legitimação do atual governo federal consiste em reescrever a história da ditadura como um tempo de prosperidade, eficiência administrativa e ordem, ao mesmo tempo em que minimiza, justifica ou mesmo nega as práticas de terrorismo estatal que foram praticadas pelas forças de segurança do período.2 2 As práticas de terror praticadas pelo Estado brasileiro durante ditadura militar, não raras vezes, foram auxiliadas por grupos paramilitares e/ou financiadas por parte do empresariado nacional (WEICHERT, 2008; BOHOSLAVSKY; TORELLY, 2013). Em função destas circunstâncias, o mais acertado seria adjetivar-lhe de ditadura civil-militar-empresarial. Essas narrativas sustentaram e sustentam parte da base de apoio social do atual presidente da República e têm como condição de possibilidade o esquecimento e a impunidade que se impuseram sobre aquela quadra histórica (PEREIRA, 2015PEREIRA, Mateus Henrique. Nova Direita? Guerras de memória em tempos de Comissão da Verdade (2012-2014). Varia Historia, v. 31, n. 57, 2015., p. 865).

Analisando os resultados obtidos pela Comissão Nacional da Verdade (2014), Mateus Pereira (2015PEREIRA, Mateus Henrique. Nova Direita? Guerras de memória em tempos de Comissão da Verdade (2012-2014). Varia Historia, v. 31, n. 57, 2015., p. 865) apontava para o fato desta política pública ter aberto um caminho entre um estágio de “não inscrição” - marcado pelo vazio, pelo apagamento e pelo silenciamento - para um regime de “inscrição frágil”, no qual se dava a conhecer um pouco do que era até então reprimido. Porém, essa passagem, ainda que sutil e tardia, não apenas não teria promovido a construção de uma “memória justa” ou compartilhada sobre a ditadura civil-militar, como findou por fomentar “guerras de memória”, que nos afastam cada vez mais da possibilidade de vivenciar um sentido terapêutico do conhecimento daquele passado ditatorial em detrimento da ampliação de ressentimentos e dissensos políticos e sociais.

Entre os que defendem que o golpe de 1964 teria sido, na verdade, uma revolução (ou contrarrevolução), o negacionismo e o revisionismo sobre a ditadura passa pela adesão à tese de que todos os meios utilizados na repressão contra os dissidentes do regime, tidos como inimigos da pátria, se justificariam em função do fim maior atingido, a saber, o livramento do país da ameaça comunista. Associada à luta contra o “perigo vermelho” (PATTO, 2020PATTO, Rodrigo. Em guarda contra o perigo vermelho: o anticomunismo no Brasil (1917-1964). 2 ed. Niterói: Eduff, 2020.), a ditadura se legitimaria ainda pelo aparente sucesso com que teria conduzido a políticas econômica do período, atingindo um milagre econômico sem incorrer nas práticas de corrupção que caracterizariam a Nova República.

Na sequência da passagem citada por Arantes, o autor recomenda que a reabertura sugerida seja feita a partir da chave interpretativa presente em Behemoth (NEUMANN, 2009NEUMANN, Franz. Behemoth. Chicago, Ivan R. Dee Publicher, 2009., 1942). Escrito e publicado pela primeira vez no auge da Segunda Grande Guerra, Behemoth desafiava justamente a aparência de racionalidade e eficiência atrelada ao Estado fascista, para então denunciar o irracionalismo e a alta instabilidade daquele regime. Nessa direção, a reabertura do capítulo da ditadura civil-militar brasileira significaria a rememoração dos escândalos de ineficiência e corrupção presentes na administração do período (CAMPOS, 2014CAMPOS, Pedro Henrique. Estranhas catedrais: as empreiteiras brasileiras e a ditadura civil-militar, 1964-1988. Niterói: Eduff, 2014., 2018), mas também os resultados sociais negativos relacionados ao aumento das desigualdades sociais, ofuscadas que foram pelo “milagre” do crescimento do produto interno bruto (SAAD FILHO; MORAIS, 2018SAAD FILHO, Alfredo; MORAIS, Lécio. Brasil: neoliberalismo versus democracia. São Paulo: Boitempo, 2018.). A reabertura revelaria ainda a propinquidade existente entre as elites econômicas e militares na condução da “grande bagunça” que efetivamente foi a ditadura (GASPARI, 2014GASPARI, E. A ditadura envergonhada: as ilusões armadas. 2 ed. São Paulo: Intrínseca, 2014., p. 43). Em suma, o procedimento de reabertura impediria que se visse racionalidade onde não houve e ideologia onde se deu a brutalização direta da política (ARANTES, 2010ARANTES, Paulo. “1964, o ano que não terminou”. In: TELES, E.; SAFATLE, V. (Orgs.). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010., p. 229).

É sugerido ainda que o conceito de Estado Dual [Dual State], como elaborado e proposto por Ernst Fraenkel (1898-1975), poderia mostrar-se frutífero na análise, desta vez para demonstrar uma espécie de “continuísmo ditatorial” pós-redemocratização brasileira (ARANTES, 2010ARANTES, Paulo. “1964, o ano que não terminou”. In: TELES, E.; SAFATLE, V. (Orgs.). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010., p. 232). De acordo com Fraenkel (2017, 1941), o que existira na Alemanha entre os anos de 1933 e 1938 - período em que atuou como advogado e realizou importante pesquisa empírica dentro do regime nacional socialista - não foi o simples e súbito surgimento de um “tipo ideal” de não-Estado, marcado pela irracionalidade de um decisionismo radical. Antes, foi a emergência gradativa de um Estado dual, caracterizado pela coexistência de duas metades interdependentes e permanentemente em conflito, nomeadamente, o Estado-Norma [normative State, Normenstaat] e o Estado de prerrogativas [prerrogative State, Massnahmenstaat].3 3 Preferimos o termo “Estado-Norma”, ao invés de “Estado normativo”, como aparece em outros trabalhos em língua portuguesa (BELLO; BERCOVICI; LIMA, 2019) ou traduzidos para o português (PAXTON, 2007) por entender que o termo escolhido passa com mais precisão a ideia de que se trata de uma autoridade estatal que se expressa por meio e em respeito à normas e não, e.g., um estado que diz como as coisas deveriam ser, e por isso, normativo.

Fraenkel anotava que nos espaços de incidência do Estado-Norma persistiam existindo as características centrais da experiência jurídica liberal, é dizer, calculabilidade e previsibilidade, o que era visto sobretudo na regulação das atividades econômicas, mas que também se manifestava em áreas como o direito penal ou administrativo - justamente os campos em que Fraenkel atuava como advogado e nos quais testava suas hipóteses (FRAENKEL, 2017FRAENKEL, E. The dual State: a contribution to the theory of dictatorship. Tradução do alemão por E. A. Shils. Oxford: Oxford University Press, 2017., p. 185; MORRIS, 2013MORRIS, Douglas. The dual State reframed: Ernst Fraenkel’s political clients an his Theory of the Nazi Legal system. Leo Baeck Institute Year Book, v. 58, pp. 5-21, 2013., 2015). No entanto, a existências destes espaços de aplicação do direito não eram suficientes para que o Estado nazista pudesse ser considerado um Estado de Direito pleno, embora, por outro lado, demonstrassem que ali não existia “apenas” arbitrariedade.

Respondendo assertivamente à intuição de Paulo Arantes, entendemos que o conceito do Estado Dual de fato seja útil à descrição e compreensão do comportamento do Estado brasileiro pós-democratização, uma vez que permite a articulação da coexistência de espaços de funcionamento de um simulacro de Estado de Direito junto a importantes continuidades do aparelho estatal autoritário anterior. Enquanto a primeira metade constituiria o Estado-Norma, acessível sobretudo aos segmentos economicamente privilegiados da população e onde haveria calculabilidade e previsibilidade dos comportamentos estatais, a sua outra metade, o Estado de prerrogativas, estaria especialmente voltado aos subcidadãos (SOUZA, 2012SOUZA, J. A construção da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade periférica. 2 ed. Belo Horizonte: Editoria da UFMG, 2012.), i.e., à ralé brasileira (SOUZA et. al., 2016), e seria marcado pela brutalização da coerção estatal.

Durante e após a redemocratização, enquanto o Estado-Norma estaria relacionado especialmente às atividades econômicas, exercendo a proteção das diferentes dimensões da liberdade sobre à propriedade privada, blindando sobretudo as atividades financeiras e submetendo os demais objetivos constitucionais a sua realização (BERCOVICI, 2004BERCOVICI, Gilberto. Constituição e estado de exceção permanente: atualidade de Weimar. Rio de Janeiro: Azougue, 2004.; BERCOVICI; MASSONETTO, 2006, PAULANI, 2008PAULANI, L. Brasil delivery: servidão financeira e estado de emergência econômico. São Paulo: Boitempo, 2008.), os espaços de discricionariedade estatal, marcados pelo voluntarismo jurídico e por arbitrariedades, ainda que presente, em alguma medida, em todos os campos da regulação social, se manifestariam preferencialmente na esfera penal e sobre a população mais pobre (FLAUZINA, 2006FLAUZINA, Ana Luiza. Corpos negros caídos ao chão: o sistema penal e o projeto genocida brasileiro. Dissertação defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Direito da UnB, Brasília, 2006.; GODOI, 2017GODOI, R. Fluxos em cadeia: as prisões em São Paulo na virada dos tempos. São Paulo: Boitempo, 2017.; KILDUF, 2010KILDUF, Fernanda. O controle da pobreza operado através do sistema penal. Rev. Katál. Florianópolis, v. 13 n. 2 p. 240-249, 2010.).4 4 Essa descrição vai ao encontro da metáfora do Estado-centauro, utilizada por Loïc Wacquant (2012, p. 512) para descrever a forma estatal sob o neoliberalismo. Para o autor, o Estado-centauro exibiria “rostos opostos nos dois extremos da estrutura de classes”, edificante no topo, onde atuaria protegendo e ampliando as liberdades dos detentores do capital econômico e cultural, e penalizador na base, onde administra as populações vulnerabilizadas pelos impactos da ampliação das desigualdades sociais. Essa hipótese, aliás, encontra-se no centro da principal agenda de pesquisa do autor, acerca do crescimento e glorificação do braço penal do Estado como uma consequência necessária do Leviatã neoliberal (WACQUANT, 2014), seja nos Estados Unidos da América (WACQUANT, 2003), ou no Brasil (WACQUANT, 2015).

No entanto, embora concordemos acerca da utilidade do conceito, a observação do Estado brasileiro pós-redemocratização pelas lentes do Estado Dual finda por contrariar o argumento central desenvolvido em 1964, a saber, a ideia que teria sobrado “tudo” da ditadura brasileira, menos a ditadura (ARANTES, 2010ARANTES, Paulo. “1964, o ano que não terminou”. In: TELES, E.; SAFATLE, V. (Orgs.). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010.; ABSABER, 2010)5 5 É importante destacar que o recurso ao exagero é frequentemente reivindicado por Paulo Arantes como estratégia de exposição do seu pensamento, como feito em sua intervenção no II Seminário Direitas Brasileiras, promovido pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp em 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=NsinM6ZTYqE&t=2108s. Acesso em 19 de junho de 2020. .

Isso porque a tensão entre essas duas metades permite que enxerguemos uma escala entre democracia e totalitarismo, marcada por diferentes tonalidades de cinza, com intensidades distintas de autoritarismo. Dessa forma, se não podemos afirmar que existiu no Brasil uma democracia plena pós-88, tampouco podemos afirmar que permanecemos sobre as mesmas condições instituídas pelos atos institucionais da ditadura. Nesse sentido, parece mais acertada a noção que estivemos, durante os últimos trinta anos, sob a égide de um Estado Dual, que, no entanto, tem a sua parte normativa cada vez mais deteriorada diante das ampliações dos espaços de discricionariedade, em meio a uma crise política que ameaça romper de vez com o pacto constitucional de 88.

Nas primeiras décadas da Nova República, em função de uma série de condicionantes político-econômicas, domésticas e internacionais - como o controle da inflação pelo plano real, o boom das commodities dos anos 2000, a alternância política com respeito às regras do jogo democrático eleitoral, a implementação de políticas de redistribuição de renda, a redução da miséria, etc. - foi possível alargar os espaços de atuação do Estado-Norma, ampliando direitos e garantias a novos sujeitos, o que, por sua vez, restringia as margens de atuação do Estado de prerrogativas.

No entanto, na última década, com os impactos tardios da crise financeira de 2008, a intensificação da crise política após junho de 2013, a colonização da política por operadores jurídicos (CASTRO, 2021CASTRO, Felipe Araújo. “A contribuição do campo jurídico para a desdemocratização da esfera pública brasileira: o projeto politico da Lava-Jato”. In: BIELSCHOWSKY, R; CASTRO, F; SANTOS, M. (Orgs.). Crises da democracia: fissuras, impasses e perspectivas. Edufersa: Mossoró, 2021.) e a ascensão da extrema direita ao poder Executivo federal, assistimos a um acelerado desmonte do Estado-Norma. Essa regressão acontece em benefício da expansão dos espaços de arbitrariedades, a tal ponto de estarmos cada vez mais próximo de uma ruptura total com o pacto constitucional (AVRITZER, 2018AVRITZER, Leonardo. O pêndulo da democracia no Brasil: uma análise da crise 2013-2018. Novos Estudos CEBRAP, v. 37, n. 2, pp. 273-289, 2018.)6 6 Não têm sido raras as ameaças públicas à democracia no espaço público nacional, notoriamente advindas da própria Presidência da República e/ou dos seus entornos. Em 2020, um deputado federal, filho do Presidente da República, já não falava mais sobre se haveria ou não uma ruptura institucional, mas quando, enquanto o próprio Presidente, em certa oportunidade, decidiu ultrapassar os limites de sua retórica agressiva e intervir militarmente no Supremo Tribunal Federal (STF), sendo dissuadido da ideia apenas porque não se tratava da hora certa. As incertezas e ambiente de instabilidade são tão marcantes que, independentemente da real e efetiva potencialidade disruptiva dessas ameaças, o fato é que toda e qualquer movimentação palaciana e/ou militar, é lida sob as lentes de uma maior proximidade ou distanciamento de um golpe. Sobre as falas mencionadas: Eduardo Bolsonaro vê ‘momento de ruptura’ e cogita adoção de ‘medida enérgica’ por presidente. G1, Brasília, 28 de maio de 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/05/28/deputado-eduardo-bolsonaro-cogita-necessidade-de-medida-energica-do-presidente.ghtml. Acesso em 11 de agosto de 2020; GUGLIANO, Monica. Vou intervir! O dia em que Bolsonaro decidiu mandar tropas para o Supremo. Revista Piauí, n. 167, ago, 2020. .

Dessa forma, mais do que nunca, a compreensão do tempo presente da política brasileira depende da (re)abertura dos capítulos de sua última ditadura. Este trabalho pretende contribuir com essa tarefa por meio de um desvio pela Alemanha dos anos 1930.

Em um primeiro momento, de caráter reconstrutivo, procuramos contribuir para um resgate necessário da obra The dual state.7 7 Trata-se de obra não devidamente recepcionada no debate acadêmico nacional. A busca avançada em títulos que contenham a expressão do termo “Ernst Fraenkel”, feita no portal de periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) resulta em apenas 13 ocorrências. Destas algumas são repetidas, duas são artigos do Professor Douglas Morris - incorporados à nossas referências - e cinco são resenhas de livros do autor, nenhuma delas em língua portuguesa. Ademais, o livro The dual State permanece sem tradução para o português. Analisaremos inicialmente o contexto de produção da obra, seguido da apresentação das suas principais categorias, no intuito de demonstrar, ao final, a sua originalidade e atualidade. No processo destacaremos ainda sua complementariedade à leitura neumanniana sobre o Estado Nazista, nos opondo à posição que coloca as interpretações como irreconciliáveis (MEIERHENRICH, 2018MEIERHENRICH, J. The remnants of the Rechtsstaat: an ethnography of Nazi Law. Oxford: Oxford University Press, 2018.). As discussões sobre a política econômica do nacional socialismo, como postas pelos dois autores, servirão de base para o desenvolvimento de nossas hipóteses sobre o novo tempo brasileiro.

No segundo movimento, de caráter ensaístico, argumentamos como a noção de dualidade é, talvez, a mais adequada para descrição da atual crise política brasileira (2013 -) - quiçá de toda a história da modernização incompleta do Estado brasileiro - uma vez que a ideia de processualidade, contida no conceito, nos possibilita argumentar que vivemos desde a redemocratização em um Estado dual, que cria e administra uma normatividade discursivamente liberal, mas que é aplicada sobre sujeitos e territórios de maneira distintas.

1. Ernst Fraenkel e o Estado Dual

Em função da sua participação na Primeira Grande Guerra, Ernst Fraenkel obteve uma concessão para continuar atuando como advogado na Alemanha nazista, após o banimento do exercício desta atividade por judeus, em maio de 1933 (MORRIS, 2013MORRIS, Douglas. The dual State reframed: Ernst Fraenkel’s political clients an his Theory of the Nazi Legal system. Leo Baeck Institute Year Book, v. 58, pp. 5-21, 2013., p. 6), dando início às experiências que o possibilitariam desenvolver sua tese acerca do caráter do Estado sob o nacional-socialismo, expressa em The dual state.

Fraenkel exercia a advocacia ao mesmo tempo em que conduzia uma investigação clandestina sobre o sistema de justiça da Alemanha nazista, mesmo em circunstâncias extremamente precárias e com grande risco para sua vida (MEIERHENRICH, 2017, p. xxxv). Apenas por essas razões, The dual State já seria uma obra singular, por constituir uma espécie de etnografia do sistema jurídico do nazifascismo, produzida em seus anos iniciais, e a única análise crítica contemporânea do nacional-socialismo realizada desde dentro do regime (BRÜNNECK, 1999BRÜNNECK, A. “Vorwort zu diesem Band”. In: FRAENKEL, E. Gesammelte Schriften, v. 2. Baden-Baden: Nomos, 1999.).

Fraenkel permaneceria cinco anos e meio nessa condição, publicamente representando trabalhadores e acusados de crimes políticos e secretamente escrevendo os ensaios que resultariam no livro (MORRIS, 2013MORRIS, Douglas. The dual State reframed: Ernst Fraenkel’s political clients an his Theory of the Nazi Legal system. Leo Baeck Institute Year Book, v. 58, pp. 5-21, 2013., p. 1-3). Ele viria a deixar a Alemanha no ano de 1938, momento fundamental de consolidação do totalitarismo naquele país (MEIERHENRICH, 2018MEIERHENRICH, J. The remnants of the Rechtsstaat: an ethnography of Nazi Law. Oxford: Oxford University Press, 2018., p.19), após a extinção de todos os resquícios de Estado de Direito em benefício da ampliação ao paroxismo dos poderes discricionários do Estado e do partido nazista. Seu propósito com a elaboração da obra foi descrever os princípios básicos dos desenvolvimentos legais e constitucionais no Terceiro Reich, sublinhando sempre que suas atividades advocatícias durante o período foram essenciais para verificação de suas generalizações no confronto com a realidade da prática (FRAENKEL, 2017FRAENKEL, E. The dual State: a contribution to the theory of dictatorship. Tradução do alemão por E. A. Shils. Oxford: Oxford University Press, 2017., p. ix).

Nesse sentido, a atividade de Fraenkel no campo jurídico-profissional, portanto, nas entranhas do Behemoth, garantiu-lhe um lugar privilegiado de observação, complementar e, por vezes, superior, à posição externa de comentadores clássicos do Terceiro Reich, como o próprio Neumann (2009NEUMANN, Franz. Behemoth. Chicago, Ivan R. Dee Publicher, 2009., 1942) ou, mais tarde, Hannah Arendt (1989ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Tradução de de Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989., 1951). O seu contato direto com o sistema legal “nazificado” permitia que o autor testasse cotidianamente suas teorizações.

Na contramão da interpretação neumanniana do Terceiro Reich, visto como um não-Estado, irracional e arbitrário - uma espécie de materialização fidedigna da teoria política schmittiana -, Fraenkel argumenta que, pelo menos até 1938, o Estado nacional-socialista seria composto por metades interdependentes, paralelas, mas conflitantes, que compunham um Estado dual: o Estado-Norma e o Estado de prerrogativas.

Mais próximo das leituras weberianas e schumpeterianas - ainda que também fosse influenciado pelo materialismo histórico-dialético, presente sobretudo em seu método de investigação -, Fraenkel divergia das leituras marxistas mais ortodoxas no que concernia às intepretações sobre a ascensão do nazismo.8 8 Nesse sentido, divergimos da afirmação feita por Lima e Oliveira (2019, p. 2), acerca da obra de Fraenkel ter representado uma das primeiras aproximações marxistas de compreensão do nacional-socialismo. Com Schumpeter (1980, 1942), o autor compreendia que as dinâmicas particulares do capitalismo alemão auxiliaram a emergência do nacional-Socialismo, tendo ainda, posteriormente, adaptando-se aos objetivos do partido e garantindo certa estabilidade e longevidade ao regime. Porém, o nazismo não seria uma consequência necessária da forma que assumiu o capitalismo na Alemanha, embora tenha convivido satisfatoriamente com ele.

O livro é dividido em três partes. A seção de abertura, O sistema legal do Estado dual, na qual são apresentados o Estado de prerrogativas e o Estado-Norma e é explicitado que a tensão entre essas duas metades não seria equacionável, uma vez que a tendência já observável entre 1933 e 1938 seria a emergência de um Estado totalitário, significando o abandono dos últimos traços do Rechtsstaat.

Na sequência, a segunda parte do livro, A teoria legal do Estado dual, lida com a posição de forte repúdio do nacional-socialismo às diferentes teorias do direito natural, tanto em sua matriz cristã-ocidental quanto em suas matrizes secularizadas, fazendo com que o nacional-socialismo desenvolvesse sua própria teoria do Estado, baseada em uma noção de comunidade racialmente condicionada (FRAENKEL, 2017FRAENKEL, E. The dual State: a contribution to the theory of dictatorship. Tradução do alemão por E. A. Shils. Oxford: Oxford University Press, 2017., p. 113).

Na terceira e última parte, A realidade jurídica do Estado dual, o autor exerce a interdisciplinaridade para entregar uma curta genealogia do Estado dual (capítulo I), uma análise de suas bases econômicas (capítulo II) e uma descrição de seu atual funcionamento (capítulo III). Na segunda subseção focaremos nos argumentos presentes na análise econômica do nacional-socialismo feita por Fraenkel, para contrastá-la aos diagnósticos presentes em Behemoth. Antes, no entanto, analisaremos a primeira parte do livro, como preparação para o momento seguinte.

1.1. O Estado nazista entre normatividade e discricionariedade, entre racionalidade e irracionalidade

Para Fraenkel, o Terceiro Reich não nasceu totalitário, e, enquanto caminhava para tornar-se tal, existiram limites à realização de seus objetivos e ao exercício de suas prerrogativas, portanto, existia algo para além da arbitrariedade [lawlessness]. Esse “algo” consistia nas esferas da vida cotidiana em que permaneciam existindo elementos de segurança, previsibilidade e calculabilidade, i.e., onde operava o Estado-Norma.

O argumento central de Fraenkel gira em torno da coexistência, na Alemanha nazista entre 1933-1938, de um Estado composto por duas metades em conflito, mas interdependentes entre si: o Estado de prerrogativas, marcado pelo decisionismo arbitrário e pela ausência de meios de controle legal de suas condutas, e o Estado-Norma, caracterizado por um poder administrativo exercido dentro de limites legais e expresso via instituições como as cortes e entidades administrativas. Haveria ainda uma sobreposição do primeiro ao segundo, correspondente a um primado da política sobre o aparato técnico estatal, manifestado na possibilidade de suspensão das regulações do Estado-Norma.

Fraenkel destaca que as esferas de normatividade eram especialmente associadas ao direito privado alemão, sobretudo voltadas à manutenção do funcionamento da economia produtiva, uma vez que, já naquele período, o nacional-socialismo era (re)conhecido como uma revolução social conservadora de bases raciais, capaz de combinar autoritarismo na condução do político com uma organização capitalista da sociedade (FRAENKEL, 2017FRAENKEL, E. The dual State: a contribution to the theory of dictatorship. Tradução do alemão por E. A. Shils. Oxford: Oxford University Press, 2017., p. xxiv).

Nesse contexto, aqueles indivíduos que eram considerados elementos construtivos da ordem nacional-socialista gozavam, a princípio, da proteção do Estado-Norma, o que significava poder contar com alguma previsibilidade acerca do comportamento dos agentes estatais sobre si e suas atividades. No entanto, nem mesmo a condição de ariano e/ou grande empresário significava uma salvaguarda definitiva, considerando que uma das principais características do Estado Dual era justamente o poder que as autoridades administrativas e policiais detinham de chancelar qualquer ação como política, fazendo com que a jurisdição sobre a conduta assim considerada migrasse imediatamente do Estado-Norma para o Estado de prerrogativas (FRAENKEL, 2017FRAENKEL, E. The dual State: a contribution to the theory of dictatorship. Tradução do alemão por E. A. Shils. Oxford: Oxford University Press, 2017., p. 57).

Essa situação não era consequência não intencional do funcionamento das coisas, mas era conhecida e mesmo teorizada no campo das ciências jurídicas. Hermann Reuss, autoridade em direito administrativo e membro do partido nacional-socialista, por exemplo, usava a distinção entre relevância política potencial e efetiva das condutas na esfera privada para sustentar que o caráter político de tais atividades era variável, aumentando e diminuindo de acordo com as circunstâncias. Para o administrativista, a chamada esfera privada era, portanto, sempre relativa, dependendo da sua potencialidade política, que apenas podia ser determinada no caso concreto. O verdadeiro poder repousava nas mãos das autoridades competentes para caracterizar esta politicidade, determinando o que recaía sobre a autoridade do estado normativo e o que recaía entre as prerrogativas das autoridades estatais (FRAENKEL, 2017FRAENKEL, E. The dual State: a contribution to the theory of dictatorship. Tradução do alemão por E. A. Shils. Oxford: Oxford University Press, 2017., p.58).

Outro argumento importante desenvolvido por Fraenkel (2017FRAENKEL, E. The dual State: a contribution to the theory of dictatorship. Tradução do alemão por E. A. Shils. Oxford: Oxford University Press, 2017., p. 5) diz respeito ao fato de a ascensão do nacional-socialismo ter sido facilitada pelas práticas do campo jurídico na República de Weimar.9 9 Este argumento vai ao encontro do trabalho de outros pesquisadores do campo jurídico contemporâneos à experiência do nacional-socialismo, com o próprio Neumann, mas também Otto Kirchheimer (KIRCHHEIMER; NEUMANN, 1996). Segundo o autor, as cortes alemãs teriam contribuído para esse resultado: primeiro por reiteradamente evitar as questões centrais do debate político-jurídico e focar sua atividade jurisprudencial em questões incidentais, mas, principalmente, por agir com uma espécie de obediência antecipada, na qual abdicavam voluntariamente de seus poderes de revisão judicial.10 10 Ressalva-se apenas que o termo voluntariamente talvez não seja o mais preciso para o caso, haja vista as pressões e ameaças que deveriam existir no período - era frequente, e.g., que oficiais da Gestapo acompanhassem julgamentos de seu interesse (MORRIS, 2013).

Nesse processo, o discurso anticomunista foi essencial, pois serviu como justificativa para a repressão não apenas de atividades propriamente comunistas, mas de qualquer expressão de crença e/ou opinião que contrariasse a ordem de valores do nacional-socialismo. A atividade jurisprudencial contribuiu decisivamente nesse sentido.11 11 Ernst Fraenkel (2017, pp. 17 e ss.) narra uma série de eventos em que o discurso anticomunista foi articulado por diferentes tribunais para criminalizar quaisquer atividades que não se adequassem aos valores nacional-socialistas, manuseando categorias que ampliavam as prerrogativas dos agentes estatais, como as noções de “legítima defesa permanente do Estado” e “perigo comunista indireto”. Com efeito, nenhuma discriminação era feita entre os opositores do nacional-socialismo, todos eram rotulados simplesmente como comunistas, consequentemente, inimigos do Estado e da tradição e sobre os quais era exercida legitimamente as prerrogativas das autoridades estatais.12 12 O quadro nos remete à história da política brasileira do século XX, por meio da obra de Rodrigo Patto (2002), na qual o historiador analisa os usos estratégicos do anticomunismo no Brasil. Patto demonstra como as ameaças imputadas ao comunismo foram as principais justificativas para as duas rupturas institucionais do período (1935 e 1964), assim como, adicionamos, estão presentes no reavivamento do fantasma comunista na prática discursiva do atual governo brasileiro.

Muito embora, ao final da década de 1930, as reminiscências do Rechtstaat fossem praticamente inexistentes, com a intensificação da guerra no plano externo, a planificação quase total da economia e radicalização do regime racial em direção ao genocídio, ainda assim, durante a primeira metade desta década existiram restrições autoimpostas pelo próprio regime, que indicavam que o Terceiro Reich não poderia ser caracterizado de maneira acrítica como “totalitário”. Isso não quer dizer que ele tenha sido menos cruel do que realmente foi, até porque, como veremos, essas limitações não estavam ligadas a salvaguardas de dignidade humana, mas sim a imperativos econômicos do sistema capitalista.

Essas ideias estavam presentes nos discursos das principais autoridades do partido. O secretário de justiça, Roland Freissler, em uma intervenção de 1934, defendeu que o nacional-socialismo não acreditava que o Estado e o partido eram necessariamente os melhores líderes em todas as esferas da vida e, nesse sentido, deixavam-se largas e variadas áreas da vida para outros órgãos de liderança (FRAENKEL, 2017FRAENKEL, E. The dual State: a contribution to the theory of dictatorship. Tradução do alemão por E. A. Shils. Oxford: Oxford University Press, 2017., p. 59). Embora essa assertiva fosse exagerada, visto que muitas vezes esses órgãos de liderança eram conduzidos por membros do próprio partido, ela era verdadeira para setores importantes da economia alemã (big business). O próprio Hitler, em seu primeiro discurso no parlamento, ainda em 1933, afirmou que seu governo preservaria os interesses da nação alemã não burocratizando a sociedade, mas “encorajando a iniciativa privada e reconhecendo a propriedade privada” (FRAENKEL, p. 61).

Por essas razões, Ernst Fraenkel descreve o sistema econômico alemão do período como um “capitalismo regulado baseado na propriedade privada” e não um capitalismo de Estado, como mais tarde seria descrito por Friedrich Pollock (2019POLLOCK, Friedrich. “Capitalismo de Estado: suas possibilidades e limitações”. In: FLECK, A.; CAUX, L. P. (Orgs.). Crise e transformação estrutural do capitalismo: artigos na revista do Instituto de Pesquisa Social, 1932-1941. Florianópolis, NEFIPO, 2019.; 1941). Isso significa que não poderia ser chamado de totalitário em um sentido próprio (FRAENKEL, p. 61). Um capitalismo regulado significaria, em seus termos, a presença da atividade estatal na economia, mas não por meio do exercício irracional de prerrogativas e sim por uma regulação promovida nos limites do Estado-Norma.

Assim, o Estado-Norma era o guardião de uma série de instituições legais, como a liberdade de empresa, a garantia dos contratos, a propriedade privada - propriedade intelectual inclusa -, alguns direitos trabalhistas e a livre concorrência. Nesses termos, Fraenkel informa que a liberdade de empreendimento não apenas não tinha desaparecido, como novas restrições apenas podiam ser-lhe impostas mediante lei (FRAENKEL, 2017FRAENKEL, E. The dual State: a contribution to the theory of dictatorship. Tradução do alemão por E. A. Shils. Oxford: Oxford University Press, 2017., p. 75). Ademais, continuavam em vigor as leis weimarianas de regulação da concorrência entre empresários (FRAENKEL, 2017, p. 79), de forma que a propriedade privada em geral continuava a gozar da proteção do direito alemão, e onde quer que o sistema capitalista estivesse em risco ele poderia contar com as cortes como garantidora destas leis (FRAENKEL, 2017, p. 77-78).

Em suma, as duas metades do Estado dual alemão eram partes coexistentes, mas não harmoniosas; competitivas e não complementares. O Estado de prerrogativas era marcado, acima de tudo, pela negação da racionalidade formal, ou seja, pelo não reconhecimento de quaisquer limites à sua atuação. Por entender-se como promotor de uma justiça material, dispensava as noções de justiça formal.

O conteúdo dessa materialidade, diferentemente do absolutismo, não era divino, considerando que o nacional-socialismo repudiava abertamente as noções clássicas de direito natural. Para Fraenkel, em uma feliz síntese, “o Estado nazista era uma teocracia sem deus [...], sua estrutura se assemelhava a uma igreja, mas uma igreja sem devoção a uma ideia metafísica. O nacional-socialismo busca apenas sua glorificação” (FRAENKEL, 2017FRAENKEL, E. The dual State: a contribution to the theory of dictatorship. Tradução do alemão por E. A. Shils. Oxford: Oxford University Press, 2017., p. 48.). Consequentemente, enxergava os excluídos e descontentes não como simples rebeldes, mas sim como verdadeiros heréticos, sobre os quais restava autorizado os poderes cinegéticos da caça do extermínio.13 13 “The Third Reich does not merely persecute those who spread dangerous doctrines; it wages a perpetual warfare against all those dictates of conscience not in harmony with its teachings” (FRAENKEL, 2017, p. 54). Para uma noção dos poderes de caça e extermínio de homes por outros homens ver (CHAMAYOU, 2012).

Hoje sabemos que o exercício crescente e autoritário de prerrogativas por parte dos operadores do aparelho estatal nacional-socialista engoliu as reminiscências do Estado-Norma, fazendo emergir um Estado totalitário muito próximo às descrições de Neumann em Behemoth. Fraenkel, no entanto, enquanto realizava sua pesquisa e exercia uma advocacia militante, não tinha como antecipar este resultado. Parece acertado supor que sua esperança e desejo de evitar esta tragédia, que ele enxergava como tendência latente, afetaram seus diagnósticos sobre as reais possibilidade de reversão da escalada autoritária.

1.2. As diferentes posições de Ernst Fraenkel e Franz Neumann em relação ao nacional-socialismo

Antes de comparar as interpretações de Fraenkel e Neumann, inicialmente importa destacar uma diferença crucial, tanto espacial quando temporal, que influenciaria e distanciaria suas obras e suas biografias. Enquanto o primeiro realizou sua pesquisa sem o conhecimento dos resultados finais [outcome knowledge] dos processos que estudava, o segundo, exilado desde 1933 e escrevendo após a virada totalitária de 1938, tinha conhecimento destes resultados. Em outras palavras, Fraenkel não tinha como saber que a ditadura que secretamente estudava se transformaria no monstro que seu antigo sócio nomearia Behemoth.

Dessa forma, Neumann pôde buscar no passado recente da Alemanha fatos que se articulariam na sua narrativa, em uma sucessão de acontecimentos que fundamentariam sua principal hipótese sobre o nacional-socialismo, a saber, a da existência de uma espécie de “totalitarismo plural”, no qual Hitler não seria o líder onipotente, mas um primus inter paris, dividindo comando com uma elite do poder [ruling class] (NEUMANN, pp. 365 e ss.), composta por líderes do empresariado, do exército e do partido (MEIERHENRICH, 2018MEIERHENRICH, J. The remnants of the Rechtsstaat: an ethnography of Nazi Law. Oxford: Oxford University Press, 2018., p. 30).

Assim, apesar das qualidades da obra e do pioneirismo de Fraenkel em sua análise do nacional socialismo, The Dual State não partilha do prestígio da tese neumanniana. De acordo com Jens Meirhenrich (2018, p. 25), a memorável metáfora do Behemoth, conjurando a imagem de Alemanha como um monstro irracional, lançada um ano após a primeira publicação do trabalho de Fraenkel, eclipsou sua análise.

Em sentido contrário à historiografia consolidada a partir de Neumann, Meirhenrich estabelece uma contradição forte entre as duas obras, se posicionando amplamente favorável à abordagem presente em Estado Dual. Em sua opinião, a obra de Neumann se apoiou repetidamente em “atalhos metodológicos”, realizando conclusões precipitadas na ausência de dados e, como resultado, teria contribuído mais para enevoar o fenômeno do Estado nazista que para esclarecê-lo, influenciando uma série de leituras que o seguiram na repetição de seus erros. De nossa parte, embora concordemos com parte dos argumentos de Meirhenrich contra Neumann - especialmente em relação à ausência da dados empíricos suficientes para a comprovação cabal de suas hipóteses, ausentes à época -, acreditamos que as duas obras sejam, na verdade, complementares, oferecendo, se conjugadas, uma noção mais aproximada da totalidade do fenômeno, a partir da combinação de uma perspectiva macrossociológica a uma microssociologia do Estado nazista e do funcionamento de seu sistema legal.

As críticas contemporâneas direcionadas a obra de Neumann parecem girar em torno da questão do tamanho do papel da grande indústria alemã na ascensão do nazismo, feitas justamente a partir dos dados então ausentes quando da elaboração de Behemoth. Na visão de seus críticos, as grandes lideranças empresariais desempenharam um papel menor do que o descrito por Neumann na emergência do nazifascismo. Para essa segunda corrente, a grande indústria alemã teria adaptado suas estratégias aos planos imperialistas do Füher, garantindo certa estabilidade e longevidade ao programa, mas não teriam sido a condição de possibilidade do regime. De acordo com Peter Hayes (NEUMANN, 2009NEUMANN, Franz. Behemoth. Chicago, Ivan R. Dee Publicher, 2009.), em sua introdução à edição em língua inglesa de Behemoth, embora Neumann estivesse certo em apontar que a indústria alemã se tornou um pilar importante do regime nazista, ele exageraria ao colocar o big business como um sócio equitativo do partido e do Estado nazista.

Meierhenrich é partidário desta crítica. Em outro sentido, o autor defende que a sua abordagem sobre as ditaduras fascistas do século XX é marcadamente mais empírica, e a chama de institucional materialista para distinguir-se das análises que enxerga como “tradicionais”. Tais interpretações usualmente partiriam de uma compreensão apriorística e estática de Estado de Direito, para, ao não encontrarem, nas formas políticas da realidade objetiva analisadas, as características identificadas como essenciais ao Rule of Law, declararem, em seguida, que naquele contexto haveria um não-direito (MEIERHENRICH, 2018MEIERHENRICH, J. The remnants of the Rechtsstaat: an ethnography of Nazi Law. Oxford: Oxford University Press, 2018.). Ainda segundo Meierhenrich, essa seria a principal limitação da obra de Neumann sobre o nacional-socialismo que, por sua vez, teria influenciado decisivamente outros clássicos do século XX sobre a experiência nazista - como os trabalhos de Hanna Arendt e Gustav Radbruch -, fazendo emergir um consenso sobre o nazifascismo que mais oculta que revela o funcionamento cotidiano do aparato estatal do Terceiro Reich. Nesse sentido, o resgate da obra de Fraenkel poderia auxiliar a reverter esta tendência.

Nosso objetivo na próxima seção é revisitar os diagnósticos econômicos sobre a experiência do nacional socialismo feitos por Fraenkel e Neumann, para demonstrar não a superioridade de um sobre o outro, mas as particularidades de ambos, resultado das escolhas metodológicas dos autores e das circunstâncias espaciais e temporais mencionadas anteriormente.

2. As diferenças entre os diagnósticos econômicos de Ernst Fraenkel e Franz Neumann sobre o nacional-socialismo

Iniciaremos a comparação com um resgate da posição mais conhecida, que trata da economia política do nacional-socialismo desde uma perspectiva macro e externa, para em seguida apresentar a discussão como posta em The Dual State.

2.1. O capitalismo monopolista totalitário

A compreensão da economia nacional-socialista presente em Behemoth é devedora das discussões travadas no interior do Instituto de Pesquisa Social, entre Friedrich Pollock e Neumann, ainda nos primeiros anos da década de 1930.

Para Pollock, o capitalismo liberal-concorrencial do século XIX teria chegado ao fim, tendo sido substituído por economias planificadas, nas quais o Estado assumiria as rédeas das decisões econômicas. Pollock tinha por referência, além das tendências observadas na economia alemã, o caso da União Soviética, que, segundo o autor, não teria abolido o capitalismo e criado uma sociedade sem classes, mas sim transformado sua antiga versão em um capitalismo de Estado.

Para chegar a esse diagnóstico anotava que a humanidade nunca produzira uma riqueza per capita tão grande e, ainda assim, convivia com um empobrecimento duplo: o desperdício do efetivamente produzido, associado à uma ociosidade das forças produtivas, e o empobrecimento da população em geral. A irracionalidade da livre concorrência teria levado a uma acelerada concentração de capital, de forma que sobrariam apenas gigantescos conglomerados sobre os quais os Estados não poderiam mais exercer qualquer tipo de regulação, visto que seriam cooptados por essas forças econômicas e passariam a agir como representantes destas. Tratava-se de um Estado guarda noturno da propriedade privada e policial diurno do proletariado.

Para Neumann, o nacional socialismo não representava um novo tipo de capitalismo, qualitativamente diferente do capitalismo monopolista, mas sim a realização par excellence deste. Enquanto para Pollock tratava-se da abolição da forma valor, uma vez que os processos econômicos passavam a ser determinados por uma unidade técnico-administrativa centralizada, que interrompia o movimento autônomo da economia, para Neumann era um processo inconcluso e instável de monopolização do capital, que formava grupos privados proporcionalmente tão grandes em relação ao Estado que impediam a possibilidade deste exercer qualquer tipo de regulação sobre a economia; em suma, aquilo que hoje chamamos de too big to fail. Sem dúvida, havia alguma regulação dos processos econômicos, mas esta não estava acima da concorrência, pois era ela mesma a concorrência radicalizada, em um processo no qual violência econômica e extraeconômica não eram mais distinguíveis entre si (CAUX, 2020CAUX, Luiz Philipe de. A hipótese de definhamento da forma jurídica e o atual capítulo brasileiro de seu processo. Sinal de Menos, v. 2, n. 14, 2020.).

Isto significava, portanto, negar as afirmações de Pollock - e com ele Horkheimer, em Estado autoritário - acerca da substituição do primado da economia pela política na direção dos processos econômicos. Em uma análise econômica mais nuançada que a de Pollock, Neumann não deixou de enxergar o papel do Estado como agente econômico, mas entendia que se tratava de uma ordem social policrática, ou seja, uma economia capitalista regulamentada por um Estado totalitário: um capitalismo monopolista totalitário.

Como visto, Jens Meierhenrich apresenta as principais críticas elaboradas contra a interpretação neumanniana, que, em suma, podem ser reconduzidas ao fato de o autor ter erigido um rigoroso argumento teórico sobre uma base empírica fraca (MEIERHENRICH, 2018MEIERHENRICH, J. The remnants of the Rechtsstaat: an ethnography of Nazi Law. Oxford: Oxford University Press, 2018., p., 28). Ainda segundo Meierhenrich, parte importante do problema era fruto do compromisso de Neumann com um estruturalismo metodológico que seria inerente ao pensamento marxista acerca da economia política.

Se os erros de Neumann decorreriam de sua filiação ao marxismo, os méritos de Fraenkel eram frutos de sua escrita weberiana. Se para Neumann o Estado de Direito era uma variável discreta, que aceitaria apenas dois valores, ou existiria ou não existiria, para Fraenkel o Rechtstaat seria uma variável contínua, assumindo diferentes gradientes de verificação. Para Neumann o Estado de Direito não seria uma categoria analítica, mas sim normativa, o que a fazia depender de uma espécie de utopia jurídica (MEIERHENRICH, 2018MEIERHENRICH, J. The remnants of the Rechtsstaat: an ethnography of Nazi Law. Oxford: Oxford University Press, 2018., p. 33). Isso quer dizer, “uma vez que a realidade do regime nazista não correspondia à sua ideia favorita de Estado, Neumann tirara a única conclusão que parecia lógica para ele: negar que a política racial era um Estado” (MEIERHENRICH, 2018, p. 36). Neumann, a exemplo de outros frankfurtianos, teria radicalizado o argumento weberiano acerca dos aspectos negativos da racionalidade, vendo desencantamento onde quer que olhasse (MEIERHENRICH, 2018, p. 33).

Embora concordemos com algumas das considerações feitas por Meierhenrich, sobretudo no tocante à forma jurídica do nacional-socialismo, uma vez que, de fato, onde Neumann via uniformidade e indiferenciação, Fraenkel enxergou diversidade e variação, complexidade e contingência (MEIERHENRICH, 2018MEIERHENRICH, J. The remnants of the Rechtsstaat: an ethnography of Nazi Law. Oxford: Oxford University Press, 2018., p. 34), de forma alguma está claro que essa diferença possa ser explicada pelas associações de cada um destes autores às tradições marxistas e weberianas.

Esse diagnóstico apenas pode proceder se se tem como referência uma caricatura da tradição marxista, limitada a um estruturalismo exegético que não deixa nenhuma margem de ação ao sujeito, como de fato parece sustentar Meierhenrich: primeiro quando não faz diferenciação entre as distintas abordagens coexistentes dentro do Instituto de Pesquisa Social, tratando-as como espécies mais ou menos indistintas do estruturalismo marxista e, depois, quando dá a entender que a diferença que destacaria Fraenkel desse grupo de autores seria o fato dele estar atento às contingências estruturais, ou seja, situações nas quais os agentes agem de maneira apenas parcialmente voluntária, porque dentro dos limites impostos pelas constrições estruturais.

Muita tinta já foi gasta nessa questão, de forma que não vamos nos alongar em uma defesa desnecessária dos marxismos. De nossa parte, apenas gostaríamos de reforçar que não entendemos que o marxismo ocidental, sobretudo aquele produzido a partir do projeto interdisciplinar frankfurtiano, possa ser reduzido a mero estruturalismo. Parece-nos, por outro lado, que a interpretação de Meierhenrich cumpre muito mais uma agenda própria, de valorização da obra que ele introduz e que escolheu como objeto de pesquisa, colocando-a como superior aos diagnósticos econômicos da tradição marxista sobre a teoria das ditaduras. Em outra direção, pretendemos oferecer uma correção a esse diálogo.

Meierhenrich acerta ao apontar para as vantagens da análise empírica de Fraenkel, que o distancia de Neumann, mas ignora a discussão da conjetura econômica do regime nazista presente terceira parte do The Dual State, que aproxima os autores. Com efeito, a análise de Fraenkel está muito próxima daquela feita por Neumann em Behemoth, embora seja menos densa.

Na próxima subseção pretendemos reconstruir a referida análise econômica para demonstrar nosso argumento, qual seja, de que as duas obras são, na verdade, complementares. Enquanto Neumann se dedicou a realizar uma espécie de genealogia do nacional-socialismo, a partir de uma perspectiva macrossociológica, em um momento tardio do nazismo, Fraenkel fez uma microssociologia do campo jurídico no início daquela experiência autoritária. A combinação destas duas perspectivas é capaz de esclarecer não apenas como agem as ditaduras depois de consolidadas, mas como surgem e quais as contribuições do campo jurídico nesses processos.

2.2. O arcabouço econômico do Estado Dual

A questão central da análise econômica do nacional-socialismo, para Fraenkel, era saber se se tratava ou não de uma economia capitalista. O autor responde à pergunta de forma categórica: o sistema permanecia predominantemente capitalista (FRAENKEL, 2017FRAENKEL, E. The dual State: a contribution to the theory of dictatorship. Tradução do alemão por E. A. Shils. Oxford: Oxford University Press, 2017., p. 171), muito embora tivesse sofrido muitas modificações em relação ao período anterior. No entanto, as mudanças em direção a um “estatismo” não tinham sido suficientes para afastar as características capitalistas da organização da produção e circulação de bens, mas representariam a emergência de um novo tipo de capitalismo. Portanto, a primeira conclusão da sua interpretação se distancia da de Neumann.

Mas se tratava de uma continuidade e não de uma invenção ou ruptura promovida pelo nacional-socialismo, visto que, quando este chega ao poder, o capitalismo competitivo já não existia mais, tendo sido substituído por algo como um capitalismo privado organizado, onde havia muitos monopólios e alguma intervenção estatal, um ambiente marcado por cartéis que não eram molestados pelo poder estatal - lembramos que uma característica central para a análise neumanniana seria justamente a radicalização dos sistemas de cartéis, com a gangsterização da economia alemã. Em muitos aspectos, a economia política do estado dual era a mera continuação, ou mesmo o desenvolvimento do capitalismo organizado pré-existente em Weimar. Ponto no qual sua análise se aproxima da presente em Behemoth.

O que permitia a Fraenkel sustentar que o capitalismo ainda estava vigente na Alemanha nazista? O primeiro ponto a destacar seria o respeito à propriedade privada em geral e à propriedade privada sobre os meios de produção em particular. Mais do que isso, o controle da esfera privada sobre a economia chegou mesmo a ser aumentado em relação ao ano de 1932, com a devolução ao mercado de ações de partes da indústria de aço e de alguns bancos então controlados pelo Reich. Na contramão deste movimento, os direitos de livre disposição sobre a propriedade iam sendo modificados, impondo-se controles sobre o comércio internacional, pagamento de dividendos, controle de preços e impostos. Estas limitações, no entanto, recaiam muito mais sobre o pequeno e médio empresariado, constituindo um fator a mais para a cartelização da economia.

Mesmo com estas limitações, o retorno dos investimentos sobre a propriedade privada passaram a ser muito mais seguros sobre o nacional-socialismo (FRAENKEL, 2017FRAENKEL, E. The dual State: a contribution to the theory of dictatorship. Tradução do alemão por E. A. Shils. Oxford: Oxford University Press, 2017., p. 173), não apenas porque passaram a ser garantidos pelo Estado, como porque, por outro lado, todas as organizações sindicais foram destruídas, enquanto interesses de setores como a indústria, a agricultura e o comércio continuaram livres para se organizarem como grupos de pressão dentro da burocracia estatal (FRAENKEL, 2017, p. 175).

De acordo com Fraenkel, os objetivos políticos internos da organização econômica do Terceiro Reich eram consolidar o poder político-militar do nacional-socialismo, expandir o emprego e a produção ao paroxismo, restaurando os setores industriais pesados do oeste alemão e a produção de grãos do leste. No plano internacional tratava-se de submeter a economia aos objetivos políticos imediatos do Reich, sua expansão territorial, que, por sua vez, demandavam o aumento da produção de itens de guerra, associado às indústrias pesadas, e de grãos, que então estimulavam o pleno emprego, constituindo um padrão de crescimento incompatível com a paz no continente.

Fraenkel sustenta que as análises que enxergavam o nacional-socialismo como um simples servo do capitalismo monopolista eram superficiais, por descartarem uma interpretação econômica do fascismo. Apoiado em Schumpeter, ele defendeu que o nacionalismo e o militarismo não seriam criações necessárias do capitalismo, mas foram, de certa forma, instrumentalizados por este.

Os industrialistas e grandes proprietários de terra alemães apoiaram o movimento nazista na esperança de manterem suas posições de senhores dentro da estrutura social e, de fato, não foram poucos os benefícios que esses setores obtiveram durante o período. Porém, quem observa este aspecto não pode deixar de considerar o preço pago: os antigos mestres tinham agora de compartilhar o poder com a elite do partido. A defesa dos seus interesses passara a depender da coincidência destes com os interesses do partido e a ameaça real de que, se assim não o fosse, estes grupos pudessem ser descartados pelo partido.

A questão era saber se os benefícios acumulados pelo big business alemão durante o Terceiro Reich foram uma consequência acessória do nacional-socialismo ou se, ao contrário, constituíam parte dos seus objetivos essenciais. Fraenkel não se sente confortável em responder de forma definitiva à questão, deixando o problema para investigações futuras. No entanto, não deixa de comentar que o nacional-socialismo constantemente agia como se a proteção dos monopólios capitalistas e a salvação dos setores mais arruinados da economia alemã fossem os objetivos mais importantes de suas políticas econômicas.

Fraenkel encerra sua análise sobre o arcabouço econômico do nacional-socialismo remetendo mais uma vez às metades do Estado Dual. Por um lado, o Estado-Norma servia como molde normativo de regulação da propriedade privada (FRAENKEL, 2017FRAENKEL, E. The dual State: a contribution to the theory of dictatorship. Tradução do alemão por E. A. Shils. Oxford: Oxford University Press, 2017., p. 185), por outro lado, o campo da organização do trabalho era alvo de ação desconstrutiva do Estado de prerrogativas, que impedia a organização legitima dos trabalhadores. Nesse e em outros contextos, é impossível separar os dois tipos de atuação estatal, uma vez que o autoritarismo do Estado de prerrogativas era imprescindível para o sucesso das políticas econômicas do nacional-socialismo. Em outras palavras, a violência concreta (ou a ameaça de sua incidência) era instrumental ao aumento dos ganhos do capital, influenciando os comportamentos não apenas daqueles que sofriam diretamente com suas arbitrariedades, mas também dos empreendedores capitalistas que se beneficiavam de seus resultados.

Assim, a leitura de Ernest Fraenkel acerca da economia política do Estado alemão sob o nacional-socialismo se situa muito mais próxima de Neumann do que quer fazer parecer a obra de Meierhenrich, tendo sido também ela influenciada pelo método de investigação da tradição marxista, ainda que Fraenkel não compartilhasse das mesmas conclusões de outros autores dessa tradição. Na prática isto significou que Fraenkel não enxergava o nacional-socialismo como uma consequência necessária do desenvolvimento capitalista, como Neumann fez, mas não deixou de reconhecer que o capitalismo se adaptou muito bem às políticas do Reich.

A degradação da República de Weimar sob o nacional-socialismo guarda semelhanças importantes com o acelerado processo de erosão constitucional (Meyer, 2021MEYER, Emílio. Constitutional erosion in Brazil. Nova Iorque: Hart Publishing, 2021.) em curso no Brasil pelo menos desde 2013. Assim como na Alemanha weimariana, um pacto social democrático parece ter atingido seu limite, fustigado pelos impactos de uma severa crise econômica em meio à uma crise de representatividade da política institucional, que ver ascender uma oposição extrainstitucional apropriada por uma extrema direita antidemocrática e autoritária. Assim como em Weimar, o apoio das elites econômicas foi uma das condições de possibilidade da eleição de um líder populista reacionário. Por essa razão, na próxima seção analisaremos as possíveis lições históricas que podem ser extraídas do contexto alemão da década de 1930 para o Brasil dos anos 2020.

3. A economia política do governo Bolsonaro-Guedes à luz do debate Neumann-Fraenkel

O conceito de Estado dual, como adiantado, apesar de historicamente situado, não é relevante apenas para o caso do nazismo ou mesmo para uma teoria das ditaduras do século XX; também é útil à teorização das democracias contemporâneas (MEIERHENRICH, 2018MEIERHENRICH, J. The remnants of the Rechtsstaat: an ethnography of Nazi Law. Oxford: Oxford University Press, 2018., 2017, p. xxxviii). A atualidade do conceito é notável, sobretudo em meio às ruínas do neoliberalismo, que impulsionam processos de desdemocratização das esfera públicas nacionais (BROWN, 2015BROWN, W. Undoing the demos: neoliberalism’s stealh revolution. Nova Iorque: Zone Books, 2015., 2019) e o reaparecimento do (neo)fascismo em escala global (STANLEY, 2018; FINCHELSTEIN, 2020FINCHELSTEIN, Federico. A brief history of fascism lies. Oakland: University of California Press, 2020.; LAZZARATO, 2019LAZZARATO, Maurizio. Fascismo ou revolução?: o neoliberalismo em chave estratégica. São Paulo: N-1, 2019.). Nesta última seção, consideraremos especificamente a manifestação brasileira do fenômeno (BOITO JUNIOR, 2020; CAVALCANTE, 2020CAVALCANTE, Sávio. Classe média e a ameaça neofascista no Brasil de Bolsonaro. Revista Crítica Marxista, n. 50, 2020.; CALDEIRA NETO, 2020CALDEIRA NETO, Odilon. Neofascismo, ‘Nova República’ e a ascensão das direitas no Brasil. Conhecer, v. 10, n. 24, 2020.; ROCHA, 2021ROCHA, João. Guerra cultural e retórica do ódio: crônicas de um Brasil pós-político. Goiânia: Caminhos, 2021.), com especial destaque para sua economia política.

Assistimos no Brasil pelo menos desde 2014, com os impactos retardados da crise econômica de 2008, o fim das condições macroeconômicas que impulsionaram e sustentaram não só o pacto reformista gradual dos governos petistas (SINGER, 2012SINGER, André. Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.), mas também o “grande arranjo político do Plano Real” (NOBRE, 2022, p. 41). O período de 1994 a 2013 correspondeu, na chave interpretativa aqui utilizada, a um período de expansão gradativa do Estado-Norma. Como consequência, com a interrupção das condições de sustentação deste pacto, ressurgiram com toda força as disputas pela distribuição dos lucros entre capital e trabalho, temporariamente represadas durante a experiência da Nova República.

Em função da condição periférica de inserção brasileira no mercado global, as elites econômicas nacionais, já há bastante tempo fundidas entre acumulação de capital (agro)industrial e financeiro, não são mais capazes de aumentar seus lucros via mais-valia relativa, i.e., por meio da implementação de novas tecnologias e/ou da melhoria da qualidade produtiva; assim, sobra-lhes apenas a possibilidade de proteger e fazer avançar seus ganhos via superexploração do trabalho (MARINI, 2000MARINI, Ruy. Dialética da dependência. São Paulo: Vozes, 2000.; FRANKLIN, 2019FRANKLIN, Rodrigo. O que é superxploração. Economia e Sociedade, v. 18, n. 3, 2019.). Este modelo de exploração, por sua vez, gera um superexcedente passível de alguma redistribuição com as classes médias. Essa dinâmica, que foi também característica do período ditatorial, contém a classe trabalhadora via repressão salarial e constitui requisito estrutural da acumulação no país (OLIVEIRA, 2003OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista / o ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003., pp. 67-68). Mais recentemente, esta dinâmica se manifestou nas reformas trabalhistas e previdenciária, além de ameaçar se prolongar nas reformas administrativa e tributária. A defesa e ampliação destas medidas ou sua revogação/revisão já aparecem como um dos temas centrais da campanha presidencial de 2022.

Nossa hipótese é que a sustentação deste modelo, que amplia desigualdades já estabelecidas historicamente em níveis intoleráveis, especialmente em um ambiente de estagnação ou recessão econômica, como o do tempo presente, apenas pode ser implementada pela violência simbólica e concreta, características de um Estado de prerrogativas. Nestes termos, em um contexto de acirramento das disputas distributivas, as elites econômicas brasileiras, emulando o comportamento de suas congêneres em momentos de crise econômica aguda, abandonam seu apoio frágil às estruturas do Estado-Norma para apoiar soluções autoritárias de condução do político. Isto explica o apoio resiliente de parte significativa das elites econômicas brasileiras ao governo Bolsonaro-Guedes.14 14 Na contramão da cobertura de parte de mídia empresarial, que separava o governo entre uma ala ideológica e uma ala técnica, entendemos que a plataforma neoliberal do Ministro da Economia Paulo Guedes, inviável eleitoralmente, apenas pode ser implementada em associação ao populismo autoritário do Presidente Jair Bolsonaro, eleito em 2018. Dessa forma, apenas podem ser compreendidas como parte de uma mesma unidade, razão pela qual utilizamos a expressão governo Bolsonaro-Guedes. Ademais, quanto mais se arrasta no tempo este apoio, maiores são os espaços da vida social que passam a ser regulados autoritariamente por meio de prerrogativas sobre as quais não há qualquer controle social ou democrático, fazendo com que maiores sejam as chances de uma ruptura definitiva com a democracia. Como chegamos até aqui?

Com o fim da ditadura civil-militar estabeleceu-se no Brasil um fenômeno denominado pela literatura especializada como “direita envergonhada”. Durante as primeiras décadas da Nova República, desvincular-se do rótulo da “direita” pareceu uma questão central aos parlamentares, em função da identificação dos partidos de direita com o regime ditatorial, que chegava ao fim desmoralizado (QUADROS & MADEIRA, 2018QUADROS, Marcos Paulo; MADERIA, Rafael. Fim da direita envergonhada?: atuação da bancada evangélica e da bancada da bala e os caminhos da representação conservadora no Brasil. Opinião Pública, v. 24, n. 3, 2018., p. 487).15 15 Surveys aplicados com deputados da primeira legislatura da Nova República davam a crer, a julgar exclusivamente pelo critério de autoidentificação política, que o Brasil era “um país sem direita” (RODRIGUES, 1987, p. 99).

De maneira bastante preditiva, Antônio Pierucci (1987, p. 45) destacava que, embora reduzida, a “nova direita”, isto é, aqueles que não compunham a parcela envergonhada deste espectro político, afastava-se da defesa de um processo econômico liberal para cerrar trincheiras contra o que entedia como a “liberalização dos costumes”, identificando a crise do então presente como uma crise moral. No interior desse movimento já se sublinhava a importância dos movimentos neopentecostais, detentores de “uma verdadeira malha de mídia” e representantes de um certo “televangelismo”, que encontraria seu correspondente no boom dos movimentos carismáticos no interior da igreja católica (PIEURUCCI, 1987, p. 44).

A análise parece explicar as razões pelas quais a direita brasileira não recria sua identidade face a agenda econômica liberalizante dos anos 1990, permanecendo, de certa forma, envergonhada até os anos 2000. Em outro sentido, as pautas que levaram lideranças relevantes “a reivindicar abertamente a identidade de direita” não foram afetas ao “liberalismo econômico que emergiu na década de 1990 [...], mas [a]o conservadorismo envolvendo questões morais e os apelos de repressão à criminalidade” (QUADROS; MADEIRA, 2018QUADROS, Marcos Paulo; MADERIA, Rafael. Fim da direita envergonhada?: atuação da bancada evangélica e da bancada da bala e os caminhos da representação conservadora no Brasil. Opinião Pública, v. 24, n. 3, 2018., p. 516).

Trata-se de uma agenda muito mais reativa que proativa, no sentindo que se estabelecia contra políticas públicas sociais voltadas a minorias históricas, ao mesmo tempo em que se desonera de apresentar qualquer agenda positiva para a questão do desenvolvimento nacional. Essa característica reativa e não propositiva possibilitaria que esses grupos políticos fossem arregimentados por um projeto político neoliberal, que inclui a desconstrução do Estado social e, como consequência, empurra os indivíduos para redes de proteção ligadas à família, majoritariamente reguladas por valores cristãos (COOPER, 2017COOPER, Melinda. Family values: between neoliberalism and new social conservative. Nova Iorque: Zone Books, 2017.).

Em apertada síntese, o legado da nossa última experiência autoritária, não-inscrito na memória coletiva, favoreceu a permanência, agora no interior do regime democrático, de um ideário liberal-autoritário, marcado por uma simbiose de princípios neoliberais e a defesa de retrocessos no campo dos direitos humanos (GENTILE, 2018) que permeia os setores da direita outrora envergonhada (MESSEMBERG, 2017MESSEMBERG, Débora. A direita que saiu do armário: a cosmovisão dos formadores de opinião dos manifestantes de direita brasileiros. Revista Sociedade e Estado, v. 32, n. 3, 2017.), que agora retornam ao poder em novo consórcio com as forças armadas.

Portanto, a condição de possibilidade da eleição pelo voto direto, de um capitão reformado do exército brasileiro, até então um político profissional de pouca expressão, admirador público dos agentes da repressão estatal da ditadura, está diretamente relacionada não apenas à não inscrição (esquecimento) do último período ditatorial, mas também ao ressentimento gerado pelas perdas materiais e simbólicas provenientes do fracasso do projeto neoliberal. Um cenário que, paradoxalmente, não aponta para a superação do modelo econômico vigente, mas inicia uma nova fase do neoliberalismo, socialmente ainda mais deletéria que a anterior (DAVIES, 2016DAVIES, William. The new neoliberalism. New Left Review, n. 101, 2016.).

O projeto político representado pela aliança Bolsonaro-Guedes é, talvez, a manifestação mais acabada da sobreposição das racionalidades neoliberal e neoconservadora (BROWN, 2019BROWN, W. In the ruins of neoliberalism: the rise of antidemocratic politics in the West. Nova Iorque: Columbia University Press, 2019.). Diante das semelhanças existentes entre ascensão das novas direitas no Brasil (ROCHA, 2021ROCHA, João. Guerra cultural e retórica do ódio: crônicas de um Brasil pós-político. Goiânia: Caminhos, 2021.; SANTOS, 2019SANTOS, Fabiano; TRANSCHEIT, Talita. Quando velhos atores saem de cena: a ascensão da nova direita política no Brasil. Colombia Internacional, n. 99, 2019.) e a chegada ao poder do fascismo pós-Weimar, poderíamos denominar (neo)fascistas o governo Bolsonaro-Guedes? Em caso afirmativo, quais os ganhos interpretativos desta caracterização?

Respondendo negativamente, Caldeira Neto (2020) chama a atenção para as diferenças entre estas novas direitas e o (neo)fascismo no Brasil, destacando que além de não serem a mesma coisa, nenhum dos fenômenos é uma consequência necessária do outro. Apesar de suas diferenças, no entanto, representam agremiações e instituições que mantiveram níveis distintos de interação ao longo da Nova República e que, de certa forma, se retroalimentaram no cenário político contemporâneo, de forma a se reposicionarem por cima no jogo político nacional. Para o mesmo autor, a principal dificuldade de sobreposição residiria em como explicar que a reformulação contemporânea do fascismo, um movimento originalmente antípoda ao liberalismo, pôde tornar-se congênere do neoliberalismo professado pelas novas direitas (CALDEIRA NETO, 2020CALDEIRA NETO, Odilon. Neofascismo, ‘Nova República’ e a ascensão das direitas no Brasil. Conhecer, v. 10, n. 24, 2020., p. 124)

No entanto, a dificuldade apenas persiste caso tomemos o neoliberalismo pelo seu valor de face, i.e., se avaliarmos sua relação com os movimentos e grupos reacionários a partir da doutrina neoliberal e não das externalidades negativas de sua implementação, ou seja, com neoliberalismo realmente existente (FISCHER, 2020FISCHER, Mark. Realismo capitalista: é mais fácil imaginar o fim do mundo que o fim do capitalism? São Paulo: Autonomia Literária, 2020.; WACQUANT, 2012WACQUANT, Loïc. Três etapas para uma antropologia histórica do neoliberalismo realmente existente. Caderno CRH, v. 25, n. 66, pp. 505-518, 2012.). Caso procedamos considerado seus impactos sobre a realidade, e não sua teoria, então poderemos identificar com clareza as ressonâncias da ascensão do liberalismo autoritário na Europa dos anos 1930 (HELLER, 2015HELLER, H. Authoritarian liberalism?. European Law Jorunal, v. 21, n. 3. pp. 295-391, 2015., 1932; STREECK, 2015STREECK, Wolfgang. Heller, Schmitt and the Euro. European Law Jorunal, v. 21, n. 3, pp. 361-370, 2015.) como uma espécie de passado-presente do nosso tempo.

Por outro lado, ainda que não seja uma experiência totalmente nova, tampouco se trata de uma simples repetição do passado, uma vez que, contrariamente às experiências totalitárias do século XX - e talvez como aprendizado -, os governos autoritários contemporâneos parecem mais desejosos em eternizar a instabilidade do Estado dual do que propriamente criar um Estado totalitário, uma vez que essa forma de organização se mostrou efêmera, porque política e economicamente insustentável já no médio prazo.16 16 “A ditadura fascista resolveu a tarefa de conservar o poder nas mãos dos capitalistas [...], mas não criou nenhuma fórmula política de sucesso promissora a longo prazo, [...] carrega em si os traços da decadência e da decomposição tanto quanto o estágio imperialista do capitalismo que a engendrou” (PACHUKANIS, 2020, página?).

O atual governo brasileiro parece apostar na expansão radical de um exercício autoritário de suas prerrogativas, frequentemente atacando o conteúdo do pacto constitucional de 88 e os atores e instituições integrantes e garantes do Estado-Norma, mas não parece buscar (ou ser capaz de promover) uma aniquilação completa das reminiscências do Estado de Direito.17 17 É importante destacar, no entanto, uma tendência de fechamento dos regimes em caso de renovação dos mandatos destes líderes de extrema direita. Nossa hipótese é que se trata de uma estratégia, apenas parcialmente consciente, de perpetuação da instabilidade, que, afinal, é a principal característica do Estado Dual; isto tendo em vista que foi justamente esta instabilidade a condição de possibilidade de sua chegada ao poder e, paradoxalmente, parece ser hoje sua condição de sustentabilidade (NOBRE, 2020NOBRE, Marcos. Ponto-final: a guerra de Bolsonaro contra a democracia. São Paulo: Todavia, 2020.).

O fato é que, após pouco mais de três décadas de certa estabilidade democrática, houve uma inversão da tendência de expansão gradativa da parte normativa do Estado brasileiro, em detrimento de uma acelerada expansão de seus espaços de arbitrariedade, de tal forma que, em pouco tempo, colocou-se em riscos os ganhos acumulados na Nova República. É possível que essa hipótese possa ser alargada para demonstrar a persistência do Estado dual como uma manifestação mais antiga e duradoura do Estado brasileiro, com a manutenção no tempo de aparelhos burocráticos e normas distintas para distintas categorias de cidadãos, no entanto, o objetivo do presente trabalho está limitado ao pós- redemocratização.

Estudar a manifestação histórica do fascismo alemão hoje, sua economia política, é útil não para determinar que o governo Bolsonaro não seja fascista pelas características que lhe faltam - uma política imperial de expansão territorial, um partido forte, a eloquência do líder carismático etc. - mas sim para compreender como, na ausência desses fatores, ainda assim, o movimento e o governo bolsonaristas reproduzem a essência do fenômeno, ainda que circunscrito ao contexto sócio-histórico ao qual estão vinculados.18 18 Na esteira do argumento de Boito Junior (2020), é perfeitamente possível estarmos diante de um movimento e/ou de um governo fascistas, mas não de uma ditadura fascista consumada. Nesse sentido, o autor nos lembra que, em seus primeiros anos de governo, Benito Mussolini manteve-se dentro dos limites da democracia (BOITO JUNIOR, 2020, p. 111), da mesma forma como Fraenkel sustentara que o autoritarismo nazista apenas se transformaria em totalitarismo a partir de 1938

Não se trata de interpretar o presente brasileiro exclusivamente pelas lentes de Weimar (LIMA; OLIVEIRA, 2019LIMA, Martonio; OLIVEIRA, Marcelo. “Justiça Política - o passado que ainda desafia o presente”. In: BERCOVICI, Gilberto. Cem Anos da Constituição de Weimar (1919-2019). São Paulo: Quartier Latin, 2019., p. 5), nem esperar aprender algo de definitivo e exemplar com o estudo desta experiência histórica (BIELSCHOWSKY, 2021BIELSCHOWSKY, Raoni. “Uma democracia sem democratas, uma república sem republicanos: Weimar e(m) 2019”. In: BIELSCHOWSKY, R; CASTRO, F; SANTOS, M. (Orgs.). Crises da democracia: fissuras, impasses e perspectivas. Edufersa: Mossoró, 2021., p. 143). Em outro sentido, trata-se de destacar que muitos dos desafios que existiram na experiência fundacional da social-democracia alemã persistem em suas manifestações contemporâneas, assim como a tragédia que se seguiu ao fracasso daquela experiência continua a nos assombrar no presente.

Por fim, é importante observarmos o papel desempenhados pelas elites econômicas na ascensão e na manutenção da extrema direita no poder hoje, um processo que pode ser esclarecido por meio das análises de Neumann e Fraenkel acerca da relação entre o capitalismo e o nacional-socialismo tratados na seção anterior. Analogamente ao que perguntou Fraenkel, indagamos se a adesão das elites financeiras à candidatura de Jair Bolsonaro foi a condição de possibilidade do seu sucesso ou uma estratégia pragmática desses grupos de interesse ante a inevitabilidade de sua vitória? Atualmente, o resiliente apoio dessas mesmas elites ao governo é mais uma adequação de seus interesses à política autoritária ou elas fazem parte desse projeto na condição de sócias controladoras?

Embora não seja possível cravar uma resposta definitiva à questão proposta, podemos dizer algo a partir das diferenças contextuais mais evidentes. De fato, existe uma diferença crucial entre as relações das elites econômicas nacionais com o projeto neoliberal do governo Bolsonaro-Guedes e aquelas analisadas por Neumann entre o empresariado alemão e o nacional-socialismo. Tal diferença é corolário da condição brasileira de periferia do sistema capitalista e do atual estágio das forças produtivas no Brasil, o que, por sua vez, gera uma contradição insolúvel no caráter nacionalista da extrema direita brasileira.

Enquanto na Alemanha nazista tratava-se da arianização ou germanificação da produção, com vistas à inserção do país por cima na concorrência imperialista do início do século XX, no Brasil do século XXI o processo se dá com o sinal trocado, pela privatização e submissão total da economia nacional aos interesses externos. Por aqui persistem os fenômenos da cartelização e da gangsterização do econômico, mas não para a promoção de um incremento na industrialização no país, com a melhora dos indicadores da economia doméstica - a exemplo do que fora feito por meio dos modelos de substituição de importações entre as décadas de 1950-70 -, mas sim para promover a reprimarização da economia nacional e uma “americanização” dos setores pesados e mais avançados da economia.

Nesse sentido, a economia política sob o governo Bolsonaro-Guedes intensifica o processo iniciado no governo Temer, então materializado no documento Ponte para o Futuro, concretizando perdas significativas nos instrumentos e ferramentas de promoção de algum dirigismo econômico sobre a economia, garantindo “mais substratos jurídicos para uma política econômica liberalizante” (LEURQUIN; ANJOS, 2021LEURQUIN, Pablo; ANJOS, Lucas. “Subdesenvolvimento soberania nacional e experiência democrática no Brasil. In: BIELSCHOWSKY, R; CASTRO, F; SANTOS, M. (Orgs.). Crises da democracia: fissuras, impasses e perspectivas. Edufersa: Mossoró, 2021., p.35). Em uma economia periférica como a brasileira, esta liberalização resulta, por um lado, em desindustrialização e favorecimento material das elites financeiras e financeirizadas, aquelas capazes de desterritorializar ou pelo menos blindar parcialmente seus interesses em relação à economia real nacional, por outro lado, aprofunda a crise fiscal, inviabiliza programas sociais robustos de distribuição de renda19 19 Após 18 anos de existência, nos quais acumulou resultados importante no combate à pobreza extrema e boas avaliações, o Programa Bolsa Família foi descontinuado, em detrimento à promessa de substituição por um programa que não se sabe quanto tempo vai durar, nem como será financiado. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2021/11/07/bolsa-familia-chega-ao-fim-em-meio-a-incertezas-sobre-seu-sucessor.ghtml. Acesso em 24 de novembro de 2021. e freia perspectivas de inovação tecnológica no país.

Naturalmente, o governo Bolsonaro-Guedes não se sustenta exclusivamente no apoio das elites econômicas, o que pode ser constatado pelo fato do apoio ao Presidente se manter mais ou menos estável em torno de 1/3 do eleitorado.20 20 No momento de fechamento deste trabalho, a taxa dos que consideram o governo ótimo ou bom, avaliada em maio de 2021, está na pior marca desde o início do mandato (24%). No entanto, é muito possível que ela tenha encontrado seu piso, considerando as projeções de melhoras na economia e nos índices de vacinação. O histórico recente mostra que essa taxa tende a oscilar em torno dos 30%. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/05/datafolha-aprovacao-a-bolsonaro-recua-seis-pontos-e-chega-a-24-a-pior-marca-do-mandato-rejeicao-e-de-45.shtml?loggedpaywall&_ga=2.115051013.344556117.1624576018-799956657.1624576018&_mather=55dda15bd15bb6d7. Acesso em 24 de junho de 2021. Isto se dá tanto pela exploração de um discurso de Lei & Ordem com ampla aceitação popular, sustentado por uma sensação de insegurança - que tem bases materiais concretas, mas que é espetacularizada com fins políticos e eleitorais -, quanto pela concessão de benefício aos principais atores da segurança pública. Note-se que o Brasil tem hoje mais de 700 mil policiais civis, federais e militares21 21 Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Disponível em: Acesso em 24 de novembro de 2021. e que estes foram os segmentos que tiveram o maior aumento em sua representação política durante as últimas rodadas eleitorais.22 22 Apenas no legislativo federal passaram de 04 deputados federais eleitos em 2010, para 42 em 2018 (Instituto Sou da Paz, 2021). Esta representação, tradicionalmente feita via partidos de direita e/ou centro-direita, deslocou-se para pequenos partidos sem identificação ideológica nos anos 2010 (BERLATTO; CODATO; BOLOGNESI, 2016), para então se concentrarem em torno dos partidos de apoio à candidatura da extrema direita em 2018. Apenas o Partido Social Liberal, partido do então candidato Jair Bolsonaro, e o Republicano, partido ligado à Igreja Universal e aliado de primeira ordem do agora Governo Bolsonaro, concentraram mais de 15% de todas as candidaturas de policiais e militares em 2018 (Sou da Paz, 2021, p. 9). Em uma clara contrapartida política, foram as únicas categorias do serviço público com aumentos previstos para o orçamento do ano eleitoral de 2022.

Ademais, existe um forte apoio das recentemente denominadas “classes aspiracionais”, grupos compostos por indivíduos que nos últimos ciclos econômicos se viam (de forma real ou imaginada) subindo a escada da mobilidade e se distanciado dos setores mais pobres da população. Nesse processo os sujeitos deixam de sentir empatia em relação aos estratos populacionais de onde ascendem, para então se conectarem simbolicamente com o topo da pirâmide social.23 23 A antropóloga Rosana Pinheiro Machado recentemente chamou atenção para a necessidade de identificar adequadamente o fenômeno das classes aspiracionais, para que não se repita o erro de chamá-las de nova classe média ou de classes ingratas. Disponível em: https://brasil.elpais.com/opiniao/2021-06-21/o-que-lula-deu-e-bolsonaro-abocanhou.html. Acesso em 23 de junho de 2021. O paralelo com certas interpretações do fascismo histórico é notável. Para Pachukanis (2020, 1925), a ascensão do fascismo teria sido preparada “por um processo de decomposição e decadência do parlamentarismo burguês”, que negaria os princípios liberais e democráticos ao se estruturar como uma espécie de ditadura do grande capital, mas apoiada, ainda que de maneira instável e contraditória, em um amplo movimento de massa.

Em nossa atual quadra histórica, o atual governo já tomou sua decisão pelo autoritarismo, o que não seria possível sem o apoio das elites do poder - especialmente os segmentos econômico e político destes estratos. O Presidente e seu entorno se negam sistematicamente a operar dentro dos limites do jogo democrático; mais do que isso, identificam a democracia e suas instituições de controle como obstáculos a serem vencidos. Ao falar exclusivamente para sua base eleitoral, depreciar a imprensa e os demais poderes - especialmente o judiciário na figura do STF -, fustigar as forças de segurança a segui-lo em eventuais aventuras golpistas e questionar previamente a lisura da eleição presidencial de 2022, Jair Bolsonaro se prepara para o fechamento do regime, sem que, no entanto, seja abandonado de fato pelo “mercado”.

Conclusão

É nossa aposta que o conhecimento histórico sobre as determinantes socioeconômicas por trás do trágico desfecho da República de Weimar, como apresentado neste trabalho com mediação das obras de Franz Neumann e Ernst Fraenkel, pode ajudar a esclarecer as dinâmicas políticas e econômicas parcialmente responsáveis pela ascensão da extrema direita no Brasil e, ao fazê-lo, pode auxiliar na busca de soluções para os riscos impostos à democracia.

A noção de Estado-dual como uma forma de organização da burocracia estatal dividida em duas partes, ao mesmo tempo, complementares e incompatíveis, baseada na coexistência instável de um simulacro de Estado de Direito e um aparato autoritário de exercício de poder, parece adequada também à descrição da forma do Estado brasileiro pós-88.

Após um período de aproximadamente três décadas de expansão do Estado-Norma, sustentado por condicionantes sociopolíticas externas e internas, o pacto constitucional encontra-se hoje sobre sérios riscos de ser rompido, com a detração dos espaços de normatividade jurídica em detrimento da ampliação dos espaços de arbitrariedade.

A ascensão do bolsonarismo deu-se em função da confluência de uma série de fatores que remetem à Weimar e ao nosso passado recente, portanto, à processos históricos que culminaram com a suspensão do Estado de Direito e a implementação de ditaduras. Olhar para esses tempos históricos possibilita-nos dimensionar os riscos sociopolíticos envolvidos no tempo presente brasileiro e a imaginar formas de contenção da escalada autoritária em curso. Por fim, no que concerne às práticas antidemocráticas e criminosas do governo Bolsonaro-Guedes o exercício aponta para a necessidade de uma inscrição efetiva dos fatos na memória coletiva nacional, como condição da sua não repetição,

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  • WACQUANT, Loïc. Três etapas para uma antropologia histórica do neoliberalismo realmente existente. Caderno CRH, v. 25, n. 66, pp. 505-518, 2012.
  • WEICHERT, Marlon. O financiamento de atos de violação de direitos humanos por empresas durante a ditadura brasileira: responsabilidade e verdade. Acervo, v. 21, n. 2, 2008.
  • 1
    Este trabalho foi antes uma conferência, apresentada no 2º Congresso Crises da Democracia, organizado pelo grupo de pesquisa Politeia em dezembro de 2021. Agradeço aos comentários recebidos, na figura dos organizadores do evento, Raoni Bielschowsky e Maria Clara Santos. Agradeço ainda ao professor Martonio Lima, pela leitura atenta e comentada de uma versão preliminar.
  • 2
    As práticas de terror praticadas pelo Estado brasileiro durante ditadura militar, não raras vezes, foram auxiliadas por grupos paramilitares e/ou financiadas por parte do empresariado nacional (WEICHERT, 2008WEICHERT, Marlon. O financiamento de atos de violação de direitos humanos por empresas durante a ditadura brasileira: responsabilidade e verdade. Acervo, v. 21, n. 2, 2008.; BOHOSLAVSKY; TORELLY, 2013BOHOSLAVSKY, Juan Pablo; TORELLY, Marcelo D. “Financial Complicity: The Brazilian Dictatorship Under The ‘Macroscope’”. In: Dustin Sharp (Org.). Justice and Economic Violence in Transition. Nova Iorque: Springer 2013.). Em função destas circunstâncias, o mais acertado seria adjetivar-lhe de ditadura civil-militar-empresarial.
  • 3
    Preferimos o termo “Estado-Norma”, ao invés de “Estado normativo”, como aparece em outros trabalhos em língua portuguesa (BELLO; BERCOVICI; LIMA, 2019LIMA, Martonio; OLIVEIRA, Marcelo. “Justiça Política - o passado que ainda desafia o presente”. In: BERCOVICI, Gilberto. Cem Anos da Constituição de Weimar (1919-2019). São Paulo: Quartier Latin, 2019.) ou traduzidos para o português (PAXTON, 2007PAXTON, R. A anatomia do fascismo. Tradução de Patrícia Zimbres e Paula Zimbres. São Paulo: Paz e Terra, 2007.) por entender que o termo escolhido passa com mais precisão a ideia de que se trata de uma autoridade estatal que se expressa por meio e em respeito à normas e não, e.g., um estado que diz como as coisas deveriam ser, e por isso, normativo.
  • 4
    Essa descrição vai ao encontro da metáfora do Estado-centauro, utilizada por Loïc Wacquant (2012WACQUANT, Loïc. Três etapas para uma antropologia histórica do neoliberalismo realmente existente. Caderno CRH, v. 25, n. 66, pp. 505-518, 2012., p. 512) para descrever a forma estatal sob o neoliberalismo. Para o autor, o Estado-centauro exibiria “rostos opostos nos dois extremos da estrutura de classes”, edificante no topo, onde atuaria protegendo e ampliando as liberdades dos detentores do capital econômico e cultural, e penalizador na base, onde administra as populações vulnerabilizadas pelos impactos da ampliação das desigualdades sociais. Essa hipótese, aliás, encontra-se no centro da principal agenda de pesquisa do autor, acerca do crescimento e glorificação do braço penal do Estado como uma consequência necessária do Leviatã neoliberal (WACQUANT, 2014), seja nos Estados Unidos da América (WACQUANT, 2003), ou no Brasil (WACQUANT, 2015).
  • 5
    É importante destacar que o recurso ao exagero é frequentemente reivindicado por Paulo Arantes como estratégia de exposição do seu pensamento, como feito em sua intervenção no II Seminário Direitas Brasileiras, promovido pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp em 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=NsinM6ZTYqE&t=2108s. Acesso em 19 de junho de 2020.
  • 6
    Não têm sido raras as ameaças públicas à democracia no espaço público nacional, notoriamente advindas da própria Presidência da República e/ou dos seus entornos. Em 2020, um deputado federal, filho do Presidente da República, já não falava mais sobre se haveria ou não uma ruptura institucional, mas quando, enquanto o próprio Presidente, em certa oportunidade, decidiu ultrapassar os limites de sua retórica agressiva e intervir militarmente no Supremo Tribunal Federal (STF), sendo dissuadido da ideia apenas porque não se tratava da hora certa. As incertezas e ambiente de instabilidade são tão marcantes que, independentemente da real e efetiva potencialidade disruptiva dessas ameaças, o fato é que toda e qualquer movimentação palaciana e/ou militar, é lida sob as lentes de uma maior proximidade ou distanciamento de um golpe. Sobre as falas mencionadas: Eduardo Bolsonaro vê ‘momento de ruptura’ e cogita adoção de ‘medida enérgica’ por presidente. G1, Brasília, 28 de maio de 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/05/28/deputado-eduardo-bolsonaro-cogita-necessidade-de-medida-energica-do-presidente.ghtml. Acesso em 11 de agosto de 2020; GUGLIANO, Monica. Vou intervir! O dia em que Bolsonaro decidiu mandar tropas para o Supremo. Revista Piauí, n. 167, ago, 2020.
  • 7
    Trata-se de obra não devidamente recepcionada no debate acadêmico nacional. A busca avançada em títulos que contenham a expressão do termo “Ernst Fraenkel”, feita no portal de periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) resulta em apenas 13 ocorrências. Destas algumas são repetidas, duas são artigos do Professor Douglas Morris - incorporados à nossas referências - e cinco são resenhas de livros do autor, nenhuma delas em língua portuguesa. Ademais, o livro The dual State permanece sem tradução para o português.
  • 8
    Nesse sentido, divergimos da afirmação feita por Lima e Oliveira (2019LIMA, Martonio; OLIVEIRA, Marcelo. “Justiça Política - o passado que ainda desafia o presente”. In: BERCOVICI, Gilberto. Cem Anos da Constituição de Weimar (1919-2019). São Paulo: Quartier Latin, 2019., p. 2), acerca da obra de Fraenkel ter representado uma das primeiras aproximações marxistas de compreensão do nacional-socialismo.
  • 9
    Este argumento vai ao encontro do trabalho de outros pesquisadores do campo jurídico contemporâneos à experiência do nacional-socialismo, com o próprio Neumann, mas também Otto Kirchheimer (KIRCHHEIMER; NEUMANN, 1996).
  • 10
    Ressalva-se apenas que o termo voluntariamente talvez não seja o mais preciso para o caso, haja vista as pressões e ameaças que deveriam existir no período - era frequente, e.g., que oficiais da Gestapo acompanhassem julgamentos de seu interesse (MORRIS, 2013MORRIS, Douglas. The dual State reframed: Ernst Fraenkel’s political clients an his Theory of the Nazi Legal system. Leo Baeck Institute Year Book, v. 58, pp. 5-21, 2013.).
  • 11
    Ernst Fraenkel (2017FRAENKEL, E. The dual State: a contribution to the theory of dictatorship. Tradução do alemão por E. A. Shils. Oxford: Oxford University Press, 2017., pp. 17 e ss.) narra uma série de eventos em que o discurso anticomunista foi articulado por diferentes tribunais para criminalizar quaisquer atividades que não se adequassem aos valores nacional-socialistas, manuseando categorias que ampliavam as prerrogativas dos agentes estatais, como as noções de “legítima defesa permanente do Estado” e “perigo comunista indireto”.
  • 12
    O quadro nos remete à história da política brasileira do século XX, por meio da obra de Rodrigo Patto (2002), na qual o historiador analisa os usos estratégicos do anticomunismo no Brasil. Patto demonstra como as ameaças imputadas ao comunismo foram as principais justificativas para as duas rupturas institucionais do período (1935 e 1964), assim como, adicionamos, estão presentes no reavivamento do fantasma comunista na prática discursiva do atual governo brasileiro.
  • 13
    “The Third Reich does not merely persecute those who spread dangerous doctrines; it wages a perpetual warfare against all those dictates of conscience not in harmony with its teachings” (FRAENKEL, 2017FRAENKEL, E. The dual State: a contribution to the theory of dictatorship. Tradução do alemão por E. A. Shils. Oxford: Oxford University Press, 2017., p. 54). Para uma noção dos poderes de caça e extermínio de homes por outros homens ver (CHAMAYOU, 2012).
  • 14
    Na contramão da cobertura de parte de mídia empresarial, que separava o governo entre uma ala ideológica e uma ala técnica, entendemos que a plataforma neoliberal do Ministro da Economia Paulo Guedes, inviável eleitoralmente, apenas pode ser implementada em associação ao populismo autoritário do Presidente Jair Bolsonaro, eleito em 2018. Dessa forma, apenas podem ser compreendidas como parte de uma mesma unidade, razão pela qual utilizamos a expressão governo Bolsonaro-Guedes.
  • 15
    Surveys aplicados com deputados da primeira legislatura da Nova República davam a crer, a julgar exclusivamente pelo critério de autoidentificação política, que o Brasil era “um país sem direita” (RODRIGUES, 1987RODRIGUES, Leôncio. Quem é quem na Constituinte? Uma análise sócio-política dos partidos e deputados. São Paulo: Maltese, 1987., p. 99).
  • 16
    “A ditadura fascista resolveu a tarefa de conservar o poder nas mãos dos capitalistas [...], mas não criou nenhuma fórmula política de sucesso promissora a longo prazo, [...] carrega em si os traços da decadência e da decomposição tanto quanto o estágio imperialista do capitalismo que a engendrou” (PACHUKANIS, 2020PACHUKANIS, Eviguiéni. Fascismo. Tradução de Paula Vaz de Almeida. Boitempo: São Paulo, 2020., página?).
  • 17
    É importante destacar, no entanto, uma tendência de fechamento dos regimes em caso de renovação dos mandatos destes líderes de extrema direita.
  • 18
    Na esteira do argumento de Boito Junior (2020), é perfeitamente possível estarmos diante de um movimento e/ou de um governo fascistas, mas não de uma ditadura fascista consumada. Nesse sentido, o autor nos lembra que, em seus primeiros anos de governo, Benito Mussolini manteve-se dentro dos limites da democracia (BOITO JUNIOR, 2020, p. 111), da mesma forma como Fraenkel sustentara que o autoritarismo nazista apenas se transformaria em totalitarismo a partir de 1938
  • 19
    Após 18 anos de existência, nos quais acumulou resultados importante no combate à pobreza extrema e boas avaliações, o Programa Bolsa Família foi descontinuado, em detrimento à promessa de substituição por um programa que não se sabe quanto tempo vai durar, nem como será financiado. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2021/11/07/bolsa-familia-chega-ao-fim-em-meio-a-incertezas-sobre-seu-sucessor.ghtml. Acesso em 24 de novembro de 2021.
  • 20
    No momento de fechamento deste trabalho, a taxa dos que consideram o governo ótimo ou bom, avaliada em maio de 2021, está na pior marca desde o início do mandato (24%). No entanto, é muito possível que ela tenha encontrado seu piso, considerando as projeções de melhoras na economia e nos índices de vacinação. O histórico recente mostra que essa taxa tende a oscilar em torno dos 30%. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/05/datafolha-aprovacao-a-bolsonaro-recua-seis-pontos-e-chega-a-24-a-pior-marca-do-mandato-rejeicao-e-de-45.shtml?loggedpaywall&_ga=2.115051013.344556117.1624576018-799956657.1624576018&_mather=55dda15bd15bb6d7. Acesso em 24 de junho de 2021.
  • 21
    Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Disponível em: Acesso em 24 de novembro de 2021.
  • 22
    Apenas no legislativo federal passaram de 04 deputados federais eleitos em 2010, para 42 em 2018 (Instituto Sou da Paz, 2021). Esta representação, tradicionalmente feita via partidos de direita e/ou centro-direita, deslocou-se para pequenos partidos sem identificação ideológica nos anos 2010 (BERLATTO; CODATO; BOLOGNESI, 2016BERLATTO, F; CODATO, A; BOLOGNESI, B. Da polícia à política: explicando o perfil dos candidatos das forças repressivas de Estado à Câmara dos Deputados. Revista Brasileira de Ciências Políticas, n. 21, 2016.), para então se concentrarem em torno dos partidos de apoio à candidatura da extrema direita em 2018. Apenas o Partido Social Liberal, partido do então candidato Jair Bolsonaro, e o Republicano, partido ligado à Igreja Universal e aliado de primeira ordem do agora Governo Bolsonaro, concentraram mais de 15% de todas as candidaturas de policiais e militares em 2018 (Sou da Paz, 2021, p. 9). Em uma clara contrapartida política, foram as únicas categorias do serviço público com aumentos previstos para o orçamento do ano eleitoral de 2022.
  • 23
    A antropóloga Rosana Pinheiro Machado recentemente chamou atenção para a necessidade de identificar adequadamente o fenômeno das classes aspiracionais, para que não se repita o erro de chamá-las de nova classe média ou de classes ingratas. Disponível em: https://brasil.elpais.com/opiniao/2021-06-21/o-que-lula-deu-e-bolsonaro-abocanhou.html. Acesso em 23 de junho de 2021. O paralelo com certas interpretações do fascismo histórico é notável. Para Pachukanis (2020PACHUKANIS, Eviguiéni. Fascismo. Tradução de Paula Vaz de Almeida. Boitempo: São Paulo, 2020., 1925), a ascensão do fascismo teria sido preparada “por um processo de decomposição e decadência do parlamentarismo burguês”, que negaria os princípios liberais e democráticos ao se estruturar como uma espécie de ditadura do grande capital, mas apoiada, ainda que de maneira instável e contraditória, em um amplo movimento de massa.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2024

Histórico

  • Recebido
    18 Jan 2022
  • Aceito
    18 Ago 2022
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