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Sexualidades: a emergência de uma categoria na área do direito

Sexualities: the emergency for a category in the legal studies area

Resumo

Com base em dados extraídos do Catálogo de Teses e Dissertações da CAPES entre 2015 e 2020, na área do Direito, o presente artigo discute a emergência da categoria sexualidades tendo como referência as investigações produzidas neste período. Para tal, este estudo de abordagem qualitativa analisa a construção discursiva das sexualidades, procurando compreender limites e potencialidades, marcos teórico-metodológicos e suas implicações para o campo do conhecimento jurídico interdisciplinar. Trata-se de recorte de uma pesquisa mais ampla em que se problematizam as inter-relações entre as temáticas de gênero, sexualidades, direito e teoria de justiça.

Palavras-chave:
CAPES; Categoria; Direito; Sexualidades

Abstract

Considering the CAPES catalogue with master’s dissertations and doctoral thesis between 2015 and 2020, law studies area, this article discuss the necessity to create a category named sexualities based on law searching in Brazil. We developed a qualitative study that analyses the discourse construction about sexualities, looking for a comprehension about limits and potentials, theory and methodology and its implications to interdisciplinary legal knowledge. It’s important to say that this article is a clipping from bigger research that investigates the relation between gender, sexualities, rights and justice’s theory.

Keywords:
CAPES; Category; Rights; Sexualities

1. Introdução

Nas últimas duas décadas houve um exponencial crescimento de posicionamentos do poder judiciário brasileiro sobre a temática das sexualidades. Estas decisões judiciais começam a partir de demandas que chegam especialmente relacionadas à partilha de bens de vínculos entre pessoas de mesmo sexo. Dessa forma, os sistemas de justiça foram instados a estabelecer fundamentos teóricos para as tomadas de decisão, já que ainda não existia legislação infraconstitucional que desse conta dos pleitos advindos destas relações.

Coube, inicialmente, às varas de família da jurisdição cível a produção jurisprudencial nessa seara. Primeiramente, aderindo como lócus legítimo e competente para a contenda jurídica e, num segundo momento, ampliando sua dicção sobre o direito não só patrimonial, mas na dissolução de uniões homossexuais sem bens e na regulação das entidades familiares, alçando estas às possibilidades dos institutos da guarda e da adoção.

Essas decisões avançam progressivamente alcançando as cortes superiores. É no Supremo Tribunal Federal (STF) que os temas de repercussão nacional acabam desaguando e, no que tange às sexualidades, não tem sido diferente. O STF foi demandado a responder sobre a união estável entre pessoas de mesmo sexo por meio de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.2771 1 Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628635. Acesso em: 24 de jul. 2021. e uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 1322 2 Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628633. Acesso em: 24 de jul. 2021. .

Mais recentemente, em março de 2018, o STF, ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 42753 3 Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI4.275VotoEF.pdf.Acesso em: 24 de jul. 2021. , reconheceu a todas as pessoas trans o direito à substituição do prenome e do gênero diretamente nos cartórios de registro civil de pessoas naturais mediante simples autodeclaração. Por derradeiro, em 2019, a mesma corte superior opinou por determinar que as presas transexuais femininas sejam transferidas para presídios femininos. A decisão cautelar foi tomada na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 5274 4 Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF527_liminar_26jun2019.pdf. Acesso em: em: 24 jul. 2021. , em que a Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros (ABGLT) questionou decisões judiciais contraditórias na aplicação da Resolução Conjunta da Presidência da República e do Conselho de Combate à Discriminação nº 1/2014.

Em variadas esferas da justiça, para que se construísse este conjunto de decisões, se aprofundaram os estudos sobre as sexualidades, repercutindo, assim, no contexto da produção acadêmica no campo do Direito. No que tange às pesquisas científicas em nível de mestrado e doutorado, múltiplas investigações estão em curso e outras tantas foram produzidas no propósito de instituir um campo sólido teórico e metodológico que inter-relacione o direito às sexualidades.

Ao compulsar o Catálogo de Teses e Dissertações da CAPES, percebe-se este crescimento, especialmente nos últimos dez (10) anos. Quando se delimita estas pesquisas à área (conhecimento ou de avaliação) do Direito, esse avanço é particularmente mensurado de modo significativo quando se utiliza como descritor o termo sexualidade. Com ele, aparecem mais de cem (100) investigações junto aos Programas de Pós-graduação em Direito (mestrado e doutorado).

Em pesquisa exploratória, a partir dos títulos, palavras-chave e resumos, verifica-se que algumas daquelas produções (ao todo catorze) utilizam o descritor sexualidades. Assim, com base em dados extraídos do Catálogo de Teses e Dissertações da CAPES entre 2015 e 2020 na área do Direito, o presente artigo discute a emergência da categoria sexualidades tendo como referência as investigações produzidas neste período e que possuam livre acesso (sete ao total).

Para tal, este estudo de abordagem qualitativa analisa a construção discursiva do termo/categoria sexualidades, procurando compreender limites e potencialidades, marcos teórico-metodológicos e suas implicações para o campo do conhecimento jurídico interdisciplinar. Trata-se de recorte de uma pesquisa mais ampla em que se problematizam as inter-relações entre as temáticas de gênero, sexualidades, direito e teoria de justiça.

Para tanto, este estudo tem como problema central: quais os sentidos e significados aplicados à categoria analítica sexualidades apresentada nas produções acadêmicas da área do Direito, no período de 2015 a 2020, a partir do Catálogo de Teses e Dissertações da CAPES? Indaga-se, ainda, sobre quais referenciais teórico-metodológicos estão embasadas estas investigações, bem como que implicações produzem estes marcos para o campo do Direito?

Com vistas a responder estes questionamentos, além de uma introdução ao tema e a conclusão, o presente artigo se organiza em três partes. Em um primeiro momento, apresentam-se e exploram-se os dados qualitativos extraídos para o recorte delimitado junto ao Catálogo de Teses e Dissertações da CAPES. Na segunda parte do estudo, analisam-se os principais referenciais teóricos e metodológicos utilizados pelas produções acadêmicas selecionadas. Ao final, discute-se a necessidade e pontua-se os sentidos e significados da categoria sexualidades e suas interconexões com a produção do conhecimento jurídico interdisciplinar, bem como a emergência desta categoria como importante contribuição para o campo do Direito.

Além de suscitar e desvelar a emergência de uma categoria, entende-se que esta investigação pode contribuir para a produção acadêmica na seara jurídica e, desta forma, aproximar o direito às sexualidades, seja como mecanismo de engendramento nas decisões judiciais ou como bastião de uma resistência epistêmica permanente.

2. Contexto da pesquisa

Trata-se de investigação que pretende descortinar as concepções sobre sexualidades presentes nas produções acadêmicas na área do Direito. Para delimitar a presente escrita, buscou-se junto ao Catálogo de Teses e Dissertações da CAPES as pesquisas que versassem sobre a temática de modo a repercutir o estudo no campo jurídico interdisciplinar. Para tanto, utiliza-se do conceito de Bourdieu

um campo é um microcosmo autônomo no interior do macrocosmo social. [...] A noção de campo político tem muitas vantagens: ela permite construir de maneira rigorosa essa realidade que é a política ou o jogo político. Ela permite, em seguida, comparar essa realidade construída com outras realidades como o

campo religioso, o campo artístico... e, como todos sabem, nas ciências sociais, a comparação é um dos instrumentos mais eficazes, ao mesmo tempo de construção e de análise. (BOURDIEU, 2011BOURDIEU, Pierre. O Campo político. Grandes Conferências de Lyon, Université Lumière Lyon 2, 1999. Revista Brasileira de Ciência Política, nº 5. Brasília, 2011, pp. 193-216., p.194-195):

O cruzamento entre as reflexões interdisciplinares no Direito procura analisar os sistemas jurídicos, embasando-se, especialmente, nos campos da sociologia, da filosofia, da economia, da política e da educação. Entende-se, portanto, que uma análise interdisciplinar dos sistemas jurídicos necessita, obrigatoriamente, entender que:

[...] o direito não é um objeto de conhecimento dado antecipadamente, a priori, que é externamente observado e descrito, mas deve ser construído a partir de diferentes interesses cognitivos, onde o pesquisador também faz parte daquilo que investiga. (FARIÑAS DULCE, 1994FARIÑAS DULCE, María José. Sociología del Derecho versus análisis sociológico del Derecho. Doxa, Alicante, n. 15-16, 1994, pp. 1013-1023., p.1020, tradução nossa).

É importante dizer que os diálogos que aproximam a sexualidade do Direito, via de regra, vêm articulados aos seguintes descritores: gênero, diversidade, identidade, direitos da personalidade e interdisciplinaridade. Ademais, muitas investigações foram recentemente aportadas a partir da criação de grupos de pesquisa, como se pode perceber no Diretório do CNPq5 5 Disponível em: http://dgp.cnpq.br/dgp/. Acesso em: 28 jul. 2021. . Estes Grupos de Pesquisa inventariados estão localizados, principalmente, em universidades públicas e privadas, e em instituições isoladas de ensino superior, com cursos de pós-graduação stricto sensu na área do Direito.

Somando-se a estes Grupos e na esteira de importantes e qualificadas revistas acadêmicas como a Cadernos Pagu6 6 Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu Acesso em: 27 jul. 2021. , cuja tradição é marcada por contribuições das áreas da Antropologia, Sociologia, História, Ciência Política, Letras e Linguística, História da Ciência, Educação e, mais recentemente, também o Direito, e a Revista Estudos Feministas7 7 Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/index. Acesso em: 27 jul. 2021. , começam a surgir revistas especializadas em que as intersecções entre direito, gênero e sexualidade são proeminentes. Dentre outras, são exemplos destas novas publicações a Revista Gênero e Direito8 8 Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/index.php/ged/index.Acesso em: 27 jul. 2021. (G&D) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e a Revista de Gênero, Sexualidade e Direito9 9 Disponível em: https://www.indexlaw.org/index.php/revistagsd/index.Acesso em 27 jul. 2021. do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Direito (CONPEDI).

Nesse sentido, essas conexões têm atuado como aparato para a fundação de um considerável número de produções acadêmicas. Para tanto, neste artigo, manejou-se o descritor sexualidade, primeiramente, como modo de recortar os limites do estudo. No entanto, ao aportar este descritor junto ao Catálogo de Teses e Dissertações da CAPES, na área do Direito, no período 2015 a 2020, contabilizou-se mais de uma centena de teses e dissertações. Assim, estas pesquisas foram devidamente sistematizadas em tabelas para posterior análise e discussão, optando-se no presente pelo termo sexualidades.

Justifica-se esta delimitação, seguindo alguns contributos deixados por Foucault (2010FOUCAULT, Michel. A história da sexualidade vol. 1 - A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 2010, pp.7-174.), para quem, em História da Sexualidade 1: A vontade do saber, pluraliza o vocábulo sexualidade, agregando a ele um conjunto de potentes complementos tais como as expressões: sexualidades ilegítimas (página 10), sexualidades polimorfas (página 19), sexualidades periféricas (páginas 46, 48, 50 e 56), sexualidades sem propósito (página 48), sexualidades aberrantes (página 51), sexualidades errantes (página 52), sexualidades parcelares (página 53), sexualidades múltiplas, fragmentárias e móveis (páginas 54 e 55), sexualidades singulares (página 55), sexualidades disseminadas (página 56), sexualidades regionais (página 56), sexualidades heréticas (página 56) e sexualidades disparatadas (página 56). Indicando-nos, assim, as múltiplas possibilidades discursivas das sexualidades.

Ademais, segundo Rubin (2017RUBIN, Gayle. Políticas do Sexo. São Paulo: Ubu Editora, 2017, pp.1-144., p.78) “Foucault enfatiza mais os aspectos de organização social do sexo que seus elementos repressivos, ressaltando que novas sexualidades são constantemente produzidas.” Isto porque para Foucault os desejos são construídos a partir de práticas sociais ao longo da história, eis que “é através do isolamento, da intensificação e da consolidação das sexualidades periféricas que as relações do poder com o sexo e o prazer se ramificam e multiplicam, medem o corpo e penetram nas condutas.” (FOUCAULT, 2010FOUCAULT, Michel. A história da sexualidade vol. 1 - A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 2010, pp.7-174., p. 56).

Como bem lembra Gatti, “Foucault aprofundou seus pensamentos sobre a emergência de novas sexualidades e as transformações sociais que isso acarretaria.” (2011:14). Daí a importância de propor um recorte nesta delimitação do termo/categoria sexualidades, fundado numa genealogia de base foucaultiana.

A genealogia seria, pois, relativamente ao projeto de inserção dos saberes na hierarquia do poder próprio da ciência, uma espécie de empreendimento para desasujeitar os saberes históricos e torná-los livres, isto é, capazes de oposição e de luta contra a coerção de um discurso unitário, formal e científico. (FOUCAULT, 2018FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso do Collège de France (1975-1976). São Paulo: WMF Martins Fontes, 2018, pp.7-269., p.15).

Quando então se aplica o descritor sexualidades ao conjunto de produções acadêmicas explicitadas, verifica-se no Catálogo um quantitativo de catorze (14) investigações, sendo três (3) teses doutorais e onze (11) dissertações de mestrado. Mirando a Tabela 1, destacam-se algumas daquelas categorias supramencionadas, especialmente gênero, diversidade e direitos da personalidade que, junto ao direito ou aos sistemas de justiça, agregam o caráter de pesquisa jurídico-interdisciplinar.

Tabela 1
Dissertações e Teses (2015-2020) na área do Direito.

No entanto, quando se pretende analisar as pesquisas acima descritas, enfrenta-se o obstáculo da não publicização. Por tal razão, se constrói a Tabela 2 (abaixo) que deriva das pesquisas encontradas com total disponibilidade, ou seja, texto completo em livre acesso junto ao Catálogo de Teses e Dissertações da CAPES, para o período 2015 a 2020, na área do Direito.

Tabela 2
Dissertações e Teses (2015-2020) na área do Direito com livre acesso.

Sobejam para análise sete (7) estudos, compondo-se de uma (1) tese de doutoramento e seis (6) dissertações de mestrado, aos quais, a partir desta fase da escrita, denominar-se-ão por T, D1, D2, D3, D4, D5 e D6.

Como se visualiza em uma apressada leitura em que se apresentam título e palavras-chave, o descritor sexualidades vai emergir em três (3) das referidas investigações. Para as demais, o termo sexualidades surgirá junto aos resumos e abstracts. Nota-se, embora haja essa localização espacial-geográfica distinta ao largo destas sete (7) pesquisas acadêmicas, que em todas emerge a categoria sexualidades como potencialidade discursiva para o campo do direito. Como se verá logo a seguir.

3. Discutindo os referenciais teórico-metodológicos

Nesta parte do estudo, analisam-se os principais referenciais teóricos e metodológicos utilizados pelas produções acadêmicas selecionadas, entendendo que este debate epistemológico se impõe como fundamental para a construção de uma categoria em aparecimento no campo do Direito.

De acordo com Foucault (2010FOUCAULT, Michel. A história da sexualidade vol. 1 - A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 2010, pp.7-174., p.116-117), “a sexualidade é o nome que se pode dar a um dispositivo histórico [...] a formação dos conhecimentos, o reforço dos controles e das resistências, encadeiam-se uns aos outros, segundo algumas grandes estratégias de saber e de poder.” A sexualidade, neste sentido, se aproxima da subjetividade, na medida em que os limites e possibilidades de um corpo serão produzidos por estes dispositivos de saber, poder e controle.

Sob estes termos, Foucault nos indica que a produção de conhecimento (verdade) sobre a sexualidade possibilita um conjunto de normatizações e normalizações advindas destas estratégias de saber e de poder. Em A verdade e as formas jurídicas, esta aproximação com o campo do Direito fica evidenciada pelo inquérito, que segundo Foucault se apresenta “como forma de pesquisa da verdade no interior da ordem jurídica.” (FOUCAULT, 2005, p.12).

O saber sobre as sexualidades designa um trabalho histórico, realizado a partir de múltiplas tradições disciplinares. Trata-se de um esforço de politizar e esgaçar o campo do Direito, mobilizando as relações de poder inerentes a este contexto. Significa, também, permitir a emergência de um pensamento crítico contra-hegemônico, que produz conflito e gera resistências na construção histórica destas categorias, pois como revela Foucault “apenas conteúdos históricos podem permitir descobrir a clivagem dos enfrentamentos e das lutas que as ordenações funcionais ou as organizações sistemáticas tiveram como objetivo, justamente, mascarar”. (FOUCAULT, 2018FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso do Collège de France (1975-1976). São Paulo: WMF Martins Fontes, 2018, pp.7-269., p. 8).

Nestes engendramentos discursivos possibilitados em pesquisas acadêmicas cujo suporte alcança vários campos da ciência e do conhecimento jurídico (Direito Civil, Penal, Direitos Humanos entre outros), muitas vezes cotejados por análises de dados recolhidos dos sistemas de justiça, descortina-se a força essencial em potentes categorias como: gênero, sexualidades e diversidade. “Nesse acoplamento entre os saberes sepultados pela erudição e os saberes desqualificados pela hierarquia dos conhecimentos e das ciências que se decidiu efetivamente o que forneceu à crítica dos discursos destes últimos quinze anos a sua força essencial”. (FOUCAULT, 2018FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso do Collège de France (1975-1976). São Paulo: WMF Martins Fontes, 2018, pp.7-269., p.09).

Quando se trata de dialogar, por exemplo, com o Direito Civil, são os direitos da personalidade que se sublevam em destaque. E aqui descortina-se um horizonte de infinitas possibilidades para o debate sobre os usos e marcadores de identidade, incluindo o nome da pessoa natural, admitido pela legislação civilista12 12 Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002, Código Civil Brasileiro. como direito personalíssimo, intransmissível e irrenunciável. Neste perímetro, surgem com grande vigor investigações que tematizam as travestilidades13 13 Sobre travestilidades ver Amaral et al, 2014. , as transexualidades e as transgeneridades14 14 Para os termos transgeneridades e transexualidades ver Bento, 2006. , como são os estudos apresentados em T, D1 e D4.

Como resume a investigação T

No que tange às sexualidades humanas, na seara jurídica, os marcos binários de ― ser homem e ― ser mulher ainda não foram derrubados. No entanto, as identidades em redor das sexualidades mostram-se fluidas, independentemente dos sistemas jurídico-culturais. [...]. A sexualidade, entretanto, na área jurídica, continua firme em suas matrizes históricas e tradicionais, mesmo não havendo correspondente em âmbito social capaz de afirmar o quanto normatizado. (BOMFIM, 2015, p.14)

O autor discute as possibilidades de o direito engendrar enquanto categoria essa noção de sexualidades e, para tanto, realiza em sua pesquisa um aprofundado estudo de decisões e searas de atuação das sexualidades no campo jurídico. Centra seus esforços, sobremaneira nas demandas dos corpos subalternizados trans, em que vislumbra uma categoria à margem do próprio direito e da lei.

Como bem assevera Bomfim (2015, p.38) “não haveria uma única sexualidade, mas, sexualidades, no plural. A palavra deve ser utilizada no seu plural por não ter sentido unívoco conceitual. Ao revés, não há senso singular.” E continua, em sua tese doutoral, “Toda sexualidade seria, então, uma noção plural de variados matizes a serem levados em consideração a respeito dos seres humanos.”

A propósito, é também desta maneira que compreende Brum (2016) na pesquisa D6. Valendo-se de Dias e Alves (2013), a autora traz que a terminologia sexualidade deve ser grafada como sexualidades, isto porque ao ser grafada tal categoria no plural tem-se o sentido de pluralidade - este que se compreende fundamental diante da diversidade sexual existente. Desta forma, a autora da dissertação, inspirada na filosofia foucaultiana, alerta que embora

a compreensão tradicional das sexualidades esteja inscrita em um sistema discursivo dual (hetero e homo) e, portanto, entendida como uma forma de dominação heterossocial, torna-se urgente desfazer as noções naturalizantes (como do legitimo ou ilegítimo) das sexualidades, pois este sistema polarizado linear exila os corpos-sujeitos que vivenciam as sexualidades em desconexão à normatização discursiva, à invisibilidade e à zona da abjeção. (BRUM, 2016, p.42).

Retoma-se, conforme dito, que as abordagens de D1 e D4, como em T, revestem-se de um recorte em que as questões trans emergem de potentes reflexões em que o direito aparece como espaço de silenciamento destes corpos dissidentes. Em D1, por exemplo, as transgeneridades são abordadas a partir de um estudo empírico em que se revelam as múltiplas faces “no tocante às demandas relativas à identidade de pessoas transgêneras”. (BAISSO, 2020, p.08).

O levantamento empírico se baseia em entrevistas qualitativas com seis indivíduos, de diferentes posições sociais, etnias, sexualidades e vivências com o fenômeno jurídico. Os dados levantados sugerem que os tipos de consciência jurídica não mantêm entre si uma relação de oposição, o que implica dizer que a legalidade se apresenta de maneiras diversas e até mesmo contraditórias, variando conforme os cenários em que os indivíduos estão imersos. Ademais, embora estejam insertas, de modo geral, em contextos de marginalização sociojurídica, pessoas transgêneras nem sempre expressam formas de consciência resistentes. (BAISSO, 2020, p.08).

O estudo de Baisso (2020) demonstra que é no contexto da identidade pessoal das pessoas trans entrevistadas que o direito se apresenta como principal mecanismo de presença/ausência. Embora existam muitos campos de interação e relação com a seara jurídica, é no limite do reconhecimento que a pessoa trans se situa como uma das categorias de sujeitos sem a condição de inteligibilidade. (BENTO, 2006).

Como tem-se gradativamente sedimentado em boa parte das esferas e escalas de justiça do país, o aparecimento das demandas judiciais sobre as transexualidades, como a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.275 de relatoria do Min. Marco Aurélio em 2018, possibilitam compreender o nível de exclusão e de abjeção a que estes corpos são submetidos diuturnamente à ausência de uma vida digna.

O direito à retificação do registro civil, de modo a adequá-lo à identidade de gênero, concretiza a dignidade da pessoa humana, seja por meio da busca da felicidade, seja pelo princípio da igualdade, seja pelo direito ao reconhecimento. Isso porque o reconhecimento externo da identidade de gênero representa um pressuposto de realização pessoal do indivíduo e da busca da felicidade. (STF, 2018, p.06).

No mesmo sentido, a investigação D4 aponta a pertinência do direito e dos sistemas de justiça a abordar uma perspectiva plural sobre as sexualidades.

Apesar das dificuldades, pode-se dizer que a democracia sexual baseada nos direitos humanos e nos direitos constitucionais fundamentais deve permitir a atuação das instituições, ao mesmo tempo, no sentido de reconhecer a igualdade de respeito às diversas formas de viver as sexualidades, seja no âmbito privado ou nos espaços públicos, e no igual acesso de todas as pessoas, sem qualquer discriminação [...]. Esse plano deve ser observado - especialmente pelo Poder Judiciário. (EUGENIO, 2018, p.65).

Conforme bem evidenciou Foucault (2010FOUCAULT, Michel. A história da sexualidade vol. 1 - A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 2010, pp.7-174., p.136), “O ‘direito’ à vida, ao corpo, à saúde, à felicidade, à satisfação das necessidades, o ‘direito’, acima de todas as opressões ou ‘alienações’, de encontrar o que se é e tudo o que se pode ser, esse ‘direito’ tão incompreensível para o sistema jurídico clássico.”

Assim, essa ruptura com o que poderíamos denominar como um direito fechado em si mesmo, se apresenta sob a forma de um direito alternativo ou uma leitura alternativa do direito, a fim de absorver categorias do campo do impensável e das invisibilidades. Vidas precárias (BUTLER, 2012BUTLER, Judith. Cuerpos que importan: sobre los limites materiales y discursivos del “sexo”. Buenos Aires, Argentina: Paidós, 2012, pp.17-343.) e/ou subalternizadas (SPIVAK, 2010SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: UFMG, 2010, pp.1-68.), que restavam à margem do direito tradicional, protagonizam a produção de novas subjetividades amparadas pela legitimidade que o próprio direito, por meio de seus sistemas de justiça, lhe negara.

Neste ponto, ao discutir a (re)construção do conceito de reconhecimento do direito às sexualidades na seara jurídica, explica Brum (2016) em D6, valendo-se dos estudos foucaultianos, que é na abertura do Direito que se pode localizar a potencialidade para que este deixe de ser um espaço de normalização e transforme-se em um campo mais inclusivo e emancipatório. Em seus dizeres:

uma compreensão do Direito na qual o ―conjunto de normas jurídicas e sua aplicação possam ir além de regulações restritivas (RIOS, 2006:73), pode ser um mecanismo potente para que ele deixe de ser um espaço de normalização (FOUCAULT, 2010FOUCAULT, Michel. A história da sexualidade vol. 1 - A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 2010, pp.7-174.) e transforme-se em um campo afirmativo e de emancipação das sexualidades. (BRUM, 2016, p. 12).

É neste direcionamento de crítica ao modelo jurídico tradicional15 15 Vale-se desta terminologia como proposto por Rodriguez (2019), assim, para um melhor entendimento sugere-se a leitura deste escrito. e de enfrentamento da violência direcionado aqueles sujeitos que são precarizados e/ou subalternizados que a investigação D5 propõe estratégias na luta contra a homofobia. “Diante de toda a visibilidade que as sexualidades possuem nos dias atuais surge a necessidade de proteção na seara jurídica de indivíduos que são constantemente vítimas de violências por se enquadrarem em uma situação” (AGUIAR JÚNIOR, 2016, p.56) de subalternidade e/ou precarização. Para o autor, o conceito jurídico de discriminação visa a acabar não só com os efeitos jurídicos da discriminação, mas com os fatores que levam à situação de discriminação e, sendo assim, estabelece que os direitos de reconhecimento ligados às sexualidades são importantes na medida em que visam a reconhecer a homossexualidade como mais uma expressão das diversas sexualidades, sem hierarquia, como historicamente foi construído”. (AGUIAR JÚNIOR, 2016, p.26). Deve-se, então, para Aguiar Júnior (2016), compreender a necessidade de ser quebrada a roda da discriminação que subjuga grupos e os coloca em situação de invisíveis e marginais e, para tanto, a compreensão das sexualidades plural, no campo do Direito, se demonstra necessária.

Também, tendo como objetivo analisar estratégias de combate à homofobia que Grischke (2019), na investigação D3 - ao discutir as potencialidades, os limites e desafios para a atuação dos Núcleos de Gênero e Diversidade (NUGEDs)-, busca verificar como (e se) estes órgãos de assessoria servem efetivamente de instrumento institucional no combate a tal violência. O autor, a partir das lentes foucaultianas, constrói que o enquadramento binário da sociedade das sexualidades faz com que exista um pólo sadio, normal e outro doentio, anormal, que precisa ser fiscalizado por meio das instituições sociais favorecendo-se, com isso, a manutenção da normalidade heterossexual e da hegemonia masculina de forma que as particularidades em matéria de gêneros e sexualidades sejam sacrificadas em prol de um universalismo abstrato que favorece aquelas.

Diz Grischke (2019), não importa quão diferentes seus membros possam ser em termos das suas construções identitárias, como das suas sexualidades, a cultura nacional busca unificá-los numa identidade cultural, para representá-los todos como pertencendo à mesma e grande família nacional. No entanto, o autor, em diálogo com Butler, explica que a categoria universal deveria estar sempre em aberto, de modo que torne viáveis as inclusões identitárias, como das sexualidades. É a partir deste entendimento que Grischke (2019) constrói que é importante questionar o entendimento das categorias dadas de forma universalizante. Assim, possibilita refletir e ressignificar tais categorizações sob valores contra-hegemônicos que afastem o racismo, a homofobia, o imperialismo, o sexismo, o colonialismo e demais esquemas inflexíveis.

Do mesmo modo, insere-se neste contexto de discussões acerca do enfrentamento da violência direcionado aqueles sujeitos que são precarizados a investigação D2. Correia traz que a homofobia deve ser encarada como uma contrariedade ao Direito e, para tanto - ao compreender a educação como uma ferramenta com potencial renovador e emancipatório -, analisa como uma disciplina que aborda questões relativas ao gênero e às sexualidades, em um curso de Direito, contribui para uma formação mais humanizada e menos homofóbica e heterossexista dos profissionais do campo jurídico.

Como explica, partindo do entendimento de que as sexualidades são construídas de diferentes formas através do tempo e com a influência de diversas culturas, traz, por meio dos ensinamentos de Foucault, que a história da sexualidade é, na verdade, uma história sobre os discursos dos indivíduos que constroem a própria noção de sexualidade. Logo, se a própria sexualidade é construída, toda a compreensão desta categoria também pode e deve ser (re)construída, atingindo assim, uma concepção na seara jurídica de uma forma mais justa, acessível, efetiva para todos.

Nota-se que as investigações aqui apresentadas se utilizam de uma base teórica importante, que significativamente tem contribuído em outros campos do conhecimento (sociologia, filosofia, antropologia e educação) quando se trata de abordar os estudos sobre gênero e sexualidades. Dentre estes, pode-se destacar Ariés e Béjin (2010ARIÉS, Philippe e BÉJIN, André (Org.). Comunicación, 35 - Sexualidade Occidentales. Buenos Aires, Argentina: Nueva Visión, 2010, pp. 1-240.), Butler (2009BUTLER, Judith. Vida precaria: el poder del duelo y la violencia. Buenos Aires, Argentina: Paidós, 2009, pp.1-181., 2014, 2017), Carvalho e Andrade (2017CARVALHO, Salo de e DUARTE, Evandro Piza. Criminologia do preconceito: racismo e homofobia nas Ciências Criminais. São Paulo: Saraiva, 2017, pp.7-260.), De Lauretis (2007), Fausto- Sterling (2006), Irigaray (2017IRIGARAY, Luce. Esse sexo que no es uno. Madrid, Espanha: Akal, 2017, pp.1-175.), Millet (2018MILLET, Kate. Política Sexual. Madrid, Espanha: Ediciones Cátedra - Universitat de València, 2018, pp.1-640.), Pateman (1993PATEMAN, Carole. O contrato sexual. São Paulo: Paz e Terra, 1993, pp.1-364.) e Preciado (2011PRECIADO, Paul B. Manifesto contrasexual. Barcelona, Espanha: Anagrama Editorial, 2011, pp. 1-224.).

Verificados, portanto, os principais referenciais teóricos e metodológicos utilizados pelas produções acadêmicas selecionadas, parece razoável afirmar, então, que da soma destas análises emerge no campo do Direito como potencialidade discursiva a categoria das sexualidades. Passa-se, diante disso, à análise, no tópico seguinte, da necessidade da emergência no campo do Direito do aparecimento desta categoria, bem como pontua-se sua contribuição para o campo jurídico.

4. Sentidos e significados da categoria sexualidades como emergência no campo do Direito

Neste tópico, pretende-se demonstrar a importância para o campo do Direito da estruturação da categoria das sexualidades, busca-se discutir a necessidade da constituição desta categoria, assim como pretende-se desvelar como a emergência da categoria das sexualidades pode contribuir para a seara jurídica, posto que conforme demonstrado no tópico anterior, entende-se que esta categorização emerge como potência discursiva neste campo.

A rigor, na realidade contemporânea, as tentativas de interdição e do enquadramento das sexualidades de forma estanque têm sido recorrentes nos espaços de produção do saber e do poder, como ocorre especialmente no campo do Direito. Todavia, embora a compreensão tradicional das sexualidades esteja inscrita em um sistema discursivo dual e, portanto, entendida como uma forma de dominação heterossocial, torna-se urgente desfazer as noções naturalizantes das sexualidades, pois este sistema polarizado linear exila os sujeitos que experimentam as sexualidades em desconexão à normatização heteronormativa, às precarizações (BUTLER, 2012BUTLER, Judith. Cuerpos que importan: sobre los limites materiales y discursivos del “sexo”. Buenos Aires, Argentina: Paidós, 2012, pp.17-343.) e/ou subalternizações. (SPIVAK, 2010SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: UFMG, 2010, pp.1-68.).

Embora se reconheça que, como dito na parte introdutória deste texto, no contexto brasileiro, muitos avanços ocorreram e vêm ocorrendo referentes aos questionamentos das sexualidades particularmente a partir da atuação do Judiciário, compreende-se que, na continuidade desses avanços, houve retrocessos e, sobretudo, percebe-se que esses ganhos se articulam, via de regra, ainda entre saberes que naturalizam e normatizam padrões e vivências a partir de uma gramática que essencializa as sexualidades. Aponta-se, deste modo, que, apesar da efetivação progressista das demandas dos sujeitos LGBTQI+ esta se dá dentro do enquadramento hegemônico da heteronormatividade16 16 Sugere-se a leitura de Lloyd (2016) para uma melhor compreensão acerca da significação da heteronormatividade. - o que é incapaz de estruturar de forma eficiente respostas aos dilemas enfrentados cotidianamente por aqueles de maneira emancipatória.

Aliado a isso, parece razoável dizer que as conquistas que são concedidas a esses sujeitos são limitadas ao reconhecimento de direitos específicos. Ocorre que, apesar de tais conquistas apresentarem-se como significativas, não se traduzem, via de regra, em respostas efetivamente emancipatórias. Entende-se, deste modo, ser fundamental, como dito, a compreensão das sexualidades para além das concepções heteronormativas, e que esta compreensão se proponha transpor todas as formas de interdito, repressão e discriminação das expressões das sexualidades, quer as vivências sejam naturalizadas pela lógica heterossexual, ou em desconexão com ela.

Diante deste cenário, frente à potencialidade dos estudos foucaultianos para a análise que se realiza neste estudo, resgata-se que para o filósofo a categoria das sexualidades deve ser analisada por meio do entendimento de que as concepções e experiências destas são sempre desveladas a partir do resultado de convenções históricas, culturais e de mecanismos de poder, isto porque, pelas lentes foucaultianas, as sexualidades e o poder implicam-se mutuamente. Assim, falar em sexualidade é, também, falar de política, pois, como propõe Foucault (2010FOUCAULT, Michel. A história da sexualidade vol. 1 - A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 2010, pp.7-174.), desde a formação das sociedades mais primitivas até a formação e perpetuação da sociedade contemporânea, essa sempre esteve vinculada à demarcação das posições de poder.

As sexualidades são, dessa maneira, visualizadas, conforme mencionado, como uma construção por meio de diversos discursos sobre sexo, discursos que normatizam, regulam, instauram saberes e produzem verdades. (FOUCAULT, 2014bFOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 28 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014b, pp. 7-431.). Encontram-se, então, as sexualidades em construção permanente e flexível às marcas que variam em conformidade com os tempos, grupos sociais, étnicos, sexuais e de expressões de gêneros. Desta forma, a partir dos ensinamentos de Foucault, as sexualidades ultrapassam a concepção de constituir, como um dos procedimentos, o sujeito na promoção da sua individualidade, e tal categorização é, então, “[...] compreendida como muito mais do que um elemento do qual o indivíduo é constituído, mas, sim, é constitutiva da ligação que obriga as pessoas a se associar com sua identidade na forma da subjetividade”. (FOUCAULT, 2014a, p.75).

Ainda, seguindo o pensamento de Foucault, compreende-se que a temática das sexualidades evoca de imediato as problematizações sobre dominação e repressão, estritamente relacionadas entre si. Vale lembrar que isso se dá através da proliferação das concepções de normalidade e anormalidade propagadas nos discursos ditos verdadeiros a respeito do sexo. (FOUCAULT, 1999FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1999, pp.1-40.). Isso significa que o sexo fica reduzido pelo poder a um regime binário, pois: “[...] este prescreve àquele uma ordem que funciona, ao mesmo tempo, como forma de inteligibilidade: o sexo se decifra a partir da relação com a lei”. (FOUCAULT, 2014b, p. 91). Em outros termos: “[...] o poder age pronunciando a regra: o domínio do poder sobre o sexo é efetuado através da linguagem, ou seja, por ato de discurso que cria, pelo próprio fato de se enunciar, um estado de direito e faz a regra [...].” (FOUCAULT, 2014b, p.91). Assim, “[...] o ciclo da interdição: não te aproximes, não toques, não tenhas prazer, é realizado a partir da opressão do poder ao sexo, realizado exclusivamente pela interdição que joga com a dualidade da lógica discursiva.” (FOUCAULT, 2014b, p. 92).

Nesse contexto, no qual a sociedade produz o que é dito verdadeiro, há que se ressalvar que somente nos encontramos neste campo se obedecermos às regras da política discursiva, heteronormativa, que deve ser reativada em cada novo discurso. (FOUCAULT, 1999FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1999, pp.1-40.). Ainda, na medida em que o sistema - a heteronormatividade - constrói o sujeito de desejo, simultaneamente estabelecendo-o como normal ou anormal, naturalizando-o a partir do modelo heterossocial (BUTLER, 2015BUTLER, Judith. Problemas de Gênero - Feminismo e Subversão da Identidade.8º ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015, pp.7-286.), o sexo é inserido em um sistema de unidade e regulação social e, consequentemente, entendido como uma categoria de (re)produção de dominação e, sobretudo, de poder. (FOUCAULT, 2014b).

Isto é, a partir do Cristianismo, o ocidente não parou de proclamar “para saber quem és, conhece teu sexo.” (FOUCAULT, 2010FOUCAULT, Michel. A história da sexualidade vol. 1 - A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 2010, pp.7-174., p.344). Dessa maneira, o sexo foi e é concebido como núcleo em que se aloja o devir de nossa espécie, nossa verdade de sujeito humano. O problema está, segundo Foucault (2014aFOUCAULT, Michel. Ditos e escritos, volume V: Ética. Sexualidade. Política/Michel Foucault. (Org): MOTTA, Manoel Barros. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014a, pp. 1.-310., p.344), “[...] em como que, em uma sociedade como a nossa que faz circular discursos que funcionam como verdades, as sexualidades não sejam compreendidas como aquilo que simplesmente permite a reprodução da espécie, da família e dos indivíduos”.

Percebe-se, a partir disso, que os discursos acerca das sexualidades são produzidos e reproduzidos a partir do discurso dito verdadeiro das sexualidades, ou seja, o discurso que propaga a heterossexualidade como única forma de normalidade e de legitimidade. (FOUCAULT, 2014bFOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 28 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014b, pp. 7-431.). Além disso, por meio dessa concepção, Foucault (2014bFOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 28 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014b, pp. 7-431.) afirma que vivemos em uma sociedade que, em grande parte, marcha ao compasso da verdade; em outros termos, que produz discursos que funcionam como verdadeiros, produzindo as sexualidades desta ou daquela forma a partir da concepção da naturalidade cristã, ou seja, da moral corrente, do casamento, da reprodução, da limitação e da desqualificação do prazer.

Adquire, nesse cenário, fundamental importância compreender que o Direito, como explica Foucault, é sobretudo um elemento disciplinador e normalizador no caminho para reconhecimentos das demandas dos sujeitos LGBTQI+. Isso ocorre porque, há, via de regra, por exemplo, uma incomensurabilidade entre o sistema jurídico tradicional e os modos de vida sociais e culturais. Ou seja, quando alguns sujeitos buscam o Direito muitas vezes não encontram ancoragem para suas demandas, posto que este é estabelecido a partir de um único modelo de inteligibilidade.

Aliás, parece ser dentro desta perspectiva que, como Foucault, Butler (2019BUTLER, Judith. Critique, crisis, and the elusive tribunal. In: GORDON, Peter; HAMMER, Espen; HONNETH, Axel. (Org): The Routledge Companion to the Frankfurt School. New York and London: Routledge, 2019, pp. 10-234.) estrutura seu pensamento. Para a autora, o Direito também é um elemento disciplinador e normalizador. Diz Butler que há sujeitos que não encontram ancoragem dentro das normas que governam os reconhecimentos, isto porque, para a autora, as normas estruturarem-se por um regime de verdades que decide de antemão o que estará dentro ou fora das regras. O Direito, portanto, concede reconhecimentos a alguns e nega a outros ao construir um dentro e um fora das regras. Essa operação cria hierarquizações que estabelecem posições de poder e, desta forma, zonas de inteligibilidade. Nota-se que as fronteiras de inteligibilidade definem, concedem e constituem reconhecimentos a determinados sujeitos ao instaurarem e naturalizarem as categorias jurídicas aos limites e formas apropriadas, ao passo que excluem desses reconhecimentos aqueles que se encontram além daquela fronteira.

Dentro desse quadro, é possível verificar que os sujeitos que divergem do modelo hegemônico binarizante das sexualidades, ou seja, que vivenciam suas sexualidades de forma plural, encaram sistematicamente situações de precarizações e/ou subalternização e, por isso, acabam sendo alvo de métodos que visam a excluí-los de qualquer projeto que direcione a emancipação.

No entanto, pelo viés crítico, com Foucault, Butler, possibilita-se refletir que o Direito deveria garantir vidas vivíveis e não opor zonas de inteligibilidade, ou seja, este campo, pelo olhar da autora, não deveria ser constituído a partir de um único modelo de inteligibilidade. A filósofa, ao apostar na possibilidade da abertura dos termos, isto é, ao tornar explícitas as constituições fechadas do sistema jurídico tradicional, possibilita que se aposte na estruturação da categoria das sexualidades como potência discursiva para este campo.

É perante isso que emerge a necessidade de se constituir de forma plural a categorização das sexualidades, isto porque acredita-se que a emergência desta categoria no campo jurídico pode consubstanciar-se como um caminho promissor para que este não apenas seja capaz de efetivar respostas emancipatórias às demandas dos sujeitos LGBTQI+, como fundamentalmente pode estabelecer-se como bastião de uma resistência epistêmica permanente.

CONCLUSÃO

Tendo em vista os processos de precarização (BUTLER, 2012BUTLER, Judith. Cuerpos que importan: sobre los limites materiales y discursivos del “sexo”. Buenos Aires, Argentina: Paidós, 2012, pp.17-343.) e de subalternização (SPIVAK, 2010SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: UFMG, 2010, pp.1-68.) que os sujeitos LGBTQI+ experimentam no contexto brasileiro, entende-se que o arcabouço normativo do atual campo jurídico se demonstra insuficiente para atender a extensão multifacetada das sociedades contemporâneas. Impõe-se, assim, a necessidade de repensar novos padrões discursivos capazes de contemplar os impasses e as insuficiências do atual paradigma da ciência jurídica tradicional. Desta forma, valendo-se de estudos acadêmicos realizados no campo do Direito, pretendeu-se apontar a necessidade da emergência, neste campo, da categoria das sexualidades, isto porque entende-se que ao pluralizar tal categoria e, portanto, direcioná-la para uma perceptiva pluralista, constitui-se uma concepção com potencial para efetivar respostas emancipatórias as demandas dos sujeitos LGBTQI+.

Assim, mediante uma abordagem qualitativa, pretendeu-se, neste escrito, que compõe uma pesquisa mais abrangente em que se questiona as inter-relações entre as temáticas de gênero, sexualidades, direito e teoria de justiça -, analisar a construção discursiva do termo/categoria sexualidades, procurando compreender limites e potencialidades, marcos teórico-metodológicos e suas implicações para o campo do conhecimento do Direito de maneira interdisciplinar.

Tendo como referência as produções acadêmicas disponibilizadas no Catálogo de Teses e Dissertações da CAPES tencionou-se, então, analisar os sentidos e significados aplicados à categoria analítica sexualidades apresentada nas produções acadêmicas da área do Direito no período de 2015 a 2020, também buscou-se compreender quais referenciais teórico-metodológicos serviram de marcos para estas investigações, bem como quais implicações produzem estes para o campo do Direito.

Resgata-se, conforme apontado no tópico segundo deste escrito, que nas 7 investigações analisadas se percebeu uma base teórica significativa quando se trata de abordar os estudos sobre gênero e sexualidades. Dentre estes, pode-se destacar Ariés e Béjin (2010ARIÉS, Philippe e BÉJIN, André (Org.). Comunicación, 35 - Sexualidade Occidentales. Buenos Aires, Argentina: Nueva Visión, 2010, pp. 1-240.), Butler (2009BUTLER, Judith. Vida precaria: el poder del duelo y la violencia. Buenos Aires, Argentina: Paidós, 2009, pp.1-181., 2014, 2017), Carvalho e Andrade (2017CARVALHO, Salo de e DUARTE, Evandro Piza. Criminologia do preconceito: racismo e homofobia nas Ciências Criminais. São Paulo: Saraiva, 2017, pp.7-260.), De Lauretis (2007), Fausto- Sterling (2006), Irigaray (2017IRIGARAY, Luce. Esse sexo que no es uno. Madrid, Espanha: Akal, 2017, pp.1-175.), Millet (2018MILLET, Kate. Política Sexual. Madrid, Espanha: Ediciones Cátedra - Universitat de València, 2018, pp.1-640.), Pateman (1993PATEMAN, Carole. O contrato sexual. São Paulo: Paz e Terra, 1993, pp.1-364.) e Preciado (2011PRECIADO, Paul B. Manifesto contrasexual. Barcelona, Espanha: Anagrama Editorial, 2011, pp. 1-224.).

Dessa forma, espera-se que esta pesquisa potencialize o crescimento da produção acadêmica na seara jurídica, intencionalizando no Direito a categoria das sexualidades - esta que se constitua, ao consubstanciar-se como um mecanismo de engendramento nas decisões judiciais, não apenas como uma categorização capaz de efetivar respostas emancipatórias às demandas dos sujeitos LGBTQI+, mas especialmente como bastião de uma resistência epistêmica permanente.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2024

Histórico

  • Recebido
    22 Fev 2022
  • Aceito
    30 Ago 2022
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