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Botocudos, atingidos e extrativismo: ensaio sobre a estranha ordem geométrica da territorialização do capital nos territórios de Barra Longa (MG)

Botocudos, affected people and extractivism: essay on the strange order of the capital territorializaton at Barra Longa’s territories

Resumo

Barra Longa (MG) é uma das cidades atingidas pelo rompimento da Barragem de Fundão. Considerada a singularidade deste caso no contexto do desastre e do processo de reparação, buscamos discutir neste ensaio em que medida as disputas em torno do planejamento territorial, intensificadas após o soterramento de vias e edificações desta cidade pelos rejeitos minerários, são também ecos dos métodos de acumulação originária permanente do capital. O planejamento popular é percebido como recurso contestatório, contrapondo à repristinação da violência da acumulação originária a antropofágica apropriação dos conhecimentos técnicos e científicos na luta coletiva pela produção popular do espaço barralonguense.

Palavras-chave:
Barra Longa (MG); Barragem de Fundão; John Mawe; Acumulação originária permanente; Planejamento conflitual; Planejamento militante

Abstract

Barra Longa (Brazil, MG) is one of the cities affected by the collapse of the Fundão Dam. Considering the uniqueness of this case in the context of the disaster and of the repair process, we pretend to discuss at this essay in which extent the disputes over territorial planning, intensified after the burial of roads and edifications in this city by ore tailings, are also echoes of the methods of original accumulation of capital. The popular planning is perceived as a resource of contest, opposing to the repristination of the original accumulation violence the anthropophagic appropriation of technical and scientific knowledge in the collective struggle for the popular production of the Barra Longa’s space.

Keywords:
Barra Longa (MG); Fundão Dam; John Mawe; Permanent original accumulation; Conflictual planning; Militant planning

Barra Longa (MG) é uma das cidades atingidas pelo rompimento da Barragem de Fundão, estrutura geotécnica integrada aos meios de produção das mineradoras Samarco Mineração S.A., Vale S.A. e BHP Billiton Brasil Ltda. colapsada em 5 de novembro de 2015. Trata-se do único território urbano pelo qual os destrutivos rejeitos passaram e permaneceram. Buscaremos discutir neste ensaio em que medida as disputas em torno do planejamento da produção social do espaço, intensificadas após o soterramento por rejeitos minerários de vias, edificações, espaços públicos e espaços comunitários dos territórios barralonguenses, são também possíveis ecos dos violentos métodos de acumulação originária do capital.

Hoje com uma população estimada em 4.905 habitantes,1 1 De acordo com o recenseamento de 1950, a população de Barra Longa à época era de 13.892 habitantes, com 89% de população localizada no quadro rural. Foram registrados 6.143 habitantes no último censo realizado (IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Sinopse do Censo Demográfico 2010. Rio de Janeiro: IBGE, 2011). A estimativa para 2015 e 2021 são, respectivamente, de 5.799 e 4.905 habitantes. Estes dados foram consultados em Souza (1958) e nos dados disponibilizados pelo Portal do IBGE (IBGE, [s.d.]). pode-se dizer que Barra Longa se situa precisamente no fim da estrada de um regime colonialmente globalizado de acumulação capitalista. Quando se chega ao território barralonguense, ponto da malha rodoviária até hoje não alcançado pelos serviços de transporte de tipo empresarial, há a impressão de que só resta vereda de asfalto para voltar; quer dizer, não era comum que a cidade fosse atravessada por acidente ou como momento de mera passagem.

O caso é que, revolvido pela onda de rejeitos em 2015, atualmente este mesmo espaço marginal ao processo produtivo da indústria extrativa concentra um conjunto de relações sociais conflituais altamente complexo, tendo a sua situação pós-desastre já se tornado objeto da atuação extensionista universitária, a exemplo do GEPSA - Grupo de Estudos e Pesquisas Socioambientais da UFOP - Universidade Federal de Ouro Preto, e de investigações focais de diversas áreas do conhecimento.2 2 Exemplos de trabalhos publicados neste período de sete anos desde o rompimento, em diferentes abordagens, estão em Andrade (2018), Haugsnes (2018), Pereira (2020), Alagoano e Pereira (2020), Carneiro (2020; 2021), Silva (2021), Morais (2021), Pazello, Uchimura e Ferreira (2021) e Carneiro e Milanez (2022).

O caso é que ainda há muito sobre Barra Longa a ser contado, investigado e compreendido, até porque as situações de conflito entre as populações atingidas e as empresas mineradoras permanecem ali presentes de modo intensivo e dinâmico com o lento e inacabado processo de reparação em curso.

Diante de tal contexto, o presente ensaio, com reconhecimento de sua provisoriedade e seu caráter aproximativo, reúne notas de pesquisa compartilhadas sobre a situação das populações atingidas de Barra Longa, cujo aprofundamento se deu na tese de doutoramento de Uchimura (no prelo) e a partir do qual os demais autores procuram refletir, cada qual contribuindo com seus acúmulos investigativos.

Não conhecemos ainda um esforço cruzado de análise do estado conflitual em que se encontram os territórios barralonguenses e de reconstrução da história originária do povoado da setecentista Barra de Matias Barbosa, tal como pretendemos aqui ensaiar. Nesse sentido, um dos mais antigos registros dos conflitos coloniais que conformaram historicamente o ribeirinho território barralonguense está no livro Viagens ao Interior do Brasil, raro registro cartográfico da conexão entre tal cidade e o extrativismo aurífero colonial pela perspectiva etnocêntrica do mineralogista inglês John Mawe.3 3 O título completo da edição original da obra, em língua inglesa, é bastante descritivo de seu conteúdo. Em tradução livre: “Viagens ao interior do Brasil, particularmente aos distritos de ouro e dos diamantes daquele país, por autoridade do príncipe regente de Portugal: incluindo uma viagem ao Rio da Prata e um esboço histórico da revolução de Buenos Aires” (MAWE, 1815). Tal obra foi editada e publicada pela primeira vez em 1812 na Inglaterra. Nela, entre outras veredas do sertão mineiro, o viajante inglês relatou sua passagem pela então denominada São José de Barra Longa em 1809. Buscaremos, na sequência, analisar os registros narrados nesta fonte bibliográfica desde a “visão dos vencidos”, para lembrar narração asteca da conquista colonial, reconstruída por Miguel León-Portilla (1987) ou, ainda, fazendo remissão às famosas teses Sobre o Conceito da História de Walter Benjamin (2012BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. Em: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução Sérgio Paulo Rouanet. 8 ed. São Paulo: Brasiliense, 2012. (Obras escolhidas. v. 1). p. 241-251.: 243-245), assumindo a “tarefa de escovar a história a contrapelo” em busca da captura de um passado “como imagem que relampeja irreversivelmente”.

Nosso propósito é o de, confrontando a atual situação de parte dos territórios barralonguenses com a história de sua violenta gênese capitalista, identificar elementos que aproximem a história destes territórios à história mundial da ascensão do capital rumo à infiltração dos pressupostos do valor em todos os poros planetários. Buscaremos apresentar elementos históricos relacionados à condição mineral pela qual foram colonizados os territórios barralonguenses, apontando para o fato de que a expansão extrativista (expressão utilizada em sentido amplo, atribuindo-se a ela a característica industrial-capitalista) sobre estas áreas foi marcada “com traços de sangue e fogo” - para lembrar uma expressão do discurso metafórico de Marx (2014MARX, Karl. O capital: crítica da economia política - O processo de produção do capital. Tradução de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2014.: 787) - e desde logo com a resistência dos povos que ali estavam quando o homem branco chegou, em busca de ouro. O que nos interessa, mais precisamente, é identificar um ponto em comum entre situações conflituais historicamente distintas ocorridas no mesmo espaço de modo a ressaltar a continuidade e a permanência do antagonismo entre a violência que caracteriza a expansão territorial do capitalismo e a resistência contra o engolfamento de tudo pelo capital.

1. A cidade atingida: os territórios de Barra Longa atravessados pelo capital

O registro no imaginário brasileiro da cidade de Mariana (MG) como a referência metonímica por excelência para se falar sobre o rompimento da Barragem de Fundão, ocorrido em 5 de novembro de 2015, de algum modo oculta a dimensão colossal deste desastre-crime empresarial, fenômeno geotécnico sem precedentes na história brasileira. Os mais de 40 milhões de metros cúbicos de rejeitos tóxicos da exploração econômica do minério de ferro acumularam um profundo e incomensurável deslocamento dos modos de vida das múltiplas populações viventes em enlaçamento territorial com a bacia do rio Doce e com o litoral capixaba. Falamos não apenas de Mariana, mas de um conjunto complexo de pelo menos 43 municípios (cf. MILANEZ et al, 2015MILANEZ, Bruno et al. Antes fosse mais leve a carga: avaliação dos aspectos econômicos, políticos e sociais do desastre da Samarco/Vale/BHP em Mariana (MG). Mimeo. 2015.).

Um dos territórios atravessados por esta imensa massa de barro liquefeito - mecanicamente destrutiva e sanitariamente tóxica - foi o de Barra Longa, município da Zona da Mata do estado de Minas Gerais.

Na tarde de uma quinta-feira, chegou aos barralonguenses a surreal notícia de que uma montanha de rejeitos havia sido desfeita, e vinha uma avalanche descendo o rio Gualaxo do Norte, já com muitas mortes. Não se passaram mais do que algumas horas até os rejeitos cruzarem as fronteiras municipais do território barralonguense, devastando pela madrugada o centro urbano da cidade, destruindo casas e espaços comunitários, como os da comunidade de Gesteira, e deixando uma poeira tóxica indefinidamente presente no solo, na água e no ar.

Quatro dias depois, foi encontrado na cidade o corpo de uma das vítimas mortas por soterramento (PORTO; RAMOS, 2015PORTO, Bruno; RAMOS, Raquel. Corpo é encontrado em Barra Longa e IML identifica restos mortais de outra vítima. Hoje em dia, 09 nov. 2015. Disponível em: https://www.hojeemdia.com.br/horizontes/corpo-%C3%A9-encontrado-em-barra-longa-e-iml-identifica-restos-mortais-de-outra-v%C3%ADtima-1.329720. Acesso em 9 nov. 2020.
https://www.hojeemdia.com.br/horizontes/...
). Por ação da Samarco, a lama podre recolhida das calçadas foi depositada no campo de futebol da cidade (ALVES, 2017ALVES, Thiago. Um ano e meio depois, moradores de Barra Longa ainda convivem com a lama da Samarco. Brasil de Fato, 24 maio 2017. Disponível em: https://www.brasildefatomg.com.br/2017/05/24/um-ano-e-meio-depois-moradores-de-barra-longa-ainda-convivem-com-a-lama-da-samarco. Acesso em 9 nov. 2020.
https://www.brasildefatomg.com.br/2017/0...
), sendo parte usada na pavimentação das vias públicas (SAMARCO, 2016). Representando a morte dos locais comuns de encontro popular, a Praça Lino Mol, cartão postal de Barra Longa, foi arrasada. Situado às beiras do Rio do Carmo, no núcleo central da cidade, este local histórico e de intensa ritualização da vida ficou interditado por cerca de um ano. Reformada, a praça foi uma das primeiras obras entregues no contexto da reparação. No entanto, de acordo com o relato de uma das moradoras de sua proximidade, ela simplesmente “perdeu seu encanto”.4 4 Tal percepção foi registrada em Terra da gente, informativo da Fundação Renova para as comunidades de Barra Longa, Gesteira e Barreto (FUNDAÇÃO RENOVA, 2020).

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Enquanto as linhas geométricas do portal reenquadram, dentro da fotografia, um trabalhador da construção civil e provocam seu afastamento das máquinas que opera, os pilares que sustentam a identidade “Barra Longa” marcam a altura atingida pelos rejeitos que aterraram uma nova ordem de conflitos na cidade.

A partir do dia seguinte ao rompimento da Barragem de Fundão, aportaram na pequena cidade ribeirinha massivos fragmentos da metrópole, antes tão remotos e distantes. Barra Longa tornou-se marcada pela presença agitada e constante de arquitetos, engenheiros, planejadores, gestores, técnicos, operadores de maquinários e trabalhadores da construção civil em geral. Além disso, tratores operando incessantes demolições e reedificações, caminhões de carga removendo lama de rejeitos ou trazendo materiais de construção, veículos potentes identificados por marcas nunca antes vistos naquelas vias, drones mapeando o espaço terrestre desfigurado e reconfigurado pela produção mineradora, todo este movimento inabitual transformou a cidade em um grande e barulhento “canteiro de obras” (ALVES; SANTOS, 2016ALVES, Cida; SANTOS, Wagner. Em Barra Longa, população reclama que cidade virou canteiro de obras. G1, 30 out. 2016. Disponível em: http://g1.globo.com/minas-gerais/desastre-ambiental-em-mariana/noticia/2016/10/em-barra-longa-populacao-reclama-que-cidade-virou-canteiro-de-obras.html. Acesso em 05 nov. 2020.
http://g1.globo.com/minas-gerais/desastr...
), expressão bastante significativa que aqui ecoamos a partir de sua recorrência nos relatos de barralonguenses atingidas e atingidos.

O território de Barra Longa tornou-se dominado pela perspectiva empresarial da gestão e da produção de um espaço urbano desfigurado. O léxico dos efeitos sociais do rompimento da Barragem de Fundão se alterou a partir do ano de 2016, com o advento do Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC). A Fundação Renova, máscara jurídica das mineradoras violadoras Samarco, Vale e BHP Billiton, passou a gerir a governança das medidas de reparação na extensão da bacia do rio Doce. Daí a perceptível situação de deslocamento espaço-temporal do povo barralonguense diante da presença massiva de gente estranha, de fora, estrangeira, desconhecida. A cidade, como era, encontra-se em estado de suspensão ou, até mesmo, dissolução.

Além disso, a experiência urbana de Barra Longa está intimamente atrelada à passagem do rio do Carmo pela zona urbana e pela união dele com o rio Gualaxo do Norte. É o encontro destes afluentes, aliás, que cria a paisagem geográfica responsável pelo nome da cidade: a barra.5 5 O “Conjunto paisagístico do encontro dos rios do Carmo e Gualaxo do Norte”, geograficamente identificado como um tipo de barra, foi oficialmente tombado como bem protegido pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais com a edição do Decreto nº 158 em 2007. As águas seguem seu curso até que confluem com o rio Piranga para originarem o imponente e volumoso rio Doce. Em referência ao poema América, de Carlos Drummond de Andrade (1945), caberia dizer: a rua que começa em Barra Longa e “vai dar em qualquer ponto da terra” certamente é aquela que margeia estas águas.

Em trabalhos de campo realizados no território de Barra Longa pudemos de fato observar que - em contraste aos improváveis viajantes apenas em circunstancial passagem pela cidade - é o próprio Carmo que ali atravessa ininterruptamente a sede urbana barralonguense. Isso ocorre desde os tempos remotos de sua edificação inicial, gravando a permanência da ruidosa correnteza do rio nas particularidades culturais desta coletividade singular.

Da perspectiva das águas que descem em direção ao rio Doce, à margem direita se acomodam montanhosamente as construções urbanas; à margem esquerda, a natureza e os pastos fixam um imóvel contraponto de perspectiva ao fenômeno urbano construído. Resta a margem terceira, um dos mais potentes enigmas da literatura de Guimarães Rosa (2016ROSA, João Guimarães. A terceira margem do rio. Em: ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. São Paulo: Nova Fronteira, 2016.), justamente na qual se revolve a pergunta que, irmanada à rua mundializante de Drummond, aqui nos desafia os exames científico e teórico: o que se passa na trama conflitual que hoje conforma Barra Longa?

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Vista aérea da cidade de Barra Longa em 2016, acomodada montanhosamente à beira do serpentear enlameado do rio do Carmo.

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Sendo o povo barralonguense beiradeiro de dois rios, a experiência desta cidade atingida está intimamente atrelada não apenas à passagem do rio do Carmo pela zona urbana, mas também pela união deste com o rio Gualaxo do Norte. Ao chegarem ao encontro dos rios, os rejeitos da Vale-Samarco-BHP subiram cerca de cinco quilômetros o rio do Carmo (à esquerda) quando o encontraram vindos do Gualaxo do Norte (à direita). A análise bioquímica realizada por Reis (2019REIS, Deyse Almeida dos. Litotipos da bacia hidrográfica do RGN. Contaminação química e microbiológica em águas e sedimentos da bacia do rio Gualaxo do Norte, sub-bacia do rio Doce, submetida a fatores de pressão antrópicos e ao rompimento da barragem de Fundão. 2019. Tese (Doutorado) - Programa de Pós- graduação em Engenharia Ambiental, Universidade Federal de Ouro Preto, Ouro Preto, 2019.: 142) levou-a à conclusão de que “os rejeitos de mineração, oriundos da barragem de Fundão, interferiram na turbidez, na concentração de nitrato, ferro, matéria orgânica, na granulometria e na mobilidade de ferro, manganês, bário, zinco e cobre nos sedimentos das estações a jusante do desastre ambiental” - o que explica a persistente coloração alaranjada de um rio em relação a outro depois de um ano do rompimento. O resultado imagético produzido pela fotografia, por fim, é o de um encontro dos rios que remete à formação de um “V”, permitindo imaginar a recolorização, com grande força alegórica, do logotipo da Vale.

2. Um estrangeiro nas veredas mineiras e um sertão pelado de tão encoberto

Os rejeitos que chegaram a Barra Longa devastaram uma cidade com mais de três séculos de história. De acordo com a Enciclopédia dos Municípios Brasileiros, editada em 1958 pelo IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, a formação inicial do povoado barralonguense é datada entre 1701 e 1704, limiar do século XVIII, por ação de Matias Barbosa da Silva. Hoje, este mesmo nome figura nas placas de uma das principais ruas da cidade de Barra Longa. Coronel que “se ilustrara no sul”, este colonizador português era “riquíssimo, senhor de muitos escravos e poderoso em armas”, tendo explorado o território “à procura, no seio ubertoso das terras do Carmo, da sustentação de sua casa já então naturalmente grande” (SOUZA, 1958SOUZA, Jahy de. Barra Longa. Dados fornecidos por Gutemberg José de Freitas. In: IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Enciclopédia dos municípios brasileiros, v. XIV. Planejada e orientada por Jurandyr Peres Ferreira. Coordenação administrativa de Virgilio Corrêa Filho e Luiz Abreu de Moreira. Supervisão geográfica de Speridião Faissol. Orientação e revisão técnica de Wilson Tavora Maia. Brasília: IBGE, 1958. p. 144-147.: 144).

O caso é que, após guerrear por anos na Colônia de Sacramento, Matias Barbosa foi incumbido pela corte portuguesa de empregar suas capacidades, então adquiridas pela intensa experiência bélica, precisamente na expulsão e no amansamento das gentes que insistissem em ali permanecer. Seus herdeiros, um século depois, intensificaram a ação de extermínio dos “indomáveis” que recusassem o processo civilizatório das veredas da bacia do rio Doce, política estrategicamente planejada pela ala dos modernistas portugueses que compunham a corte. Foi assim que o poderoso coronel, sua esposa e seus descendentes se fixaram no território hoje chamado Barra Longa.

De modo assustadoramente naturalizado pelos europeus, esta guerra de extermínio contra os povos originários se acirrou nos sertões mineiros a partir do início do século XIX - mais precisamente com a política de “guerra ofensiva aos Botocudos antropófagos” orientada pela Carta Régia de 5 de maio de 1801 (PARAÍSO, 1992aPARAÍSO, Maria Hilda B. Os botocudos e sua trajetória histórica. História dos índios no Brasil, v. 2, p. 413-430, 1992a.: 417).

Apesar de hábeis resistentes e profundos conhecedores da mata, foram os povos indígenas viventes nas matas da bacia do rio Doce progressivamente vencidos, sobretudo pelos maquinários e pela pólvora ferreamente empregados pelos brancos, em uma guerra que atravessou os séculos. A brutalidade segue hoje ali correndo, em dimensões atualizadas de geopolítica permanência: em novembro de 2015, os quase extintos botocudos remanescentes foram aterrorizados mais uma vez, agora com o soterramento do rio que lhes é tido como um grandioso e sagrado avô por resíduos do ferro-mercadoria transnacional.6 6 Emblematicamente, um dos únicos povos indígenas remanescentes que se identifica como botocudo são os Krenak, duramente atingidos pelo rompimento da Barragem de Fundão em 2015. O rio Doce é para eles o Watu, um avô com quem se comunicam e, hoje dominado pelos rejeitos, encontra-se em estado de coma. Ver Krenak (2019).

É aqui que encontramos um peculiar mineralogista inglês em sua viagem ao interior do Brasil, precisamente deparando-se com os perigosos povos botocudos às margens do rio do Carmo. John Mawe foi um pioneiro viajante às terras mineiras. Nascido em Derbyshire, em 1764, tendo falecido em Londres, em 1829, é identificado como o “primeiro inglês a penetrar legalmente no território de Minas Gerais” (MARTINS, 2008MARTINS, Roberto Borges. A transferência da Corte Portuguesa para o Brasil: impactos sobre Minas Gerais. XIII Seminário Sobre a Economia Mineira, Diamantina, v. 13, 2008.: 5, itálico nosso). Esteve por quinze anos na América Latina, com especial interesse pelo descobrimento, pela descrição e pelo comércio de ouro e diamantes, tudo sob autorização e patrocínio ordenados por Dom João VI. A família real havia recém chegado ao território brasileiro quando o mineralogista partiu do Rio de Janeiro em direção a Minas Gerais: “no dia 17 de agosto de 1809, nós iniciamos uma jornada nunca realizada por nenhum homem inglês, tampouco nunca alguém teve permissão para passar a barreira de montanhas alpinas que se estendem ao longo da costa” (MAWE, 1815MAWE, John. Travels in the interior of Brazil. Londres; Philadelphia: M. Carey; Wells; Lilly, 1815.: 145, tradução nossa).

Como contrapartida à autorização conferida pela corte portuguesa, Mawe publicou a obra Viagens ao Interior do Brasil, dedicando-a ao “príncipe regente”, em que não apenas descreveu detalhadamente e ilustrou com litogravuras os resultados de suas observações, como tomou a “liberdade de sugerir melhorias [...] para aumentar as receitas de Vossa Majestade, e multiplicar os recursos do país” (MAWE, 1815MAWE, John. Travels in the interior of Brazil. Londres; Philadelphia: M. Carey; Wells; Lilly, 1815.: iii, tradução nossa).

Mawe exerceu, neste contexto, um exercício inaugural de cartografia imperialista da condição minerária brasileira, contribuindo para desvendar o gigante potencial econômico que viria a perturbar a configuração espaço-temporal de Minas Gerais progressivamente nos próximos três séculos. Trata-se, na sua perspectiva, da experiência de atravessamento de um “sertão pelado [naked country]” (MAWE, 1815MAWE, John. Travels in the interior of Brazil. Londres; Philadelphia: M. Carey; Wells; Lilly, 1815.: 211, tradução nossa) - emblemática expressão por ele cunhada para sintetizar a mesma concepção etnocêntrica reiterada ao longo de todo o livro. Mawe, porém, sabia muito bem não estarem desabitadas as matas pelas quais trafegava. Para nós, portanto, tal nudez apenas pode ser concebida como o resultado do violento processo de encobrimento (DUSSEL, 1993DUSSEL, Enrique Domingo. 1492: o encobrimento do outro (a origem do “mito da modernidade”) - Conferências de Frankfurt. Tradução de Jaime A. Clasen. Petrópolis: Vozes, 1993.) das gentes que viviam nas veredas mineiras.

Imagem 3
Recorte de ilustração cartográfica de John Mawe, por nós adaptada com efeitos de destaque para: (1) a provável região do rompimento da Barragem de Fundão; (2) a região de Barra Longa; (3) o Rio Doce e os “índios não civilizados”; (4) a legenda, com deslocamento de sua posição original no mapa.

3. A repetição do soterramento territorial: metáfora e realidade

De sua passagem observante por Villa Rica, atual Ouro Preto, Mawe seguiu para Barra Longa, com destino a duas fazendas pertencentes ao primeiro Conde de Linhares, Dom Rodrigo de Sousa Coutinho, português de ideologia modernizante que ocupava a função de estrategista real e que, sempre em tom de profunda admiração, aparece em diversas outras passagens do mesmo livro. Este senhor, neto de Matias Barbosa, acompanhou a viagem da corte portuguesa ao Brasil e aqui se tornou “o principal ministro do Príncipe Regente e, até sua morte em 1812, o mais importante formulador de políticas e ações administrativas”. Talvez provando ser “o líder inconteste do ‘partido inglês’ na Corte portuguesa”, foi o principal articulador da expedição de Mawe ao interior do Brasil (MARTINS, 2008MARTINS, Roberto Borges. A transferência da Corte Portuguesa para o Brasil: impactos sobre Minas Gerais. XIII Seminário Sobre a Economia Mineira, Diamantina, v. 13, 2008.: 4-5).

A aparição de Mawe à população barralonguense, com cerca de quatrocentos habitantes à época, foi como a chegada de um espécime de bicho estranho parecendo ser parecido, mas sabendo-se irredutivelmente distinto. O inglês percebeu e registrou que estavam todos ali - “homens, mulheres e crianças” - “possuídos pelo mesmo espírito de curiosidade, tamanha era a ânsia para obter uma visão de nós”. O estranho e o exótico, evidentemente, concentravam-se nele. Em um jantar pictórico do que estava ali se passando, reuniram-se à mesa, com a expedição do estrangeiro, o padre, em sua casa, o oficial do exército e o juiz da cidade. Enquanto os antigos barralonguenses estavam curiosos a respeito dos motivos de tal jornada, o europeu e sua expedição estavam a respeito da temida antropofagia dos botocudos (MAWE, 1815MAWE, John. Travels in the interior of Brazil. Londres; Philadelphia: M. Carey; Wells; Lilly, 1815.: 199, tradução nossa).

A abordagem descritiva de Mawe - etnocêntrica, evidentemente - a respeito dos povos botocudos atravessa a sua passagem pelo território mineiro desde sua chegada a Villa Rica. Para o britânico, a história das cidades mineiras que o acolhiam não era mais que a de locais desbravados pelos bandeirantes paulistas, titulares do antigo espírito explorador dos portugueses, que penetraram por “um sertão selvagem infestado de ainda mais selvagens habitantes”. Os “Bootocoodies”, na perspectiva eurocêntrica de Mawe, frequentemente atacavam os paulistas e seus escravos negros em “seu horrível apetite pela carne humana” (MAWE, 1815MAWE, John. Travels in the interior of Brazil. Londres; Philadelphia: M. Carey; Wells; Lilly, 1815., p 179, tradução nossa).

É neste contexto que a narrativa de Mawe assevera estar o povoado de São José da Barra Longa situado “nos confins do território habitado pelos índios botocudos”. Cem anos antes, afinal, o coronel Matias Barbosa havia sido enviado pelo governador Artur de Sá de Menezes justamente para combatê-los. Uma vizinhança bem povoada teria “força suficiente e sempre à disposição para repelir os selvagens”. Logo se percebe, porém, que estes selvagens não eram tão ingênuos quanto a expressão sugere, uma vez que “não ousando mais atacar de modo aberto, agora começaram a recorrer a estratagemas” (MAWE, 1815MAWE, John. Travels in the interior of Brazil. Londres; Philadelphia: M. Carey; Wells; Lilly, 1815.: 199, tradução nossa).

Em primeiro lugar, a respeito da denominação “botocudos”, convém reproduzir o seguinte comentário de Maria Leônia Chaves de Resende para contextualizá-la:

Os Botocudos - nome genérico de grupos de origem Jê atribuído por Tupis do litoral da Bahia - ocuparam toda a região nordeste e leste, na fronteira com o Espírito Santo e Bahia, e também sudeste de Minas. A designação de Botocudo - amplamente divulgada e aceita - diz respeito ao uso de labiais e auriculares de grande tamanho, feitos de madeira leve e branca, conhecida como “barriguda” (Bombax ventriculosa). Para outros, o botoque, “tembetá” ou “metara” era feito de ossos, seixos ou pedras de cores, usadas nos lábios. Há quem dissesse que a explicação para o termo Botocudo - diga-se, logo, bastante exótica - seria contração de “boto” e “côdea”, “pelo fato de serem eles gordos como botos e trazerem corpo coberto de uma côdea ou crosta, de goma-copal, com que se pintavam a fim de protegerem o próprio corpo contra picadas dos mosquitos” [citação de História de Minas, de Waldemar Barbosa]. Também foram nomeados de Aimorés, Ambaré, Guaimuré ou Embaré - formas diferentes das composições “aib-poré” (habitante das brenhas), "ai-boré" (malfeitor), “aimb-buré” (aqueles que usam botoque de emburé), “guaymuré” (gente de nação diferente) ou ainda “aimboré” (nome do chefe indígena, aliado dos franceses no Rio de Janeiro, citado Anchieta e Gonçalves Dias). As designações “Guerén, Gren ou Kren” seriam os termos de autodesignação desses grupos. Para Oiliam José, compõem o grupo Botocudo, os Gacnuns. Machacalis, Maconis. Malalis, Nacnenuques, Pojichás e os Quejaurins que povoaram as florestas dos Rios Doce, Jequitinhonha, Mucuri e São Mateus e seus afluentes. Esses agrupamentos abrangeriam, ainda, como subdivisões, os indígenas Aranás, Catolés, Crenaques, Giporoques, Honarés ou Noretes, Pataxós, Potés, Puruntuns ou Peruntins entre tantos outros. (RESENDE, 2003: 38).

Ademais, os povos botocudos nada tinham de inofensivos ao empreendimento de colonização do poderoso Matias Barbosa. A narrativa de Mawe, apesar de não admitir a sofisticação destes saberes e destas práticas, descreve a inteligência dos botocudos em planejar “incêndios provocados por lançamento de pedaços de madeira em brasas” nos telhados de casas previamente marcadas. Além disso, treinados em “todas as artes” para a caça de subsistência, tinham “mil estratagemas para torcer os colonos”. Os botocudos tornavam-se “invisíveis, amarrando ramos e pequenas árvores sobre si próprios e deixando os arcos invisíveis”. Esfregavam cinzas em seus corpos para se camuflarem ao chão. Tratavam também de esconder cobras venenosas com galhos e folhas nas passagens dos colonos (MAWE, 1815MAWE, John. Travels in the interior of Brazil. Londres; Philadelphia: M. Carey; Wells; Lilly, 1815.: 199-200, tradução nossa).

O grande pavor de armas de fogo seria, entretanto, a fragilidade dos botocudos. Pela impressão do inglês, as poucas armas que existiam no vilarejo estariam em péssimas condições de uso, mas mesmo assim seu barulho os fazia fugirem sempre que as ouviam. Quando eram presos, tinham mãos e pés atados. Era comum que, em situação de cárcere, recusassem comida. Em protesto, morriam de fome e deixavam os incômodos corpos, mortos mas irredutíveis ao amansamento, expostos como prova da recusa. Faziam de tudo para fugir e, quando o conseguiam, “entravam em erupção”, sumiam “como um tigre” nas matas. Em uma palavra, eram “indomáveis” os botocudos.

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Quarta fotografia da série de Walter Garbe sobre os botocudos em 1909, exatos cem anos passados da passagem de Mawe pelo território de Barra Longa; o fotógrafo de origem alemã ficou conhecido por realizar um dos raros conjuntos de registros dos botocudos no início do século XX; à época, os povos botocudos remanescentes já eram poucos.

Com ênfase para a resistência inteligente dos povos botocudos à presença dos brancos, este pode ser considerado, de certo modo, o primeiro registro de conflito em torno da produção do espaço no território de Barra Longa. À época, foram os botocudos expulsos dali para a exploração econômica do ouro e da pecuária de abastecimento de interesse luso-britânico. Três séculos depois, foram agora deslocadas em seus múltiplos modos de existência as gentes que permaneceram no mesmo espaço, nas mesmas margens. Podemos perceber nesta dobra histórica a repetição de um encaixe bastante simétrico entre a territorialização capitalista de Barra Longa e a descrição realizada por Marx em 1867 sobre quatro dos momentos da “assim chamada acumulação primitiva”: “a descoberta das terras auríferas e argentíferas na América, o extermínio, a escravização e o soterramento da população nativa nas minas” (MARX, 2014MARX, Karl. O capital: crítica da economia política - O processo de produção do capital. Tradução de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2014.: 821).

Estamos diante, pois bem, de momento chave da história colonial brasileira. A colonização do Brasil - e das Américas como um todo - dava sinais de que exigiria dos colonizadores europeus um salto de qualidade. Em realidade, o cobro era do capital, pois partindo de uma “acumulação que não é resultado do modo de produção capitalista” (MARX, 2014MARX, Karl. O capital: crítica da economia política - O processo de produção do capital. Tradução de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2014.: 785) poderia tomar isto como seu e avançar para novos desafios, novos territórios. É exatamente disso que se trata a história de enfrentamento entre colonizadores e povos originários, no caso, entre portugueses e botocudos. Em pleno século XIX, porém, a oposição apontava para novas configurações, e o Brasil-colônia logo chegaria a império, tornando-se politicamente independente mas, inserindo-se em uma nova divisão internacional do trabalho, sumamente dependente dos centros capitalistas (cf. MARINI, 2000MARINI, Ruy Mauro. Dialética da dependência: uma antologia da obra de Ruy Mauro Marini. Petrópolis: Vozes; Buenos Aires: CLACSO, 2000.).

A recusa dos botocudos a se sujeitarem à ordenação capitalista do território, estratégia vinculada ao plano de multiplicar regiões das margens dos cursos d’água da Bacia do Rio Doce conectadas à nascente cadeia industrial global, é uma exemplar expressão histórica de resistência à acumulação originária pelos povos indígenas do sertão mineiro. Mas ela também antecipa a continuidade da violência reiterada sobre todos os coletivos humanos que produzem riquezas de modo não subordinado ao capital. O perpetrador de tal violência: o modo capitalista de organizar a vida em sociedade. Daí a produção social do espaço ser uma dimensão imanente ao capitalismo, já que com Dussel podemos dizer que o “social” refere-se a “um caráter negativo, perverso, das relações entre os homens, entre os produtores” (DUSSEL, 2012DUSSEL, Enrique Domingo. A produção teórica de Marx: um comentário aos Grundrisse. Tradução de José Paulo Netto. São Paulo: Expressão Popular, 2012.: 88), típica do mundo do capital. O seu antípoda é exatamente a “produção comunitária”, onde haveria “uma apropriação comunitária dos meios de produção” e também “o pleno controle do processo total da produção” (DUSSEL, 2012: 89).

A resistência botocuda, assim, carrega consigo um índice que permite entrever dois significativos desdobramentos: de um lado, a acumulação originária do capital; de outro, a produção social do espaço capitalista. Trata-se da fronteira entre o original e o derivado, entre o antigo e o novo, entre o comum e o social. Mas esta leitura não pode ser conduzida como uma linear eversão (para os seus críticos) ou evolução (para os seus apologetas). Antes, deve ser entendida na complexidade que as dinâmicas espaço-temporais implicam.

Assim é que a produção social de Barra Longa sugere o paralelo com a crítica de Marx à acumulação originária do capital. Mas uma mirada histórica para o desenvolvimento desta mesma produção social do território sugere outro paralelo, agora com a crítica de Rosa Luxemburgo à acumulação do capital que repete seus métodos originários a cada nova crise ou salto de qualidade do próprio capitalismo. Se Marx dizia que, para justificar a acumulação de riquezas por poucos sobre muitos, “na história real, como se sabe, o papel principal é desempenhado pela conquista, a subjugação, o assassínio para roubar, em suma, a violência” (MARX, 2014MARX, Karl. O capital: crítica da economia política - O processo de produção do capital. Tradução de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2014.: 786); já Luxemburgo viria a dizer, mais de quarenta anos depois, que “o capital não conhece outra solução senão a da violência, um método constante da acumulação capitalista no processo histórico, não apenas por ocasião de sua gênese, mas até mesmo hoje”. E é ela quem continua: “para as sociedades primitivas, no entanto, trata-se, em qualquer caso, de uma luta pela sobrevivência”. E como se não bastasse, também é ela quem alude à “resistência à agressão” e às “rebeliões dos nativos” como “uma luta de vida ou morte levada até o total esgotamento ou aniquilação” (LUXEMBURG, 1984LUXEMBURG, Rosa. A acumulação do capital: contribuição ao estudo econômico do imperialismo - Anticrítica. Tradução de Marijane Vieira Lisboa e Otto Erich Walter Maas. São Paulo: Abril Cultural, vol. II, 1984.: 33).

Não é outro o motivo pelo qual viemos acentuando a noção de etnocentrismo presente na narrativa de Mawe. Mas ela é mais do que isso, pois consiste em um verdadeiro apelo genocida - “assassínio”, diria Marx; “aniquilação”, diria Rosa Luxemburgo. Na verdade, podemos dizer que o etnocentrismo se assenta como depuração da violência originária. Não à-toa, igualmente, Dussel (1993DUSSEL, Enrique Domingo. 1492: o encobrimento do outro (a origem do “mito da modernidade”) - Conferências de Frankfurt. Tradução de Jaime A. Clasen. Petrópolis: Vozes, 1993.) faz a “conquista” preceder, enquanto imaginário colonial, a “colonização” ou a própria “conquista espiritual”. Ou seja, todo etnocentrismo carrega consigo um método violento; em nosso caso histórico, de acumulação originária nada idílica e que permanece no tempo.

O aspecto da permanência pode ser concebido via analogias históricas. Não é o caso de detalhar tantos e tais exemplos, mas cremos não nos equivocarmos ao compararmos a situação com o clássico debate teológico-jurídico havido em Valladolid em 1550, em que Bartolomé de las Casas defendeu a humanidade ameríndia contra as acusações bestializantes de Sepúlveda. A Brevísima Relación de la Destrucción de las Índias (LAS CASAS, 2004LAS CASAS, Bartolomé de. Brevísima relación de la destrucción de las Índias. Barcelona: Ediciones 29, 2004.), lançada em 1553, é um belo exemplo da violência originária europeia em prol de sua conquista. A mesma coisa pode ser dita, agora não mais intermediada só por procuradores europeus, dos tupinambás antropófagos em face dos quais Hans Staden (2009STADEN, Hans. Duas viagens ao Brasil: primeiros registros sobre o Brasil. Tradução de Angel Bojadsen. Porto Alegre: L&PM, 2009.) se horripilou - e, por não ser guerreiro digno, escapou ao ritual de guerra de ameríndios encontrados em terras tomadas por portugueses nas Américas, conforme seu relato publicado em 1557. O que estes dois exemplos, colhidos dentre muitos, indicam-nos? A violência original do colonialismo - descrita na Brevíssima Relação de Las Casas ou nos eventos de guerra colonial narrados por Staden -, que inaugura a possibilidade da expansão ultramarina europeia e, portanto, da acumulação originária do capital. Logo, o confronto entre os botocudos e a visão de Mawe não era novidade, mas sim peça de um grande mosaico violento chamado permanência.

A naturalização da “guerra ofensiva” contra os botocudos operada por Mawe na descrição de sua passagem por São José da Barra Longa, cega à sofisticação dos saberes da mata,7 7 Para uma proposta epistemológica descolonial centrada na brasilidade e na potência dos saberes não eurocentrados, ver Simas e Rufino (2019). demonstra bem o império da perspectiva etnocêntrica e genocida dos colonos e dos colonizadores. A adesão à formulação subjugadora de uma imagem de “seres agressivos, incivilizáveis e refratários aos meios brandos de relação” (PARAÍSO, 1992bPARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. Repensando a política indigenista para os Botocudos no século XIX. Revista de Antropologia, p. 75-90, 1992b.: 83) não poderia ser mais nítida do que no relato deste peculiar viajante inglês sobre a sua experiência em passar alguns dias rodeado pela ameaça antropofágica: eram os botocudos “indomáveis” (MAWE, 1815MAWE, John. Travels in the interior of Brazil. Londres; Philadelphia: M. Carey; Wells; Lilly, 1815.: 200).

Isto tudo de um lado, o lado da acumulação originária do capital percebida em contramarchas etnológicas. Já de outro, no que se refere à produção social (originária e, arrisquemos, permanente) do espaço capitalista, podemos nos dirigir ao fato de que o protoplanejamento do território de Barra Longa, voltando ao cerne de nossa preocupação, nascia já da disputa: capitaneada por Matias Barbosa e os herdeiros de sua colonialidade, a produção social do espaço próximo ao encontro entre os rios Carmo e Gualaxo do Norte era enfrentada pelas gentes existentes nas matas e nos morros de seu entorno. Em certa medida, foram os povos botocudos os primeiros atingidos pelos empreendimentos extrativistas nos espaços hoje delimitados pelas atuais fronteiras municipais de Barra Longa.

Neste contexto, reforçando como uma premissa inquestionável os processos de escravização, expulsão e extermínio dos povos botocudos, os relatos de Mawe representam a naturalização lusobritânica de uma guerra de carnificina por território contra povos não brancos. O rompimento da Barragem de Fundão, que fez atravessar o mesmo espaço um capital que nasce “escorrendo sangue e lama por todos os poros, da cabeça aos pés” (MARX, 2014MARX, Karl. O capital: crítica da economia política - O processo de produção do capital. Tradução de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2014.: 830), desencadeou um processo de reparação que se revela talvez como a repetição naturalizada dos mesmos métodos violentos de acumulação originária descritos n’O Capital.

Voltando ao paralelo com Marx, devemos dizer que, não por acaso logo antes de mencionar o quão “idílicos” foram os métodos originários da acumulação do capital - repitamos: a “conquista, a subjugação, o assassínio para roubar, em suma, a violência” (MARX, 2014MARX, Karl. O capital: crítica da economia política - O processo de produção do capital. Tradução de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2014.: 786) -, o autor d’O Capital mencionou a obra de Adolphe Thiers (1848THIERS, Adolphe. De la propriété. Paris: Paulin, Lheureux et Cie, 1848.), De la Propriété, como exemplificação do modo pelo qual a ideologia burguesa justificava o acúmulo de riquezas: “numa época muito remota, havia, por um lado, uma elite laboriosa, inteligente e sobretudo parcimoniosa, e, por outro, uma súcia de vadios a dissipar tudo o que tinham e ainda mais” (MARX, 2014: 785).

Mais interessante até do que a crítica evidente à argumentação etnocêntrica de Thiers é lembrar que o mesmo Thiers reaparece acachapantemente criticado na obra de Marx como o chefe de estado francês responsável, quatro anos após a primeira edição d’O Capital, pela destruição da Comuna de Paris - “a forma política enfim descoberta para se levar a efeito a emancipação econômica do trabalho” (MARX, 2011MARX, Karl. A guerra civil na França. Tradução de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2011.: 59). Quando Thiers se submeteu à Prússia para destruir a vanguarda proletária francesa, em 1871, o Barão de Haussmann, conhecido como o “artista demolidor”, já havia reinventado Paris, sendo descrito, de passagem, por Marx como o homem que “arrasou a Paris histórica para dar lugar à Paris do turista” (MARX, 2011: 76). O “vandalismo de Haussmann”, segundo a interpretação marxiana, viabilizara uma cidade planejada contra os trabalhadores, resultando em “amplas e retas avenidas que Haussmann havia aberto expressamente para que nelas pudesse se deslocar o fogo da artilharia” (MARX, 2011: 75).

Como conseguimos entrever, a violência da acumulação originária se renova a cada momento de crise do capital. A Comuna de Paris, que foi um deles, evidenciou a utilização da cidade como artefato de guerra, assim como o encontro dos rios que forjara Barra Longa acabara se tornando palco de outra guerra, não tanto de crise, mas de inauguração de possibilidade dessas crises, agora na periferia do sistema mundial, em pleno sertão mineiro, entre colonizadores portugueses e indígenas botocudos. E eis que o paralelo entre centro e periferia no século XIX nos sugere a acumulação originária seguida, quiçá, da acumulação originária permanente inventando uma produção “social” do espaço urbano. A aproximação é provisória e ainda está sujeita a maiores e aprofundadas discussões. Em certa medida, e com a cautela necessária para dizê-lo, entre Barra Longa e Paris o que podemos estar percorrendo é a própria história da organização urbana do capitalismo (ou da criação capitalista do urbano, o que no fim das contas é o mesmo).

Lembrando uma conhecida frase de Marx, extraída de uma análise com ênfase mais na política do que na economia, poderíamos sentenciar: primeiro como farsa (a subsunção formal ao capital), depois como tragédia (a subsunção real ao capital). A permanência da acumulação originária nos desafia a nos estranharmos diante de ambos os momentos de destruição criativa, tais quais identificados por Harvey (2011HARVEY, David. O enigma do capital e as crises do capitalismo. Trad. João Alexandre Peschanski. São Paulo: Boitempo, 2011.; 2014). Ao que parece, a naturalizada forma da violação do direito (UCHIMURA, 2018UCHIMURA, Guilherme Cavicchioli. A estranha forma da violação do direito. Curitiba: Programa de Pós-Graduação (Mestrado) em Políticas Públicas da Universidade Federal do Paraná, 2018.) permite que as grandes corporações especulem com o processo de vida e morte, provavelmente repristinando os métodos violentos da transição capitalista (PAZELLO, 2016PAZELLO, Ricardo Prestes. Acumulação originária do capital e direito. InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais, Brasília, IPDMS; Lumen Juris, v. 2, n. 1, jan-jul 2016, p. 66-116.) e expressando o caráter violento de uma economia sacrificial característica aos movimentos de expansão territorial do capital.

4. A estranha ordem geométrica da territorialização do capital

Mesmo o relato etnocêntrico de John Mawe demonstra que, em matéria de conflito territorial, os botocudos foram exímios contra-estrategistas, elaboradores de uma resistência assustadora ao projeto dos brancos. Ataques planejados, saques de provimentos, invisibilidade com folhagens e cinzas, armadilhas com cobras: entendemos que estas quatro potentes dimensões das práticas já ocorridas no território de Barra Longa devem ser afirmadas como importantes memórias de um passado centrado na resistência contra o etnocídio extrativista.

Em dimensões geopolíticas, John Mawe foi um dos cartógrafos pioneiros da chegada da maquinação do mundo às regiões ferríferas da Bacia do Rio Doce. Colocou Bento Rodrigues e Mariana em um mapa dedicado à coroa portuguesa e o levou para a Inglaterra. Contra a cartografia do apagamento e do extermínio, por sua vez, por muito tempo resistiram os botocudos com o profundo conhecimento dos caminhos ocultos das matas, além de usos combinados de invisibilidade e força, armas e armadilhas, observação e ataque.

A destruição da existência dos botocudos rememorada pela brutalidade do rompimento da Barragem de Fundão faz lembrar a percepção de Harvey sobre a produção capitalista do espaço: “continuamente, portanto, o capitalismo se esforça para criar uma paisagem social e física da sua própria imagem [...] apenas para solapar, despedaçar e inclusive destruir essa paisagem num instante posterior de tempo” (HARVEY, 2006HARVEY, David. A produção capitalista do espaço. Trad. Carlos Szlak. 2 ed. São Paulo: Annablume, 2006.: 148).

Em aproximação com os casos de conflitos baseados em aprofundamentos das desigualdades urbanas baseados em violentos processos de “limpeza social e étnica” (VAINER, 2016VAINER, Carlos. Apresentação. In: OLIVEIRA, Fabricio Leal de; SÁNCHEZ, Fernanda; TANAKA, Gisele; MONTEIRO, Poliana. Planejamento e conflitos urbanos: experiência de luta. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2016. p. 17-26.: 12), Barra Longa guarda notáveis semelhanças sem perder, porém, certa singularidade: localiza-se na rota de um capital que se territorializa, literal e metaforicamente (para lembrar de paisagem já citada), “escorrendo sangue e lama por todos os poros, da cabeça aos pés” (MARX, 2014MARX, Karl. O capital: crítica da economia política - O processo de produção do capital. Tradução de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2014.: 830), demonstrando assim a permanência dos métodos nada idílicos de alargamento permanente das fronteiras territoriais em que se ancora o processo produtivo da indústria extrativa e, com isso, o seu processo de valorização do valor.

Diante disso, a exemplo dos botocudos, resistir é ser este outro que combate e canibaliza as formas dominantes como uma prática esperançosa de poder existir e, no confronto, apropria-se das potências do inimigo derrotado. É aqui que, na regressão histórica ao passado de Barra Longa, como que em “uma imagem que relampeja irreversivelmente” (BENJAMIN, 2012BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. Em: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução Sérgio Paulo Rouanet. 8 ed. São Paulo: Brasiliense, 2012. (Obras escolhidas. v. 1). p. 241-251.: 243), os atingidos e as atingidas pelo rompimento da Barragem de Fundão poderiam encontrar o viajante Mawe às margens do rio do Carmo, em sua estranha condição de estrangeiro cartografista de conflitos, fazendo irromper a abertura da maquinação do mundo - tal como poetizada por Drummond de Andrade - de um tempo passado.

O poeta itabirano, é bom dizer, foi também atingido pelas operações extrativistas da Vale, história sofisticadamente remontada por José Miguel Wisnik em Maquinação do Mundo.8 8 A fazenda da família de Drummond em Itabira/MG, inclusive, tornou-se “represa para depósito de rejeito do minério de ferro” da Vale S/A. Ver DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. A fazenda que desapareceu do mapa, Globo Rural, edição zero, 1985, p. 40-41. A obra poética drummondiana é apresentada como uma potente crítica à voracidade das grandes corporações de mineração mundiais, criadoras de “um mundo em que o mundo vai engolindo o mundo, movido pela geoeconomia e pela tecnociência” (WISNIK, 2018WISNIK, José Miguel. Maquinação do mundo: Drummond e a mineração. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.: 19).

Em um dos mais aclamados poemas de Drummond, o poeta itabirano expressou precisamente o sentimento de recusa diante da oferta de uma máquina do mundo, ao fim, repelida. Nesta oferta, aliás, aparece algo que denota o caráter planejado da maquinação: “As mais soberbas pontes e edifícios, / o que nas oficinas se elabora, / o que pensado foi e logo atinge // distância superior ao pensamento”. Também aparece a utopia moderna industrial com a evocação dos “recursos da terra dominados”, contrapostos por um “sono rancoroso dos minérios”. Aos olhos de quem apenas palmilhava vagamente uma estrada pedregosa, tudo isso “dá volta ao mundo e torna a se engolfar, / na estranha ordem geométrica de tudo” (DRUMMOND DE ANDRADE, 2012DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. Máquina do mundo. Em: Claro enigma. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 105-108.).

No desenvolvimento do poema, esta dobra do mundo sobre si mesmo constitui um importante ponto de inflexão, decisivo para o gesto de desdenhar a tentação ofertada pela máquina do mundo. A recusa à estranha ordem geométrica de tudo, que aproxima Drummond à resistência secular dos botocudos à instalação do capital minerário na bacia do rio Doce, é também uma síntese poética para a recusa à racionalidade do desenvolvimento que opera a redução dos domínios da vida à eficiência esquadrinhada e dissolve sociabilidades distintas.

Imagem 5 (à esquerda)
Formas minerárias, das mais elementares às mais complexas, em ilustração de John Mawe.

Imagem 6. (à direita)
Primeira foto da série de Walter Garbe sobre os povos botocudos em 1909, com anotação a caneta do registro “Cachoeiro de Sta. Leopoldina, 13-7-09”. Os artefatos indígenas, semelhantes aos que aterrorizaram Mawe e os colonos na antiga São José de Barra Longa, foram provavelmente ordenados para o enquadramento fotográfico como registro de um passado progressivamente apagado pelo controle capitalista dos sertões mineiros.

No caso da Barragem de Fundão, esta razão atualiza-se para operar na antevisão do risco a despeito da irracionalidade dos efeitos do rompimento. Vale dizer: a eficiência econômica da ação-violação reside menos na destruição provocada do que na acumulação intensificada que a precede e, especialmente, no controle dos efeitos econômicos da reparação dos danos. A contabilidade da análise de risco, que sopesa perdas e ganhos, depende, portanto, do controle e da delimitação das perdas. O rejeito, antes contido na barragem, estende o “domínio territorial” da operação empresarial do grupo Samarco, Vale e BHP Billiton desde o rompimento até onde as reparações possam ser reivindicadas. A irracionalidade destrutiva da lama tóxica, sem controle, tornou-se objeto de contingenciamento pelo registro da racionalidade do planejamento e dos projetos de reparação.

A sociabilidade (ou o espaço social) soterrada deve ser reduzida, pela reparação, à razão de equivalências: importa o que pode ser reparável e, principalmente, acomodado convenientemente na contabilidade empresarial. Portanto, o planejamento e a gestão das reparações e, consequentemente, o planejamento do território expandido da operação empresarial devem ser controlados. As ações de planejamento e reconstrução de Barra Longa, realizadas pela Fundação Renova, configuram uma derivação do planejamento urbano empresarial na medida em que subordinam a cidade aos interesses negociais.

Os botocudos acionaram estratégias de resistência para defender o território e o modo de vida do domínio e da apropriação violenta articulados aos processos de acumulação originária. Hoje, nesta dobra maquinante do mundo sobre o mundo, os barralonguenses violentamente destituídos e solapados pela irracionalidade da “nova razão do mundo” (DARDOT; LAVAL, 2016DARDOT, Piere; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.) acionam e demandam estratégias de restituição. Forçosamente deslocados, recusam a imposição do projeto de cartografia mercantilizante da vida, colocando a própria ação combativa em movimento de modo organizado e orientado para a produção popular do espaço (dimensão local) e para a transformação radical das estruturas de poder da sociedade capitalista (dimensão política). No fundo, soterrados pelo irracionalismo da “nova razão do mundo”, começam a ser inundados por “ideias (e práticas) para adiar o fim do mundo” - como diria Ailton Krenak (2019KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.), um botocudo sobrevivente.

O povo barralonguense, recusando o completo soterramento de suas existências por um processo de reparação orientado pela imposição da lógica empresarial a tudo, parece querer retomar a força da resistência dos botocudos no mesmo território. A população barralonguense afamou-se por ser um “povo de luta”, referência recorrente no singular contexto dos múltiplos conflitos desenrolados ao longo da bacia do rio Doce em decorrência do rompimento da Barragem de Fundão. Organizados junto ao Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) desde 2016, muitos dos que passaram por algum tipo de deslocamento espaço-temporal em seus modos de produzir a vida passaram a se mobilizar estrategicamente na disputa pela possibilidade de uma produção popular dos espaços atingidos.

A este respeito, notamos que esta pequena cidade - transformada em um imenso “canteiro de obras” da Fundação Renova - tem outras semelhanças notáveis com uma experiência metropolitana de planejamento popular. As lutas populares da Vila Autódromo - bastante presentes na literatura sobre planejamento conflitual (VAINER et al, 2013; SANCHEZ et al, 2016SÁNCHEZ, Fernanda; OLIVEIRA, Fabrício Leal de; MONTEIRO, Poliana Gonçalves. Vila Autódromo in dispute: subjects, instruments and strategies to reinvent the space. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v. 18, n. 3, p. 408-427, 2016.; TANAKA et al, 2019TANAKA, Giselle et al. Da Vila Autódromo às Vargens: Planos Populares na luta contrahegemônica na cidade. 2º Seminário Internacional de Urbanismo Biopolítico. Belo Horizonte: Indisciplinar, 2019.) - são descritas, dentre suas várias dimensões, como experiências de enfrentamento à presença de caminhões e maquinários pesados no território, que danificavam as moradias e criavam “um cenário de campo de guerra” (VAINER et al., 2016: 56). Em Barra Longa ocorreu o mesmo: muitas casas sofreram trincas e outros tipos de dano devido ao maquinário pesado que passou a trafegar nas vias urbanas para remoção dos rejeitos e realização de obras.

Podemos destacar aqui que mereceria detido exame a experiência da construção do Plano Popular de Reassentamento Coletivo de Gesteira, processo de luta protagonizado pela população atingida gesteirense, sob o assessoramento de uma equipe técnica multidisciplinar da AEDAS - Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social e a atuação extensionista do GEPSA/UFOP, pela reconstrução e pela continuidade da comunidade cujos espaços comunitários, habitações, estabelecimentos comerciais, edificações religiosas e terras de cultivo situados à beira do rio Gualaxo do Norte foram soterrados pelos rejeitos minerários.

Em oposição ao planejamento apresentado pela Fundação Renova sob a forma de um denominado Master Plan (cf. XAVIER; CARNEIRO, 2020XAVIER, Celiane Souza; CARNEIRO, Karine Gonçalves. O Master Plan como instrumento para reassentar a população de Bento Rodrigues atingida pelo rompimento da barragem de Fundão em Mariana, Minas Gerais: é possível falar de participação popular? Revista Estudios Avanzados, Santiago, v. 32, n. 1, p. 18-40, 2020.), a elaboração do Plano Popular foi realizada pela própria coletividade de atingidas e atingidos, valendo-se de metodologias de cartografia social em sua construção. De acordo com relatório técnico elaborado pelas assessorias, fazendo emergir a metáfora antropofágica como reminiscência histórica da luta dos botocudos, “os conhecimentos técnicos e científicos, bem como as metodologias de trabalho, passaram a ser mobilizados como ferramentas de viabilização das decisões tomadas pelas pessoas atingidas” (GEPSA; AEDAS, 2020: 9).

Tal experiência aciona a percepção do planejamento popular como recurso contestatório e, portanto, como instrumento e estratégia de luta e resistência aos ordenamentos do plano empresarial de reparação. Igualmente importante é o papel que ela cumpre como estratégia de reconstrução da sociabilidade atingida e, a lembrar Thompson (2020THOMPSON, Edward Palmer. A formação da classe operária inglesa. V. 1. A árvore da Liberdade. 11. ed. Tradução Renato Busatto Neto e Cláudia Rocha de Almeida. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 2020.), do fazer-se das coletividades em luta, mobilizando na recusa ao planejamento empresarial não apenas os moradores atingidos, mas também assessores e “planejadores militantes” que integram o processo conflitual (FARIA; PONTES, 2016FARIA, José Ricardo; PONTES, Daniela Regina. Planejamento militante. In: OLIVEIRA, Fabricio Leal de; SÁNCHEZ, Fernanda; TANAKA, Gisele; MONTEIRO, Poliana. Planejamento e conflitos urbanos: experiência de luta. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2016. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2016. p. 231-269.).

Não sendo o objetivo desta pesquisa aprofundar o detalhamento do processo de construção do Plano Popular, frisamos que se trata de um conjunto de experiências já discutidas em uma série de pesquisas produzidas pelas próprias integrantes da equipe técnica da AEDAS e do GEPSA/UFOP que nela atuaram.9 9 Ver Silva (2018), Senna (2019), Annonni (2019), Senna e Carneiro (2019), Souza e Carneiro (2019), Carneiro, Souza e Melo (2019), Xavier e Carneiro (2020) e Carneiro, Souza e Silva (2020). Ver também Uchimura (no prelo). Se o detalhamento aprofundado e a investigação do caso do reassentamento coletivo de Gesteira é assunto para elaboração e exposição ainda em outros momentos, podemos ao menos constatar que, em sete anos de conflitual processo de reparação, Barra Longa já se apresenta não apenas como cidade atingida, mas também como singular experiência de enfrentamento organizado ao planejamento da razão negocial capitalista-minerária. Lemos hoje nos mapas de Barra Longa e Gesteira, representativos deste mesmo espaço remotamente cartografado por Mawe, a presença da luta do povo atingido e com ela, fazendo rememorar a guerra valente dos botocudos, a recusa à estranha ordem geométrica da permanente reterritorialização do capital.

5. Considerações finais

Duzentos anos depois da passagem de Mawe, no curso dos rios Gualaxo do Norte e Carmo que ele observou e descreveu, a forma mercantil - como a máquina do mundo de Drummond - se entreabriu majestosa, impondo a lógica da troca de equivalentes a todas as perdas impossíveis de medir destruídas pela passagem dos rejeitos. Mostrou, no passar de um alucinante dia que provocou a completa reviravolta do modo barralonguense de viver, uma imagem condensada da totalidade cíclica do modo de produção capitalista: destruição combinada com expropriação, subsunção combinada com equivalência ficcional, planejamento combinado com reconstrução e concentração de poder e capital. As grandes corporações da indústria extrativa, como exemplifica a presença da Vale e da BHP Billiton nos sertões mineiros, são herdeiras dos métodos violentos de expansão e reprodução dos movimentos ruminantes do capital.

Profundamente deslocada geograficamente, já não se sabe bem onde pode dar aquela rua que começa em Barra Longa. Ela se encontra há sete anos na estranha e peculiar situação de estar ocupada por centenas de viajantes desconhecidos, à semelhança de Mawe, disputando e tensionando a produção social do espaço na municipalidade. A população barralonguense em geral, dos mais aos menos vulnerabilizados, encontra-se em estado de elevada exposição a riscos de contaminação, condição comprovada por diversos dados técnicos e levantamentos epidemiológicos, incluindo pesquisa encomendada pela própria Fundação Renova (cf. PAZELLO; UCHIMURA; FERREIRA, 2020UCHIMURA, Guilherme Cavicchioli; PAZELLO, Ricardo Prestes. Economia política e violação do direito: Brumadinho entre Fausto, Mefistófeles e Pachacúti. In: PIMENTEL, Anne Geraldi; MARÉS DE SOUZA FILHO, Carlos Frederico; CALEIRO, Manuel Munhoz (Org.). Retrocessos socioambientais e rupturas democráticas. Curitiba: CEPEDIS, 2020. p. 59-82.). As empresas responsáveis pelo desastre-crime, entretanto, permanecem sistematicamente negando os danos presentes e futuros que o contato com elementos remanescentes dos rejeitos pode causar, fazendo reverberar o caráter assassino da “guerra ofensiva” de extermínio travada por séculos contra os povos botocudos que viviam no mesmo território.

O capital tem seus planos para a produção social do espaço urbano, e a história de Barra Longa é prova disso. A partir desta percepção, podemos ensaiar duas sínteses: primeiro, parece-nos que a abordagem do planejamento conflitual consiste em conceber a produção deste espaço em disputa a partir da ênfase na recusa à estranha ordem geométrica da territorialização capitalista do espaço; segundo, sendo uma das categorias do planejamento conflitual, a prática do planejamento militante consiste no planejamento com causa, na atuação engajada em processos de resistência e reexistência de modos de produção da vida não subsumidos ao capital em lutas com movimentos populares organizados. São resistência porque apostam em defender a existência contra a ordenação capitalista do espaço global (HARVEY, 2014HARVEY, David. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. Trad. Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves. 25 ed. São Paulo: Loyola, 2014.). São reexistência porque apostam na possibilidade de criação popular da cidade, no alargamento das frestas das ruas e no reencantamento da potência das praças (SIMAS; RUFINO, 2019SIMAS, Luiz Antonio; RUFINO, Luiz. Flecha no tempo. Rio de Janeiro: Mórula, 2019.).

A experiência epistêmica trilhada neste ensaio de cruzamento da literatura de viagem de Mawe e da poética de Drummond nos territórios de Barra Longa demonstra que escovar os rejeitos a contrapelo pode ser, também, um jeito de escavar relampejos de esgarçamento de lutas de resistência e frestas de reexistência. Ao que parece, neste território não é apenas a acumulação originária que se repristina; pois, dos botocudos aos atingidos, juntas, a recusa e a luta também.

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  • 1
    De acordo com o recenseamento de 1950, a população de Barra Longa à época era de 13.892 habitantes, com 89% de população localizada no quadro rural. Foram registrados 6.143 habitantes no último censo realizado (IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Sinopse do Censo Demográfico 2010. Rio de Janeiro: IBGE, 2011). A estimativa para 2015 e 2021 são, respectivamente, de 5.799 e 4.905 habitantes. Estes dados foram consultados em Souza (1958) e nos dados disponibilizados pelo Portal do IBGE (IBGE, [s.d.]).
  • 2
    Exemplos de trabalhos publicados neste período de sete anos desde o rompimento, em diferentes abordagens, estão em Andrade (2018), Haugsnes (2018), Pereira (2020), Alagoano e Pereira (2020), Carneiro (2020; 2021), Silva (2021), Morais (2021), Pazello, Uchimura e Ferreira (2021) e Carneiro e Milanez (2022).
  • 3
    O título completo da edição original da obra, em língua inglesa, é bastante descritivo de seu conteúdo. Em tradução livre: “Viagens ao interior do Brasil, particularmente aos distritos de ouro e dos diamantes daquele país, por autoridade do príncipe regente de Portugal: incluindo uma viagem ao Rio da Prata e um esboço histórico da revolução de Buenos Aires” (MAWE, 1815).
  • 4
    Tal percepção foi registrada em Terra da gente, informativo da Fundação Renova para as comunidades de Barra Longa, Gesteira e Barreto (FUNDAÇÃO RENOVA, 2020).
  • 5
    O “Conjunto paisagístico do encontro dos rios do Carmo e Gualaxo do Norte”, geograficamente identificado como um tipo de barra, foi oficialmente tombado como bem protegido pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais com a edição do Decreto nº 158 em 2007.
  • 6
    Emblematicamente, um dos únicos povos indígenas remanescentes que se identifica como botocudo são os Krenak, duramente atingidos pelo rompimento da Barragem de Fundão em 2015. O rio Doce é para eles o Watu, um avô com quem se comunicam e, hoje dominado pelos rejeitos, encontra-se em estado de coma. Ver Krenak (2019).
  • 7
    Para uma proposta epistemológica descolonial centrada na brasilidade e na potência dos saberes não eurocentrados, ver Simas e Rufino (2019).
  • 8
    A fazenda da família de Drummond em Itabira/MG, inclusive, tornou-se “represa para depósito de rejeito do minério de ferro” da Vale S/A. Ver DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. A fazenda que desapareceu do mapa, Globo Rural, edição zero, 1985, p. 40-41.
  • 9
    Ver Silva (2018), Senna (2019), Annonni (2019), Senna e Carneiro (2019), Souza e Carneiro (2019), Carneiro, Souza e Melo (2019), Xavier e Carneiro (2020) e Carneiro, Souza e Silva (2020). Ver também Uchimura (no prelo).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2023

Histórico

  • Recebido
    31 Jan 2023
  • Aceito
    02 Fev 2023
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