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Terapias complementares na educação, extensão comunitária e pesquisa em enfermagem

RESUMO

Objetivo:

Relatar a implementação das práticas integrativas e complementares em um curso de Enfermagem de uma universidade federal nos campos do ensino, pesquisa e extensão.

Método:

Como referencial, foi utilizado o conceito do cuidado de enfermagem ancorado na integralidade e no legado vanguardista de Florence Nightingale. O relato está estruturado em dois tópicos: o primeiro descreve a experiência em si, e o segundo traz uma reflexão crítica acerca dos limites, conquistas e desafios.

Resultados:

A interação das práticas integrativas na enfermagem e sua inserção no ensino, pesquisa e extensão corroboram o cuidado holístico, favorecem a construção do conhecimento científico na área e potencialmente requalificam a formação profissional.

Considerações finais:

A inserção das práticas integrativas e complementares na formação em enfermagem pode contribuir para consolidação de um modelo integral de cuidado no SUS na direção do acesso e da integralidade.

Descritores:
Terapias Complementares; Educação em Enfermagem; Extensão Comunitária; Integralidade em Saúde; Pesquisa em Enfermagem

ABSTRACT

Objective:

Report the implementation of integrative and complementary practices in a Nursing course at a federal university in the fields of teaching, research and extension.

Method:

As a reference, the concept of nursing care anchored in the integrality and the avant-garde legacy of Florence Nightingale was used. The report is structured in two topics: the first describes the experience itself, and the second brings a critical reflection about the limits, achievements and challenges.

Results:

The interaction of integrative practices in nursing and its insertion in teaching, research and extension corroborate holistic care, favor the construction of scientific knowledge in the area and potentially requalify professional training.

Final considerations:

The insertion of integrative and complementary practices in nursing education can contribute to the consolidation of an integral model of care in SUS towards access and comprehensiveness.

Descriptors:
Complementary Therapies; Education, Nursing; Community-Institutional Relations; Integrality in Health; Nursing Research

RESUMEN

Objetivo:

Relatar implementación de prácticas integradoras y complementarias en curso de Enfermería de una universidad federal en los campos de la enseñanza, investigación y extensión.

Método:

Como referencial, ha utilizado el concepto del cuidado de enfermería ancorado en la integralidad y en legado vanguardista de Florence Nightingale. El relato ha estructurado en dos tópicos: el primer describe la experiencia en si, y el segundo ofrece una reflexión crítica acerca de los límites, conquistas y desafíos.

Resultados:

La interacción de las prácticas integradoras en la enfermería y su inserción en la enseñanza, investigación y extensión corroboran el cuidado holístico, favorecen la construcción del conocimiento científico en el área y potencialmente recalifican la formación profesional.

Consideraciones finales:

La inserción de las prácticas integradoras y complementarias en la formación en enfermería pueden contribuir para consolidación de un modelo integral de cuidado en el SUS en la dirección del acceso y de la integralidad.

Descriptores:
Terapias Complementarias; Educación en Enfermería; Extensión Comunitaria; Integralidad en Salud; Investigación en Enfermería

INTRODUÇÃO

O olhar para a história nos mostra que as mulheres construíram um saber próprio sobre as práticas de cuidado, aprendido por meio de uma rede de trocas e da comunicação de experiências. Foram curandeiras, apesar de muitas vezes serem julgadas como bruxas ou charlatonas. Construíram os primeiros conhecimentos sobre ervas medicinais com seus cultivos e ao compartilhar seus usos. Registros históricos mostram que esse tipo de cuidado, cujas bases diferem daquelas da medicina moderna, foi muitas vezes a única forma de atenção acessível às pessoas mais necessitadas. Essas práticas que deram origem à profissão da parteira e enfermeira representavam uma prática mais humana e empírica(11 Ehrenreich B, English D. Witches, Midwives & Nurses: a history of women healers witches, midwives & nurses: a history of women healers. New York: The Feminist Press; 1973.).

Tal cuidado empírico contribuiu para o surgimento da enfermagem enquanto profissão, e as práticas de cuidado advindas do conhecimento com ervas medicinais foram se traduzindo no cuidado (mais recentemente, holístico e integral) oriundo do conhecimento sobre a interação entre o ser humano com a natureza, consigo mesmo, seus hábitos e costumes. Dessa forma, o cuidar em saúde com arte e ciência determinou as principais bases da enfermagem, cujo pensamento filosófico, científico e ético foi descrito por Florence Nightingale, a pioneira da profissão, já em sua época. Assim, o legado dessa teórica contribuiu e contribui até hoje para o desenvolvimento do cuidar por meio de suas práticas de observação, pesquisa, experiência e arte(22 Frello AT, Carraro TE. Contribuições de Florence Nightingale: uma revisão integrativa da literatura. Esc Anna Nery. 2013;17(3):573-9. https://doi.org/10.1590/S1414-81452013000300024
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).

Com seu trabalho, Florence deixou os fundamentos para o cuidado em enfermagem, pautados no respeito e no olhar integral ao ser humano. Os seus registros, encontrados no livro “Notas sobre a Enfermagem”, apresentam as raízes do modelo holístico de cuidado, por meio dos relatos visionários mostrando que as melhorias das condições de saúde estavam relacionadas às condições ambientais no processo de tratamento e recuperação(33 Figueiredo MAG, Peres MAA. Identidade da enfermeira: uma reflexão iluminada pela perspectiva de Dubar. Rev Enf Ref. 2019;serIV(20):149-154. https://doi.org/10.12707/RIV18079
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). No cuidado integral, a busca pelas transformações necessárias para melhorar a qualidade de vida das pessoas passa pela recuperação da sutileza, da sensibilidade, dos sentidos, e pode permitir a união entre sujeito e ação, manifestando, assim, formas de agir e produzir integralidade em saúde(44 Pinheiro R, Luz MT. Práticas eficazes x modelos ideais: ação e pensamento na construção da integralidade. In: Pinheiro R, Mattos RA (Eds.). Construção da integralidade: cotidiano, saberes e práticas em saúde. Rio de Janeiro: ABRASCO, 2010. 7-34 p.).

Ao longo de sua obra, relatos da enfermeira sobre a água, ar, calor, frio — exemplificados em anotações como “manter o ar interno tão puro quanto possível”; “barulho desnecessário cria uma expectativa negativa na mente, isso é nocivo ao paciente”(55 Nightingale F. Notas sobre enfermagem: o que é e o que não é. São Paulo: Cortez; 1989.) — mostram que esses conhecimentos precedem as teorias de cuidar em enfermagem legitimadas no decorrer dos tempos, cujas bases holísticas guardam estreita relação com as terapias complementares, ou práticas integrativas e complementares, terminologia adotada neste artigo.

As práticas integrativas e complementares (PICs), termo adotado pelo governo brasileiro, também conhecidas em outros países com a denominação de “medicinas alternativas e complementares” ou “medicinas tradicionais”, estão presentes em 129 países e são amplamente debatidas e reconhecidas pela Organização Mundial de Saúde (OMS), com incentivo político e técnico para serem inseridas nos sistemas públicos de saúde, por meio do seu documento Traditional Medicine Strategy 2014-2023(66 World Health Organization (WHO). Traditional Medicine Strategy 2014-2023 [Internet]. Geneva: WHO; 2013 [cited 2020 Apr 15]. 73 p. Available from: https://www.who.int/medicines/publications/traditional/trm_strategy14_23/en/
https://www.who.int/medicines/publicatio...
).

No Brasil, presentes no Sistema Único de Saúde (SUS), essas abordagens passaram a ganhar visibilidade com a publicação da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC). Atualmente, além da medicina tradicional chinesa/acupuntura, homeopatia, plantas medicinais/fitoterapia, medicina antroposófica, termalismo social/crenoterapia, outras 24 abordagens terapêuticas fazem parte da PNPIC. A expansão, crescimento e oferta recentes dessas abordagens terapêuticas no Brasil e em todo mundo requerem construções para sua avaliação, a fim de apontar seus limites e explicar sua efetividade no cuidado(77 Sousa IMC, Hortale VA, Bodstein RCA. Medicina Tradicional Complementar e Integrativa: desafios para construir um modelo de avaliação do cuidado. Ciênc Saúde Coletiva. 2018;23(10):3403-12. https://doi.org/10.1590/1413-812320182310.23792016
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). Para Salles, Homo e Silva (2014)(88 Salles LF, Homo RFB, Silva MJP. Complementary and integrative practices: situation of their teaching in undergraduate nursing in Brazil. Rev Saúde [Internet]. 2014 [cited 2020 Feb 14];8:3-4. Available from: http://revistas.ung.br/index.php/saude/article/view/2005/1579
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), a relação das PICs com o cuidado tem crescido no campo da saúde; em especial, na enfermagem.

Considerando o legado de Florence Nightingale tanto para a enfermagem quanto para área das PICs, ao longo das comemorações do bicentenário da autora, é fundamental refletir acerca dessas abordagens terapêuticas no contexto universitário e de sua interface com o ensino, assistência, gestão e participação popular. Nesse sentido, estudantes, docentes, profissionais de saúde, gestores e usuários do SUS têm a oportunidade de interagir, dialogar e contribuir, coletivamente, para expansão e consolidação das PICs nos serviços da Atenção Primária à Saúde, o que impreterivelmente requer a implementação delas no contexto da formação universitária.

Diante do exposto, o presente artigo tem por objetivo relatar as experiências de implementação de práticas integrativas e complementares na formação em enfermagem nos âmbitos do ensino, pesquisa e extensão.

OBJETIVO

Relatar a implementação das Práticas Integrativas e Complementares em um curso de Enfermagem de uma universidade federal nos campos do ensino, pesquisa e extensão.

RELATO DE EXPERIÊNCIA

Implementação das Práticas Integrativas e Complementares na formação em Enfermagem

O relato a seguir é fruto das experiências de quatro docentes da Universidade Federal de São Carlos, no município de São Carlos, estado de São Paulo: três, do Departamento de Enfermagem; uma, do Departamento de Metodologia de Ensino. Três docentes são enfermeiras, e uma é obstetriz. Três têm formação e experiência nas PICs aromaterapia, Shantala, massagem, acupuntura e yoga, e outra está em atividade de gestão como coordenadora da Unidade Saúde Escola (USE) da UFSCar, onde acontecem diversas atividades com as PICs. As experiências descritas neste artigo têm ocorrido desde 2016, têm tido como público-alvo estudantes de graduação e servidores da UFSCar, bem como profissionais e usuários dos serviços de saúde do Sistema Único de Saúde e têm apresentado as vivências no processo de implementação das PICs no âmbito do ensino, da pesquisa e da extensão.

Experiência no âmbito do ensino

O processo de implantação de PICs no ensino teve início no segundo semestre de 2018. As primeiras atividades com essas práticas se deram com estudantes nas disciplinas eletivas da grade curricular do curso de Enfermagem. Inicialmente, as disciplinas foram “Saúde da Mulher” e “Saúde Coletiva” e, posteriormente, na recepção dos estudantes do 1º ano (calourada 2019), “Estágio Curricular Supervisionado” e “Saúde do Idoso”.

As PICs fizeram parte do encerramento da disciplina “Saúde da Mulher”. Em uma sala ampla, estudantes e docentes se sentaram em roda sobre colchonetes, realizaram uma rodada de apresentação, práticas corporais e meditativas do yoga. Posteriormente, foi feita uma roda de conversa sobre medicina chinesa e fitoterapia na saúde da mulher. O encontro terminou com uma troca de massagem entre os estudantes. Durante a avaliação final da vivência, os relatos foram de renovação e necessidade de ter mais momentos como aquele durante o semestre.

Na disciplina “Saúde Coletiva”, em pequeno grupo durante imersão no campo “Sínteses, buscas e nova síntese”, as práticas corporais e meditativas do yoga foram ofertadas ao grupo de estudantes pela docente no início do primeiro encontro na própria sala de aula, em roda e praticadas em pé. Ao final, durante a avaliação desse encontro, todos os estudantes referiram que se sentiram muito bem com a prática corporal e meditativa, e que gostariam de vivenciar essas práticas em todos os encontros. Assim, essa vivência se deu ao longo de todo o semestre. Na avaliação de encerramento da disciplina, ao término do semestre, todos os estudantes consideraram que essa vivência contribuiu em vários sentidos, ajudando a relaxar, aliviar o estresse do dia a dia e a sobrecarga do final do semestre.

Em relação à calourada 2019, a convite da coordenadora do curso de graduação, a atividade aconteceu em uma sala de aula do departamento, previamente organizada com colchonetes dispostos em roda, onde o grupo de ingressantes pôde vivenciar as práticas corporais e meditativas do yoga, a aromaterapia, massagem thai e roda de conversa sobre PICs, políticas de saúde e autocuidado. No fim da atividade, foi ofertada aos estudantes uma pequena amostra de óleo essencial diluído, oferecido pelas professoras; eles relataram que essa atividade foi de muito acolhimento e que foram surpreendidos com a forma pela qual ela aconteceu.

Na disciplina “Atenção à Saúde do Idoso”, as PICs foram vivenciadas durante o ensino clínico que acontece duas vezes por semana, nos serviços de saúde — neste caso, numa unidade de Estratégia Saúde da Família (ESF). No primeiro dia na ESF, durante uma roda de apresentação, foi realizada prática meditativa e conversa sobre prática corporal e acupuntura. Estudantes, agentes comunitários de saúde e técnicas de enfermagem manifestaram interesse nessas diferentes abordagens terapêuticas durante toda oferta do ensino clínico por meio das práticas meditativas, práticas corporais, auriculoterapia e terapia com moxabustão.

Já na disciplina de “Estágio Curricular Supervisionado”, como projeto de intervenção do estágio dos estudantes, foi oferecida uma atividade no formato de tenda, uma roda de conversa sobre ginecologia natural, com a apresentação das ervas e suas propriedades fitoterápicas. A atividade iniciou com uma prática de respiração da yoga, seguida de chá para compartilhar entre as participantes. Ao fim, ofereceu-se prática de automassagem com aromaterapia. Em sua grande maioria, eram mulheres idosas, o que possibilitou a abertura de espaço para conversa sobre o quanto as mulheres são sobrecarregadas com as responsabilidades de cuidado da casa e dos filhos e sobre a importância de encontrarem um tempo e formas para o autocuidado.

Dentre as experiências no âmbito de ensino, vale destacar a vivência da proposta de reformular o currículo do curso de Enfermagem. Essa reformulação focalizou as PICs, e sua inserção foi aprovada no novo currículo, enquanto disciplinas eletivas, a serem oferecidas no 1º, 2º e 3º semestres do curso de graduação em Enfermagem. Dessa forma, no 1º semestre, será ofertada a disciplina “Cuidado Integral e Autocuidado”, relacionada à introdução das PICs no cuidado à saúde. Nos semestres subsequentes, as disciplinas ofertadas, “Cuidado Integral e Práticas Integrativas em Saúde I” e “Cuidado Integral e Práticas Integrativas em Saúde II”, irão aprofundar os conhecimentos teóricos e práticos sobre essas práticas no contexto do autocuidado e da educação em saúde.

Experiência no âmbito da pesquisa

As experiências relacionadas à pesquisa têm como ponto de partida um projeto que visa analisar o processo de implantação das PICs na Atenção Primária à Saúde, no Departamento Regional de Saúde III (DRS III), que engloba São Carlos e outros 23 municípios vizinhos da região. A pesquisa tem abordagem qualitativa e está sendo desenvolvida por meio da pesquisa-ação (P-A).

Nessa direção, desde 2019, destaca-se a oportunidade de construção de parcerias genuínas com diferentes profissionais do SUS implicados com as PICs, bem como a participação das articuladoras do centro de desenvolvimento de qualidade para o SUS do DRS III, como interlocutoras entre os gestores e profissionais de saúde dos municípios do DRS III, proporcionando aproximações e contribuindo sobremaneira para o desenvolvimento das parcerias no processo desta P-A.

Ainda que seja um processo em fase inicial de construção, muitos frutos podem ser mencionados ao longo deste período: cinco encontros ocorridos com distintos grupos de profissionais (dos Núcleos Ampliados de Saúde da Família [NASF], dos diferentes serviços de saúde do SUS e das comissões municipais de PIC de São Carlos e Araraquara); e participação em quatro reuniões das câmaras técnicas entre os gestores municipais das quatro regiões do DRS III (região central, coração, norte e centro-oeste). Em todos esses encontros, foi realizada uma prática meditativa no início, em que a maioria participou, verbalizou sensação de bem-estar e calma e ressaltou a importância das PICs no cuidado e autocuidado das famílias atendidas nos serviços de saúde e dos profissionais de saúde do SUS.

Três importantes marcas nas experiências no âmbito da pesquisa são os desdobramentos dessa P-A: 1) a primeira se refere às pesquisas de iniciação científica com cinco estudantes de graduação, sendo três do curso de Enfermagem e duas do curso de Psicologia; 2) a segunda é referente aos encontros periódicos para estudo e discussão das PICs na perspectiva da assistência/cuidado, da gestão, da participação social e do ensino/formação, realizados inicialmente apenas com estudantes de graduação e, atualmente, com a participação de profissionais de saúde, se constituindo em um grupo de estudo das PICs enquanto saberes, práticas e políticas de saúde; e 3) a terceira se refere a uma proposta de vivenciar as PICs junto com profissionais de saúde do SUS nos diferentes municípios. No tocante a essa proposta, vale mencionar que, mesmo diante da pandemia de COVID19, recursos de cuidado e autocuidado com as PICs estão sendo disponibilizados nos ambientes virtuais via Facebook, Instagram e YouTube. Ou seja, essa atividade se transformou em uma atividade de extensão, e sua dinâmica de funcionamento se dá em uma perspectiva compartilhada, horizontal e coletiva entre as estudantes da iniciação científica, as articuladoras do DRS III e a docente.

Experiência no âmbito da extensão

Partimos aqui do entendimento da extensão universitária como processo educativo e científico produtor de um conhecimento que se constrói da relação mútua entre sociedade e universidade. Esse conhecimento é transformador visto que ocorre mediante a troca de saberes popular e acadêmico(99 Serrano RMSM. Conceitos de extensão universitária: um diálogo com Paulo Freire. Grupo de Pesquisa em Extensão Popular. CCS-UFPB [Internet]. 2013 [cited 2020 Feb 14];13(8):1-15. Available from: https://www.ets.ufpb.br/pdf/2013/1%20Universidade%20e%20Sociedade/US%2013_Texto%201%20Serrano_Conceitos%20de%20extensao%20universitaria.pdf
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). É nesse sentido que temos construído as nossas atividades de extensão com a inserção das práticas integrativas.

No campo da saúde das mulheres e crianças, desde 2016 vem sendo desenvolvida a atividade de rodas de conversa no pós-parto no contexto de uma Unidade de Saúde da Família localizada em um bairro periférico. As rodas acontecem nos dias de consulta dos bebês. No primeiro encontro, são levantadas as demandas e temas de interesse que as mulheres gostariam de compartilhar. O encontro acontece com uma canção de abertura, desenvolvimento da roda de conversa e uma proposta de atividade final. Dentre essas atividades, estão contempladas a confecção de almofadas de camomila para alívio da cólica dos bebês nos primeiros meses de vida; a automassagem para as mães combinada à aromaterapia; e a Shantala, a que daremos enfoque nesse relato.

A Shantala, técnica de massagem em bebês originada na Índia, acontece em um dia específico no qual a temática da roda de conversa segue na direção das trocas afetivas, da importância do toque e da forma pela qual os bebês percebem o mundo nos primeiros meses de vida. As(os) participantes são convidadas(os) a compartilhar sobre como tem sido o cotidiano com os cuidados dos bebês e sobre o toque e a massagem. Em seguida, temos a conversa específica sobre a Shantala e o convite para realizarmos a técnica de massagem na prática. Com uma música suave ao fundo e a certificação de que o ambiente está confortável para os bebês, o passo a passo é feito, mas sem sequência rígida, com respeito e olhar atento para o tempo de cada bebê, mãe, pai, familiar que participam do encontro. Os bebês que choram são acolhidos; os que têm fome, amamentados; muitos dormem durante a massagem, e o ambiente fica carregado de tranquilidade.

Ainda no campo da saúde das mulheres juntamente com a atuação de uma equipe interdisciplinar de docentes, profissionais da saúde e estudantes, foi oferecido (nos anos 2018 e 2019, na Unidade de Saúde Escola) o projeto de atenção à saúde das mulheres em situação de rua. Nesse contexto, foi inserida a prática da aromaterapia. Segundo o MS, ela é a prática constituinte de um sistema terapêutico integrativo que usa óleos essenciais extraídos de diferentes estruturas das plantas, os quais possuem a ação, dentre tantas, de recuperar o equilíbrio e a harmonia do organismo visando à promoção da saúde física e mental.

Essa prática foi apresentada para as participantes durante a roda de conversa: elas foram convidadas a escolher um dos óleos essenciais levando em conta a identificação e o potencial terapêutico. Em seguida, foi realizada a diluição dos óleos, e a aplicação se deu por meio da técnica de automassagem. As participantes relataram a prática como um momento de olhar para si. Durante encontro sobre violência contra mulher, a mesma estratégia foi utilizada com funcionárias da limpeza da universidade, de empresa terceirizada. Após a conversa sobre violência, procedeu-se à prática com a aromaterapia. Ao final, as participantes perguntaram quando haveria outro encontro como aquele.

Vale também mencionar as experiências com as atividades de extensão “Integralidade em saúde: roda de conversa e cuidados baseados na Medicina Tradicional Chinesa (MTC)”, ainda em andamento, em que, além dos diálogos sobre MTC e acupuntura, ocorreram atendimentos de auriculoterapia aos profissionais do SUS de três diferentes serviços: uma ESF, uma Unidade Básica de Saúde e um ambulatório de especialidades. Os atendimentos foram realizados nos respectivos serviços. A oferta de auriculoterapia também abrangeu a comunidade tanto interna da UFSCAR (servidores e, predominantemente, estudantes de graduação) quanto externa (usuários do SUS). Os atendimentos se deram na Unidade Saúde Escola. Essa atividade teve boa aceitação, muita procura e tem sido bem avaliada pelas pessoas atendidas.

Refletindo os limites, conquistas e desafios acerca da vivência

Nas experiências referentes ao ensino, como limites, podem-se assinalar as atividades pontuais com PICs nas disciplinas de graduação. Estudo sobre tais práticas na enfermagem demonstrou que poucas instituições brasileiras de ensino superior oferecem disciplinas relacionadas a elas, e as que oferecem são no formato de disciplina optativa. Ainda, as autoras lembram que, embora as PICs sejam reconhecidas no Brasil, a falta de ensino delas na graduação faz com que o número de profissionais seja insuficiente(88 Salles LF, Homo RFB, Silva MJP. Complementary and integrative practices: situation of their teaching in undergraduate nursing in Brazil. Rev Saúde [Internet]. 2014 [cited 2020 Feb 14];8:3-4. Available from: http://revistas.ung.br/index.php/saude/article/view/2005/1579
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).

Nesse sentido, dentre os desafios que se apresentam, aponta-se a necessidade de transformar as atividades pontuais em contínuas, institucionalizar a integração das PICs com as diferentes disciplinas, inclusive com inserção de conteúdos referentes a elas nos planos de ensino das respectivas disciplinas, o que colabora para efetivar um currículo mais integrado na graduação em Enfermagem. Por outro lado, as experiências vivenciadas com as PICs em diferentes disciplinas sinalizam a integração, o reconhecimento e valorização delas, com abertura para sua interface interdisciplinar com a enfermagem. Aqui, vale pensar a instituição de ensino em paralelo com as instituições de saúde. Nessa análise, destaca-se o cotidiano institucional como espaço de produção de novas formas de ação social em saúde, na direção de materializar a integralidade na atenção e no cuidado em saúde enquanto princípio e direito, e não meramente um lugar de verificação de ideias(44 Pinheiro R, Luz MT. Práticas eficazes x modelos ideais: ação e pensamento na construção da integralidade. In: Pinheiro R, Mattos RA (Eds.). Construção da integralidade: cotidiano, saberes e práticas em saúde. Rio de Janeiro: ABRASCO, 2010. 7-34 p.).

A extensão universitária como forma de aproximação social e, assim, contato com as demandas locais move a universidade para o reconhecimento e conexão com essa realidade. É importante levar em conta aqui os momentos históricos e políticos e os interesses que reverberam no fazer dentro e fora da universidade. A falta do “olhar para fora” e a escassez de recursos para conduzir atividades extensionistas são alguns dos obstáculos para a continuidade e execução de projetos extramuros, que se dão também em função da valorização exacerbada da produção acadêmica resultante de pesquisas. Na lógica dessa cultura produtivista, a avaliação do professorenfermeiro e do professor-pesquisador visa atender aos critérios quantitativos impostos pelo modelo gerencialista, o qual tem se consolidado de forma bastante perversa e impulsionado professores-enfermeiros a fazer suas escolhas docentes com base em imposições gerencialistas em detrimento de escolhas balizadas nas perspectivas dialéticas, críticas e emancipatórias(1010 Gatto Jr JR, Fortuna CM, Sousa LA, Santana FR. Nursing professor in higher education: time, money and resistance in the management vision. Texto Contexto Enferm. 2020;29:e20180407. https://doi.org/10.1590/1980-265x-tce-2018-0407
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).

Mesmo com esse cenário, as PICs se mostram dentro das propostas da extensão como práticas de cuidado com a capacidade de acolhimento, promoção do bem-estar e de aproximação, de estabelecimento de trocas intersubjetivas e construção de vínculos entre todos os que participam nos diferentes serviços de saúde e nos territórios, diretamente com as famílias. Essa análise ratifica a ênfase no entendimento do cotidiano enquanto lócus social em que se dão as relações sociais distintas, as experiências de vida das pessoas individualmente ou em grupos específicos, coletividades e instituições(44 Pinheiro R, Luz MT. Práticas eficazes x modelos ideais: ação e pensamento na construção da integralidade. In: Pinheiro R, Mattos RA (Eds.). Construção da integralidade: cotidiano, saberes e práticas em saúde. Rio de Janeiro: ABRASCO, 2010. 7-34 p.). Daí a necessidade de reforçar a importância do alcance social via extensão e da consequente reafirmação desse compromisso da universidade.

No âmbito da pesquisa, as PICs carregam a possibilidade dialógica entre culturas e perspectivas, na forma de compreender as diferentes formas do processo saúde-doença-cuidado. Nesse sentido, a abordagem dessas práticas possibilita a amplitude do conhecimento ao romper com uma produção pautada na ciência ocidental ainda hegemônica. Essa reflexão coaduna com a perspectiva crítica no sentido da relativização da hegemonia biomédica e da abertura para incluir outras racionalidades presentes no campo da saúde(77 Sousa IMC, Hortale VA, Bodstein RCA. Medicina Tradicional Complementar e Integrativa: desafios para construir um modelo de avaliação do cuidado. Ciênc Saúde Coletiva. 2018;23(10):3403-12. https://doi.org/10.1590/1413-812320182310.23792016
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). Legitimar o campo de pesquisa nessa temática se dá como um desafio constante. A inserção das PICs como campo científico legítimo indica um caminho de trocas e possibilidades apoiados no construir junto por meio de pesquisas participativas e geradoras de mudanças.

As PICs corroboram a viabilidade de se trabalhar o tripé ensino-pesquisa-extensão de forma indissociável e assim favorecem a construção de novos conhecimentos, a expansão do conhecimento científico e o reconhecimento de outras formas de cuidado para o exercício profissional da enfermagem, na direção de uma compreensão holística e vitalista no campo da saúde. Pensar todo esse conjunto no processo da formação indica o desenvolvimento de um sistema de ensino relevante e diferenciado, o que também remete ao legado nightingaleano(33 Figueiredo MAG, Peres MAA. Identidade da enfermeira: uma reflexão iluminada pela perspectiva de Dubar. Rev Enf Ref. 2019;serIV(20):149-154. https://doi.org/10.12707/RIV18079
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).

Dentro do campo da saúde, na temática das PICs, ainda temos a dificuldade de lidar e enfrentar as questões culturais e a valorização predominante do modelo biomédico. Nessas idas e vindas, enfrentando as adversidades do cotidiano, vamos resistindo quando vemos o impacto e retorno social que essas ações possibilitam. Temos como grande desafio a continuidade das atividades, a construção de parcerias interdisciplinares e com os serviços para o fortalecimento dessas ações.

Limitações do estudo

Destaca-se como limitação a necessidade de aprofundamento nas especificidades das diferentes PICs no cuidado, ensino e pesquisa.

Contribuições para a área da enfermagem

Este relato de experiência tem o potencial de contribuição na área da enfermagem na medida em que assinala a interface das PICs com a enfermagem enquanto profissão e ciência desde sua precursora, Florence Nightingale, e dá visibilidade acerca dessas abordagens terapêuticas nos campos do ensino, da pesquisa e extensão. Pode colaborar, ainda, para futuras iniciativas e estudos na área.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Analisar a experiência de implantar as PICs no âmbito do ensino, pesquisa e extensão em um curso de graduação em Enfermagem significou reconhecer os avanços, as invisibilidades e barreiras presentes nesse processo. Na atualidade, o cuidado de enfermagem por meio das PICs é a expressão do legado vanguardista de Florence, comemorado neste bicentenário, e assinala a necessidade de refletir sobre o processo lento de conquistas até o momento, de superar os limites e desafios presentes, no sentido de legitimar e institucionalizar essas práticas na formação universitária, nos serviços de saúde do SUS e no conjunto das políticas públicas de saúde no país. A interação das PICs na enfermagem e sua inserção no ensino, na pesquisa e na extensão corroboram o cuidado holístico, favorecem a construção do conhecimento científico na área, requalificam a formação profissional e podem contribuir para consolidação de um modelo integral de cuidado no SUS na direção do acesso e da integralidade.

REFERENCES

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Editado por

EDITOR CHEFE: Dulce Barbosa
EDITOR ASSOCIADO: Hugo Fernandes

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    06 Jul 2020
  • Aceito
    26 Set 2020
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