Open-access Conceitos culturais e a experiência dolorosa

Cultural aspects and the pain experience

Resumos

Este estudo objetivou verificar influência de fatores culturais na expressão do sintoma álgico. Foi baseado na avaliação de 57 pacientes com doença oncológica avançada, atendidos no serviço de radioterapia de um hospital geral, público e de ensino que experienciaram dor na semana anterior à entrevista. A duração média do quadro álgico foi 10 meses. A dor foi moderada na maioria dos doentes e intensa em cerca de 1/ 5 deles. Observou-se que concepções culturais errôneas dos doentes acerca da incontrolabilidade da dor no câncer e de que recebiam remédios em demasia, correlacionaram-se à, dor de maior intensidade (p<0,05). Este estudo mostrou que crenças errôneas relativas à dor oncológica e analgesia associaram-se a dores mais intensas.

Dor crônica; Dor oncológica; Aspectos culturais; Avaliação da dor


The aim of this investigation was to examine the influence of cultural factors in the pain intensity. Patients presenting advanced cancer and pain, under treatment in an outpatients oncologic unit were evaluated. Pain and cultural factors were evaluated through interviews based on the use of instruments adapted to portuguese language: Patient Pain Questionnaire. Pain lasted 10 months as an average. It was moderate in the majority of patients and severe in 1/5 of them. Cultural misconceptions about the impossibility of cancer pain control and the idea that doctors prescribe excessive amount of analgesics, were correlated with higher intensities of pain (p<0,05).

Cancer pain; Chronic pain; Misconceptions; Pain assessment


ARTIGOS ORIGINAIS

Conceitos culturais e a experiência dolorosa

Cultural aspects and the pain experience

Cibele Andrucioli de Mattos Pimenta

Enfermeira. Profª Drª do Departamento de Enfermagem Médico-Cirúrgica da Escola de Enfermagem da USP. Coordenadora de Enfermagem da Liga de Dor do HC-FMUSP

RESUMO

Este estudo objetivou verificar influência de fatores culturais na expressão do sintoma álgico. Foi baseado na avaliação de 57 pacientes com doença oncológica avançada, atendidos no serviço de radioterapia de um hospital geral, público e de ensino que experienciaram dor na semana anterior à entrevista. A duração média do quadro álgico foi 10 meses. A dor foi moderada na maioria dos doentes e intensa em cerca de 1/ 5 deles. Observou-se que concepções culturais errôneas dos doentes acerca da incontrolabilidade da dor no câncer e de que recebiam remédios em demasia, correlacionaram-se à, dor de maior intensidade (p<0,05). Este estudo mostrou que crenças errôneas relativas à dor oncológica e analgesia associaram-se a dores mais intensas.

Unitermos: Dor crônica. Dor oncológica. Aspectos culturais. Avaliação da dor.

ABSTRACT

The aim of this investigation was to examine the influence of cultural factors in the pain intensity. Patients presenting advanced cancer and pain, under treatment in an outpatients oncologic unit were evaluated. Pain and cultural factors were evaluated through interviews based on the use of instruments adapted to portuguese language: Patient Pain Questionnaire. Pain lasted 10 months as an average. It was moderate in the majority of patients and severe in 1/5 of them. Cultural misconceptions about the impossibility of cancer pain control and the idea that doctors prescribe excessive amount of analgesics, were correlated with higher intensities of pain (p<0,05).

Uniterms: Cancer pain. Chronic pain. Misconceptions. Pain assessment.

1 Introdução

Os conceitos sobre dor sofreram profundas modificações em torno das décadas de 50 e 60 deste século. Incluíram-se, no universo de facetas que configuram a sensação dolorosa, além dos aspectos físicos, os culturais e emocionais. A Sociedade Internacional para Estudo da Dor, em 1979, conceituou dor como "uma experiência sensorial e emocional desagradável que é descrita em termos de lesões teciduais, reais ou potenciais. A dor é sempre subjetiva e cada indivíduo aprende a utilizar este termo através de suas experiências traumáticas...” 21.

O fenômeno doloroso não implica apenas na veiculação da informação sensitiva através de vias nervosas até seu processamento no sistema nervoso central. Sabe-se, atualmente, que há interação bastante íntima entre as diferentes qualidades sensoriais e a dolorosa e entre esta e os sistemas responsáveis pelos aspectos cognitivos e afetivos do indivíduo. Portanto, elementos sensoriais, afetivos, culturais e emocionais compõem o fenômeno doloroso. A experiência dolorosa implica na interpretação do aspecto físico-químico do estímulo nocivo e da interação desta com as características individuais como humor, significado simbólico atribuído ao fenômeno sensitivo e aspectos culturais dos indivíduos26. Esta concepção sugere que o controle, a vivência e a expressão da dor também possam sofrer interferências - destes elementos. Assim, poder-se-ia pensar em modelo multidimensional de controle da dor.

A dor relacionada ao câncer acomete entre 50,0% a 70,0% dos doentes em todos os estágios da doença e em torno de 70,0% a 90,0% dos indivíduos com neoplasia avançada5. Com o objetivo de propor diretrizes para o controle cia dor na doença oncológica, especialistas da Organização Mundial de Saúde (OMS) elaboraram no início da década de 80 o "Guia para Tratamento da Dor no Câncer"21 onde foram descritos os métodos para o controle do sintoma álgico. Diversos estudos comprovam a eficácia do programa de controle da dor proposto pela OMS 14,15,22,28,29,30. Apesar dos trabalhos que relataram resultados satisfatórios do programa da OMS no controle das algias no câncer, o controle da dor oncológica é ainda inadequado em países desenvolvidos. Nos Estados Unidos da América, em estudo multicêntrico com doentes oncológicos ambulatoriais (n=1308), CLEELAND et al.7 observaram que entre os doentes com dor, 42,0% não recebeu terapia analgésica adequada. No Japão, após inquérito nacional com doentes oncológicos hopitalizados (n=35.683), HIRAGA et al.15 observaram que o alívio obtido foi moderado em 50,3% dos casos e nulo em 3,8%. PIMENTA24 observou adequado controle da dor em parcela inferior a 5% dos doentes estudados.

Quais as causas do insuficiente alívio? BONICA5 sugeriu que contribuem para este quadro, falhas na formação dos profissionais de saúde na área de analgesia; a apreciação inadequada ou negligência para com o problema da dor, o incorreto uso das terapias analgésicas e falhas no modelo teórico da dor oncológica e de seu tratamento. Há provavelmente aspectos, além dos biológicos, como os culturais e afetivos, envolvidos na vivência e expressão da dor que, talvez, sejam negligenciados.

Alguns autores apontam que aspectos culturais e cognitivos dos doentes relativos a conceitos errôneos sobre dor no câncer e analgésicos, principalmente de origem opiácea, podem resultar em resistência a utilizá-los e contribuir para o inadequado alívio da dor5,8,17,23. Há, entretanto, poucos estudos internacionais que analisam a influência dos aspectos culturais na vivência da dor. Não se conhece estudo nacional sobre o tema9,11.

Esta pesquisa visa à busca de possíveis associações entre a intensidade da dor e conceitos culturais. O relato e a auto-avaliação dos doentes, baseados em escalas padronizadas, foram as fontes para a obtenção dos dados.

2 Objetivo

Verificar a existência de correlações entre a intensidade da dor e a variável conhecimento do doente sobre dor oncológica e analgesia.

3 Metodologia

3.1 Local e População

O estudo foi desenvolvido no Ambulatório do Serviço de Radioterapia do Hospital das Clinicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Foram avaliados 92 doentes, em tratamento no período entre outubro de 1993 a fevereiro de 1994.

Os critérios de inclusão dos doentes foram ter: doença oncológica avançada; idade mínima de 16 anos; condições físicas, capacidade de compreensão e verbalização adequadas para participar da entrevista e ter experienciado dor, relacionada ao câncer, na semana anterior à entrevista. Dos 92 avaliados, 57 doentes atenderam aos critérios estabelecidos e compõem a população deste estudo. O consentimento do doente, que participou da pesquisa, foi obtido verbalmente. Considerou-se doença oncológica avançada aquela com grande extensão loco-regional ou com metástases.

3.2 Métodos

Os doentes foram avaliados por meio de instrumentos padronizados.

3.2.1 Instrumentos de coleta de dados

O Impresso para encaminhamento (instrumento I) permitiu caracterizar a amostra quanto à localização do tumor primário, a existência e localização de doença metastática, de doença avançada loco-regionalmente ou ambas, e se a dor, quando existisse, poderia ser atribuída ao tumor ou às metástases. Este impresso foi preenchido pelo médico do paciente.

O INSTRUMENTO I permitiu caracterizar a população quanto aos aspectos relativos aos dados de identificação (nome, idade, sexo, endereço, renda familiar e per capita, escolaridade e atividade ocupacional), ocorrência ou não de dor na última semana e duração do quadro álgico. Permitiu, ainda, caracterizar a intensidade da dor por meio de escala numérica graduada de 0 a 10 16 (0 = ausência de dor e 10 = pior dor imaginável).

Por meio do INSTRUMENTO II foi investigado o conhecimento do doente sobre dor oncológica e analgesia. Para tanto, utilizou-se inquérito elaborado, testado e validado por FERREL9,11. O questionário é dividido em 2 partes: 8 itens que avaliam o conhecimento e 6 que investigam outros aspectos da vivência dolorosa. É possível obter-se escores, de forma independente, para cada parte. Neste estudo, foi utilizada a parte do questionário que se refere ao conhecimento sobre dor oncológica e analgesia, por adequar-se aos objetivos da pesquisa. Consiste de 8 frases afirmativas, que visam a medir o conhecimento do doente no manejo da dor oncológica, através da escala visual analógica. Esta escala é uma reta de 10 centímetros de comprimento, em cujas extremidades constam palavras âncoras que representam o pior resultado (0) e o melhor resultado (10). Esta escala não possui ponto de corte. Quanto mais perto de 10, maior é o conhecimento do doente sobre o assunto. Foi acrescentada à proposta original de Ferrell9,11 a divisão da escala visual analógica em centímetros, por um pequeno traço, elaborada após pré-teste, com o objetivo de oferecer orientação espacial aos doentes. A validação da tradução foi feita por comitê de 5 especialistas em dor.

3.2.2 Procedimentos de coleta de dados

Os dados foram coletados pela pesquisadora, em entrevista individual, única, realizada no hospital, em ambiente privativo e previamente agendada. A aplicação dos instrumentos seguiu procedimento padronizado. Foram sempre aplicados em ordem numérica crescente. Ressaltou-se que não existia resposta certa ou errada e sim a opinião do doente sobre o fato.

3.3 Tratamento estatístico

Os dados foram apresentados em forma de quadros e figuras. As freqüências foram calculadas em número absoluto e em porcentagem. Foram feitos 2 tipos de análises:

3.3.1 Classificação, pontos de corte e índices

A intensidade cia dor foi avaliada por meio de escala numérica de 0 a 10 16 e classificada em leve (valor de 1 a 3), moderada (4 a 7) e intensa (8 a 10). O conhecimento do doente sobre dor oncológica e analgesia foi mensurado, tendo como base o questionário de FERRELL9,11 e lhe foi atribuído valor numérico. Nas medidas descritas anteriormente, não houve ponto de corte.

3.3.2 Testes estatísticos

O tratamento estatístico teve como objetivo identificar possíveis correlações entre a intensidade da dor e o conhecimento do doente sobre dor oncológica e analgesia. As provas (Kendall Tau) foram realizadas admitindo-se probabilidade de erro de primeira espécie (erro tipo I) de 5%. Foram seguidas as recomendações de SIEGEL25 quanto à adequação e aproximações possíveis em cada teste.

4 Resultados

A população avaliada compôs-se de 57 doentes e os resultados obtidos estão apresentados na seguinte ordem: características pessoais, da dor e da neoplasia e conhecimento do doente sobre dor oncológica e analgesia.

4.1 Características pessoais, da dor e da neoplasia

A distribuição quanto ao sexo foi equitativa (49,1% de mulheres e 50,9% de homens). A faixa etária dominante foi a entre 55 e 81 anos (43,8%). A média de idade foi 50,1 e a mediana, 52 anos. Na maioria dos doentes a escolaridade foi até 4 anos (64,9%). A média de escolaridade foi 4,9 anos e a mediana 4 anos. A renda per capita foi calculada a partir da renda familiar total dividida pelo número de pessoas que vivia com a renda e foi expressa em salários mínimos. A média de salários mínimos recebidos foi 1,4 e a mediana, 1. Importante parcela dos doentes (36,9%) não possuía atividade ocupacional remunerada; estava desempregada ou era composta por donas de casa ou estudantes. Cerca de 1/3 dos indivíduos estava aposentado (28,0%), 10,5% mantinha atividade ocupacional remunerada e 24,6% estava de licença-saúde.

A maior parte (66,7%) dos doentes apresentou dor moderada (intensidade de 4 a 7). Em 17,5% dos casos, a dor foi descrita como intensa (intensidade de 8 a 10). A intensidade foi superior a 4 em 84,2% dos indivíduos. A média de intensidade da dor foi 5,6 e a mediana, 5. 0 período de tempo decorrido desde o início do quadro álgico variou entre 12 dias e 60 meses. A média do tempo decorrido foi 10 meses e a mediana 5 meses. Relataram ter dor há mais de 6 meses 36 (63,2%) indivíduos e 12 (21,1%), há mais de 1 ano.

As localizações mais freqüentes do tumor primário foram o segmento crânio-cervical (33,4%), seguido do sistema digestivo (17,5%) e da mama (12,3%). Quanto à extensão da doença oncológica, observou-se que cerca de 40,0% possuía doença em atividade à distância. Proporção semelhante possuía doença com atividade loco-regional. Os doentes apresentaram média de 1,4 locais de metástases por indivíduo. As localizações mais e igualmente freqüentes foram: pulmonar (28,3%) e óssea (28,3%).

4.2 Conhecimento do doente sobre dor oncológica e analgesia

O aspecto cultural estudado foi o conhecimento sobre dor oncológica e analgesia, levantado a partir da aplicação de instrumento especifico 9,11. A nota máxima possível para cada assertiva é 10 e o total de pontos 80. As 8 assertivas, a média e a mediana obtidas pelos doentes em cada uma delas, estão apresentadas no QUADRO 1.


Nota-se, pelo QUADRO 1, que o conhecimento sobre dor oncológica e analgesia foi insatisfatório (média = 40,5 e mediana = 40,5). Principalmente em relação às assertivas 2, 3, 4 e 7, as médias obtidas foram acentuadamente baixas (3,6; 4,9; 2,5 e 3,7 respectivamente).

Pela análise cia correlação entre a intensidade da dor e as assertivas sobre o conhecimento a respeito de dor oncológica e analgesia, realizada através da prova de Kendall Tau 25, apresentada no QUADRO 2 encontrou-se correlação negativa, estatisticamente significante, entre a intensidade da dor e a opinião do doente de que a dor no câncer poderia, realmente, ser controlada (assertiva 1) e, entre a intensidade da dor e a percepção do doente de que recebia analgésicos em demasia (assertiva 8).


5 DISCUSSÃO

Os doentes avaliados na presente pesquisa possuíam doença oncológica avançada (metastática ou loco-regional), mas não devem ser considerados doentes terminais. Entendeu-se por doente terminal "aquele que é incapaz de manter suas atividades físicas ou de manter vida de relação e cuja morte é esperada, a curto prazo" 19. Na literatura sobre dor oncológica, é usual utilizar-se a palavra avançado como sinônimo de terminal 5,27.. No presente estudo, doença oncológica avançada foi compreendida como aquela com grande extensão loco-regional ou metastática. Todos os doentes estavam em tratamento ambulatorial e, em sua maioria, submetiam-se a tratamento antineoplásico (cerca de 60% à quimioterapia e 8% à radioterapia). A dor é muito freqüente na doença oncológica, principalmente em fases avançadas5. Sabe-se que nos países não desenvolvidos, a maioria dos tumores é diagnosticada em fase adiantada da doença, onde a cura não é possível e o controle dos sintomas é o objetivo da assistência 20. Assim, o alívio da dor é uma das prioridades no atendimento às pessoas com neoplasia.

O alívio da dor neoplásica compreende conjunto de medidas radio e quimioterápicas, cirúrgicas, farmacológicas, emocionais e educativas. Como os aspectos biológicos, emocionais, culturais, entre outros, participam da interpretação do fenômeno doloroso, é de importância máxima avaliar e tratar cada um deles, quando o objetivo é o controle da dor. AHLES et al.1 observaram que doentes que julgavam que a presença de dor era sinal de avanço da doença oncológica, experienciaram dores mais intensas do que os que não faziam esta relação.

Admitia-se, como hipótese deste estudo, que grande parte dos doentes possuía lacunas de informação e crenças errôneas sobre dor oncológica e analgesia e que isto poderia interferir na vivência de dor, o que de fato ocorreu. Em inquérito populacional envolvendo 496 indivíduos de uma cidade da América do Norte, LEVIN et al.18 observaram que a dor oncológica foi imaginada como muito intensa ou extremamente dolorosa por 48% dos entrevistados. Deles, 72% concordava com a frase "a dor no câncer pode se tornar tão forte que a pessoa pode considerar a interromper a vida a prolongar o tratamento". Mais de 50% da população demonstrou preocupação com os conceitos de tolerância e dependência psicológica aos opiáceos. Maior compreensão acerca do tema, em nosso meio, poderá contribuir para melhorar a avaliação e o controle da dor, além de fornecer subsídios para o desenvolvimento de ações educativas que envolvam doentes e profissionais acerca destas questões, tendo como base a realidade de nosso pais.

FERRELL et al.9,11 elaboraram questionário para avaliar o conhecimento do doente acerca de dor oncológica e sua analgesia. O instrumento possui índices de confiabilidade e validade estabelecidos, permite a quantificação do conhecimento e a busca de relações entre este e o controle da dor. É composto por 8 assertivas e visou a identificar a opinião dos doentes sobre as questões: a dor pode ser aliviada; os remédios só devem ser tomados em casos de dores intensas; com tempo, o vício é inevitável; deve-se tomar a menor dose possível para deixar altas doses para o futuro (tolerância); utilizar analgésicos de rotina é melhor do que só quando há dor; as intervenções não farmacológicas são efetivas; analgésicos são perigosos pelos efeitos colaterais. A 8ª assertiva avaliou a percepção de que os doentes são medicados em excesso. A nota máxima para cada assertiva foi 10 e o total de pontos 80. O conhecimento sobre dor oncológica e analgesia foi muito baixo. Os doentes do presente estudo acreditavam que: deve-se tomar a menor quantidade possível de remédios para deixar altas doses para o futuro quando a dor é pior (assertiva 4; média=2,5), que analgésicos só devem ser tomados quando a dor é muito forte (assertiva 2; média= 3,6) e que os remédios para dor são perigosos (assertiva 7; média=3,7). A crença de que os indivíduos com câncer que tomam remédios para dor ficam viciados, foi também muito importante (assertiva 3; média= 4,8). Encontrou-se correlação negativa, estatisticamente significante, entre a intensidade de dor e as assertivas 1 e 8. Isto é, as menores notas relativas ao conhecimento sobre dor e analgesia correlacionaram-se à maior intensidade de dor. Por que não se encontraram correlações com as demais assertivas? Possivelmente o desempenho dos doentes foi tão homogêneo nestas assertivas, que não houve possibilidade de se testar como diferentes níveis de conhecimento correlacionar-se-iam com a intensidade dolorosa.

Comparando-se os resultados obtidos neste trabalho com os encontrados por FERRELL13 em 81 idosos com câncer em tratamento domiciliar, nota-se que, em ambos os estudos, os doentes. apresentaram conhecimento e atitude inferior ao desejável. Os valores obtidos foram: escore total de 42,9 na investigação desenvolvida por FERRELL13 e 40,5 no presente estudo.

Quadro 3


Há muita semelhança em relação aos dados obtidos neste estudo e os encontrados por FERRELL e isto causa estranheza. O estudo de FERRELL13 envolveu doentes idosos do primeiro mundo. Embora o perfil sócio-econômico dos doentes não tenha sido avaliado, é provável que apresentasse padrão superior ao dos doentes do presente estudo. Os doentes por nós analisados, apresentaram características de escolaridade e de renda per capita próprias de países em desenvolvimento, onde preocupação com o melhor controle da dor no câncer é muito recente e tímida, haja visto o pequeno número de publicações acerca do tema, em nosso meio. Além disso, em nosso país, não se conhecem programas educativos dirigidos à população acerca destas questões. Nos Estados Unidos da América, o esforço para o controle da dor oncológica é mais antigo e, pelo número de publicações sobre o tema nota-se que o interesse é muito maior. Há folhetos educativos sobre dor oncológica para leigos, editados por agências nacionais americanas e com distribuição gratuita2,3. Assim, estranha-se que o nível de informação seja tão parecido entre doentes potencialmente tão diversos. No entanto, por serem idosos, possivelmente, tenham convivido no passado, com conceitos e valores relativos a câncer e dor semelhantes aos vivenciados pelos doentes avaliados durante a execução cia presente pesquisa. FERRELL et al.10 aplicaram o mesmo instrumento em pais de crianças com dor oncológica. Observaram escore total de 69,9, que é satisfatório e marcadamente superior ao encontrado no presente estudo e ao obtido com a população de idosos.

Analisando-se a existência de possíveis relações entre a intensidade da dor e o conhecimento e a atitude sobre dor oncológica e analgesia encontrou-se correlação negativa, estatisticamente significante, entre a crença de que a dor pode realmente ser controlada (assertiva 1) e intensidade da dor. Também encontrou-se correlação negativa, estatisticamente significante, entre percepção de que os doentes tomam remédios em demasia e a intensidade da dor (assertiva 8). Estas correlações negativas indicaram que, quanto menor o conhecimento sobre dor oncológica e analgesia, maior a intensidade da dor. A confirmação da hipótese de que as opiniões e a percepção do doente sobre seu tratamento repercutem na vivência do quadro doloroso, são de extrema importância para subsidiar a atuação educativa, visando a melhorar o controle da dor. Fornece, também, importante contribuição para estudos acerca dos fatores que interferem no controle do sintoma álgico.

Há, na literatura, referências de que informações errôneas, medos infundados dos doentes sobre os efeitos colaterais dos analgésicos, medo do desenvolvimento de tolerância e de habituação ao fármaco e inevitabilidade da dor oncológica, são freqüentes entre os doentes com dor e câncer e que estes conceitos podem, muitas vezes, interferir desfavoravelmente na resposta aos regimes terapêuticos, mesmo que adequadamente propostos4,5,8,17. No presente trabalho, encontraram-se as correlações que outros autores supunham existir. JONES et al.17 observaram que 20% dos 82 doentes estudados tinha preocupação, a de moderada a elevada, com o desenvolvimento de dependência psicológica e 23% apresentava preocupação com a tolerância medicamentosa. Encontraram correlação positiva entre a intensidade da dor e a preocupação com desenvolvimento de tolerância. Este achado é único na literatura. Não encontraram correlação entre a intensidade da dor e o nível de instrução e a idade dos doentes, a potência do analgésico prescrito e o regime de uso. AUSTIN et al. 4, em estudo que envolveu 96 doentes domiciliares, investigaram a existência de correlações entre o controle da dor e a idade, o parentesco da pessoa responsável pelo cuidado ao doente, o local do câncer e a adesão ao regime analgésico. Observaram correlação entre o local do tumor e o controle do sintoma álgico: os doentes com tumores gênito-urinários foram os que obtiveram melhor controle da dor. FERRELL; SCHENEIDER8 entrevistando 103 doentes em tratamento domiciliar, observaram que, em 83% dos doentes, as medicações foram utilizadas menos freqüentemente que o recomendado. Em doentes internados em hospitais, isto ocorreu em 60% dos casos. As razões apontadas para a baixa adesão ao tratamento foram: sensação de que a dor não poderia ser tratada, medo de viciar, ocorrência de tolerância e confusão com as doses.

A família exerce papel chave no cuidado ao doente em casa. As atitudes dos familiares sobre dor a e analgesia influem no manejo do quadro álgico. É a família que decide o que dar e quando dar. Foi a observado que a família tem dúvidas sobre o conceito de administrar os remédios antes que a dor apareça, tem medo de que o doente fique viciado e sente que é sua obrigação evitar que isto aconteça. Assim, os familiares escondem os remédios e tentam limitar a quantidade da medicação utilizada11,12 LEVIN et al.18, em investigação acerca da atitude do público sobre o controle da dor no câncer, que envolveu 496 indivíduos de uma população, observou que 58% dos indivíduos entrevistados disse temer os efeitos de confusão mental, 56% receava desenvolver tolerância e 45% preocupava-se em ficar dependente psicologicamente, caso tivesse que tomar opiáceos.

No presente trabalho, encontrou-se que grande parte dos doentes entendia a dor no câncer como incontrolável e que esta seria, fatalmente, muito mais intensa nas fases finais da evolução da doença oncológica. Julgavam que os remédios utilizados para controlá-la eram muito fortes e perigosos. Observou-se, também, o quanto é arraigada, entre os doentes, a concepção de que analgésico só se usa quando há dor intensa. Estes conceitos errôneos parecem existir em todo o mundo, mas talvez sejam mais freqüentes em nosso meio. HA concepção popular, muito difundida, a respeito da impossibilidade de controle da dor na doença oncológica. Estas crenças, possivelmente, estão vinculadas ao que foi o controle da dor neoplásica até poucas décadas atrás, quando não se dispunha de conhecimentos e métodos adequados para seu alívio e a morfina era vista como a última e terrível alternativa de que se podia fazer uso e imbolizava estar o doente moribundo. Possivelmente ainda são estas as concepções vigentes na população, e estes conceitos foram identificados no presente estudo.

Dor é um fenômeno multidimensional. Sua avaliação e controle devem abranger esta multi-dimensionalidade. Na presente pesquisa, identificou-se que crenças errôneas correlacionaram-se à dor de maior intensidade. O presente estudo, possivelmente o primeiro em nosso meio com essas características, presta contribuição à área de conhecimento sobre a dor no câncer por analisar aspectos culturais que compõem sua expressão.

6 Conclusões

Na busca de possíveis relações entre a intensidade da dor e variáveis culturais, constatou-se correlação negativa entre a intensidade da dor e baixos escores obtidos pelo doente no questionário sobre conhecimento relativo a dor oncológica e analgesia. Os doentes que expressaram concepções como as de que a dor no câncer não pode ser controlada e de que recebiam remédios em demasia, relataram dores mais intensas. Doentes, com mais altos escores (conhecimento mais adequado), experienciaram dor de menor intensidade. A confirmação de que as opiniões e a percepção do doente se associam à vivência do quadro doloroso são de extrema importância para subsidiar a atuação educativa junto à população e contribuem para maior compreensão de que fatores cognitivos estão presentes na vivência do sintoma álgico.

7 Referências Bibliográficas

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Mar 2010
  • Data do Fascículo
    Ago 1998
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