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Percepções dos profissionais da atenção primária à saúde sobre a violência contra mulher

RESUMO

Objetivo:

Identificar a percepção dos profissionais que trabalham na Atenção Primária à Saúde acerca da Violência Contra Mulher.

Método:

Pesquisa qualitativa, exploratória, descritiva, desenvolvida com 23 profissionais de saúde que atuam em três Centros de Saúde da Cidade da Praia, Cabo Verde, África. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas, por videoconferência, no período de novembro a dezembro de 2020. Os dados foram submetidos à análise de conteúdo na modalidade temática.

Resultados:

Foram identificadas três categorias: a violência contra a mulher circunscrita a agressão física; a violência como um fenômeno decorrente da dependência econômica; e a culpabilização da vítima pela situação de violência.

Conclusão:

A visão reducionista da violência delimitada ao dano físico, associada a fatores econômicos e culpabilização da vítima, ajuda a desvendar as percepções que embasam as práticas dos profissionais da saúde com mulheres vítimas de violência e serve de subsídios para o planejamento da necessária educação continuada nos serviços de Atenção Primária à Saúde.

DESCRITORES
Violência; Violência contra mulher; Profissionais de saúde; Saúde da mulher; Enfermagem Forense

Abstract

Objective:

To identify the perceptions of Primary Health Care workers regarding Violence Against Women.

Method:

Qualitative, exploratory, descriptive study addressing 23 health professionals working in three Health Centers in Praia, Cape Verde, Africa. Semi-structured interviews were held via videoconference in November and December 2020. Data were treated according to thematic analysis.

Results:

Three categories emerged: violence against women restricted to physical aggression; violence as a phenomenon resulting from financial dependency; and victim blaming.

Conclusion:

The reductionist view of violence, as limited to physical harm, associated with financial dependency and victim blaming helps to unveil perceptions that ground the practice of health workers with women victims of violence and can support the planning of continuous education provided in Primary Health Care services.

DESCRIPTORS
Violence; Violence against women; Health Personnel; Women’s health; Forensic Nursing

RESUMEN

Objetivo:

identificar la percepción de los profesionales, que trabajan en la Atención Primaria de la Salud, acerca de la Violencia Contra la Mujer.

Método:

investigación cualitativa, exploratoria y descriptiva, desarrollada en 23 profesionales de la salud, que actuaban en tres Centros de Salud en la Ciudad de Praia, Cabo Verde, África. Fueron realizadas entrevistas semiestructuradas, por video conferencia, en el período de noviembre a diciembre de 2020. Los datos fueron sometidos al análisis de contenido en la modalidad de la temática.

Resultados:

fueron identificadas tres categorías: la violencia contra la mujer circunscrita a la agresión física; la violencia como un fenómeno proveniente de la dependencia económica; y el sentimiento de culpa de la víctima por la situación de violencia.

Conclusión:

la visión reduccionista de la violencia limitada al daño físico, asociada a factores económicos y al sentimiento de culpa de la víctima, ayuda a revelar las percepciones en que se basan las prácticas de los profesionales de la salud con mujeres víctimas de violencia y sirve para auxiliar la planificación de la educación necesaria y continuada, en los servicios de Atención Primaria a la Salud.

DESCRIPTORES
Violencia; Violencia contra la mujer; Personal de Salud; Salud de la mujer; Enfermería Forense

INTRODUÇÃO

A violência contra a mulher (VCM) é um fenômeno presente na história desde a antiguidade, constituindo-se uma preocupação em nível global tanto pela sua magnitude quanto suas consequências na vida dos indivíduos, famílias e comunidades. Trata-se de uma violação dos direitos humanos, classificada como importante problema de saúde pública, considerada como prioridade nas políticas públicas de diversos países e integrada nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável(11. Organização Mundial da Saúde. Relatório sobre a Prevenção da Violência 2014 – Trad. [Internet]. São Paulo: Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo; 2015. [cited 2021 Aug 03]. Available from: https://nev.prp.usp.br/wp-content/uploads/2015/11/1579-VIP-Main-report-Pt-Br-26-10-2015.pdf
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).

Dados epidemiológicos apontam que 30% das mulheres ao redor do mundo já foram vítimas de violência física ou sexual praticada pelo parceiro íntimo(11. Organização Mundial da Saúde. Relatório sobre a Prevenção da Violência 2014 – Trad. [Internet]. São Paulo: Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo; 2015. [cited 2021 Aug 03]. Available from: https://nev.prp.usp.br/wp-content/uploads/2015/11/1579-VIP-Main-report-Pt-Br-26-10-2015.pdf
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). O mesmo documento aponta que no sudeste asiático as taxas são mais elevadas (37,7%), seguido do Mediterrâneo Oriental, com 36,6%. O continente africano ocupa o terceiro lugar (36,6%), evidenciando que, apesar de inúmeros esforços internacionais, regionais e locais sob a forma de convenções, tratados e outras medidas adotadas, a violência contra mulher configura-se, ainda, como um fenômeno recorrente e persistente(11. Organização Mundial da Saúde. Relatório sobre a Prevenção da Violência 2014 – Trad. [Internet]. São Paulo: Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo; 2015. [cited 2021 Aug 03]. Available from: https://nev.prp.usp.br/wp-content/uploads/2015/11/1579-VIP-Main-report-Pt-Br-26-10-2015.pdf
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).

Em Cabo Verde, África, onde este estudo foi desenvolvido, dados estatísticos de 2005 mostram que, a partir dos 15 anos, mais de uma cabo-verdiana em cada cinco foi vítima de uma ou várias formas de violência praticada pelo parceiro íntimo. Em 2015, na cidade da Praia, capital do país, a taxa era de 42,5% e a partir de 2018 o feminicídio passou a ser notícia frequente nos meios de comunicação em nível nacional(22. Lima RW, Gonçalves ML, Silva C. Estudo sobre o feminicídio, as práticas sociais e institucionais na abordagem dos casos de VBG em Cabo Verde. Relatório Final. Praia: Instituto Cabo-verdiano para a Igualdade e Equidade de Género; 2020.).

Independentemente do contexto em que ocorre, evidências na literatura internacional descrevem a VCM como um fenômeno de caráter social, histórico e multifatorial que impacta negativamente na saúde e qualidade de vida das mulheres vitimizadas, comprometendo suas relações sociais e trazendo consequências para o sistema de saúde. Somam-se os custos econômicos associados à necessidade de tratamentos e internações em serviços de saúde mental e emergencial, além da necessidade de apoio social e judicial, visto que as vítimas são mais propensas a períodos de desemprego, absenteísmo e perda de produtividade devido a fatores como incapacitação a longo prazo(11. Organização Mundial da Saúde. Relatório sobre a Prevenção da Violência 2014 – Trad. [Internet]. São Paulo: Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo; 2015. [cited 2021 Aug 03]. Available from: https://nev.prp.usp.br/wp-content/uploads/2015/11/1579-VIP-Main-report-Pt-Br-26-10-2015.pdf
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,33. Potter LC, Morris R, Hegarty K, García-Moreno C, Feder G. Categories and health impacts of intimate partner violence in the World Health Organization multi-country study on women’s health and domestic violence. Int J Epidemiol. 2021;50(2):652-62. DOI: https://dx.doi.org/10.1093/ije/dyaa220
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).

Diante desse cenário, a Atenção Primária à Saúde – APS posiciona-se como ponto estratégico para a prevenção, identificação, notificação, assistência às vítimas e coordenação do cuidado. Da mesma forma, favorece a articulação entre os setores da saúde, educação, assistência social e justiça, além de reunir as condições para prestar cuidados, levando em consideração os fatores socioeconômicos, culturais, familiares, comunitários, individuais e de gênero, estruturantes da sociedade na atenção integral à saúde(44. Mendonça CS, Machado DF, Almeida MAS, Castanheira ERL. Violence and Primary Health Care in Brazil: an integrative literature review. Cienc Saude Colet. 2020;25(6):2247-57. DOI: https://dx.doi.org/10.1590/1413-81232020256.19332018
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55. García-Moreno C, Hegarty K, d’Oliveira AF, Koziol-McLain J, Colombini M, Feder G. The health-systems response to violence against women. Lancet. 2015;385:9977. DOI: https://dx.doi.org/10.1016/S0140-6736(14)61837-7
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).

A inserção da APS nos territórios favorece o diálogo horizontal e dinâmico com os usuários, assim como relações duradouras. A proximidade com o usuário e a existência de programas específicos relativos à saúde da mulher também potencializam as oportunidades para os profissionais identificarem e agirem nas situações de violência. Apesar dessas características e da elevada prevalência de mulheres em situação de violência usuárias desses serviços, as taxas de detecção são baixas e, por diversas razões, os profissionais da saúde têm dificuldades para atuar nessas situações(44. Mendonça CS, Machado DF, Almeida MAS, Castanheira ERL. Violence and Primary Health Care in Brazil: an integrative literature review. Cienc Saude Colet. 2020;25(6):2247-57. DOI: https://dx.doi.org/10.1590/1413-81232020256.19332018
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,66. Rosa DOA, Ramos RCS, Gomes TMV, Melo EM, Melo VH. Violência provocada pelo parceiro íntimo entre usuárias da Atenção Primária à Saúde: prevalência e fatores associados. Saúde em Debate. 2018;42(Spe 4):67-80. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/0103-11042018s405
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).

Dentre essas razões, destacam-se: as concepções, os princípios e os valores dos profissionais, em muitos casos construídos no interior de uma cultura impregnada por normas sociais e institucionais que discriminam a mulher e consideram a violência como um problema restrito à família; o medo de sofrer represálias por parte do agressor, que leva os profissionais à omissão, o silêncio e a não assumirem a responsabilidade pela notificação, mesmo sendo esta uma obrigatoriedade; e a inexistência de programas regulares de capacitação específica nos serviços. Nesse contexto, as práticas profissionais desenvolvidas são predominantemente de natureza discriminatória e fragmentada, com intervenções pautadas no caráter essencialmente clínico, sem contemplar plenamente a complexidade dessa situação(77. Pokharel B, Hegadoren K, Papathanassoglou E. Factors influencing silencing of women who experience intimate partner violence: An integrative review. Aggress Violent Behav. 2020;52:101422. DOI: https://dx.doi.org/10.1016/j.avb.2020.101422
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).

Considerando que a prática dos profissionais com mulheres vítimas de violência é moldada pelas percepções que eles têm acerca desse problema e que estas são resultantes da interação de diversos fatores, este estudo foi desenvolvido tendo por base a Teoria Bioecológica do Desenvolvimento Humano, em particular a noção de contexto integrada nessa teoria. Tal noção se refere às interações vivenciadas pelas pessoas em diferentes ambientes, desde o micro contexto familiar até o macro contexto, em que se configuram as normas, os valores culturais e os papéis de gênero apreendidos no processo de socialização(88. Bronfenbrenner U, Morris PA. The ecology of developmental processes. In: Damon W, Lerner RM, editors. Handbook of child psychology: Theoretical models of human development. Hoboken: John Wiley & Sons; 1998. p. 993-1028.). Ademais, essa estrutura teórica possibilita examinar com maior profundidade fenômenos multidimensionais como a VCM.

Considera-se, portanto, que essa referência permite melhor compreender como os profissionais percebem as mulheres vítimas de violência e, consequentemente, a forma como se posicionam quando se deparam com tais situações. Sendo assim, elege-se como objetivo deste estudo identificar a percepção dos profissionais da Atenção Primária à Saúde acerca da violência contra mulher, esperando contribuir para qualificar a assistência nesses serviços às mulheres vítimas.

MÉTODO

Tipo de Estudo

Trata-se de um estudo exploratório, descritivo, de abordagem qualitativa.

População

Participaram do estudo 23 profissionais da saúde, todas do sexo feminino, na faixa etária entre 24 e 55 anos. Dentre estas, havia 12 enfermeiras; quatro (4) médicas; quatro (4) assistentes sociais; duas (2) psicólogas clínicas; e uma (1) enfermeira, que também é neuropsicóloga. Cabe destacar que as equipes dos Centros de Saúde que sediaram a coleta de dados são compostas predominantemente por mulheres, o que explica a predominância do sexo feminino na composição da amostra.

Local

O cenário do estudo incluiu três Centros de Saúde (CS) da APS da Cidade da Praia, Ilha de Santiago – Cabo Verde, África. Os CS são instituições municipais que prestam cuidados primários de saúde à população de sua área geográfica de abrangência, cuja população varia entre sete mil e vinte mil habitantes(99. Cabo Verde. Ministério da Saúde. Atenção Primária: Centros de Saúde [Internet]. Praia; 2021. [cited 2021 Mar 07] Available from: https://www.minsaude.gov.cv/index.php
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). Possuem equipes multidisciplinares, dirigidas por um médico. Asseguram a oferta de cuidados nas áreas da assistência pré-natal, consultas de puericultura, assistência aos doentes crônicos, planejamento familiar, consultas de clínico geral, consultas de enfermagem, psicologia, saúde do adolescente, fisioterapia, estomatologia e outras especialidades, como dermatologia, nutrição e pediatria(99. Cabo Verde. Ministério da Saúde. Atenção Primária: Centros de Saúde [Internet]. Praia; 2021. [cited 2021 Mar 07] Available from: https://www.minsaude.gov.cv/index.php
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).

A escolha desses serviços deve-se ao fato de estarem inseridos em localidades que apresentam os maiores índices de denúncias de VCM, além de concentrarem grande parte das estruturas sociais envolvidas no enfrentamento do problema, sendo estas próximas dos serviços da APS.

Critérios de Seleção

Foram incluídas no estudo profissionais vinculadas aos serviços por no mínimo seis meses, excluindo aquelas que no período de coleta de dados estavam em férias, licença de maternidade ou afastadas por outros motivos.

Coleta dos Dados

Os dados foram coletados pela primeira autora, enfermeira de formação, durante os meses de novembro e dezembro de 2020, por meio de entrevistas semiestruturadas realizadas por videoconferência entre Brasil e Cabo Verde, recebendo o suporte técnico de duas auxiliares de pesquisa em Cabo Verde, local de origem dos dados. Todos os autores do estudo são integrantes do Grupo de Estudos e Pesquisa de Família, Enfermagem e Saúde – GEPEFES, que têm como um de seus eixos temáticos a violência na família.

O roteiro que orientou as entrevistas abordou inicialmente as características sociodemográficas. Em seguida buscou respostas aos objetivos com as questões norteadoras: “Para você, o que é a violência contra a mulher?”, “Que indícios levam você a suspeitar que uma mulher seja vítima de violência?”, “Na sua opinião, quais as razões que levam uma mulher a manter um relacionamento com um companheiro agressivo?” e “Na sua opinião, quais serviços ou locais são mais apropriados para prestar cuidados às mulheres em situação de violência e por quê?”

O primeiro contato com as participantes ocorreu em 2020, momento em que foram explicados os objetivos da pesquisa e os procedimentos que seriam utilizados para coleta dos dados. As entrevistas foram agendadas previamente e realizadas individualmente, com a participante em uma sala reservada no próprio serviço ou no domicílio, com duração média de 50 minutos. Foram gravadas e posteriormente transcritas na íntegra.

Análise e Tratamento dos Dados

Os dados foram organizados e submetidos à análise de conteúdo na modalidade temática seguindo as etapas propostas por Minayo(1010. Minayo MCS. Pesquisa Social, Teoria, método e criatividade. 6ª ed. Petrópolis: Vozes; 2013.): leitura compreensiva e exaustiva; exploração do material; e tratamento e interpretação dos dados. Primeiramente foi realizada a leitura de cada uma das entrevistas, procurando-se identificar, no discurso das profissionais, os elementos indicativos das percepções sobre o fenômeno em estudo. Em seguida buscaram-se as similaridades e divergências nos conteúdos expressos nos discursos, que foram aglutinadas em categorias mais amplas, de acordo com os objetivos da pesquisa. Posteriormente foram geradas as categorias definitivas, estabelecendo-se seus elementos definidores. Na sequência, procedeu-se à interpretação dos dados, tendo por referência a Teoria Bioecológica do Desenvolvimento Humano(88. Bronfenbrenner U, Morris PA. The ecology of developmental processes. In: Damon W, Lerner RM, editors. Handbook of child psychology: Theoretical models of human development. Hoboken: John Wiley & Sons; 1998. p. 993-1028.). Essa estrutura teórica possibilitou estabelecer nexos entre a forma como as profissionais percebem as mulheres vítimas de violência e fatores contextuais, incluindo sociais, econômicos e culturais.

Aspectos Éticos

O estudo recebeu uma certificação do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande, CAAE no 37161420.2.0000.5324, e do Comitê Nacional de Ética em Pesquisa Para a Saúde do Ministério de Saúde e Segurança Social de Cabo Verde, deliberação no 59/2020. Foram respeitados todos os preceitos éticos das Resoluções no 466/2012 e no 510/2016 de pesquisas envolvendo seres humanos(1111. Brasil. Ministério de Saúde. Resolução n. 466, de 11 e 12 dezembro de 2012. Dispõe sobre as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisa envolvendo seres humanos [Internet]. Brasília; 2012 [cited 2020 Aug 12]. Available from: https://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2012/Reso466.pdf
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1212. Brasil. Ministério de Saúde. Resolução n. 510 de 07 de abril de 2016. Dispõe sobre as normas aplicáveis a pesquisas em Ciências Sociais e Humanas [Internet]. Brasília; 2016 [cited 2020 Aug 12]. Available from: http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2016/Reso510.pdf
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). Para preservar o anonimato das falas das participantes, foi utilizado um código formado pela letra P seguido de um algarismo que indica a ordem de realização das entrevistas (P1, P2, P3…P23).

RESULTADOS

A Violência Contra A Mulher Circunscrita À Agressão Física

O discurso da maioria das participantes revela uma visão da violência contra a mulher associada sobretudo ao ato de agredir e controlar a mulher, ignorando outras formas de manifestação, como a violência psicológica. A violência física foi predominantemente referida como mais fácil de ser reconhecida e resolvida, sendo que a intervenção está centrada no tratamento das lesões corporais. Trata-se de uma percepção restrita da violência contra a mulher, que condiciona seu reconhecimento e intervenção às evidências de danos corporais e, de certa forma, isenta o profissional de investigar outras queixas comuns que se apresentam na APS, mascarando outras formas de violência.

Uma mulher dá entrada com um simples quadro de diarreia, efetuamos os exames; se reparamos que ela tem um hematoma, tentamos identificar a causa, mas se ela não apresentar nenhum sinal, muitas vezes, isso passa-nos despercebido (P9).

Atenderam uma jovem no serviço, ela tinha um sinal visível de agressão; de imediato, me chamaram, fiz o acolhimento e ofereci apoio; geralmente é o procedimento que oferecemos (P4).

Embora o discurso relativo às intervenções fosse limitado, as participantes mostraram-se sensíveis e revoltadas quando relatavam os casos de agressão física contra as mulheres, evidenciando sentimento de solidariedade com as vítimas. Esse engajamento não foi observado em relação a outras modalidades de violência contra a mulher. Nesses casos, consideram que a responsabilidade pelas ações a serem implementadas cabe a outros setores da rede.

É uma situação muito triste, me sensibilizo muito com essas situações, pois sou mulher, gosto da minha liberdade e autonomia. É difícil aceitar que existem mulheres que ainda sofrem agressões (P8).

É gritante, saber que existem mulheres que vivem privadas da sua autonomia e são agredidas; é preciso fazer justiça (P17).

Fiquei revoltada; ela estava muito machucada, fiz o curativo e encaminhei (P10).

As participantes P5, P6, P7 e P12 referem que, por ser um serviço de APS localizado na comunidade, muitas vezes conhecem os casos das mulheres que são agredidas pelos parceiros. Acrescentaram ainda que os próprios membros da comunidade, por vezes, comunicam esses casos. Contudo, as profissionais nem sempre atuam nessas situações por medo de serem reconhecidas ou porque a mulher tem receio de fazer a denúncia.

Uma mulher veio no serviço, comentou que a vizinha é agredida pelo parceiro; fiz a busca ativa, mas não quis entrar em detalhes com ela na sua casa, pois o seu parceiro é muito agressivo. Pedi que ela me procurasse no serviço; ela veio, mas não aceitou fazer a denúncia … (P5).

Atendi uma mulher com um corte na cabeça, já sabia que era agredida; ela disse que foi um acidente… Dias depois, ela voltou e disse que o marido pediu desculpas e fez a compra do mês, solicitou que eu não comentasse com ninguém (P16).

O medo manifestado pelas profissionais acrescido da percepção da violência contra mulher circunscrita à violência física pode dificultar ações preventivas e protetoras às mulheres na comunidade, ocasionando a omissão de cuidados, além de falha na comunicação da rede de enfrentamento.

A Violência Como um Fenômeno Decorrente de Dependência Econômica

As profissionais de saúde foram unânimes ao associar a permanência das mulheres na situação de violência ao fator econômico. Essa abordagem foi apontada como sendo uma das causas que modela as suas intervenções nos serviços de saúde ao considerarem que nem sempre vão conseguir resolver a questão econômica dessas mulheres.

Segundo os relatos das participantes, esse fenômeno evidencia-se em três modalidades. Uma está relacionada à dependência financeira total do companheiro que, geralmente, é o provedor do lar. Nessa condição, a mulher, com receio de não ter meio de subsistência e deixar os filhos desamparados, vai se acomodando com a situação. A segunda está associada ao emprego e salário precário, pois muitas delas trabalham informalmente e dependem do salário do companheiro para complementar a renda familiar e suprir as necessidades básicas dos filhos e delas próprias. A terceira refere-se às situações em que o companheiro é o controlador do dinheiro dessas mulheres, que ficam completamente dependentes deles.

Ela não trabalha, precisa do dinheiro do marido para o sustento dos filhos; para evitar que os filhos passem fome, ela fica na relação (P23).

Embora atualmente as mulheres estejam mais empoderadas, ainda em muitas famílias, os homens são os provedores do recurso financeiro, permitindo que tenham certo acréscimo de poder sobre elas (P9).

Tem um caso marcante de uma jovem de 26 anos que o marido não trabalha. Ela é a provedora do lar; contudo, o marido gasta parte do rendimento em bares com os amigos, bebendo e, quando volta para casa, bate na esposa (P20).

As participantes P8, P15, P17 e P19 apontam que a dependência econômica é um elo muito complexo. As participantes referem que, na tentativa de ajudarem essas mulheres, as encaminham para entidades sociais que podem fornecer os suprimentos básicos de alimentação, higiene e transporte. Entretanto, esse processo, muitas vezes, é moroso e as mulheres optam por continuar com os companheiros como meio de subsistência para elas e os filhos.

Algumas dessas mulheres vêm em busca de soluções, apontam que o apoio financeiro poderia ajudá-las a sair daquela situação; mas aqui não damos esse tipo de apoio, temos a assistente social, mas isso não funciona, esse é um apoio pontual (…) e ela acaba desistindo (P15).

Nesse contexto, evidencia-se que as profissionais de saúde acreditam que a questão econômica, além de ser um determinante para a permanência dessas mulheres na situação de violência quando os serviços não respondem prontamente às suas expectativas, contribui para que elas permaneçam mais tempo na relação abusiva.

A Culpabilização da Vítima Pela Situação de Violência

No discurso das participantes P1, P2, P3, P4, P5, P7, P8, P14, P18 e P21, constata-se que, na percepção dessas profissionais, a mulher é responsabilizada pela situação de violência em que se encontra porque manifesta certos comportamentos como passividade ou ingesta de bebidas alcoólicas. Dessa forma, cabe a ela tomar a iniciativa para modificar sua condição. É, portanto, um discurso que repassa as responsabilidades para a mulher e, ao mesmo tempo, isenta o profissional de se empenhar em ações de proteção e prevenção que lhe competem.

Além de sofrer agressão do parceiro, ela é alcoólatra; após a notificação, fizemos um planejamento para ajudá-la, organizamos toda uma estrutura, e ela nunca mais voltou, simplesmente desistiu. É difícil trabalhar com um usuário de álcool (P4).

A mulher também não ajuda; fiz todo um trabalho de encaminhamento, dias depois fui fazer uma visita domiciliar à comunidade e encontrei-a com o marido; é complicado (P18).

Às vezes, a mulher leva muito tempo para falar; estava sofrendo maus tratos do companheiro; com o tempo, ela ganhou confiança e falou, fizemos o encaminhamento, depois ela veio cá e nos disse que já resolveu com o seu marido. Na sua fala, eu soube que voltaria a acontecer, era questão de tempo, mas ela voltou (P19).

Quando questionadas sobre as intervenções em outros tipos de violência além da física, nomeadamente a psicológica e patrimonial, as participantes relataram que depende da mulher reconhecer-se como vítima e lhes relatar o fato para que possam planejar suas ações. Mesmo assim, as participantes referem que não estão preparadas para atender esses casos e que, nessas situações, encaminham as mulheres para outros serviços devido às suas limitações ou porque esses casos não são da sua competência.

Primeiro, é preciso que a mulher tenha a noção que ela está a sofrer violência psicológica; quando notificada, é tentar orientá-la para o acompanhamento psicológico ou no sentido de procurar apoio jurista (P2).

Tentamos trabalhar através do psicólogo, tentamos de tudo, mas era uma paciente extremamente difícil para mudar a mentalidade, porque ela achava normal (P14).

A mulher precisa aceitar o cuidado; mesmo que eu intervenha, ela tem que me permitir, deixar fluir dentro dela e, assim, conseguir sair desse ciclo de violência (P1).

Ao serem indagadas sobre como as mulheres acessam os serviços da APS, as participantes dizem que, quando se trata de violência física, as mulheres geralmente procuram o serviço ou são encaminhadas pela polícia para o tratamento da lesão. Acrescentam ainda que, nos serviços policiais, as mulheres podem eventualmente ser atendidas por agentes com uma visão culturalmente machista que naturaliza a VCM, solicitando que se reconciliem com o companheiro. Ademais, apontam que essas mulheres geralmente são encaminhadas à APS em caso de lesão física, o que, no seu entendimento, dificulta o acolhimento a essas mulheres.

O próprio agente policial que atende a mulher pode atenuar a gravidade da situação quando considera que é normal (…) em diversas situações as mulheres verbalizaram que já foram aconselhadas nesses serviços a voltar para casa e reconciliar-se com o marido (…) Isso pode fazer com que elas desistam porque não reconhecem nesses agentes a proteção de que precisam (P8).

Nas falas das participantes, evidencia-se a influência de fatores culturais e sociais muitas vezes tão enraizados que desafiam suas competências e recursos para manejar adequadamente a situação.

DISCUSSÃO

Os conteúdos enunciados retratam o modo como as profissionais percebem o fenômeno. Embora as participantes sejam de diferentes áreas de atuação, níveis e tempo de formação, suas concepções sobre a VCM aproximam-se, predominando a violência física dentre as diferentes formas de manifestação da violência. Os conhecimentos apresentados sobre as outras vertentes da VCM eram mais superficiais e de resposta pontual. Resultados similares foram observados em estudo realizado no Brasil, apontando uma maior necessidade de preparo dos profissionais, uma vez que pode comprometer o atendimento e direcionamento do processo(1313. Souza TMC, Rezende FF. Violência contra mulher: concepções e práticas de profissionais de serviços públicos. Estudos Interdisciplinares em Psicologia [Internet]. 2018;9(2):21-38. Available from: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/eip/v9n2/a03.pdf
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/eip/v9n2/a...
).

Os achados do presente estudo evidenciam que as profissionais consideram a violência como uma situação inaceitável, a qual acarreta prejuízos à sociedade. Essa percepção pode despertar no profissional a motivação para agir quando se deparar com uma mulher vítima de violência. Contudo, mostrou-se emergente uma aposta na capacitação e preparo para lidar com qualquer vertente de VCM.

De igual modo, resultados de uma revisão de pesquisas qualitativas realçaram que os sistemas de crenças que podem ser moldados pela experiência pessoal ou por estruturas ideológicas feministas e de direitos humanos definem a intenção dos profissionais em intervir quando se deparam com essa situação, apontando que a capacitação, por si só, não é garantia para um cuidado efetivo, fazendo-se também necessário trabalhar com foco para sensibilizar os profissionais em relação às suas concepções pessoais(1414. Hegarty K, McKibbin G, Hameed M, Koziol-McLain J, Feder G, Tarzia L, et al. Health practitioners’ readiness to address domestic violence and abuse: A qualitative meta-synthesis. PLoS One. 2020;15(6):e0234067. DOI: https://dx.doi.org/10.1371/journal.pone.0234067
https://dx.doi.org/10.1371/journal.pone....
).

O foco apresentado não é mudar as percepções dos profissionais, pois se mostraram enraizadas questões culturais que certamente requerem tempo. A sugestão aqui é apostar na educação permanente e com sessões que despertem nos profissionais a noção de que existem outras possibilidades de fazer a diferença na vida das mulheres vítimas de violência. Tais ações trabalham os múltiplos fatores que influenciam as percepções dos profissionais, podendo agregar na sua visão de mundo a médio e longo prazo.

Os resultados deste estudo aproximaram-se dos achados de outro realizado no Japão, segundo o qual o reconhecimento das mulheres como vítimas de violência geralmente é mais fácil quando envolve sinais físicos e as intervenções adotadas visam essencialmente o modelo curativo(1515. Lam TP, Chan HY, Piterman L, Wong MW, Sun KS, Lam KF, et al. Factors that facilitate recognition and management of domestic violence by primary care physicians in a Chinese context – a mixed methods study in Hong Kong. BMC Fam Pract. 2020;21(1):155. DOI: https://dx.doi.org/10.1186/s12875-020-01228-4
https://dx.doi.org/10.1186/s12875-020-01...
). Os autores salientam ainda que, para contornar essa realidade, as habilidades de comunicação do profissional e a continuidade do atendimento fazem-se importantes, de forma que esses indicadores possam ser reconhecidos em estágio inicial, evitando que a situação se agrave.

Como consequência de um cuidado que visa essencialmente o modelo curativo, estudos apontam que mulheres que vivenciam situações de violência ficam expostas a apresentarem pior saúde mental, uma vez que a violência provoca alterações no funcionamento estrutural e conflito psicológico, de modo que as mulheres apresentaram dificuldades em fazer mudanças significativas no cotidiano para quebrar o ciclo da violência(1616. Sharma KK, Vatsa M, Kalaivani M, Bhardwaj D. Mental health effects of domestic violence against women in Delhi: A community-based study. J Family Med Prim Care. 2019;8(7):2522-7. DOI: https://dx.doi.org/10.4103/jfmpc.jfmpc_427_19
https://dx.doi.org/10.4103/jfmpc.jfmpc_4...
1818. Both LM, Favaretto TC, Freitas LHM. Cycle of violence in women victims of domestic violence: Qualitative analysis of OPD 2 interview. Brain Behav. 2019;9(11):e01430. DOI: https://dx.doi.org/10.1002/brb3.1430
https://dx.doi.org/10.1002/brb3.1430...
). Os sintomas psicológicos experimentados, além de estarem associados à situação de violência em si, estão relacionados às reações à divulgação da situação de vitimização sem resoluções efetivas(1919. Woerner J, Wyatt J, Sullivan TP. If You Can’t Say Something Nice: A Latent Profile Analysis of Social Reactions to Intimate Partner Violence Disclosure and Associations With Mental Health Symptoms. Violence Against Women. 2019;25(10):1243-61. DOI: https://dx.doi.org/10.1177%2F1077801218811681
https://dx.doi.org/10.1177%2F10778012188...
).

Nesse contexto, o presente estudo coloca em evidência uma necessidade emergente na prática assistencial de que as profissionais atendam os sintomas psicológicos como relacionados à violência sofrida, ao mesmo tempo em que desponta certa preocupação em relação à assistência à vítima, na medida em que, apesar de se ter disponíveis profissionais para atender a essas demandas, o cuidado ofertado pode ser comprometido.

No contexto cabo-verdiano, essa situação pode estar condicionada, uma vez que a integração efetiva de cuidados, no que concerne à saúde mental, ainda é bastante desafiadora, podendo ser ainda mais problemática no diagnóstico de afecções mentais decorrentes da violência contra a mulher.

Nos resultados deste estudo, o fator econômico foi considerado como preditivo para a permanência da mulher no contexto da violência, o que se coaduna com estudos existentes que comparam a percepção dos profissionais de contextos sociais diferenciados. Por exemplo, para os profissionais de saúde e da justiça do Brasil, o fator econômico foi considerado o fator central, enquanto os profissionais da Noruega relataram a dependência emocional e as normas sociais de manter a família e não expor os filhos ao divórcio(2020. Miranda RB, Lange S. Domestic violence and social norms in Norway and Brazil: A preliminary, qualitative study of attitudes and practices of health workers and criminal justice professionals. PLoS One. 2020;15(12):e0243352. DOI: https://dx.doi.org/10.1371/journal.pone.0243352
https://dx.doi.org/10.1371/journal.pone....
). Em outra pesquisa, a dependência econômica do parceiro foi apontada como justificativa ao aconselhamento das vítimas à reconciliação com o parceiro(2121. Gashaw BT, Schei B, Solbraekke KN, Magnus JH. Ethiopian Health Care Workers’ Insights into and Responses to Intimate Partner Violence in Pregnancy – A Qualitative Study. Int J Environ Res Public Health. 2020;17(10):3745. DOI: https://dx.doi.org/10.3390/ijerph17103745
https://dx.doi.org/10.3390/ijerph1710374...
).

É nessa linha que o empoderamento econômico tem sido considerado um fator protetor contra a violência. As oportunidades econômicas de intervenções planejadas – como microcréditos e empregos criados por organizações não governamentais, educação que permite às mulheres assumir novas formas de emprego e geração de renda informal, planejamento familiar que liberou tempo para a geração de renda – constituem alguns dos mecanismos associados à redução da violência(2222. Schuler SR, Nazneen S. Does Intimate Partner Violence Decline as Women’s Empowerment becomes Normative? Perspectives of Bangladeshi Women. World Dev. 2018;101:284-92. DOI: https://dx.doi.org/10.1016/j.worlddev.2017.09.005
https://dx.doi.org/10.1016/j.worlddev.20...
).

Tais intervenções também têm sido implementadas em Cabo Verde. Nesse contexto, as mulheres estão entre as principais beneficiárias de projetos sociais que visam o empoderamento econômico, além do aumento na oferta de serviços de saúde sexual e reprodutiva; contudo, não parece que têm sido suficientes para evitar que sofram violência. Essas situações levam-nos a considerar que a questão financeira por si não é um fator protetor ou desencadeador da violência, mas um conjunto de fatores que, interligados, podem levar a tais desfechos, ocorrendo nos diversos contextos de desenvolvimento resultantes da interação entre as características biopsicológicas dos indivíduos e o tempo histórico.

O contexto cabo-verdiano possui especificidades econômicas. Embora as participantes deste estudo justificassem a permanência das mulheres em situação de violência com a dependência econômica, tal situação requer uma análise cuidadosa, se levarmos em conta que dados oficiais apontam as mulheres como a maioria das provedoras e as responsáveis pela manutenção do lar. As mulheres desempenham o papel de chefe de família por sustentar a casa e por terem o poder de gerir a vida do agregado doméstico, ao mesmo tempo que manifestam a renúncia a esse papel, de modo que estabelecem relações conjugais não porque o homem sustenta a casa, mas por sua presença no lar trazer respeito e status social(2323. Fortes, C. Casa sem homem é um navio à deriva: Cabo Verde, a monoparentalidade e o sonho de uma família nuclear e patriarcal. Anuário Antropológico. 2015. DOI: https://dx.doi.org/10.4000/aa.1425
https://dx.doi.org/10.4000/aa.1425...
).

Resultados do estudo sugerem que o papel que a mulher assume na família geralmente advém dos construtos sociais e históricos que marcaram e ainda marcam a sua trajetória. Mesmo tendo recursos para sustentar e gerir a sua vida, a figura masculina dita como ela deve se comportar, inclusive na escolha de cuidados à sua saúde. Esse é um ponto de reflexão se considerarmos que, para as mulheres que são financeiramente independentes do companheiro, estes continuam tendo um papel de controle sobre as suas vidas; quanto mais difícil deve ser para as mulheres que são dependentes financeiramente dos companheiros. Isso leva a supor que o marco determinante não é a questão de dependência financeira e sim as questões de gênero, sendo o controle econômico uma manifestação do último.

Conforme elucidado pelas participantes, sair do relacionamento é particularmente difícil, dado o aspecto cíclico da violência que impacta a habilidade das vítimas de perceber o sucesso em suas ações e que reduz a motivação para agir. Para sobreviver à relação, as mulheres tendem a superestimar os aspectos positivos e manter a esperança da mudança, apontadas como um dos fatores que determinam o tempo de permanência da mulher na relação. Assim, romper a relação abusiva envolve uma sequência de mudanças na percepção de si mesmo, do parceiro e da relação. Por conseguinte, o processo de saída só é possível por meio da combinação de fatores cognitivos, interacionais, econômicos, contextuais e sociais(2424. Dziewa A, Glowacz F. “Getting out from Intimate Partner Violence: Dynamics and Processes. A Qualitative Analysis of Female and Male Victims’ Narratives”. J Fam Violence. 2021:1-14. DOI: https://dx.doi.org/10.1007/s10896-020-00245-2
https://dx.doi.org/10.1007/s10896-020-00...
). Trata-se de uma visão que acaba atribuindo à mulher vítima da violência uma responsabilidade para a sua proteção contra a violência sofrida.

As intervenções realizadas pelas profissionais eram justificadas pelo envolvimento, disponibilidade e disposição das mulheres vítimas da violência em se envolver no processo, reconhecendo que não se constitui em tarefa fácil, principalmente em serviços extremamente setoriais e desintegrados, podendo limitar a sua atuação(2525. Carnevale S, Di Napoli I, Esposito C, Arcidiacono C, Procentese F. Children Witnessing Domestic Violence in the Voice of Health and Social Professionals Dealing with Contrasting Gender Violence. Int J Environ Res Public Health. 2020;17(12):4463. DOI: https://dx.doi.org/10.3390/ijerph17124463
https://dx.doi.org/10.3390/ijerph1712446...
).

As participantes deste estudo, apesar de reconhecerem o homem como perpetuador da violência, deixaram transparecer que a mulher é conivente com esse posicionamento, aceitando o homem agressivo como companheiro. Para as participantes, esse é um dos entraves que dificultam as suas intervenções. Similarmente, estudos observam atitudes e sentimento de impotência em relação a ações envolvendo os homens perpetradores(2626. Procentese F, Fasanelli R, Carnevale S, Esposito C, Pisapia N, Arcidiacono C, et al. Downside: The Perpetrator of Violence in the Representations of Social and Health Professionals. Int J Environ Res Public Health. 2020;17(19):7061. DOI: https://dx.doi.org/10.3390/ijerph17197061
https://dx.doi.org/10.3390/ijerph1719706...
).

Discursos que sustentam que a mulher vítima de violência é conivente com essa situação levam à indagação de se as profissionais de saúde deste estudo também partilham as normas sociais e culturais construídas que são tolerantes à violência. Essa pode ser uma situação que coloca as mulheres em maior condição de vulnerabilidade.

Os achados deste estudo colocam em evidência a assistência à mulher vítima de violência pautada no atendimento curativo e encaminhamento para outros serviços. Esses resultados são consistentes com alguns estudos em que as profissionais tendem a tratar os sintomas sem abordar a causa, pois muitas vezes não reconhecem outros fatores associados à ocorrência da situação de violência, prestando cuidados fragmentados, além de haver pouca ou mesmo nenhuma articulação com os outros setores(2727. Gear C, Koziol-Mclain J, Eppel E. Exploring sustainable primary care responses to intimate partner violence in New Zealand: Qualitative use of complexity theory. BMJ Open. 2019;9(11):e031827. DOI: https://dx.doi.org/10.1136/bmjopen-2019-031827
https://dx.doi.org/10.1136/bmjopen-2019-...
2828. Arboit J, Padoin SMM, Vieira LB. Violence against women in Primary Health Care: Potentialities and limitations to identification. Aten Primaria. 2020;52(1):14-21. DOI: https://dx.doi.org/10.1016/j.aprim.2018.09.008
https://dx.doi.org/10.1016/j.aprim.2018....
).

Este estudo foi realizado com profissionais que atuam em uma realidade específica e situada, o que limita a generalização dos achados. Além disso, participaram apenas profissionais do sexo feminino, não sendo possível compreender as percepções dos profissionais do sexo masculino.

Seria interessante abordar as perspectivas das mulheres vítimas de violência e da comunidade em que o serviço se encontra inserido. Tal integração tem o potencial de compreender a complexidade desse fenômeno, pelo que se sugere a realização de estudos com mulheres vítimas de violência usuárias desses serviços.

CONCLUSÃO

Neste estudo constatou-se uma visão reducionista da violência delimitada ao dano físico, associada a fatores econômicos e à culpabilização da mulher pela situação vivenciada, os quais embasam as práticas dos profissionais com as mulheres vítimas de violência. Constata-se também uma frágil articulação entre os serviços que integram a APS e entre os profissionais que integram as equipes dos Centros de Saúde, o que compromete a proteção das mulheres vítimas de violência e contribui para que continuem expostas, enfrentando sozinhas situações muitas vezes mutiladoras, mesmo estando na condição de usuárias de serviços que têm o dever de protegê-las.

Considera-se que os resultados deste estudo podem servir de subsídios para ações de educação continuada nos serviços de Atenção Primária à Saúde e embasar reflexões entre as equipes que atuam nesses serviços, contribuindo para qualificar a assistência às mulheres em situação de violência.

  • Apoio financeiro O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001 – Bolsa de Mestrado DS concedida a Ariana Sofia Barradas da Silva.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    08 Abr 2021
  • Aceito
    01 Dez 2021
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