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Sexualidades entre saber-poder, resistências e linhas de fuga em “Doutor Maravilha”

Sexualities between knowledge-power, resistance and escape lines on “Doutor Maravilha”

Sexualidades entre saber-poder, resistencias y líneas de fuga en “Doutor Maravilha”

Resumo:

Neste artigo, produziram-se cartografias em escritas-encontros ao percorrer a página do Instagram @DoutorMaravilha. Objetivou-se, com o aporte teórico-epistemológico, sobretudo de Michel Foucault e Gilles Deleuze, através dos conceitos de saber, poder, resistência e linhas de fuga, percorrer os territórios da página e as pedagogias por ela traçadas. Atentou-se às relações de saber-poder médico e também às fissuras instauradas pelas resistências e linhas de fuga. Percebeu-se que a página, através da divulgação científica e ao abordar temas relacionados à sexualidade, corpo, gênero, saúde, populações LGBTQIAPN+, desejo, HIV/aids e outras infecções sexualmente transmissíveis (IST), atua na capilarização das redes de saber-poder médico, mas também instaura resistências e linhas de fuga, em processos de ciberinclusão e ciberacolhimento em meio a territórios de disputas.

Palavras-chave:
educação; cartografia; HIV/aids; saúde LGBTQIAPN+; ciberinclusão

Abstract:

In this paper, cartographies were produced in writing-encounters by going through the Instagram page @DoutorMaravilha. The objective was, with the theoretical-epistemological contribution, above all, of Michel Foucault and Gilles Deleuze, through the concepts of knowledge, power, resistance and escape lines, to go through the territories of the page and the pedagogies traced by it. Attention was paid to the relations of medical knowledge-power and also to the fissures created by the resistances and escapes lines. It was noticed that the page, through scientific dissemination and by addressing topics related to sexuality, body, gender, health, LGBTQIAPN+ populations, desire, HIV/AIDS and other STI, acts in the capillarization of medical knowledge-power, but also establishes resistances and escape lines, in processes of cyber-inclusion and cyber-reception in the midst of disputed territories.

Keywords:
Education; Cartography; HIV/AIDS; LGBTQIAPN+ Health; Cyberinclusion

Resumen:

En este artículo, se produjeron cartografías en escritura-encuentros a través de la página de Instagram @DoutorMaravilha. El objetivo era, con el aporte teórico-epistemológico, sobre todo, de Michel Foucault y Gilles Deleuze, a través de los conceptos de saber, poder, resistencia y líneas de fuga, recorrer los territorios de la página y las pedagogías por ella trazadas. Se prestó atención a las relaciones de saber-poder médico y también a las fisuras creadas por las resistencias y líneas de fuga. Se percibió que la página, a través de la divulgación científica y al abordar temas relacionados con la sexualidad, el cuerpo, el género, la salud, las poblaciones LGBTQIAPN+, el deseo, el VIH/SIDA y otras ITS, actúa en la capilarización de redes de saber-poder médico, sino que también establece resistencias y líneas de fuga, en procesos de ciberinclusión y ciberrecepción entre territorios en disputa.

Palabras clave:
educación; cartografía; VIH/SIDA; salud LGBTQIAPN+; ciberinclusión

Introdução

Um barulho estridente ressoa no espaço escuro de descanso. O despertador que toca no celular rompe o que resta de silêncio no quarto e, para desligá-lo ou adiar por alguns minutos o inevitável despertar, é necessário se mover para alcançá-lo. Mais cinco, dez ou quinze minutos, talvez. Logo que se passa esse tempo de sono e repouso extra tolerado, é preciso levantar. Antes de qualquer palavra dita, antes mesmo, talvez, de se acordar, o dia começa com uma conferida nas redes sociais. Iniciamos então uma deriva pelo WhatsApp, Instagram, Facebook, Twitter (X) e Telegram. Uma pausa no Gmail para conferir se recebemos alguma informação profissional. Depois, por que não, um flerte no Tinder? Escutamos músicas em uma rádio ou plataforma digital de qualquer lugar do mundo através da internet enquanto o banho acontece e, ao tomarmos café, assistimos às notícias do país e do mundo na televisão.

Assim iniciam nossos cotidianos: permeados por tecnologias digitais. Provavelmente, esta rápida descrição do começo de um dia se assemelhe a tantas outras Brasil e mundo afora. As mídias sociais compõem hoje os nossos modos de viver e interagir. Com a pandemia de covid-19, para muitos, o isolamento social permitiu contatos, durante longos períodos, apenas pelas telas do celular e computador. Diversas relações de trabalho, antes fisicamente presenciais, migraram, exclusivamente, às telas. Dentre elas, as próprias aulas presenciais foram rapidamente - e, talvez, precipitadamente - substituídas pelo ensino remoto que, forçosamente, nos foi empurrado goela abaixo. Mas estas tantas tecnologias, redes e mídias sociais já permeavam e compunham nossa vida antes da pandemia, e assim permanecerão.

Cada uma das redes e mídias permite experiências diferentes, traz distintas possibilidades de interação e, por que não, de encontros. Também interagimos com elas de formas variadas. Mesmo que existam certos padrões, além, obviamente, dos códigos e algoritmos que guiam as formas de nos relacionarmos virtualmente, cada pessoa constrói, ao seu modo, suas possibilidades de interagir com essas tecnologias digitais. O fato é que aprendemos muito com essas mídias pelas pedagogias por elas agenciadas, pelos nossos encontros com elas. “Torna-se impossível fechar os olhos e negar-se a ver que os espaços da mídia constituem-se também como lugares de formação - ao lado da escola, da família, das instituições religiosas” (FISCHER, 2002FISCHER, Rosa Maria Bueno. “O dispositivo pedagógico da mídia: modos de educar na (e pela) TV”. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 28, n. 1, p. 151-162, 2002., p. 153). As mídias possibilitam diversas formas de educação. Rosa Maria Bueno Fischer (2002), ao dialogar com os conceitos de governo de si e governo dos outros, propostos por Foucault, afirma que a elaboração dos produtos midiáticos produz técnicas que nos levam a fazer “minuciosas operações sobre nosso corpo, sobre nossos modos de ser, sobre as atitudes a assumir” (FISCHER, 2002, p. 155). A autora propôs essas análises duas décadas atrás, ao pensar, principalmente, na televisão.

Atualmente, na segunda década do século XXI, com a tendência mundial de expansão da internet, nossos encontros com as mídias acontecem de formas distintas das quais aconteciam no começo dos anos 2000: a presença da internet e das mídias sociais e digitais, como Instagram, Facebook e Twitter (X), alteraram e expandiram nossas possibilidades de interagir midiaticamente. Com a ampliação do acesso à internet aos interiores e diferentes grupos que vêm emergindo nos últimos anos, juntamente da criação de celulares em constante mutação e, em especial, dos chamados de smartphones, produzindo, a cada momento, mais usos para estes aparelhos móveis, questionamos acerca de quais seriam as mudanças nas mídias.

De quais formas a capilarização da disponibilidade de internet pelo Brasil e mundo, junto do advento de novas tecnologias digitais e mídias sociais, vem transformando nossas vidas? Como a presença dessas mídias influencia as conformações de nossos corpos? Como nos produzimos pelos stories, fotos, escritas e postagens que criamos, vemos e compartilhamos, em narrativas por nós e de nós mesmos? Como o encontro com estas mídias e suas produções lá compartilhadas influencia nossas vidas? Como também nos relacionamos com esses territórios midiáticos e nos colocamos ativamente na produção de outras formas de existir?

Fischer, ao seguir suas análises e reflexões acerca das conexões entre educação e mídias, afirma que os instrumentos de comunicação se debruçam densamente nas questões de corpo, gênero e sexualidade:

Hoje não haveria praticamente um lugar, um dia de nossas vidas em que nós não sejamos chamados ou a cuidar de nosso corpo ou de olharmos para nossa própria sexualidade. Os imperativos da beleza, da juventude e da longevidade, sobretudo nos espaços dos diferentes meios de comunicação, perseguem-nos quase como instrumento de tortura: corpos de tantos outros e outras nos são oferecidos como modelo para que operemos sobre nosso próprio corpo, para que o transformemos, para que atinjamos (ou que pelo menos desejemos muito) um modo determinado de sermos belos e belas, magros, atletas, saudáveis, eternos. Da mesma forma, somos chamados compulsivamente a ouvir e a falar de sexo e sexualidade, como se ali estivesse toda a nossa verdade como sujeitos (FISCHER, 2002, p. 160).

Pelos encontros com as mídias, em bombardeios constantes, entre comerciais, notícias, postagens, narrativas de si e do outro, somos interpelados por discursos que tentam, a todo momento, pedagogizar nossas possibilidades de ser, de existir, de reconhecer e de se relacionar. Jamil Cabral Sierra, ao pensar nas relações entre mídia, saber-poder médico, corpo e sexualidade, faz uma aposta:

Minha aposta é no argumento que pensa a mídia como a mais nova aliada dos saberes médico-científicos, espécie de porta-voz das biopolíticas que classificam, ordenam, corrigem e normalizam. Minha percepção me leva a imaginar que é, bem por isso, que o investimento não se dá só no tratamento de doenças ligadas ao sexo, mas em campanhas midiáticas de conscientização e prevenção contra a Aids e de uso da camisinha, que não só estimulam o sexo seguro, mas excitam as pessoas a assumirem-se, a falarem de si, a escancararem seu desejo e como materializam este desejo na cama, a confessarem-se, portanto. Por isso é que enxergo a mídia constituindo-se, na contemporaneidade, no instrumento que se arrenda às discursividades normalizadoras, porque por ela se chega a todos e por muitos meios, engenhando maneiras - cada vez mais incisivas e invisíveis - de cercar, conhecer e pôr sob administração e controle os comportamentos sexuais (SIERRA, 2013, p. 122, grifos nossos).

O autor reflete nos discursos acerca da homossexualidade produzidos e veiculados pelas mídias e nas biopolíticas (FOUCAULT, 2019FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz & Terra, 2019.)1 1 Sobre a biopolítica, o filósofo francês Michel Foucault (2019, p. 144) afirma que “O controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo. Foi no biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade capitalista. O corpo é uma realidade biopolítica. A medicina é uma estratégia biopolítica”. na prevenção da aids. Na contemporaneidade, pelas mídias, o sexo será colocado em questão, evidenciado, dito, explorado, capturado: “Agora, o sexo vai ser convidado a se exibir por meio de uma teia de artifícios midiáticos de produção da verdade, mesmo que, para isso, o estímulo à exposição venha camuflado em retóricas que exortem a prevenção do corpo” (SIERRA, 2013, p. 123). Ao analisar campanhas publicitárias e governamentais em torno da aids, Sierra (2013) percebe que as estratégias biopolíticas produzidas na contemporaneidade focam discursos de prevenção do corpo de infecções e doenças e, em especial, das ligadas ao sexo. Para que isso se concretize,

é necessário, antes, conhecer as práticas sexuais dos sujeitos, pois, assim, os saberes médicos, psiquiátricos, pedagógicos podem ser acionados, no sentido de desenvolverem as melhores (e mais sutis) formas de controle e administração da vida da população, impedindo que os corpos caiam em moléstias que, ao vitimá-los, os tornaria descartáveis (SIERRA, 2013SIERRA, Jamil Cabral. “Corpo, sexualidade e poder: a homossexualidade na mídia e as biopolíticas de prevenção contra a aids”. Textura, Canoas, v. 1, n. 28, p. 111-128, 2013., p. 123).

Discursos estatais em torno do sexo vão modulando as possibilidades de se relacionar sexualmente, de ter prazer, normalizando-as, colocando-as à mercê dos olhos médicos. Sobre esses discursos, Sierra continua:

O discurso de Estado atual em torno do sexo, ao mesmo tempo em que promove a divulgação da sexualidade, via midiatização do sexo, engessa as práticas sexuais no discurso preventivo, de modo a criar medidas eficazes que visam a saúde, através de efeitos discursivos produtores da verdade, certificados pela ciência e propagandeados pela mídia. Desse modo é que as pessoas são convencidas a fazer “sexo seguro”, ou seja, desde que se use camisinha, gel, desde que se tenha um número limitado de parceiros, desde que não se faça sexo oral, desde que..., desde que..., você poderá gozar sem o risco de contaminar-se, é o que propõe as políticas públicas para saúde, nos dizem os médicos, nos ensina a pedagogia e nos divulga a mídia (SIERRA, 2013, p. 123-124, grifos nossos).

Vigílias médicas, midiáticas, biopolíticas, governamentais. Existiriam saídas para essas tramas que vão se enredando em torno do sexo, do prazer e da vida? Surge a necessidade de colocar em questão os discursos veiculados pelas mídias, produzidos pelo Estado e por empresas, questionando-os, problematizando-os. Mas, como reflete Sierra, em nota de rodapé, “problematizar estas falas de ‘prevenção’, ‘respeito’, ‘tolerância’ que emergem em nosso tempo, bem como questionar estas políticas de controle do corpo não significa que eu esteja propondo o não uso da camisinha ou me posicionando contrariamente ao sexo dito seguro” (SIERRA, 2013, p. 124). Sobre estes discursos, Sierra afirma que:

O discurso da prevenção articula todo um aparato que regulamenta e disciplina o modo como temos de fazer sexo, a fim de, pelo jogo do poder que se esparrama em várias instâncias pedagógicas (mídia, escola, família, Estado...), produzir a monologia sexual, tentar ajustar o gozo dissonante dos homossexuais à heteronormatividade e normalizar os corpos na ordem heterossexual, que agora vem fundida no discurso de ‘prevenção do corpo’. O que vai mudar na contemporaneidade, por conta da implosão do sujeito centrado em sujeito fraturado e, com isso, a fragmentação do conjunto social em diferentes grupos, é a tentativa de construção de um discurso de aceitação/respeito das práticas sexuais tidas como fora da norma. Mas é bom deixar claro que essa aceitação não acontece porque a sociedade assume de fato essas outras práticas como legítimas, como parte disso que chamamos humano, como vidas desse mundo, como vivências que latejam, que gritam, que transbordam, que existem, mas porque os envolvidos nestas práticas são, de uma maneira ou outra, indispensáveis ao projeto biopolítico de controle de nossas sexualidades (SIERRA, 2013, p. 127, grifos nossos).

Problematizar esses discursos ligados ao sexo, à diversidade, à inclusão e ao prazer não é negá-los, nem os rotular como errados, mas refletir sobre os contextos nos quais eles foram produzidos, a que interesses servem e a quem interessam servir, como também nas relações em torno de sua criação e nas suas influências em nossas vidas. Nenhum discurso é neutro. Toda narrativa engendra-se em torno de relações de saber e poder, pois, como afirma Foucault: “O poder produz saber. [...] [o] poder e saber estão diretamente implicados; [...] não há relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder” (FOUCAULT, 1999FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1999., p. 31).

Estas relações de saber e poder em torno do corpo e da sexualidade transformaram- se com o surgimento da aids. A própria aids, para além do adoecimento causado por uma infecção viral, é também uma produção discursiva entremeada por relações de saber e poder. Podemos dizer que a aids é um dispositivo,2 2 Sobre a aids como um dispositivo, sugerimos a leitura dos seguintes trabalhos: Perlongher (1987); Pelúcio e Miskolci (2009); Butturi Junior e Lara (2018); Butturi Junior (2019) e Sales (2022). conceito proposto por Foucault (2019),3 3 Sobre o conceito de dispositivo, Foucault (2019, p. 364, grifos nossos) afirma que: “Por esse termo tento demarcar, em primeiro lugar, um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre esses elementos”. permeado por moralidades, capturado, moldado e produzido pela medicina, em parceria com a escola, a mídia, a igreja, a família e outras instituições, atuando em controles das experimentações do corpo e da sexualidade de tantos, e, em especial, dos homossexuais e outros corpos dissidentes, como refletiu o antropólogo argentino Néstor Perlongher, na década de 1980:

Um dispositivo como a AIDS - não a doença em si, mas a moralização desencadeada em torno dela. Para obter o disciplinamento do corpo deve-se confessar certas intimidades escabrosas, como penetrações, ejaculações dentro ou fora do ânus, etc. Se a moral pública não permitisse falar coisas assim, a AIDS seria - como foi a sífilis - uma “doença secreta” - e fruiria talvez da auréola heróica da aventura clandestina. Entretanto, uma campanha como a da AIDS exige como pré-requisito que tudo o que diz respeito à corporalidade possa ser dito, mostrado, exibido, assumido; a partir disso é que se pode diagnosticar e regulamentar. Antes os anormais estavam fora: fora da família e fora do consultório. Agora já podem entrar e receber conselhos (PERLONGHER, 1987PERLONGHER, Néstor. O que é Aids. São Paulo: Brasiliense, 1987., p. 74).

Perlongher, em diálogo com leituras foucaultianas, pensa a aids como um dispositivo entremeado pelas relações de saber e poder médico. “Como o olho do poder penetra nas mucosas, nos esfíncteres, nas ondas dos espasmos, nas irisações do gozo?” (PERLONGHER, 1987, p. 69). Segundo Perlongher (1987), algumas dessas estratégias médicas são a confissão do paciente, o anonimato, o olhar médico apenas para o organismo, dentre outras possibilidades de entremear-se nos prazeres e práticas. Isso tudo foi utilizado para trazer os anormais, corpos dissidentes, marginalizados e excluídos até então, como os homossexuais, para dentro dos consultórios, entremeando-os com discursos e práticas regradas e moralizadas. Perlongher (1987, p. 70) afirma que não é surpreendente, “no caso da AIDS, na medida em que o vírus se transmite por via sexual, [que] os conselhos médicos veiculem um disciplinamento das práticas sexuais, especialmente das homossexuais” e, assim, o “poder médico pode estar extraindo, do episódio da AIDS, uma espécie de mais valia moral”. Moralidades e práticas de disciplinamento em torno do corpo. E assim, “com a AIDS, o abraço médico vai pousar nos esfíncteres, seu ponto de apoio” (PERLONGHER, 1987, p. 75).

Certas formas de prazer são colocadas como perigo à vida: práticas rotuladas como risco para uma ordem social. “Arriscado parece ser, aos olhos dos formuladores de políticas preventivas, o sexo não procriativo (sobretudo se feito por dois homens), o que envolve múltiplos parceiros, em síntese, as relações que visam, antes de tudo, ao prazer” (Larissa PELÚCIO; Richard MISKOLCI, 2009PELÚCIO, Larissa; MISKOLCI, Richard. “A prevenção do desvio: o dispositivo da aids e a repatologização das sexualidades dissidentes”. Sexualidad, Salud y Sociedad - Revista Latinoamericana, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p. 125-157, 2009., p. 141). Uma série de processos foi-se entretecendo em torno da aids como um dispositivo, também permeado por - e produzindo - pedagogias. Os discursos e práticas em torno do que se entende como prevenção sexual foram impactados diretamente pela aids como um dispositivo, modulados em torno de suas configurações.

Com o passar dos anos, as possibilidades de tratamento e prevenção ao HIV progrediram e se aprimoraram. Hoje, pessoas infectadas pelo HIV, caso tenham acesso e adesão a uma terapia antirretroviral (TARV), podem frear a replicação viral em seus corpos, não desenvolvendo a aids, tendendo a atingir a indetectabilidade, logo, também, intransmissibilidade por vias sexuais, preservando seu sistema imunológico e funcionamento orgânico aos potenciais danos causados pela infecção na ausência de tratamentos. Esses processos levaram ao que se chama de “cronificação” da vivência com HIV e aids. Assim, hoje pensa-se em novas modulações deste dispositivo: a aids como um dispositivo crônico. Sobre o “dispositivo crônico da aids”, Atilio Butturi Junior e Camila Lara afirmam que:

Esse dispositivo funciona ancorado em discursos sobre o “fazer viver”, enquanto os protocolos de saúde pública exigirão a diminuição da transmissibilidade segundo o imperativo da adesão ao tratamento depois da testagem. Todavia, a cisão racializante permitirá que perdurem efeitos de desaparecimento. [...] Nesse dispositivo crônico da aids, ainda é preciso inventariar dois discursos fundamentais: o de sujeição total aos dispositivos biomédicos, responsáveis pela adesão irrestrita (sob pena de morte) à TARV, não obstante seus efeitos colaterais e a ausência de possibilidades de modificação no tratamento, levando-se em conta a economia política de um Estado cada vez menos disposto a arcar com os custos dos tratamentos de ponta (BIEHL, 2005, 2010); o da relação entre cronicidade, adesão e culpabilização, que funciona como tática de responsabilização dos corpos (ainda) perversos - da ordem do discurso do pânico moral dos “contaminadores” ou dos “carimbadores” midiáticos, cuja injunção ao tratamento e ao cuidado é diretamente proporcional à possibilidade de cidadania (BUTTURI JUNIOR; LARA, 2018BUTTURI JUNIOR, Atilio; LARA, Camila de Almeida. “As narrativas de si e a produção da memória do hiv na campanha O cartaz HIV positivo”. Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 18, n. 2, p. 393-411, 2018., p. 398, grifos nossos).

Toda uma rede de tramas vai se compondo em torno da vida, nos processos biopolíticos, em redes. “As linhas da aids como um dispositivo vão se reconfigurando na contemporaneidade, atravessadas pelo discurso da cronicidade e da biomedicalização. [...] [Porém] Nessas tramas de poder que disciplinam, controlam, vigiam e levam à confissão, a resistência se faz a todo o momento” (Tiago SALES, 2022SALES, Tiago Amaral. “A Aids como Dispositivo: linhas, te(n)sões e educações entre vida, morte, saúde e doença”. Pro-Posições, Campinas, v. 33, n. 1, p. 1-28, 2022., p. 19). Biopolíticas, pedagogias, dispositivos e relações de saber e poder vão compondo os territórios que permeiam a sexualidade, o corpo e o desejo. A mídia é, para nós, um território atravessado por todas estas instâncias, produzindo discursos e práticas em torno da vida, permitindo encontros.

Foi a partir desses pontos de partida que tecemos este texto. Nesta parte inicial, perpassamos os entrelaçamentos entre vida, cotidianos, mídias, sexualidades e educação. Na seção a seguir, intitulada “O trajeto da pesquisa”, apresentamos as inspirações teórico-metodológico-epistemológicas que guiaram os caminhos investigativos pelas mídias digitais, sobretudo na página da rede social Instagram nomeada @DoutorMaravilha,4 4 A página @DoutorMaravilha possuía, até 28/12/2023, dia de último acesso e revisão para esta pesquisa, 169 mil seguidores e 2179 postagens. o nosso foco de pesquisa. Depois, em “Cartografias em escritas-encontros”, mobilizamos escritas que emergem em fluxos e vazantes através de nossos encontros com postagens de tal território de pesquisa, que surge e se ramifica no encontro com múltiplas referências em um pesquisar-escrever de cunho pós-estruturalista transdisciplinar. Por fim, tecemos as "Considerações Finais", fechando o texto com reflexões e questões para seguirmos ruminando, também apresentando as inspirações e limitações de tal estudo. Os endereços da página e das postagens utilizadas para o diálogo neste artigo estão presentes nas letras que vão de A até O ao longo do texto, sendo possível acessá-las ao clicar nas citações das mesmas.

O trajeto da pesquisa

A partir dessas mobilizações acerca da mídia, da sexualidade, da aids e de seus entrecruzamentos, chegamos até a página @DoutorMaravilha na mídia social Instagram.5 5 Outras páginas de divulgação de questões em torno de saúde, sexualidade, com foco nas populações LGBTQIAPN+, também estão presentes nas mídias brasileiras e internacionais. Focamos na página @DoutorMaravilha por reconhecermos o seu alcance e percebermos o movimento de divulgar saberes científicos em vocabulários populares. Tal questão nos chamou atenção duplamente, tanto pelas possibilidades de facilitar o acesso a tecnologias que pudessem garantir e popularizar maneiras múltiplas de cuidado, quanto pelas ramificações biomédicas em torno da vida, ao adentrarem outros territórios de distintas maneiras. Vale reforçar que o médico Vinícius Borges também divulga as suas postagens em outros espaços virtuais, como em sua página no Twitter (acesso em 19/12/2023). Composta, no período6 6 As investigações de pesquisa na página @DoutorMaravilha, juntamente da escolha das postagens publicamente lá compartilhadas, ocorreram nos anos de 2020 e 2021, sendo estas também publicizadas neste biênio. desta pesquisa, pelo médico infectologista Vinícius Borges7 7 Na página @DoutorMaravilha, junto da prática de popularização de saberes científicos - sobretudo biomédicos - ligados às questões de saúde - sexual, LGBTQIAPN+, infectocontagiosas, entre outras - e defesa de pautas ligadas ao campo dos Direitos Humanos, como combate à LGBTQIAPN+fobia, machismo e racismo, o médico infectologista Vinícius Borges também divulga o seu trabalho e oferta acesso a serviços de saúde, como consultas, as quais não são gratuitas. e uma equipe intitulada de “Equipe Maravilha”,8 8 No dia 26 de março de 2022, a página @DoutorMaravilha divulgou em uma postagem o fim da Equipe Maravilha: “A Equipe Maravilha se encerra, o Doutor Maravilha e sua liga da justiça continuam”. (Acesso em 28/03/2022). Nesta publicação é possível conhecer um pouco mais quem compunha tal grupo de trabalho, e como se articulavam para tal. Na época de escrita inicial deste texto - meados de 2021 -, a equipe de profissionais referenciada estava ativamente em movimento e, assim, decidimos manter as marcas de sua participação que segue reverberando, mesmo que este coletivo tenha se encerrado e/ou direcionado para outros territórios de atuação. Após o fim da equipe maravilha, percebemos que a página se centrou no trabalho de Vinícius enquanto médico infectologista e divulgador das ciências biomédicas. a página aborda de maneiras pedagógicas diversos assuntos relacionados à saúde sexual, à saúde LGBTQIAPN+, à prevenção sexual, ao sexo anal, vaginal, oral, gay, lésbico, heterossexual, às infecções sexualmente transmissíveis (IST), dentre outros temas que permeiam - na medida em que também produzem - discursos e práticas relacionadas ao corpo, gênero, desejo e sexualidade.

Um assunto frequente na página é a discussão acerca do HIV e da aids, enquadrando- se dentro das IST. O surgimento em escala internacional, a propagação e o reconhecimento midiático do HIV e da aids modificaram intensamente os discursos e as práticas acerca da prevenção sexual e das pedagogias produzidas em torno do corpo, gênero e sexualidade. O campo médico da infectologia é, hoje, responsável pelo acompanhamento e tratamento de infecções sexualmente - ou não - transmissíveis, inclusive o HIV. A partir do lugar de saber e poder médico desta especialidade, o criador e principal produtor de conteúdos da página mobiliza narrativas que permeiam discursos e práticas em torno das dimensões de corpo, sexualidade e gênero. Por também se reconhecer como pessoa LGBTQIAPN+,9 9 Sigla para Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais/travestis, Queer, Intersexuais, Assexuais, Pansexuais, Não Binaries e o “+” para as múltiplas outras existências que possam ser “categorizadas” dentro do que, popularmente, se defende ser um coletivo ou comunidade. O médico Vinícius Borges, principal responsável pela página, se intitula “médico gay” e “médico colorido”, como é possível ver nas postagens A e D. os discursos ora se apresentam de dentro do poder médico, ora de dentro do que se chama de comunidade LGBTQIAPN+. Em momentos se entrecruzam e misturam, sendo impossível diferenciá-los.

Nosso encontro com a página se deu através de derivas pelas redes sociais e pelo nosso interesse em estarmos próximos/as dos conteúdos e discussões na mídia de questões relacionadas à saúde, à educação, às populações LGBTQIAPN+, às IST, ao/à HIV/aids, ao desejo, ao corpo, ao gênero e à sexualidade. Ao acompanhá-la, percebemos que ela possuía um caráter educativo, criando e mobilizando pedagogias em torno do corpo, da saúde e da sexualidade, atuando como divulgadora científica, produzindo conteúdos midiáticos, em diálogos permeados pelo humor, com temas tidos como tabus, incomunicáveis, sigilosos e marginais. Ao falar destes temas, a página produz discursos e práticas, em relações de saber-poder médico, entretanto, com signos próximos aos das populações a elas destinadas.10 10 Percebemos que, dentre tantos grupos além de profissionais da saúde, a página também direciona as suas postagens prioritariamente a homens cis gays, mas não somente, também dialogando com outros grupos e maneiras de ser, estar, performar e viver, como as pessoas que compõem as outras letras de LBTQIAPN+.

Percebemos a página como um território midiático repleto de movimentos, em tensões e disputas. Um território passível de ser modificado, em processos de desterritorialização e reterritorialização, já que “A função da desterritorialização: D é o movimento pelo qual se abandona o território. É a operação da linha de fuga. [...] O próprio território é inseparável de vetores de desterritorialização que o agitam por dentro” (Gilles DELEUZE; Félix GUATTARI, 2012DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs - Vol. V. São Paulo: Ed. 34, 2012., p. 238-239).

A página, como um território, é permeada por dimensões de saber e poder, sendo vinculada a instâncias de controle e de produções de subjetividades, mas, ao mesmo tempo, também atua como espaço de resistências e linhas de fuga, em potências de desterritorialização e reterritorialização, em devires, em movimentos possíveis de cindir com as durezas antes instauradas. É um território de resistência e ciberinclusão em um universo digital em que os corpos LGBTQIAPN+ são marginalizados, logo, vulnerabilizados, em função do discurso disciplinador da medicina, do sistema patriarcal e heteronormativo. Ao instaurar redes de saber-poder, a página atua produzindo discursos e práticas em torno da sexualidade nas suas narrativas acerca do corpo, gênero, sexualidade, desejo e saúde, conectando com a aids como um dispositivo crônico.

Nós - um homem branco gay e uma mulher branca heterossexual -, pesquisador e pesquisadora vinculado/a a uma instituição pública de ensino-pesquisa-extensão localizada na região sudeste brasileira, partimos de nossas perspectivas e imersões de vida-estudo-investigação para a feitura deste trabalho. Acompanhando a página desde 2019,11 11 Salientamos que dois movimentos acontecem e que, em muitos momentos, eles se borram: acompanhamos a página desde 2019 até os tempos atuais (início de 2024, quando fizemos as últimas revisões deste texto), e debruçamo-nos na pesquisa que resultou neste artigo, tendo uma atenção diferente às publicações, escolhendo e selecionando algumas para compor com as escritas, sobretudo nos anos de 2020 e 2021. percebemos que esta se endereça a profissionais da saúde e, principalmente, a pessoas de grupos historicamente marginalizados e estigmatizados: LGBTQIAPN+, pessoas vivendo e convivendo com HIV/ aids, trabalhadores(as) do sexo, dentre outras populações que experienciam processos de cerceamento de acessos e possibilidades de uso das mídias e tecnologias digitais. Estas pessoas são alvos de ciberexclusão, na medida em que foram, e continuam sendo, em algum nível, privadas do contato com as tecnologias digitais e acesso à informação, aos conhecimentos tecnológicos, históricos e científicos que poderiam atuar na criação de possibilidades outras de viverem suas sexualidades, de experimentarem seus corpos e de enfrentarem os estigmas e preconceitos que as marginalizam, assim como de encontrarem-se com os saberes médicos e científicos e as formas com que foram produzidos, possibilitando também questioná-los, e a desestruturação de processos disciplinadores. Somente através da compreensão dos diversos aspectos que compõem essas tramas biopolíticas podemos questioná-las e utilizar os discursos científicos na vida e em suas mobilizações cotidianas tanto nas possibilidades de prevenção e tratamento às IST quanto em quaisquer outras questões relacionadas à sua saúde.

Estes grupos, assim como foram em diferentes momentos violentados fora das redes, nas ruas, em suas casas, nas escolas e demais espaços, em decorrência de questões morais, culturais e históricas que os rotulam como anormais e subalternos, estigmatizando-os, também são ciberagredidos nos ambientes digitais por produtores de conteúdo moralista, páginas conservadoras e reacionárias que condenam suas possibilidades de existência, criadores e propagadores de fakenews, como também por usuários que atacam suas formas de se expressarem e ocuparem posições de visibilidade, levando-os a experimentações, muitas vezes, às margens da cibercultura - não sem resistência e criação de outros nichos. A própria ciberexclusão é, em algum nível, uma forma de ciberagressão, na medida em que cerceia o acesso a tecnologias, saberes e práticas que poderiam atuar em possíveis melhorias da vida destas pessoas. Ciberexclusão e ciberagressão são fatores que intensificam as vulnerabilizações às quais estas existências que vivem à margem da sociedade estão submetidas, fragilizando ainda mais suas vidas, precarizando-as e colocando-as em risco num Estado o qual descarta as existências que não são para ele produtivas, logo, desinteressantes.

Mas, assim como os homossexuais eram, até as últimas décadas, excluídos das práticas e discursos médico-científicos e foram, posteriormente, capturados e incluídos nos territórios médicos - processo intensificado com o surgimento da aids -, questionamos: pode a página @DoutorMaravilha, a partir das redes midiáticas, permeada por linhas de saber-poder médico, também incluir, de forma mais intensa, por meio da cultura digital e das mídias, estes corpos dissidentes nos discursos e práticas médicos e medicalizantes? E, paradoxalmente, na medida em que inclui pelo saber-poder médico, também pode criar-se como lugar de combate à ciberagressão, configurando-se como território de ciberacolhimento, de troca e de diálogo?

Nesse texto, objetivamos pensar nos territórios da página e nas pedagogias por ela traçadas. Estivemos atentos em como ela atua entre relações de saber-poder médico, e também se fissurando em linhas de fuga e produzindo resistências, pois, como afirmou Foucault (2014FOUCAULT, Michel. “O Sujeito e o Poder”. In: FOUCAULT, Michel. Genealogia da ética, subjetividade e sexualidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014. p. 118-140., p. 138), “não há relação de poder sem resistência, sem escapatória ou fuga, sem reviravolta eventual; toda relação de poder implica, pois, pelo menos de maneira virtual, uma estratégia de luta”. Para tal, utilizamos a cartografia como trajeto - metodológico, ético, epistemológico - de pesquisa. Inspiramo-nos em leituras do campo da Filosofia da Diferença, e, em especial, nos filósofos franceses Gilles Deleuze, Félix Guattari e Michel Foucault, e nas cartografias sentimentais desenvolvidas por Suely Rolnik (2016ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre: Sulina, 2016.). A partir dos nossos contatos com a página e suas publicações, produzimos escritas-encontros, permitindo que fluíssem os afetos que emergiram em nossos trajetos por seus territórios.

Percebemos a página do Instagram como paisagem repleta de potencialidades, tensões e movimentos, permeada e também produtora de linhas que vão se agenciando. A cartografia aparece como possibilidade de desbravá-la, pois “a cartografia, diferente do mapa, é a inteligibilidade da paisagem em seus acidentes, suas mutações” (ROLNIK, 2016, p. 62). Assim, colocamo-nos atento e atenta aos movimentos que conectassem as dimensões de saber e poder com o desejo e a resistência, possibilitando também criar linhas de fuga, pois “fugir é traçar uma linha, linhas, toda uma cartografia” (DELEUZE; Claire PARNET, 1998DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998., p. 30).

Para tal pesquisa e escrita deste artigo, partimos de uma deriva despretensiosa pelas postagens da página @DoutorMaravilha, acompanhando-as desde o ano de 2019, percebendo a visibilidade e o alcance que ela tinha para diferentes setores, principalmente entre pessoas LGBTQIAPN+ - sobretudo homens cis gays - e/ou profissionais da saúde que se interessassem por tais temas. No final de 2020 e começo de 2021, selecionamos quinze postagens que nos chamaram atenção em decorrência da amplitude de temas e abordagens. Para o processo de cartografia, debruçamo-nos em escritas a partir dos nossos encontros com as imagens e textos publicados, mas também nos mantivemos atentos aos comentários, que nos inspiraram a seguir tecendo as percepções aqui materializadas. Assim, essas escritas-encontros foram criadas e compartilhadas entre o autor e a autora deste texto e pensadas a partir de alianças teóricas, sobretudo de cunho pós-estruturalista.

Os conceitos de saber, poder, resistência e linhas de fuga guiaram a nossa atenção, em devir-pesquisador(a), nos encontros com as postagens publicadas na página, o que permitiu produzir escritas com os afetos que insurgiram em nós nessas percepções atentas. Cartografamos as postagens à procura de perceber os movimentos que nelas se produziam, nos tensionamentos entre ciberexclusão-ciberinclusão, ciberagressão-ciberacolhimento. As escritas-encontros se fizeram de forma fluida, na medida em que os afetos pediam passagem e as conexões entre percepções e teorias foram se entremeando com as postagens. Atentamo-nos às linhas que se entremeavam na página, em potencialidades e afetos possíveis.

Assim, colocamo-nos em movimentos de derivas pela página do Instagram @DoutorMaravilha, atento e atenta às suas múltiplas narrativas e modulações. Percorremos a sua linha do tempo e, ao percebermos a pluralidade de temas e publicações, decidimos escolher quinze postagens para comporem o nosso texto, porém, o nosso contato com outras também aconteceu e contaminou estas derivas e reflexões. Ao encontrarmo-nos com cada postagem, atentamo-nos, principalmente, às imagens e textos publicados, porém, também lemos os comentários de seguidores e visitantes da página. As figuras presentes nas publicações escolhidas12 12 As figuras presentes nas publicações selecionadas podem ser acessadas através dos links das respectivas postagens. Estas páginas foram selecionadas para compor a pesquisa durante os anos de 2020 e 2021, porém os endereços foram novamente conferidos e estavam disponíveis até a última revisão do texto, em 30 de abril de 2024. foram omitidas por questões de direitos autorais, porém as publicações, marcadas com as letras A, B, C, D, E, F, G, H, I, J, K, L, M, N e O, estavam disponíveis abertamente até o período de escrita e revisão deste texto.

Cartografias em escritas-encontros

Abrimos o Instagram e começamos a percorrer a sua linha do tempo, intercalando-a com os stories. Fotos, vídeos, mensagens de texto e de voz, histórias de si e do outro, propagandas, informações, news, melhores amigos, fakenews, diálogos, debates e atritos foram permeando essa deriva instagramizada. De repente, uma série de postagens começa a nos chamar a atenção. Elas falam sobre saúde, sexo, fetiches, corpo, desejo, tesão. Falam de políticas públicas, privadas, partidárias, apartidárias. Misturam vida pública e privada, quebrando barreiras. Palavras, expressões e siglas como gouinage, fimose, clítoris, cisgênero, fisting, verrugas anais, transgênero, assexual, bissexual, prevenção sexual, chemsex, cocaína, popers, benzetacil, stealthing, sífilis, pompoarismo, aids, gonorreia, anel peniano, HIV, HPV, HTLV, PrEP, PEP, TARV, IST nos deixam à espreita do território denso em que estamos adentrando.

A página @DoutorMaravilha, no Instagram, fala sobre o que tantas outras se negam a dizer. Fala sobre tesão, corpo e prevenção. Fala sobre cultura LGBTQIAPN+, compartilha filmes e séries, informa sobre infecções e doenças, mas, sobretudo, fala sobre vida e sobre o seu cuidado. Será que assim também atua em instâncias de controle da vida? Participaria das engrenagens que, décadas atrás, Foucault (2019) chamou de biopolítica?

Biopolítica, política de controle da vida (FOUCAULT, 2019). A medicina como instituição de controle da vida. Medicina-biopoder. Saber-poder médico. Poder falar e ser escutado - por quem? Falas validadas pelo saber-poder médico. Saber-poder indissociável. Quem pode falar por quem? Quando alguém pode falar? Quem autoriza alguém a falar? Dá-se a voz e o lugar para alguém comunicar-se ou fala-se por tal pessoa? E quem escuta o que é dito? O que leva uma página sobre saúde a ter tantos seguidores? Seria pela percepção de quem a acompanha de que lá se faz um reduto da verdade, de um saber autorizado e validado pela medicina? Seria pela linguagem descontraída, próxima aos vocabulários pop cibernéticos? Qual força categorizaria o que lá é dito como verdade? Seria a Ciência? Ciências Biológicas, Ciências Médicas, BioCiências. BioPolíticas? Mesmo em tempos de fakenews e negacionismos, o poder atrelado ao saber científico permanece com a sua posição de prestígio.

Nas postagens, uma fala autorizada diz. Ou melhor, falas autorizadas, em equipe. Equipe Maravilha: médicos(as), enfermeiros(as), psicólogos(as), assistentes sociais, advogados(as), dentre outros(as) profissionais. Dizem sobre sexualidade, corpo, gênero. Dizem sobre prazer, tesão, preservativo, prevenção. Dizem, (re)produzem e movimentam saberes e práticas. Ao falarem disso tudo, atuam na produção de ciberinclusão: divulgam e compartilham conhecimentos, levam até aonde, anteriormente, talvez, não se chegasse. E, ao falarem do que não se dizia, chegarem aonde não se chegava, também instauram algo: criam lugares, produtos, discursos; ações instauram territórios, em processos de des-re-territorialização.

Dizer sobre o sexo é também produzi-lo. Na medida em que se diz de práticas histórico-culturalmente não tidas como “sexo de verdade”, afirmando-as legitimamente como assim sendo - (Postagens A, C, I, J e M), como entre duas pessoas com pênis ou com vulvas, entre corpos que fogem às tramas cis-heteronormativas, que destoam das práticas do “sexo real” produzido em discursos, práticas e normatizado pelas Ciências Médicas, religiões, Estados, famílias, escolas e outras instituições, que se restringem à penetração pênis-vulva, à reprodução, ao binarismo masculino-feminino -, cria-se um território de percepções outras da sexualidade para além de uma Biologia que, no passado, foi tida como neutra, ao instaurar moralidades com a defesa de práticas que poderiam ser validadas e chamadas de sexo apenas caso se voltassem à reprodução, somente entre pares humanos - e nunca mais do que dois! - cisgêneros e heterossexuais. ‘Sexo só depois do casamento cristão e com prazer restrito à reprodução’ ecoa em narrativas hegemônicas. Falar de outras possibilidades de sentir e inventar o corpo e o desejo, nas experimentações ditas como sexo, é também criar um território em que elas sejam reconhecidas e, ao mesmo tempo, também capturá-las pela medicina. Olhares médicos atentos capilarizam-se entre corpos e práticas que já existiam há muito tempo, mas que agora podem adentrar os consultórios e, por que não, as mídias.

Palavras-apresentações de alguém que habita e conecta diferentes territórios: medicina e populações LGBTQIAPN+. Um homem cis branco que se intitula enquanto “médico colorido” ou “médico gay” (Postagens A e D), que tem voz e lugar de fala no território, até então, impenetrável de uma medicina heteronormativa. Um médico que habita fronteiras, que vive nos entres, e, nesses meios, instaura espaços de criação, em resistências produtivas e linhas de fuga. Uma Equipe Maravilha, em ciberinclusões e ciberacolhimentos, desbravando territórios duros, desterritorializando as mídias ao divulgar espaços de acolhimento para pessoas que vivem com HIV (Postagem B), denunciando os silêncios e silenciamentos em torno do HIV e da aids (Postagem E), refletindo na fragilidade da vida (Postagem F), criando e divulgando possibilidades de atendimentos e cuidados que fujam das linhas de opressão e violência aos corpos trans (Postagem H).

Uma página que pode falar. Pessoas exercendo o poder de falar. Poder falar. Poder médico. Poder falar, respaldado pela medicina. A importância de poder falar. Também as capturas e processos de subjetivação entremeados no que e em como se fala. Falar sobre desejo e prazer. Falar sobre sexo. Seguro? Prevenção sexual (Postagens C, G, I, J, K, L e M). Falar sobre camisinha. Furou? Esqueceu? Não usou? Não quer usar? Não precisa usar? Precisa? Deve? PEP?! PrEP?! I=I?! IST?! Quais pessoas conhecem os métodos de evitar e tratar infecções? Quem tem acesso às possibilidades de prevenção? Homens, brancos, cis, gays, heterossexuais? Chega às mulheres? Trans/travestis? Populações negras e indígenas? Pessoas com deficiência? Populações em situação de rua? A quem e como se fala em prevenção? O que está em jogo quando se fala em prevenção? Democratização do acesso à saúde e ao cuidado de si? Práticas de controle do corpo, da vida e do desejo? Territórios de disputa entre saber, poder e resistência - existiriam também linhas de fuga nestas tramas?

Prevenção: regulamentação e disciplinarização do sexo, do corpo e do prazer (SIERRA, 2013), “estratégia de normalização materializada em uma espécie de imposição, em uma teleologia heterossexista que aponta para uma compreensão futura da vida como monogâmica, reprodutiva, familiar, em suma, privada e sob controle” (PELÚCIO; MISKOLCI, 2009, p. 142). Com a capilarização do saber-poder médico sobre os corpos e práticas homossexuais, “o discurso da prevenção foi sendo construído ignorando a abjeção como fundante da experiência homoerótica” (PELÚCIO; MISKOLCI, 2009, p. 142). Seriam possíveis outras formas de pensar e falar em prevenção? De fazer prevenção? De se prevenir?

Prevenção combinada? Pedagogia da prevenção? Kelly Gavigan e colaboradores (2015) propõem uma pedagogia da prevenção a partir da histórica luta dos movimentos sociais de HIV/aids, responsáveis por criar muito do que hoje se entende por prevenção:

A pedagogia da prevenção [...] vai muito além da capacidade de ler. Inclui a capacidade de processar e avaliar informações de saúde para tomar decisões baseadas no que é melhor para cada pessoa, de negociar e exigir o direito a essas opções e de discutir essas decisões com os parceiros e pares. A capacitação para a prevenção não significa apenas o processamento das informações, mas um processo de ‘conscientização’ e de empoderamento que permite às pessoas colocarem os conhecimentos em prática (GAVIGAN et al., 2015GAVIGAN, Kelly; RAMIREZ, Ana; MILNOR, Jack; PEREZ-BRUMER, Amaya; TERTO JUNIOR, Veriano; PARKER, Richard. “Pedagogia da Prevenção: reinventando a prevenção do HIV no século XXI”. Abia - Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids: Perspectiva Política, Rio de Janeiro, n. 1, p. 1-16, 2015., p. 13).

Pensar em uma pedagogia da prevenção, como fazem Gavigan e colaboradores (2015), não é desvincular os discursos e práticas em torno do sexo das relações de saber e poder, mas nelas atuar, incidindo nesses territórios ativamente. Mais do que atuar é, em muitos momentos, subvertê-los, em movimentos de resistência, e criar formas outras de prevenir-se, cuidar da vida e perseverar. Prevenções em brechas, tesão em linhas de fuga.

O corpo, em potências, vive sua sexualidade. Sexualidade que movimenta a vida, que permite experimentar, experienciar, explorar. Corpos em contatos, em movimentos: [...] falar sobre sexo e os encontros possíveis entre corpos, em prazer e tesões, é falar de vida, território este repleto também de tensões. E falar de prevenção é pensar em multiplicidades de métodos possíveis de serem combinados, mandala de possibilidades (SALES, 2020SALES, Tiago Amaral. “Entre tesões, tensões e prevenções: HIV/Aids e contaminações com as obras de Adriana Bertini”. ClimaCom, Campinas, v. 7, n. 19, 2020., p. 24).

A página, mesmo que fale a partir do território médico, situada entre relações de saber-poder (FOUCAULT, 1999; 2014; 2019), também se contagia com forças dos movimentos sociais que, em muitos momentos, enfrentaram contundentemente as biopolíticas médicas que moveram, durante tantos anos, a máquina mortífera em torno da aids. Um exemplo é quando traz, nas postagens E e F, retratos de Billy Poter em atuações na série Pose, potente produção audiovisual atravessada pela luta contra a aids. Em 2021, Poter publicizou sua vivência com o HIV, rompendo com o silêncio que, assim como afirmava o coletivo de luta contra a aids ACT UP, é igual à morte.

‘Mas falar de HIV hoje, para quê? Aids? Coisa do passado!’, ecoam outras vozes nos ditos populares. ‘Seria coisa do presente? Coisa de um grupo?’, questionam alguns pelas ruas e redes sociais. No tempo, emergem marcas: milhões de mortes no passado, milhares de mortes seguem acontecendo anualmente. Milhões de pessoas vivendo com o vírus atualmente. Coexistindo. Com tratamentos possíveis para garantir a saúde das pessoas infectadas pelo vírus, como evidenciado nas postagens E, I, K, L e O. Mas para quem? Quais pessoas vivendo com HIV têm acesso aos espaços de acolhimento e compartilhamento de suas vivências, como divulgado na postagem B? Ao evidenciar a importância de se falar em HIV/aids hoje, a página incide ativamente nos discursos, práticas e dispositivos em torno da epidemia, atuando também na ciberinclusão e no ciberacolhimento.

No texto anexado à postagem J, são evidenciados discursos, atrelados aos riscos, em torno de comportamentos e práticas no sexo, e também da dimensão das vulnerabilidades que afetam tantos corpos, afirma a página na postagem J:

Vulnerabilidade é o conjunto de condições sociais, de gênero, políticas, sexuais e étnicas/cor de pele que conferem a uma pessoa uma chance maior de se infectar com o HIV. Por exemplo, é diferente falar de acesso à prevenção para uma travesti negra que mora no interior do país e falar disso para um homem branco cisgênero do centro de São Paulo. São realidades infelizmente muito desiguais.

A partir destas reflexões sobre vulnerabilidade, conectamo-nos com a discussão feita por Fernando Seffner e Richard Parker, ao afirmarem que “a vulnerabilidade não está, de modo essencial, no corpo da mulher, do jovem negro, do indivíduo gay, das travestis, transexuais ou transgêneros, do usuário de drogas, mas nas relações sociais que constroem essas vidas como vidas que não importam” (SEFFNER; PARKER, 2016SEFFNER, Fernando; PARKER, Richard. “Desperdício da experiência e precarização da vida: momento político contemporâneo da resposta brasileira à aids”. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 20, n. 57, p. 293-304, 2016., p. 6).

Essas vulnerabilidades são politicamente forjadas pelas desigualdades econômicas, pelas marginalizações sociais, pelo machismo, pelo capacitismo, pelo racismo, pela LGBTQIAPN+fobia. A ciberexclusão e a ciberagressão também são produtoras da vulnerabilização de populações. Ao falar, informar, espalhar e contaminar outros territórios, a página também atua na desestabilização das engrenagens que vulnerabilizam tantas vidas.

Nas postagens, percebemos narrativas de divulgação. Cultura científica proliferada em espaços outros: mídias, celulares, telas, boates, becos, casas, camas. Narrativas que entoam palavras de ordem: ‘Perca o medo! Tenha acesso à informação! Conheça as IST! (Postagem G) Previna-se! (Postagens A, C, G, I, J, K, L e M) Mas, para se prevenir, converse com um médico. Ou melhor, “converse com seu médico” (Postagem G). Converse, confesse-se aos médicos. Fale de suas verdades: com quem transou, quando, como? Confesse-se: no consultório, na cama, nas mídias. Diga tudo, não esconda nada! Saiba! Conheça! De ti, do outro. Dos outros! Outros? Quantos outros? Como transou com estes outros, e outros, e outros? (Postagem J). Conheça do sexo. Das vidas possíveis de se viver no sexo. Das vidas possíveis de migrarem pelo sexo. Das vidas possíveis de, na ausência do cuidado médico, causarem adoecimentos e mortes’. Entremeia-se, assim, a ciberinclusão capilarizada pelo cibermédico, pelo saber médico, pelo poder médico. Ciberacesso, cibermovimentos que, na medida em que capturam e engendram processos de subjetivação mediados pelo saber-poder médico, também carregam a potência de alterar rumos, serem linha de fuga para direções outras.

‘Tome os seus medicamentos antirretrovirais! Se você vive com HIV, faça o tratamento’ (Postagens I, K, L e O). Se não vive, tome PrEP! (Postagens I, K, L e M) ‘PrEP e informação, inclusão’, afirmam. “Outros” questionam tais teias de saber-poder médico: ‘Para tudo e para todos? Mesmo? Sempre?’. Imbricam-se dúvidas entre divulgações. Segue-se a capilarização médica nos processos de biomedicalização.

Se anteriormente a viabilidade-moral-econômica das sexualidades LGBT era buscada por meio de discursos de prevenção em que a protagonista era a camisinha (um processo que chamamos de comportamental-moralizante), hoje ela tem cedido lugar para o Truvada (um processo que chamamos de fármaco-moralizante). Queremos arriscar dizer que, na contemporaneidade, grande parte dos discursos que acolhem a população LGBT surge do solo que alimenta a noção de que só por meio de uma lógica fármaco-moralizante da sexualidade é possível abandonar o lugar de abjeção até então relegado a essas pessoas. Nossa suspeita tem se dado, portanto, no sentido de pensar que a viabilidade-moral econômica da população LGBT, bem como sua inclusão no campo da educação e da saúde, tem acontecido, par-e-passo, a esse processo fármaco-moralizante que, nos dias de hoje, age como forma de governamento biopolítico desses sujeitos. No entanto, de forma concomitante, há um tensionamento, arriscamos também ensaiar, que é produzido na própria lógica fármaco-moralizante, a partir de como determinadas pessoas exercitam a resistência à norma ao fazerem uso, estrategicamente, de formas de prevenção como a do PrEP, por exemplo (SIERRA; Dagmar MEYER, 2020SIERRA, Jamil Cabral; MEYER, Dagmar Estermann. “Entre capturas biopolíticas e estratégias de resistência LGBT: um ensaio sobre a lógica fármaco-moralizante na profilaxia pré-exposição: PrEP”. Revista Interinstitucional Artes de Educar, Rio de Janeiro, v. 6, n. 3, p. 1018-1037, 2020., p. 1023).

Seria, ironicamente, a saída dos estados de abjeção, monstruosidade e estranheza que permeiam tantos grupos marginalizados, como as populações LGBTQIAPN+ e pessoas vulnerabilizadas perante a epidemia de HIV/aids, justamente mediada por dispositivos fármaco-biomédicos, como no caso da emergência, divulgação e propagação da PrEP? Haveriam outras possibilidades de mobilizar tais saberes e tecnologias biomédicas para além da sujeição e da biomedicalização da vida, do desejo e do prazer? Poderíamos articular as produções científicas no cuidado de si - tanto pela divulgação e acesso ao uso de antirretrovirais para o tratamento quanto para a prevenção da infecção pelo HIV - sem deixarmos de estar atentos às redes de saber-poder nelas imbricadas?

A Truvada é uma forma de Profilaxia Pré-Exposição ao HIV - chamada de PrEP. A PrEP é um caminho para a moralização? Ou uma potência de quebrar linhas moralizadoras, de rachar muros do preconceito e do estigma, de expandir as experimentações de corpos e desejos sem culpa e sem medo? Será que ela é capaz de, como por um milagre, resolver, também, o medo e a aversão ao outro, associados à sorofobia? Ou seria necessário articular o seu acesso a outras ações de orientação, informação e cuidado que não patologizem certas existências?

Acordos entre farmacêuticas. Medicalização do tesão. Desejo em pílulas azuis - mas não se engane: nem toda pílula azul é viagra. PrEP, medicalização. PrEP, tesão. Os conteúdos sobre a PrEP vão se capilarizando por toda a página, como nas postagens I, J, K, L e M. Mas, para usá- la, é preciso confessar-se: não na igreja, mas a um médico. “Para saber se você precisa de PrEP, só te conhecendo melhor: com quem você transa, onde você transa, como você transa, quais seus fetiches, quais suas inseguranças e desejos”, afirma a postagem J. Contenção de uma epidemia, capilarização antirretroviral, territorialização de um corpo antes mesmo de qualquer povoamento viral parecem, para nós, ressoar slogans: ‘Beba Coca-Cola, vista Lévis, use PrEP’: novos ícones da cultura pop que são apresentados como obrigatórios a certas existências, e privilégio a outras que podem acessá-los. Não sem resistência, tais slogans são por nós recebidos com outros questionamentos: ‘Mas para quem? Em quais lugares isso é possível? PrEP de graça no Sistema Único de Saúde (SUS)? Em quais cidades? PrEP paga nas farmácias? Por quanto? Qual é o preço do prazer e segurança com a PrEP? Mercantilização do tesão’. Mas será que, em algum momento, o desejo já deixou de ser alvo comercial? Com a PrEP, pode, quem sabe, deixar de ser risco de vida, como já cantava Cazuza.13 13 Inspirado na música Ideologia, de Cazuza, em seu trecho “meu tesão agora é risco de vida”. ‘Tesão sem medo? Prazer sem horror?’ PrEP, PEP, TARV. Nós, cartógrafos, percebemos um eco que segue ressoando nos encontros educativo- midiáticos: ‘Percam o medo e adentrem nos sedutores territórios medicalizáveis!’.

Na era farmacopornográfica, o corpo engole o poder. É uma forma de controle ao mesmo tempo democrática e privada, ingerível, bebível, inalável e de fácil administração, cuja propagação pelo corpo social nunca foi tão rápida ou tão indetectável. Na era farmacopornográfica, o biopoder reside em casa, dorme conosco, habita dentro. As manifestações dominantes da era farmacopornográfica (pílulas, próteses, comida, imagens, felação e dupla penetração) compartilham a mesma relação entre corpo e poder: um desejo por infiltração, absorção, ocupação total. [...] Não é o poder infiltrando a partir do exterior, é o corpo desejando poder, procurando engoli-lo, comê-lo, administrá-lo, devorá-lo, mais, sempre mais, através de cada cavidade, por todas as rotas possíveis de aplicação. Inclinando-se para o poder. Baise-Moi, foda-me (Despentes), diz o corpo, ao mesmo tempo buscando formas de autocontrole e autoextermínio: “Por que as pessoas sempre desejam a própria escravidão?” (Spinoza). O biopoder não se infiltra a partir do exterior. Ele já reside dentro (Paul PRECIADO, 2018PRECIADO, Paul B. Testo Junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica. São Paulo: n-1 edições, 2018., p. 223).

Desejos pelo poder, contudo, como afirmou Foucault (2010FOUCAULT, Michel. Repensar a Política. Rio de Janeiro: Forense, 2010., p. 106), cuidado: “não caiam apaixonados pelo poder”. Biopoder capilarizando-se, penetrando molecularmente todas as cavidades possíveis do corpo: boca, olhos, ouvidos, narinas, ânus. Mas, seria este poder unicamente opressor? Mais uma vez invocamos Foucault (2014): onde há poder, há resistência. Este poder é produtivo! Nos compostos antirretrovirais e tantas outras substâncias que se multiplicam pela página, pelos corpos, pela medicalização da vida, também haveria embriões de resistências possíveis, em existências ciborgues, como reflete Donna Haraway (2000HARAWAY, Donna. “Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX”. In: HARAWAY, Donna; KUNZRU, Hari; TADEU, Tomaz. Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. p. 33-118.), com as pílulas, hormônios e outras substâncias (Postagens E, H, I, K, L, M, N e O). Butturi Junior (2019), ao pensar nas existências ciborgues afetadas pela aids como um dispositivo crônico, chama-nos atenção para que a resistência estaria, provavelmente, nas existências vivendo com HIV/aids:

No momento das subjetividades proliferantes e do ocaso da política, é nos soropositivos que ele vislumbra uma abertura. É em suas lutas cotidianas e corporais por medicamentos menos tóxicos, em detrimento das lutas em nome de um sujeito universal e de um humano metafísico, que esses sujeitos informam sobre outra forma, digamos, pós-humana, de ser sujeito. No instante em que sua militância exige o limite da morte como experiência fundamental. No instante em que, em seu discurso e em seu corpo tecnomodificado, eles sugerem um “não” e solicitam, para si, a abertura para produzir formas de vida - e de pós-humanidade - paradigmáticas e ainda não inventadas (BUTTURI JUNIOR, 2019BUTTURI JUNIOR, Atilio. “O HIV, o ciborgue e o tecnobiodiscursivo”. Trabalhos em Linguística Aplicada, Campinas, v. 58, n. 2, p. 637-657, 2019., p. 652).

Na página, romper barreiras moralistas para falar de drogas, sadomasoquismo, bareback. Tentativas de cuidados? Resistências? Linhas de fuga? Inclusão? Mais uma captura pelos dispositivos médicos? Falar de possibilidades, experiências, riscos e perigos. Falar de sexo com drogas, de experimentações (Postagem N). Falar de indetectabilidade das vivências com HIV, falar de intransmissibilidade (Postagens I, K, L e O). Falar de adesão ao tratamento (Postagens F, L e O). Falar de corpos cisgêneros e transgêneros (Postagens A e H). Divulgar possibilidades de acolher corpos outros, de incluir, reconhecer, afirmá-los em suas diferenças (Postagens B e H). Falar com atores pornôs, falar sobre sexo sem camisinha, em deslocamentos, em fugas de morais conservadoras (Postagens I e M). Deslocar da lógica de pensar em promiscuidade para falar de cuidados (Postagem J). Falar, fazer, poder falar e fazer. A página instaura-se como território de todas essas instâncias: produz discursos e práticas, acolhe e informa pelas mídias. Entrelaça linhas de saber-poder médico com ciberinclusão e ciberacolhimento, em também possíveis resistências e linhas de fuga aos saberes-poderes que cerceiam e limitam, que excluem, marginalizam e, com toda certeza, também matam.

A página, ao instaurar territórios de ciberacolhimento - como por meio da Equipe Maravilha em seus tempos de atuação, e de seus diferentes profissionais que conversavam, acolhiam e orientavam virtualmente as pessoas que entravam em contato, na divulgação de ONGs e espaços de diálogo e trocas, entre outras formas -, de compartilhar informações, de defesa e luta por direitos de grupos historicamente negligenciados, e de, em algum nível, criação de espaços de fala e de escuta das pessoas vivendo e convivendo com HIV e aids, também instaura resistências e cria linhas de fuga a partir da força do coletivo. Junta-se às vozes de pessoas LGBTQIAPN+, sejam elas participantes da Equipe Maravilha, sejam elas convidadas, em uma polifonia, em forças.

Em meados da década de 1980, momentos de muito medo e incerteza em relação à epidemia de aids, Perlongher refletia sobre a importância de o medo não cercear o desejo, logo, não findar com a vida:

Há, para as populações ameaçadas, um risco real - que não deve ser, porém, superestimado. Trata-se, talvez, de um instável compromisso entre o risco e o gozo, sujeito ao vaivém do desejo. Essa afirmação do desejo não deveria ser vivida (como quer a histeria higienista) com culpa e peso de consciência, mas com alegria. Seria paradoxal que o medo da morte nos fizesse perder o gosto da vida (PERLONGHER, 1987, p. 92).

O risco preenche a vida e, quiçá, é ele quem caracteriza a instância vida: eis a tarefa de “estar atento aos perigos que podem advir de um tropeço na corda bamba da vida, nos riscos que circundam uma existência em meio aos movimentos-desejos que a guiam e possibilitam devir” (SALES, 2022, p. 8). O prazer, o tesão e as experimentações que se fazem nos encontros entre corpos também são permeados por riscos, perigos e moralidades. São cobiçados e disputados por se tratarem de territórios de desejo e de vida. Percebemos, assim, que a página fala, antes de tudo, em vida. Em fragilidade da vida, cuidado da vida, desejos de vida e preservação da vida. Ao produzir suas narrativas, também se entremeia nas teias de saber-poder médico a todo momento, porém, permanece altamente rica na potência de embrionar linhas de fuga, de movimentar resistências capilares pelas diferenças, pelas multiplicidades de experiências e experimentações possíveis do corpo e do desejo, mesmo em um risco constante de cair nas tramas identitárias, representacionais e biomédicas. Entretanto, percebemos - e afirmamos - que a vida resiste e re-existe, também na página, de múltiplas formas, mesmo que molecularmente, na força dos desejos que lá transbordam.

Considerações finais

Um pouco de possível, senão eu sufoco.

Deleuze (2013, p. 135)

Deleuze (2013DELEUZE, Gilles. Conversações. 3 ed. São Paulo: Ed. 34, 2013.), ao falar sobre o trabalho de Foucault, reflete a necessidade de um pouco de possível para não sufocar. Quais possíveis habitam as mídias? As páginas virtuais? As tecnologias? Os estudos da sexualidade? O corpo e suas experimentações? A prevenção? As pedagogias que se fazem nos múltiplos espaços? Os desejos? A vida?

Reconhecemos que este estudo tem limitações as quais merecem ser pontuadas, dando espaço para pesquisas e escritas por vir. Algumas delas são: o lugar situado dos pesquisadores enquanto pessoas brancas vinculadas a instituições públicas de ensino-pesquisa-extensão da região sudeste brasileira; o espaço temporal principal do pesquisar que se debruçou, sobretudo, ao fim do ano de 2020 e início de 2021, nas postagens de @DoutorMaravilha, e também na sua escolha e seleção, reconhecendo que a página possui uma amplitude de publicações - e discursos e práticas a elas associados - que extrapola o aqui cartografado; o recorte limitado de apenas quinze publicações às quais nos detivemos - por mais que nos encontrássemos e inspirássemos nas escritas-encontros em outras tantas; as variações subjetivas e afetivas não quantificáveis que permearam aquele período inicial de investigação; as reverberações histórico-culturais-científicas que seguiram se atualizando nos tempos após as escritas iniciais, as quais tentamos, mas reconhecemos não ser possível em sua totalidade esgotar. Sabemos que este artigo apresenta notas, perspectivas, reflexões e possibilidades de ver, entender, aprender e percorrer uma mídia digital, de pensar e mobilizar conceitos para se situar no contemporâneo em torno do corpo e da sexualidade, não pretendendo, assim, produzir certezas e vias definitivas, mas abrir caminhos de diálogo. Assim sendo, reconhecemos que a página @DoutorMaravilha, foco deste texto, possibilita fraturas nos processos de ciberexclusão e ciberagressão, na medida em que cria territórios online, tecnológicos e midiáticos de diálogo sobre experiências LGBTQIAPN+ e vivências com HIV/aids de acolhimento, inclusão e divulgação científica. Ela assume-se como território de apropriação da cultura científica, uma vez que podemos discutir os corpos medicalizados que ficam à mercê de julgamentos e violências médicas, seja presencialmente ou digitalmente. Assim, atua como divulgadora científica, compartilhando conhecimentos que permeiam saberes e práticas que atravessam corpo, gênero e sexualidade por meio da mídia, território-base de sua atuação. Ao criar narrativas, produz realidades, movimenta práticas, valida experiências, na medida em que, também, as captura para o olhar médico, para a biopolítica, delineando-as dentro do campo do saber-poder médico.

Ao falar de indetectabilidade e intransmissibilidade, adesão à TARV e das possibilidades de uma vida com HIV próxima de uma pretensa normalidade, a página torna-se território de produção e constante atualização da aids como um dispositivo crônico, conectando-se com o dispositivo da sexualidade e outros dispositivos médicos. Mas, mais do que lugar de movimento desse dispositivo e aqueles a ele relacionados, ela também atua ativamente e possibilita fissuras ao romper com silêncios e silenciamentos, ao falar de estigma, de vulnerabilizações e de instâncias que atuam na instauração de políticas de morte, de precarização das vidas por ele(s) afetadas. Mais do que não ser sorofóbica,14 14 A sorofobia é o preconceito, estigma, medo e discriminação em relação às pessoas que vivem com HIV e aids. a página é antissorofóbica: atua ativamente no combate do estigma, da discriminação e do preconceito que afeta as pessoas vivendo com HIV/aids, na luta contra a aids e na defesa de um Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro que seja público, gratuito e de qualidade. Talvez, por situar-se no próprio lugar de saber-poder médico, lhe seja possível falar tanto e, assim, também fissurar, de dentro, este território duro.

A página configura-se como espaço de divulgação da cultura científica e também de criação de narrativas outras, em hibridizações entre saber-poder médico e saberes locais, múltiplos, marginais, subalternos. Ao compartilhar conhecimentos, rompendo muros médico-acadêmico-científicos, atua em movimentos de ciberinclusão. Ao criar espaços de compartilhamento - seja nos comentários, nos likes, na caixa de mensagens ou na própria existência das publicações -, também instaura ciberacolhimentos, em movimentos de combates à ciberagressão às pessoas LGBTQIAPN+, vivendo com HIV/aids, negras, mulheres, dentre outros grupos que possam, em seus territórios, encontrar um espaço seguro, um ninho. Assim, habita - na medida em que também produz - um espaço de tensão e disputa entre saber-poder médico e resistência, mas que permanece em constante movimento e altamente poroso às linhas de fuga. Em suma, um território de vida.

Referências

  • BUTTURI JUNIOR, Atilio; LARA, Camila de Almeida. “As narrativas de si e a produção da memória do hiv na campanha O cartaz HIV positivo”. Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 18, n. 2, p. 393-411, 2018.
  • BUTTURI JUNIOR, Atilio. “O HIV, o ciborgue e o tecnobiodiscursivo”. Trabalhos em Linguística Aplicada, Campinas, v. 58, n. 2, p. 637-657, 2019.
  • DELEUZE, Gilles. Conversações 3 ed. São Paulo: Ed. 34, 2013.
  • DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs - Vol. V São Paulo: Ed. 34, 2012.
  • DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos São Paulo: Escuta, 1998.
  • FISCHER, Rosa Maria Bueno. “O dispositivo pedagógico da mídia: modos de educar na (e pela) TV”. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 28, n. 1, p. 151-162, 2002.
  • FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder Rio de Janeiro/São Paulo: Paz & Terra, 2019.
  • FOUCAULT, Michel. Repensar a Política Rio de Janeiro: Forense, 2010.
  • FOUCAULT, Michel. “O Sujeito e o Poder”. In: FOUCAULT, Michel. Genealogia da ética, subjetividade e sexualidade Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014. p. 118-140.
  • FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão Petrópolis: Vozes, 1999.
  • GAVIGAN, Kelly; RAMIREZ, Ana; MILNOR, Jack; PEREZ-BRUMER, Amaya; TERTO JUNIOR, Veriano; PARKER, Richard. “Pedagogia da Prevenção: reinventando a prevenção do HIV no século XXI”. Abia - Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids: Perspectiva Política, Rio de Janeiro, n. 1, p. 1-16, 2015.
  • HARAWAY, Donna. “Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX”. In: HARAWAY, Donna; KUNZRU, Hari; TADEU, Tomaz. Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano Belo Horizonte: Autêntica, 2000. p. 33-118.
  • PELÚCIO, Larissa; MISKOLCI, Richard. “A prevenção do desvio: o dispositivo da aids e a repatologização das sexualidades dissidentes”. Sexualidad, Salud y Sociedad - Revista Latinoamericana, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p. 125-157, 2009.
  • PERLONGHER, Néstor. O que é Aids São Paulo: Brasiliense, 1987.
  • PRECIADO, Paul B. Testo Junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica São Paulo: n-1 edições, 2018.
  • ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental: transformações contemporâneas do desejo Porto Alegre: Sulina, 2016.
  • SALES, Tiago Amaral. “Entre tesões, tensões e prevenções: HIV/Aids e contaminações com as obras de Adriana Bertini”. ClimaCom, Campinas, v. 7, n. 19, 2020.
  • SALES, Tiago Amaral. “A Aids como Dispositivo: linhas, te(n)sões e educações entre vida, morte, saúde e doença”. Pro-Posições, Campinas, v. 33, n. 1, p. 1-28, 2022.
  • SEFFNER, Fernando; PARKER, Richard. “Desperdício da experiência e precarização da vida: momento político contemporâneo da resposta brasileira à aids”. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 20, n. 57, p. 293-304, 2016.
  • SIERRA, Jamil Cabral. “Corpo, sexualidade e poder: a homossexualidade na mídia e as biopolíticas de prevenção contra a aids”. Textura, Canoas, v. 1, n. 28, p. 111-128, 2013.
  • SIERRA, Jamil Cabral; MEYER, Dagmar Estermann. “Entre capturas biopolíticas e estratégias de resistência LGBT: um ensaio sobre a lógica fármaco-moralizante na profilaxia pré-exposição: PrEP”. Revista Interinstitucional Artes de Educar, Rio de Janeiro, v. 6, n. 3, p. 1018-1037, 2020.
  • 1
    Sobre a biopolítica, o filósofo francês Michel Foucault (2019, p. 144) afirma que “O controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo. Foi no biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade capitalista. O corpo é uma realidade biopolítica. A medicina é uma estratégia biopolítica”.
  • 2
    Sobre a aids como um dispositivo, sugerimos a leitura dos seguintes trabalhos: Perlongher (1987); Pelúcio e Miskolci (2009); Butturi Junior e Lara (2018); Butturi Junior (2019) e Sales (2022).
  • 3
    Sobre o conceito de dispositivo, Foucault (2019, p. 364, grifos nossos) afirma que: “Por esse termo tento demarcar, em primeiro lugar, um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre esses elementos”.
  • 4
    A página @DoutorMaravilha possuía, até 28/12/2023, dia de último acesso e revisão para esta pesquisa, 169 mil seguidores e 2179 postagens.
  • 5
    Outras páginas de divulgação de questões em torno de saúde, sexualidade, com foco nas populações LGBTQIAPN+, também estão presentes nas mídias brasileiras e internacionais. Focamos na página @DoutorMaravilha por reconhecermos o seu alcance e percebermos o movimento de divulgar saberes científicos em vocabulários populares. Tal questão nos chamou atenção duplamente, tanto pelas possibilidades de facilitar o acesso a tecnologias que pudessem garantir e popularizar maneiras múltiplas de cuidado, quanto pelas ramificações biomédicas em torno da vida, ao adentrarem outros territórios de distintas maneiras. Vale reforçar que o médico Vinícius Borges também divulga as suas postagens em outros espaços virtuais, como em sua página no Twitter (acesso em 19/12/2023).
  • 6
    As investigações de pesquisa na página @DoutorMaravilha, juntamente da escolha das postagens publicamente lá compartilhadas, ocorreram nos anos de 2020 e 2021, sendo estas também publicizadas neste biênio.
  • 7
    Na página @DoutorMaravilha, junto da prática de popularização de saberes científicos - sobretudo biomédicos - ligados às questões de saúde - sexual, LGBTQIAPN+, infectocontagiosas, entre outras - e defesa de pautas ligadas ao campo dos Direitos Humanos, como combate à LGBTQIAPN+fobia, machismo e racismo, o médico infectologista Vinícius Borges também divulga o seu trabalho e oferta acesso a serviços de saúde, como consultas, as quais não são gratuitas.
  • 8
    No dia 26 de março de 2022, a página @DoutorMaravilha divulgou em uma postagem o fim da Equipe Maravilha: “A Equipe Maravilha se encerra, o Doutor Maravilha e sua liga da justiça continuam”. (Acesso em 28/03/2022). Nesta publicação é possível conhecer um pouco mais quem compunha tal grupo de trabalho, e como se articulavam para tal. Na época de escrita inicial deste texto - meados de 2021 -, a equipe de profissionais referenciada estava ativamente em movimento e, assim, decidimos manter as marcas de sua participação que segue reverberando, mesmo que este coletivo tenha se encerrado e/ou direcionado para outros territórios de atuação. Após o fim da equipe maravilha, percebemos que a página se centrou no trabalho de Vinícius enquanto médico infectologista e divulgador das ciências biomédicas.
  • 9
    Sigla para Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais/travestis, Queer, Intersexuais, Assexuais, Pansexuais, Não Binaries e o “+” para as múltiplas outras existências que possam ser “categorizadas” dentro do que, popularmente, se defende ser um coletivo ou comunidade. O médico Vinícius Borges, principal responsável pela página, se intitula “médico gay” e “médico colorido”, como é possível ver nas postagens A e D.
  • 10
    Percebemos que, dentre tantos grupos além de profissionais da saúde, a página também direciona as suas postagens prioritariamente a homens cis gays, mas não somente, também dialogando com outros grupos e maneiras de ser, estar, performar e viver, como as pessoas que compõem as outras letras de LBTQIAPN+.
  • 11
    Salientamos que dois movimentos acontecem e que, em muitos momentos, eles se borram: acompanhamos a página desde 2019 até os tempos atuais (início de 2024, quando fizemos as últimas revisões deste texto), e debruçamo-nos na pesquisa que resultou neste artigo, tendo uma atenção diferente às publicações, escolhendo e selecionando algumas para compor com as escritas, sobretudo nos anos de 2020 e 2021.
  • 12
    As figuras presentes nas publicações selecionadas podem ser acessadas através dos links das respectivas postagens. Estas páginas foram selecionadas para compor a pesquisa durante os anos de 2020 e 2021, porém os endereços foram novamente conferidos e estavam disponíveis até a última revisão do texto, em 30 de abril de 2024.
  • 13
    Inspirado na música Ideologia, de Cazuza, em seu trecho “meu tesão agora é risco de vida”.
  • 14
    A sorofobia é o preconceito, estigma, medo e discriminação em relação às pessoas que vivem com HIV e aids.
  • 15
    Como citar este artigo de acordo com as normas da revista: SALES, Tiago Amaral; CARVALHO, Daniela Franco. “Sexualidades entre saber-poder, resistências e linhas de fuga em ‘Doutor Maravilha’”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 32, n. 2, e88358, 2024
  • Financiamento: Para a realização do presente trabalho, o primeiro autor contou com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001
  • 17
    Consentimento de uso de imagem: Não se aplica
  • 18
    Aprovação de comitê de ética em pesquisa: Não se aplica

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    31 Maio 2022
  • Revisado
    07 Mar 2024
  • Aceito
    28 Mar 2024
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