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Feminismo e arqueologia no Peru: caminhos e desafios das arqueólogas peruanas

Feminism and archaeology in Peru: paths and challenges of Peruvian female archaeologists

Feminismo y arqueología en el Perú: caminos y desafíos de las arqueólogas peruanas

Resumo:

O objetivo do artigo é apresentar a trajetória de inserção das mulheres na arqueologia peruana e o desenvolvimento da arqueologia feminista e de gênero no país. A influência dos movimentos feministas peruanos foi crucial para que houvesse uma abertura da disciplina que permitisse a entrada das mulheres no trabalho arqueológico. Apesar disso, ainda existe uma série de desafios enfrentados pelas arqueólogas peruanas e as subáreas de feminismo e gênero ainda encontram resistências na disciplina.

Palavras-chave:
arqueologia feminista; arqueologia de gênero; feminismo peruano; arqueólogas peruanas

Abstract:

The aim of the article is to show the trajectory of women's insertion in Peruvian archaeology, and the development of feminist and gender archaeology in Peru. The influence of Peruvian feminist movements was crucial to open up the discipline to the entrancy of women in archaeological work. Despite this, there are a lot of challenges faced by the women in the Peruvian archaeology, and the sub-areas of feminism and gender still front resistance in the discipline.

Keywords:
Feminist archaeology; Gender archaeology; Peruvian feminism; Peruvian archaeologists

Resumen:

El objetivo del artículo es presentar la trayectoria de inserción de la mujer en la arqueología peruana y el desarrollo de la arqueología feminista y de género en el país. La influencia de los movimientos feministas peruanos fue crucial para abrir la disciplina y permitir que las mujeres ingresaran al trabajo arqueológico. A pesar de esto, todavía existe una serie de desafíos que enfrentan las arqueólogas peruanas y las subáreas de feminismo y género sufren resistencias en la disciplina.

Palabras-clave:
arqueología feminista; arqueología de género; feminismo peruano; arqueólogas peruanas

Introdução

Este ensaio visa apresentar de maneira linear a inserção das mulheres (cisgênero, neste caso) no campo da arqueologia no Peru, bem como analisar a forma como está se desenvolvendo a arqueologia feminista e de gênero no país. As contribuições de arqueólogas tanto peruanas quanto estrangeiras são essenciais nesse cenário, que possui potenciais de crescimento e desafios em seu caminho. É importante levar em consideração que este artigo não tem o objetivo de realizar uma discussão teórica acerca das arqueologias feminista e de gênero,1 1 Para maiores discussões teóricas sobre essa temática, consultar publicações prévias da autora (PAGNOSSI, Nádia C. “Construindo uma arqueologia de gênero”. Revista Arqueologia Pública, v. 11, n. 1, p. 50-66, 2017 e PAGNOSSI, Nádia C. A arqueologia de gênero e suas aproximações com a história. 2013. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História) - Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, MG, Brasil). focando nas questões concernentes ao processo de inserção das mulheres na arqueologia peruana e no surgimento das arqueologias feminista e de gênero no país.

Antes de adentrar no trabalho das mulheres na arqueologia peruana e no desenvolvimento da arqueologia de gênero, é necessário pontuar que houve um impacto dos movimentos feministas peruanos para que as mulheres tivessem a oportunidade de se qualificarem profissionalmente em direção ao exercício da arqueologia. Esse impacto do feminismo, cuja trajetória será brevemente tratada, possibilitou não apenas a entrada das mulheres no mercado de trabalho formal, mas sua participação na vida política.

O movimento feminista peruano tem início a partir da primeira metade do século XX, no contexto dos movimentos anarco-sindicalistas. Nessa conjuntura, as mulheres começaram a participar e apoiar as greves operárias, visto serem extremamente exploradas nas fábricas, chegando a ganhar 60% a menos que os homens (Sara GUARDIA, 2013GUARDIA, Sara. Mujeres peruanas: el otro lado de la historia. 5 ed. Lima: Editorial Minerva, 2013.). Nesse primeiro momento, o foco das feministas esteve na luta por igualdade jurídica, conquista de leis trabalhistas e exigência da cidadania formal (Violeta SILVA; Fanni CABREJO, 2014SILVA, Violeta B.; CABREJO, Fanni M. “Un bosquejo del feminismo/s peruano/s: los múltiples desafíos”. Revista Estudos Feministas, v. 22, p. 637-645, 2014.).

Em 1911, aconteceu a primeira palestra sobre feminismo no país, ditada por María Jesús Alvarado Rivera. Ela foi a fundadora da primeira organização feminista peruana, chamada Evolución Femenina, grupo composto em sua maioria por mulheres das classes médias e iniciado em 1914. As intenções do movimento eram incorporar as mulheres ao mercado de trabalho formal e conseguir igualdade jurídica. As ações mais comuns do grupo foram os cursos de capacitação para mulheres pobres, especialmente na área de enfermagem. Além do Evolución Femenina, uma nova organização feminista, chamada Feminismo Peruano, foi criada em 1924 pela escritora modernista Zoila Aurora Cáceres Moreno. As principais causas da organização eram a luta pelo sufrágio feminino e a igualdade salarial (GUARDIA, 2013GUARDIA, Sara. Mujeres peruanas: el otro lado de la historia. 5 ed. Lima: Editorial Minerva, 2013.).

Enquanto as lutas ocorriam no campo político e dentro dessas organizações, no meio literário, as mulheres ganharam um espaço através da Revista Amauta. Fundada em 1926, a revista abriu espaço para diversas artistas (principalmente escritoras) peruanas e estrangeiras que estavam engajadas em causas políticas, tais como: Magda Portal, Gabriela Mistral, Ada Negri, Allonsina Storni, Juana de Ibarbourou, Blanca Luz Brum, Dora Mayer, Carmen Saco, Julia Codesido, María Wiesse, Blanca del Prado, Ángela Ramos e Alicia del Prado (COMISIÓN ESPECIAL MULTIPARTIDARIA CONMEMORATIVA DEL BICENTENARIO DE LA INDEPENDENCIA DEL PERÚ, 2021COMISIÓN Especial Multipartidaria Conmemorativa del Bicentenario de la Independencia del Perú. Rumbo al Bicentenario, 2021. Disponível em Disponível em https://www.congreso.gob.pe/Docs/comisionbicentenario/libro/16/index.html . Acesso em 11/11/2021.
https://www.congreso.gob.pe/Docs/comisio...
). A participação destas artistas incluía a publicação de artigos de opinião, ensaios, poemas e outros escritos. Muitas aproveitaram para expor as pautas feministas da época, falar sobre matrimônio e divórcio, bem como sobre assuntos relacionados ao contexto político nacional e internacional (GUARDIA, 2013GUARDIA, Sara. Mujeres peruanas: el otro lado de la historia. 5 ed. Lima: Editorial Minerva, 2013.).

Com as reivindicações feministas entrando no cenário político, o voto feminino é aprovado no Peru em 1933, nas eleições municipais. Porém, foi permitido somente para mulheres maiores de 21 anos e alfabetizadas, ou casadas e mães (família e filhos as tornavam “maiores de idade” perante a lei). Essas mesmas condições foram exigidas quando o sufrágio feminino foi aprovado em 1955, para as eleições nacionais (SILVA; CABREJO, 2014SILVA, Violeta B.; CABREJO, Fanni M. “Un bosquejo del feminismo/s peruano/s: los múltiples desafíos”. Revista Estudos Feministas, v. 22, p. 637-645, 2014.). Apesar dessa aprovação, a grande massa das mulheres passou a votar de fato somente em 1979, quando a Constituição determinou o sufrágio universal a todas as pessoas maiores de idade, e a igualdade de gênero perante a lei. Ainda dentro da vida política, em 1945, são eleitas as primeiras prefeitas nas cidades de: Huancané, Urubamba, Arequipa e Matucana. A partir desses eventos, as mulheres peruanas começaram a ter uma tímida inserção no poder governamental (COMISIÓN ESPECIAL MULTIPARTIDARIA CONMEMORATIVA DEL BICENTENARIO DE LA INDEPENDENCIA DEL PERÚ, 2021).

Em 1936, Alicia del Prado fundou o grupo Acción Femenina, que estava ligado ao Partido Comunista, e tinha como objetivo principal a capacitação para a atuação dentro do partido, bem como a formação de comitês de ajuda às vítimas da Segunda Guerra Mundial. A organização se manteve ativa até 1952, ano em que a maioria das dirigentes foi perseguida e presa pela ditadura de Ódria. Mesmo durante o período ditatorial, surgem diversos jornais com tendências socialistas no Peru. Esses jornais serão de extrema importância nas décadas de 1950 e 1960 por serem um espaço de militância feminista, visto que sempre haviam sessões sobre os avanços do movimento no país e no mundo (GUARDIA, 2013GUARDIA, Sara. Mujeres peruanas: el otro lado de la historia. 5 ed. Lima: Editorial Minerva, 2013.).

Com o crescimento do feminismo durante as décadas de 1960 e 1970, e as publicações das obras clássicas de Beauvoir, Friedan, Millet e Firestone, a superação do patriarcado passa a ser uma das pautas feministas principais, bem como as sexualidades e relações de poder na família e na sociedade (SILVA; CABREJO, 2014SILVA, Violeta B.; CABREJO, Fanni M. “Un bosquejo del feminismo/s peruano/s: los múltiples desafíos”. Revista Estudos Feministas, v. 22, p. 637-645, 2014.). No Peru, há um impacto da publicação dessas obras, porém os temas mais importantes vão além, se ampliando para as questões trabalhistas e a objetificação da mulher. Entre 1961 e 1980 ocorreu um aumento de 70% de mulheres no mercado de trabalho formal, decorrente de um grande êxodo rural no período. A taxa de crescimento da população feminina economicamente ativa superou a masculina, porém as condições de trabalho eram piores, com salários menores ou inexistentes (GUARDIA, 2013GUARDIA, Sara. Mujeres peruanas: el otro lado de la historia. 5 ed. Lima: Editorial Minerva, 2013.).

Como comentado, a objetificação do corpo passa a ser uma das agendas do movimento feminista peruano, o que é notável em uma marcha ocorrida em 8 de abril de 1973 contra o concurso de Miss Universo. Mais de 100 mulheres se reuniram no ato, que ficou conhecido como Rebelión de las Brujas pela imprensa da época. Esse protesto foi um marco, pois permitiu a visibilização das mulheres e de suas lutas. Após esse evento, os concursos de beleza foram suspensos pelo Ministério da Educação até 1976, por considerar ofensivo às mulheres serem usadas como objeto sexual. Durante esse período, surgiram vários órgãos, tais como: o Consejo Nacional de Mujeres del Perú (1971), a Comisión Nacional de la Mujer Peruana (1974) e o Comité Técnico de Revaloración de la Mujer (1972). A partir dessas entidades, uma nova fase da luta feminista é iniciada no Peru. Essa nova fase contou com a atuação tanto de ONGs quanto de instituições do Estado (SILVA; CABREJO, 2014SILVA, Violeta B.; CABREJO, Fanni M. “Un bosquejo del feminismo/s peruano/s: los múltiples desafíos”. Revista Estudos Feministas, v. 22, p. 637-645, 2014.).

Além disso, novos assuntos emergiram no movimento feminista da época, incluindo as temáticas de direito ao corpo, homossexualidade, violência doméstica, maternidade, aborto e dominação masculina. Ao abordar algumas destas questões na sociedade peruana, a obra Cinturón de castidad: la mujer de clase media en el Perú, escrita pela cientista social Maruja Barrig (2017BARRIG, Maruja. Cinturón de castidad: la mujer de clase media en el Perú. Lima: Instituto de Estudios Peruanos, 2017.) em 1979, obteve um grande impacto em sua publicação, se tornando um clássico do feminismo peruano por expor as formas nas quais o Estado e a Igreja católica controlavam a vida e corpo das mulheres (SILVA; CABREJO, 2014SILVA, Violeta B.; CABREJO, Fanni M. “Un bosquejo del feminismo/s peruano/s: los múltiples desafíos”. Revista Estudos Feministas, v. 22, p. 637-645, 2014.).

Na década de 1980, surgiram organizações de mulheres nos setores urbanos-populares para fazer frente à pobreza na ausência de políticas públicas. Como exemplo estão os Comedores populares e os Comités vaso de leche. Esses grupos foram perseguidos na década de 1990 pelo terrorismo do Sendero Luminoso, que acabou assassinando algumas de suas líderes como Doraliza Díaz e María Elena Moyano por considerá-las governistas. A ação do Sendero enfraqueceu essas organizações populares urbanas (GUARDIA, 2013GUARDIA, Sara. Mujeres peruanas: el otro lado de la historia. 5 ed. Lima: Editorial Minerva, 2013.).

Além desses grupos, as décadas de 1980 e 1990 foram marcadas pela saída massiva das feministas dos movimentos de esquerda, visto que estes não contemplavam suas pautas. Um Comitê de Coordenação do Movimento Feminista é fundado em 1983, porém é dissolvido três anos mais tarde por tensões internas (SILVA; CABREJO, 2014SILVA, Violeta B.; CABREJO, Fanni M. “Un bosquejo del feminismo/s peruano/s: los múltiples desafíos”. Revista Estudos Feministas, v. 22, p. 637-645, 2014.). Outro marco da época foi a maior participação política feminina. Em 1991, é formada uma célula parlamentar de mulheres para impulsionar pautas de educação e combate à violência (GUARDIA, 2013GUARDIA, Sara. Mujeres peruanas: el otro lado de la historia. 5 ed. Lima: Editorial Minerva, 2013.). Em 1995, é criada a Comissão Especial da Mulher no Congresso Nacional e, no ano seguinte, o Ministerio de Promoción de la Mujer y del Desarrollo (PROMUDEH). A partir de então, serão feitas mais leis visando à implementação de cotas para mulheres nas eleições. Mesmo com as cotas, ainda é pequeno o número de mulheres na política peruana (COMISIÓN ESPECIAL MULTIPARTIDARIA CONMEMORATIVA DEL BICENTENARIO DE LA INDEPENDENCIA DEL PERÚ, 2021).

Essa pequena representação política também se reflete nos sindicatos e na falta de uma legislação laboral e antiviolência que atenda às mulheres peruanas. Nesse contexto, surgem muitas ONGs que cumprem papéis que caberiam ao Estado. Para Sonia Alvarez (1998ALVAREZ, Sonia. “Feminismos latinoamericanos”. Revista Estudos Feministas, p. 265-284, 1998.), as ONGs feministas se diferenciam das organizações comuns ou mistas, pois visam não só à filantropia, mas à alteração das relações de gênero e poder. No caso peruano, essas instituições funcionam como centros de ação e movimento social ao mesmo tempo (ALVAREZ, 1998ALVAREZ, Sonia. “Feminismos latinoamericanos”. Revista Estudos Feministas, p. 265-284, 1998.).

Nas décadas de 1990 a 2000, no contexto do governo Fujimori, há uma maior tendência à generalização do discurso de igualdade de gênero como sinônimo de modernidade. O Estado peruano passa a se alinhar com fundos internacionais para a promoção da igualdade, enxergando as ONGs feministas como especialistas técnicas em gênero e feminismo. Nessa visão, as ONGS feministas atuam como veículo sócio do Estado para a modernização social e econômica (ALVAREZ, 1998ALVAREZ, Sonia. “Feminismos latinoamericanos”. Revista Estudos Feministas, p. 265-284, 1998.).

Uma das consequências desse processo é a perda do caráter militante das ONGs, que acabam caindo em uma espécie de “acomodação discursiva”, já que agem enquanto empresas terceirizadas do Estado. Por outro lado, ONGs que não entram no esquema governista são silenciadas e marginalizadas do debate público (ALVAREZ, 1998ALVAREZ, Sonia. “Feminismos latinoamericanos”. Revista Estudos Feministas, p. 265-284, 1998.).

Dos anos 2000 em diante, passado o período do terrorismo no Peru, o movimento feminista irá se concentrar nas universidades e nas ONGs. Apesar disso, a situação das mulheres ainda é precária, especialmente nas zonas rurais e na frequente marginalização das mulheres indígenas (SILVA; CABREJO, 2014SILVA, Violeta B.; CABREJO, Fanni M. “Un bosquejo del feminismo/s peruano/s: los múltiples desafíos”. Revista Estudos Feministas, v. 22, p. 637-645, 2014.). Essa concentração nas universidades e ONGs acaba por diversificar o movimento, que se torna múltiplo (feminismos) e acaba por abraçar outras causas, como as pautas LGBTQIA+.

Mulheres na arqueologia peruana

A entrada das mulheres no campo da arqueologia irá de certo modo acompanhar o contexto de admissão das mulheres nas universidades e no mercado formal de trabalho, se intensificando com o avanço dos movimentos feministas após a década de 1960. No Peru, a presença (ainda escassa) de arqueólogas tanto estrangeiras quanto peruanas foi iniciada por volta de 1920, com o trabalho da arqueóloga peruana Rebeca Carrión Cachot de Girard (Figura 1-d). Carrión Cachot de Girard foi colaboradora de Tello2 2 Julio César Tello, conhecido como “pai da arqueologia peruana”, desenvolveu seus trabalhos entre 1919 a 1940, nas regiões de Ancash, Ica, rio Marañón e rio Urubamba. A perspectiva teórica adotada por ele foi o histórico-culturalismo, com a crença em uma origem amazônica da civilização andina ([xref ref-type="bibr" rid="r30"]RAMOS, 2013[/xref]). O principal trabalho do arqueólogo foi em Chavín de Huantar, que ele acreditava ser a cultura matriz das sociedades andinas posteriores, o que foi refutado posteriormente por análises cronológicas aprofundadas. Tello será um militante ativo do indigenismo, encarnando os valores nacionalistas e de enaltecimento do passado indígena pré-hispânico (SHIMADA, Izumi; CENTENO, Rafael V. Arqueología peruana: crecimiento, características, práctica y desafíos. Peruvian Archaeology: Its Growth, Characteristics, Practice, and Challenge. In: LOZNY, Ludomir R. (Ed.). Comparative Arqueologies: A Sociological View of the Science of the Past. New York: Springer, 2011). no Museo Nacional de Arqueología y Antropología desde 1921. Quando o arqueólogo faleceu, em 1947, a diretoria do museu passou a ter seu nome, pois ela era a funcionária mais capacitada e experiente para o cargo. Na direção do museu, Rebeca se tornou a principal biógrafa de Tello, publicando várias de suas obras, e tomando o cargo de editora da Revista del Museo Nacional por longos anos (Pedro NOVOA, 2013NOVOA, Pedro. “Una aproximación a la obra de Rebeca Carrión Cachot entre 1947 y 1960”. In: TANTALEÁN, Henry. Historia de la Arqueología en el Perú del Siglo XX. Lima: Instituto Francés de Estudios Andinos/Institute of Andean Research, 2013. p. 529-550.).

Em 1949, Carrión Cachot de Girard (1949CARRIÓN CACHOT DE GIRARD, Rebeca. Paracas: cultural elements. Lima: Corporación Nacional de Turismo, 1949.) participou de eventos e fez diversas publicações. Nesse ano, ela visitou os Estados Unidos levando um fardo de uma múmia Paracas consigo, cuja abertura foi realizada diante das câmeras de televisão do país. Além disso, seu livro Paracas Cultural Elements se tornou referência internacional na área. Nos anos subsequentes, ela continuou atuando em congressos, visitando reservas técnicas em museus estrangeiros, e publicando em jornais e periódicos. Sua visão era semelhante à de Tello no enaltecimento das culturas indígenas pré-hispânicas e na denúncia da ação dos saqueadores de tumbas (NOVOA, 2013NOVOA, Pedro. “Una aproximación a la obra de Rebeca Carrión Cachot entre 1947 y 1960”. In: TANTALEÁN, Henry. Historia de la Arqueología en el Perú del Siglo XX. Lima: Instituto Francés de Estudios Andinos/Institute of Andean Research, 2013. p. 529-550.).

Carrión Cachot de Girard (1955CARRIÓN CACHOT DE GIRARD, Rebeca C. “El culto al agua en el antiguo Peru: la paccha, elemento cultural pan-andino”. Revista del Museo Nacional de Antropología y Arqueología, v. 2, n. 2, p. 50-140, 1955.; 1959CARRIÓN CACHOT DE GIRARD, Rebeca. La religión en el antiguo Perú: Norte y centro de la costa, período post-clásico. Lima: Tip. Peruana, 1959. v. 182.) atuou não somente no museu, mas participou de escavações no Peru, México e Guatemala. Suas obras El culto al agua en el antiguo Perú (1955) e La religión en el antiguo Perú (1959) tratam da cosmovisão andina, e demonstram a convergência entre dados arqueológicos, etnográficos e etno-históricos. Ambas as publicações são bibliografia básica da arqueologia peruana até o momento, e ganharam reedições em 2005 (NOVOA, 2013NOVOA, Pedro. “Una aproximación a la obra de Rebeca Carrión Cachot entre 1947 y 1960”. In: TANTALEÁN, Henry. Historia de la Arqueología en el Perú del Siglo XX. Lima: Instituto Francés de Estudios Andinos/Institute of Andean Research, 2013. p. 529-550.).

Outra arqueóloga que atuou durante as décadas de 1950 a 1970 foi Josefina Ramos de Cox (Figura 1-a). A arqueóloga dedicou seus estudos à região de Piura, sendo membro de diversas instituições, tais como: o Instituto Riva-Agüero, o Patronato Nacional de Arqueología e o clube Soroptimista, este último composto por mulheres profissionais. Cox frisou a importância marítima no desenvolvimento das sociedades da costa norte peruana. Outro grande projeto da arqueóloga ocorreu no Complexo Maranga, na preservação das Huacas de Lima.3 3 PUC-P. “Josefina Ramos de Cox”. PUC. Disponível em http://100.pucp.edu.pe/personajes/josefina-ramos-de-cox/. Acesso em 05/10/2021.

O avanço do movimento feminista peruano e as carreiras de Carrión Cachot de Girard e Josefina Cox abriram espaço para que outras arqueólogas se formassem e começassem a atuar no Peru. Hoje, grandes sítios arqueológicos como: Caral, Pachacamác e Huaca Pucllana são dirigidos por mulheres. Mas um longo caminho foi trilhado até que se chegasse a esse ponto. Na década de 1950, com o surgimento dos cursos de arqueologia, muitas arqueólogas fizeram sua formação e iniciaram diversos projetos. Entre elas estão Rosa Fung e Isabel Espinoza (Luis LUMBRERAS, 2019LUMBRERAS, Luis G. Pueblos y culturas del Perú antiguo. 3 ed. Lima: Petróleos del Perú, 2019.).

Rosa Fung (Figura 1-b) foi a primeira arqueóloga a realizar a formação profissionalizante básica da arqueologia dentro de uma universidade (Universidad Mayor de San Marcos). Assim como Cox, Fung deu protagonismo aos recursos vindos do mar. Seus trabalhos propuseram uma origem marítima da civilização andina e enfocaram no período Arqueolítico/Pré-Cerâmico (15.000-7.000 a.C.). Da mesma geração que Fung, Isabel Flores Espinoza (Figura 1-h) também se graduou na Universidad Mayor de San Marcos e dedicou mais de 40 anos de carreira ao sítio Huaca Pucllana. Atualmente, ela é a diretora do museu local (Ana NUÑEZ, 2020NUÑEZ, Ana. “Un homenaje a las ‘madres’ de la arqueología peruana”. Sur, 14/04/2020. Disponível em Disponível em https://elcomercio.pe/somos/historias/un-homenaje-a-las-madres-de-la-arqueologia-peruana-noticia/ . Acesso em 11/11/2021.
https://elcomercio.pe/somos/historias/un...
).

Outra pesquisadora de destaque para os estudos das sociedades antigas peruanas é María Rostworowski (1988ROSTWOROWSKI, María. “La mujer en la época prehispánica”. Instituto de Estudios Peruanos, 1988. (Documento de Trabajo n. 17, Serie Etnohistoria n. 1)) (Figura 1-e). Embora não tenha se formado necessariamente no curso de arqueologia, ela assistiu a aulas como ouvinte na Universidad de San Marcos, frequentando disciplinas ditadas por Tello, por exemplo. Seu trabalho se desenvolveu principalmente na área de etno-história e no papel das mulheres nas sociedades andinas. Seu artigo La mujer en la época prehispánica (1988) é referência básica para o entendimento da história das mulheres no Peru. Apesar da temática, a autora nunca se identificou como feminista.4 4 RIDEI. “Falleció María Rostworowski, la gran etnohistoriadora del Perú”. RIDEI, s.d. Disponível em https://red.pucp.edu.pe/ridei/noticias/fallecio-maria-rostworowski-la-gran-etnohistoriadora-del-peru/. Acesso em 05/10/2021.

Como mencionado, outros grandes sítios arqueológicos na direção de mulheres são: Caral e Pachacamac. Desde 1994, Ruth Shady Solís (Figura1-g) chefia o projeto Caral-Supe, sítio arqueológico Pré-Cerâmico com grande monumentalidade. Além da direção do sítio, Shady também é docente na Universidad Mayor de San Marcos e acumula anos de carreira, tendo dirigido outros museus e projetos.5 5 GOB-PE. Unidad ejecutora 003 - Zona Arqueológica Caral. Ruth Martha Shady Solís. Disponível em https://www.gob.pe/institucion/caral/funcionarios/18087-ruth-martha-shady-solis. Acesso em 10/11/2021. Já em Pachacamac, a gestora responsável é Denise Pozzi-Escot (Figura 1-f). Seu trabalho se centra nas temáticas da ocupação Inca na costa central, bem como nas culturas Wari e Chanka (NUÑEZ, 2020NUÑEZ, Ana. “Un homenaje a las ‘madres’ de la arqueología peruana”. Sur, 14/04/2020. Disponível em Disponível em https://elcomercio.pe/somos/historias/un-homenaje-a-las-madres-de-la-arqueologia-peruana-noticia/ . Acesso em 11/11/2021.
https://elcomercio.pe/somos/historias/un...
).

Por fim, merece destaque a arqueóloga Sonia Guillén (Figura 1-c), por seu pioneirismo no estudo da bioarqueologia e gestão de museus. Suas investigações se concentram na região sul do território peruano, porém incluem remanescentes humanos de todo o país (NUÑEZ, 2020NUÑEZ, Ana. “Un homenaje a las ‘madres’ de la arqueología peruana”. Sur, 14/04/2020. Disponível em Disponível em https://elcomercio.pe/somos/historias/un-homenaje-a-las-madres-de-la-arqueologia-peruana-noticia/ . Acesso em 11/11/2021.
https://elcomercio.pe/somos/historias/un...
). Ela foi a primeira cientista peruana a fazer parte da National Academy of Sciences (NAS) dos Estados Unidos, honraria que nenhum homem peruano obteve (NUÑEZ, 2018). Guillén foi Ministra da Cultura do Peru de 2019 a 2020, durante o governo de Martín Vizcarra.

Ao longo dos anos, muitas outras arqueólogas se destacaram no Peru, e o número de estudantes mulheres nos cursos de arqueologia é crescente (Gianella NEYRA, 2019NEYRA, Gianella P. “Relaciones de género: mujeres, sanmarquinas y chicheras”. Desde el Sur, v. 11, n. 2, p. 305-315, 2019.). Além das peruanas, algumas arqueólogas estrangeiras também merecem destaque, tais como: Anna Gayton, Dorothy Menzel, Carol Mackey, Elizabeth Benson, Heather Letchman, Anne Marie Hocquenghem e Joan Gero.

Figura 1
Arqueólogas peruanas de destaque: a) Josefina Cox,6 6 PUC-P. “Josefina Ramos de Cox”. PUC. Disponível em http://100.pucp.edu.pe/personajes/josefina-ramos-de-cox/. Acesso em 05/10/2021 b) Rosa Fung,7 7 LAMULA. “Bienvenidas las voces disonantes en la ciencia: la arqueologa Rosa Fung cuestiona datos inexactos sobre Caral”. Lamula, 2012. Disponível em https://lamula.pe/2012/06/20/bienvenidas-las-voces-disonantes-en-la-ciencia-la-arqueologa-rosa-fung-cuestiona-datos-inexactos-sobre-caral/arqueomula/. Acesso em 05/10/2021. c) Sonia Guillén,8 8 PLANAS, Enrique. “Sonia Guillén: La tarea de reanimar un ministério”. El Comercio, 2019. Disponível em https://elcomercio.pe/luces/arte/sonia-guillen-la-tarea-de-reanimar-un-ministerio-debate-noticia/. Acesso em 05/10/2021. d) Rebecca Carrión Cachot de Girard,9 9 UNMSM. Biografía de Rebeca Carrión Cachot. Disponível em https://www.unmsm.edu.pe/la-universidad/sanmarquino/carrion-cachot-rebeca. Acesso em 05/10/2021. e) María Rostworowski,10 10 RIDEI. “Falleció María Rostworowski, la gran etnohistoriadora del Perú”. RIDEI, s.d. Disponível em https://red.pucp.edu.pe/ridei/noticias/fallecio-maria-rostworowski-la-gran-etnohistoriadora-del-peru/. Acesso em 05/10/2021. f) Denise Pozzi-Escot,11 11 UCR. UNIVERSIDAD DE COSTA RICA. “Arqueóloga peruana visitou a UCR para oferecer uma conferência sobre gestão do patrimônio arqueológico”. UCR, 2021. Disponível em https://www.ucr.ac.cr/noticias/2021/07/29/arqueologa-peruana-visito-la-ucr-para-ofrecer-conferencia-sobre-la-gestion-del-patrimonio-arqueologico.html. Acesso em 05/10/2021. g) Ruth Shady Solís,12 12 REVISTA ENLACES. “Ruth Shady Solís sobre Caral”. Revista Enlaces, 15/03/2011. Disponível em https://dfinternacional.wordpress.com/2011/03/15/ruth-shady-solis-sobre-caral/. Acesso em 05/10/2021. h) Isabel Espinoza.13 13 COMISIÓN Especial Multipartidaria Conmemorativa del Bicentenario de la Independencia del Perú. Rumbo al Bicentenario, 2021. Disponível em https://www.congreso.gob.pe/Docs/comisionbicentenario/libro/16/index.html. Acesso em 11/11/2021.

Arqueologia feminista e de gênero no Peru e seus desafios

De maneira breve, as arqueologias feminista e de gênero nascem em meados dos anos 1980, quando o feminismo se insere na arqueologia. Neste primeiro momento, são questionados os pressupostos androcêntricos da disciplina. As interpretações essencialistas e anacrônicas que tomam por base as relações de gênero do presente como referência para as interpretações sobre o passado são refutadas pelas feministas, que iniciam um movimento de visibilização das mulheres dentro da disciplina, até então silenciadas. Essas arqueólogas se centraram em evidenciar a perpetuação das assimetrias de gênero na arqueologia tradicional (Alison WYLIE, 1997WYLIE, Alison. “The engendering of archaeology refiguring feminist science studies”. Osiris, v. 12, p. 80-99, 1997.).

Nesta época, o foco foi a crítica à falsa ideia de objetividade e neutralidade da disciplina, seu caráter elitista, eurocêntrico e machista, assim como a possibilidade de construção de novas análises arqueológicas, colocando as mulheres nos papéis de protagonistas. A categoria “homem”, vista como sujeito universal e principal responsável pelas atividades de: caça, pesca, agricultura e produção de objetos líticos, passa a ser contestada a partir de então. As discrepâncias no tratamento dado às arqueólogas em seus trabalhos tanto dentro do meio acadêmico quanto no campo da arqueologia de contrato14 14 Ramo da arqueologia profissional, não vinculado às pesquisas acadêmicas. Geralmente ocorre em conjunto com avaliações de impacto ambiental antes ou durante a realização de uma grande obra. serão igualmente enfatizadas pelas primeiras arqueólogas feministas (Margarita DÍAZ-ANDREU, 2005DÍAZ-ANDREU, María. “Género y arqueología: una nueva sínteses”. Arqueología y género, p. 13-51, 2005.).

Embora a arqueologia feminista e, posteriormente, de gênero, sejam vinculadas ao pós-processualismo e seu movimento de abertura para estudos de identidades, simbologia, corpo, entre outras temáticas, a corrente teórica em si, que não é homogênea, em certo modo continuou a perpetuar os androcentrismos de antes. Somente alguns arqueólogos pós-processuais trabalham com questões de gênero como tópicos centrais em suas análises. Em geral, a arqueologia feminista, e posteriormente de gênero, tem sido feita majoritariamente por mulheres. O feminismo ainda permanece marginal dentro da arqueologia, e os arqueólogos são extremamente conservadores e resistentes às suas ideias (Loredana RIBEIRO, 2017RIBEIRO, Loredana. “Crítica feminista, arqueologia e descolonialidade”. Revista de Arqueologia, v. 30, n. 1, p. 210-234, 2017.; Margaret CONKEY, 2007CONKEY, Margaret W. “Questioning theory: is there a gender of theory in archaeology?”. Journal of Archaeological Method and Theory, v. 14, n. 3, p. 285-310, 2007.).

Nos anos 1990, a arqueologia feminista passará a absorver as teorias de gênero. Muitas vezes, as arqueologias de gênero e feminista se confundem, porém, para algumas autoras, existe uma grande diferença. Para Berrocal (2009BERROCAL, María. “Feminismo, teoría y práctica de una arqueología científica”. Trabajos de Prehistoria, v. 66, n. 2, 2009. Disponível em https://digital.csic.es/bitstream/10261/20143/1/171.pdf.
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), a arqueologia de gênero se torna uma forma de fazer discussões de gênero dentro do campo da arqueologia sem uma vinculação direta com as teorias e práticas feministas, o que é extremamente contraditório, já que as teorias de gênero nascem do feminismo. Outra provável diferença entre as duas vertentes seria o enfoque nas mulheres, premissa da arqueologia feminista, enquanto que, na arqueologia de gênero, seria possível a abertura para outras categorias, como masculinidades e infância, por exemplo. Muitas vezes, a arqueologia de gênero também é tomada automaticamente como arqueologia feminista, e vice-versa (María BERROCAL, 2009BERROCAL, María. “Feminismo, teoría y práctica de una arqueología científica”. Trabajos de Prehistoria, v. 66, n. 2, 2009. Disponível em https://digital.csic.es/bitstream/10261/20143/1/171.pdf.
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; WYLIE, 1997WYLIE, Alison. “The engendering of archaeology refiguring feminist science studies”. Osiris, v. 12, p. 80-99, 1997.).

Acredito particularmente que a grande diferença esteja na questão da utilização da arqueologia enquanto ferramenta de mudança social através das teorias feministas e de gênero. A arqueologia feminista será mais engajada, enquanto que a de gênero poderá carregar esse engajamento forte ou não. Considero também impossível fazer uma arqueologia de gênero sem o uso do arcabouço teórico do feminismo.

Nos últimos 20 anos, a arqueologia de gênero teve um pequeno crescimento dentro da disciplina, e uma ampliação para fora dos Estados Unidos como, por exemplo, na Espanha (DÍAZ-ANDREU, 2005DÍAZ-ANDREU, María. “Género y arqueología: una nueva sínteses”. Arqueología y género, p. 13-51, 2005.; BERROCAL, 2009BERROCAL, María. “Feminismo, teoría y práctica de una arqueología científica”. Trabajos de Prehistoria, v. 66, n. 2, 2009. Disponível em https://digital.csic.es/bitstream/10261/20143/1/171.pdf.
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; Lourdes TORREIRA, 2008TORREIRA, Lourdes P. “Y la mujer se hace visible: estudios de género en la arqueología ibérica”. In: RUIZ, Carla López; TORREIRA, Lourdes P. Arqueología del género: Primer encuentro internacional en la UAM. Madrid: Universidad Autónoma de Madrid, 2008. p. 225-250.). As temáticas de trabalho da arqueologia de gênero se ampliam para uma gama de assuntos como: sexualidades, mobilidade feminina, corpo, etnoarqueologia, paisagem, assentamentos, agência, etnicidade, xamanismo, entre outros (CONKEY, 2007CONKEY, Margaret W. “Questioning theory: is there a gender of theory in archaeology?”. Journal of Archaeological Method and Theory, v. 14, n. 3, p. 285-310, 2007.; John ROBB; Oliver HARRIS, 2018ROBB, John; HARRIS, Oliver J. T. “Becoming gendered in European prehistory: was Neolithic gender fundamentally different?”. American Antiquity, v. 83, n. 1, p. 128-147, 2018.; Lucas OLIVEIRA; Daniela KLOKLER, 2018OLIVEIRA, Lucas; KLOKLER, Daniela. “Bodies, Offerings, Rituals and Genders at the Justino, Lower São Francisco”. Revista Habitus-Revista do Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia, v. 16, n. 1, p. 103-124, 2018.).

No caso do Brasil, a temática de gênero começou a ser mencionada na arqueologia durante os anos 1990, com trabalhos pioneiros como o de Tania Andrade Lima (1997LIMA, Tania A. “Chá e simpatia: uma estratégia de gênero no Rio de Janeiro oitocentista”. Anais do Museu Paulista: história e cultura material, v. 5, n. 1, p. 93-129, 1997.). Porém, segundo um levantamento feito sobre a produção bibliográfica de arqueologia feminista e de gênero no país, é somente a partir dos anos 2000 que o assunto passa a ser tratado com mais força e com mais trabalhos dentro da arqueologia (RIBEIRO et al., 2017RIBEIRO, Loredana; FORMADO, Bruno Sanches Ranzani da Silva; SCHIMIDT, Sarah; PASSOS, Lara. “A saia justa da Arqueologia Brasileira: mulheres e feminismos em apuro bibliográfico”. Revista Estudos Feministas, v. 25, n. 3, p. 1093-1110, 2017.). Os primeiros estudos focaram em visões e classificações binárias dos sexos/gêneros dos remanescentes humanos encontrados em contextos como sambaquis e outros tipos de sepultamentos. Essa classificação também se dava com outros suportes materiais, como produção cerâmica e arte rupestre. Nos últimos 10 anos, com a inserção mais forte da teoria queer dentro da arqueologia de gênero brasileira, os temas estão aos poucos mudando e abrindo os olhos para outras possibilidades de interpretação de gêneros e sexualidades diversas no passado (Camila JÁCOME; Laura FURQUIM, 2019JÁCOME, Camila P.; FURQUIM, Laura P. “Gender and Feminism in Brazilian Archaeology”. In: Encyclopedia of Global Archaeology. Switzerland: Springer Nature, 2019. p. 1-13.).

Ainda que haja um certo progresso nessa produção, ela ainda é pequena, e representa apenas 1% dos trabalhos publicados no Brasil. Segundo Loredana Ribeiro (2017RIBEIRO, Loredana. “Crítica feminista, arqueologia e descolonialidade”. Revista de Arqueologia, v. 30, n. 1, p. 210-234, 2017.), a arqueologia brasileira ainda é resistente com as demandas feministas, e extremamente conservadora. São poucos os cursos de graduação e pós-graduação que tratam desses conteúdos em suas grades curriculares. Portanto, conclui-se que há um hiato na inserção dos tópicos de gênero, sexo e sexualidades na formação de todas as pessoas que se formam arqueólogas e arqueólogos no país. Outro grande vazio na produção acadêmica e na educação arqueológica nacional são as questões raciais, principalmente relativas ao racismo estrutural, visto que a disciplina permanece com uma maioria esmagadora de pessoas brancas na profissão (Lara PASSOS, 2017PASSOS, Lara. “Gotas de um oceano. Uma abordagem feminista sobre a análise bibliométrica do curso de Antropologia da UFMG”. Revista de Arqueologia, v. 30, n. 2, p. 130-144, 2017.).

Voltando ao contexto do Peru, como comentado, o feminismo irá se estabelecer majoritariamente dentro da esfera das organizações estatais e não governamentais, desde os anos 1970 até a atualidade. Nos anos 1980, em razão do contexto de conflito armado, as feministas irão sair dos partidos de esquerda e criarão um movimento feminista independente. Hoje, a militância permanece mais forte dentro das universidades e de coletivos, porém o feminismo ainda não é um tema tão generalizado no Peru (SILVA; CABREJO, 2014SILVA, Violeta B.; CABREJO, Fanni M. “Un bosquejo del feminismo/s peruano/s: los múltiples desafíos”. Revista Estudos Feministas, v. 22, p. 637-645, 2014.).

Outra realidade do país é a existência de uma carência em termos de trabalhos de história das mulheres; por consequência, o mesmo ocorre na arqueologia. Há uma tendência à invisibilização das mulheres na História, especialmente as indígenas e as negras. Entre os estudos de história das mulheres estão os trabalhos pioneiros: La mujer y el niño en el antiguo Perú (CARRIÓN CACHOT DE GIRARD, 1923CARRIÓN CACHOT DE GIRARD, Rebeca. “La mujer y el niño en el antiguo Perú”. Revista Inca, 1923.); La mujer peruana a través de los siglos (Elvira GARCÍA, 1925GARCÍA, Elvira. La mujer peruana a través de los siglos: serie historiada de estudios y observaciones. Lima: Imp. Americana, 1925.); Así hicieron las mujeres en el Perú (Judith ZEGARRA, 1965ZEGARRA, Judith P. Así hicieron las mujeres en el Perú. Lima: Consejo Nacional de Mujeres del Perú, 1965.); Evolución Femenina: una mujer extraordinaria (María CASTORINO, 1969CASTORINO, María S. Evolución Femenina: Una mujer extraordinaria, 1969.).

Durante os anos 1970 e 1980, surgem outras obras relevantes, como: Mito y Rito: la mujer en la iconografía Mochica (Anne-Marie HOCQUENGHEM, 1986HOCQUENGHEM, Anne-Marie. “Mito y rito: la iconografia Mochica”. Revista Mujer y Sociedad, año VI, n. 11, 1986.) e Mujeres peruanas: el otro lado de la historia (GUARDIA, 2013GUARDIA, Sara. Mujeres peruanas: el otro lado de la historia. 5 ed. Lima: Editorial Minerva, 2013.). Dos anos 1990 em diante, outros estudos esporádicos aparecem, como a obra El personaje mítico femenino de la iconografía Mochica (Ulla HOLMQUIST, 1992HOLMQUIST, Ulla. El personaje mítico femenino de la iconografía mochica. Memoria para obtener el grado de Bachillerato en humanidades con mención en arqueología, Pontificia Universidad Católica de Perú, 1992.). No entanto, essas pesquisas ainda são escassas, se comparadas à quantidade de outras temáticas escolhidas (GUARDIA, 2013).

As arqueologias feminista e de gênero propriamente ditas, com pesquisas realizadas por arqueólogas peruanas, aparecem no país de forma tardia, a partir de 2010. No entanto, é importante mencionar iniciativas anteriores de arqueólogas estrangeiras com respeito à temática. Joan Gero, uma das arqueólogas feministas precursoras, dedicou parte de sua carreira à arqueologia andina. Em seu artigo Feasts and females: Gender Ideology and Politics Meals in the Andes, Gero (1992) analisa questões de gênero no sítio de Queyash Alto no período Intermediário Inicial e em outros contextos andinos. Suas conclusões apontam para a perda de poder das mulheres com a implementação do império Inca (Joan GERO, 1992GERO, Joan M. “Feasts and females: gender ideology and political meals in the Andes”. Norwegian Archaeological Review, v. 25, n. 1, p. 15-30, 1992.).

Como comentado, o desenvolvimento das arqueologias feminista e de gênero perpassa momentos específicos. O primeiro momento, ou fase, traz a conjuntura crítica à arqueologia tradicional, às interpretações arqueológicas feitas até o momento com um viés androcêntrico e também às desigualdades entre os gêneros no campo laboral. Após essa primeira crítica, começam a surgir os trabalhos arqueológicos com análises que carregam a carga das teorias feministas e de gênero e geram interpretações alternativas sobre o passado.

Seguindo essa lógica, no caso peruano, a “fase” das arqueologias feministas e de gênero ainda é inicial, ou seja, o foco dos trabalhos é a crítica à arqueologia tradicional, ao machismo e à misoginia nos meios acadêmicos e laborais. Nesse sentido, os trabalhos feitos nos últimos anos por Medina (2019MEDINA, Carito T. “Una mirada feminista a la comunidad arqueológica peruana”. Desde el Sur, v. 11, n. 2, p. 239-260, 2019.); Nuñez (2018NUÑEZ, Claudia. “¡H(ay) mujeres en la arqueología: Dinámica de género en la praxis arqueológica peruana!”. In: SIMPOSIO: MUJERES EN LA ARQUEOLOGÍA: PASADO, PRESENTE Y FUTURO CONTRIBUCIONES A LA PRAXIS ARQUEOLÓGICA EN EL PERÚ. Museo Nacional de Antropología, Arqueología e Historia del Perú, Conferencia, 2018.); Medina e Quispe (2021); Neyra (2019NEYRA, Gianella P. “Relaciones de género: mujeres, sanmarquinas y chicheras”. Desde el Sur, v. 11, n. 2, p. 305-315, 2019.); Quispe (2019); Zevallos e Lapi (2014ZEVALLOS, Juan C. T.; LAPI, Barbara. “¿Dónde están las Mujeres?: Reflexiones desde la arqueología peruana”. Revista de Investigaciones del Centro de Estudiantes de Arqueología UNMSM, n. 8, 2014.); Martín (2014MARTÍN, Oscar E. “Pasados que importan: arqueología del género en los Andes”. Revista de Investigaciones del Centro de Estudiantes de Arqueología, 2014.) trazem essa revisão do estado das desigualdades de gênero no campo arqueológico peruano. A maioria desses trabalhos se caracteriza como arqueologia feminista, por seu caráter de crítica ao androcentrismo epistemológico (Carito MEDINA; Lady QUISPE, 2021MEDINA, Carito T.; QUISPE, Lady S. “Desigualdades impresas: un primer paso para el estudio de la historia de las mujeres en la arqueología peruana”. Chungará, Arica, v. 53, n. 1, p. 145-159, 2021.).

As desigualdades de gênero são sistêmicas e se manifestam de formas diversas. Uma das maneiras mais básicas é a dificuldade que as mulheres possuem em ocuparem os espaços de poder dentro das instituições e empresas de arqueologia e de participarem de trabalhos de campo (Claudia NUÑEZ, 2018NUÑEZ, Claudia. “¡H(ay) mujeres en la arqueología: Dinámica de género en la praxis arqueológica peruana!”. In: SIMPOSIO: MUJERES EN LA ARQUEOLOGÍA: PASADO, PRESENTE Y FUTURO CONTRIBUCIONES A LA PRAXIS ARQUEOLÓGICA EN EL PERÚ. Museo Nacional de Antropología, Arqueología e Historia del Perú, Conferencia, 2018.). Nas universidades, a situação de desigualdade é evidente, tanto no meio discente quanto docente. Embora o número de ingressantes nos cursos de arqueologia seja praticamente equivalente em questão de gênero, a permanência das mulheres na universidade e a finalização do curso ficam prejudicadas devido a uma série de fatores, tais como: problemas financeiros, gravidez acidental e falta de representatividade. Para chegar a esses resultados, Quispe (2019QUISPE, Lady S. “Entre techos de cristal y nichos académicos: estado actual de las mujeres en la arqueología peruana”. Desde el Sur, v. 11, n. 2, p. 261-281, 2019.) utiliza dados estatísticos de 2014 fornecidos pelas universidades que possuem o curso de arqueologia no Peru, bem como registros dos docentes e anais dos Congressos Nacionais de Arqueologia.

Outro problema comum nos cursos de arqueologia advém do mito de que os trabalhos braçais de campo são domínio somente dos homens (cisgênero e heterossexuais, neste caso) e que as mulheres devem se resguardar aos laboratórios e gabinetes. Isso se reflete na formação prática ser maior para homens que para mulheres (MEDINA, 2019MEDINA, Carito T. “Una mirada feminista a la comunidad arqueológica peruana”. Desde el Sur, v. 11, n. 2, p. 239-260, 2019.). Nos cursos de pós-graduação e em congressos, a maioria dos pesquisadores é do sexo masculino (QUISPE, 2019QUISPE, Lady S. “Entre techos de cristal y nichos académicos: estado actual de las mujeres en la arqueología peruana”. Desde el Sur, v. 11, n. 2, p. 261-281, 2019.). Esse fato se refletirá no meio docente, no qual há uma grande lacuna entre o número de mulheres e homens nas universidades do país, formando quadros docentes de praticamente 60% a 70% de predominância masculina.

Ao analisar a produção acadêmica peruana no campo da arqueologia, Medina e Quispe (2021MEDINA, Carito T.; QUISPE, Lady S. “Desigualdades impresas: un primer paso para el estudio de la historia de las mujeres en la arqueología peruana”. Chungará, Arica, v. 53, n. 1, p. 145-159, 2021.) apontam para a grande dificuldade de se enfrentar os “tetos de vidro” que impedem o progresso das mulheres na disciplina. Os “tetos de vidro” seriam as barreiras que persistem e dificultam o acesso das mulheres a espaços de prestígio, poder e bons salários. A partir daí, as mulheres têm de se encaixar em nichos acadêmicos específicos para ganharem legitimidade. Esses nichos geralmente são as áreas de trabalho laboratorial, como no caso da arqueometria,15 15 Uso de métodos interdisciplinares, especialmente vindos da física, química e ciências biológicas, para a análise de registros materiais. Exemplos: Datações radiocarbônicas, microscopias e espectometrias. ou análise têxtil. Em menor grau, as mulheres também trabalham na arqueologia de contrato. Temáticas metodológicas e teóricas, explicação de grandes processos e a direção de grandes projetos são dadas como nichos acadêmicos masculinos (QUISPE, 2019QUISPE, Lady S. “Entre techos de cristal y nichos académicos: estado actual de las mujeres en la arqueología peruana”. Desde el Sur, v. 11, n. 2, p. 261-281, 2019.).

Apesar disso, os nichos acadêmicos acabam se tornando espaços de resistência na arqueologia peruana pois, ao se incorporarem a eles, as mulheres se sentem menos excluídas nos meios universitários. Entretanto, existem mecanismos de poder sutis que ainda segregam as mulheres, principalmente dos altos cargos de chefia. Os cargos universitários, administrativos e de tomada de decisões recaem sobre os homens; logo, eles decidem sobre o conteúdo das grades curriculares e o que será aprendido e pesquisado. Portanto, há uma supremacia de homens nos níveis superiores e as mulheres ficam relegadas aos níveis auxiliares. Quanto mais se avança na hierarquia há menos mulheres (QUISPE, 2019QUISPE, Lady S. “Entre techos de cristal y nichos académicos: estado actual de las mujeres en la arqueología peruana”. Desde el Sur, v. 11, n. 2, p. 261-281, 2019.).

Outras dificuldades enfrentadas pelas mulheres peruanas na arqueologia são: sub-representação na produção científica; hostilidades na atuação profissional; agressões verbais; assédio sexual e uso de linguagem sexista por parte de companheiros de profissão (MEDINA, 2019MEDINA, Carito T. “Una mirada feminista a la comunidad arqueológica peruana”. Desde el Sur, v. 11, n. 2, p. 239-260, 2019.); deslegitimação dos trabalhos de arqueologia feminista, que são tidos enquanto não arqueologia. Nesse sentido, a arqueologia tradicional se torna um instrumento de controle violento que exclui as mulheres e pessoas LGBTQIA+ das narrativas históricas e do campo laboral (NUÑEZ, 2018NUÑEZ, Claudia. “¡H(ay) mujeres en la arqueología: Dinámica de género en la praxis arqueológica peruana!”. In: SIMPOSIO: MUJERES EN LA ARQUEOLOGÍA: PASADO, PRESENTE Y FUTURO CONTRIBUCIONES A LA PRAXIS ARQUEOLÓGICA EN EL PERÚ. Museo Nacional de Antropología, Arqueología e Historia del Perú, Conferencia, 2018.).

Acerca dessa sub-representação na produção científica, Medina e Quispe (2021MEDINA, Carito T.; QUISPE, Lady S. “Desigualdades impresas: un primer paso para el estudio de la historia de las mujeres en la arqueología peruana”. Chungará, Arica, v. 53, n. 1, p. 145-159, 2021.) concluíram que, nas revistas de arqueologia da Universidad Mayor de San Marcos e da PUC-P (Pontificia Universidad Catolica del Perú), apenas aproximadamente 30% da produção é de autoria feminina. Em ambas as revistas, o número de autoras (255) é menos da metade do número de autores (737). Essa sub-representação ocorre por motivos como: a existência uma grande carga familiar sobre as mulheres, a falta de políticas de igualdade de gênero, a escassez de referências femininas que sirvam como inspiração para novas pesquisadoras, a presença pequena de mulheres nas diretorias dos projetos arqueológicos, a ausência de apoio às mães, e o fato de as mulheres participarem dos projetos, porém não serem chamadas a produzir e publicar. Essa sub-representação ocorre tanto com arqueólogas peruanas como com estrangeiras (MEDINA; QUISPE, 2021MEDINA, Carito T.; QUISPE, Lady S. “Desigualdades impresas: un primer paso para el estudio de la historia de las mujeres en la arqueología peruana”. Chungará, Arica, v. 53, n. 1, p. 145-159, 2021.).

Saindo das universidades e entrando no mercado de trabalho, as desigualdades continuam, expressas em: disparidade salarial, estagnação laboral e pouca visibilidade do conhecimento produzido por mulheres. No Peru, os trabalhos de arqueologia feminista, como comentado, identificaram um ambiente machista e sexista, com violência de gênero e culpabilização das vítimas (MEDINA; QUISPE, 2021MEDINA, Carito T.; QUISPE, Lady S. “Desigualdades impresas: un primer paso para el estudio de la historia de las mujeres en la arqueología peruana”. Chungará, Arica, v. 53, n. 1, p. 145-159, 2021.).

Nos discursos museológicos peruanos, as mulheres aparecem, na maioria das vezes, como acompanhantes dos personagens principais, sendo vistas como secundárias ou sem contribuição tecnológica significativa. Obviamente, esses discursos ajudam na legitimação do imaginário sobre o passado. No caso de discursos museológicos que importam papéis do presente para as imagens do passado, é negada aos homens a participação nas tarefas domésticas, e às mulheres a participação nas atividades produtivas. Ignora-se, assim, tarefas em que todo o grupo participava independentemente do gênero, bem como toda a cadeia operatória carregada de significados simbólicos (NEYRA, 2019NEYRA, Gianella P. “Relaciones de género: mujeres, sanmarquinas y chicheras”. Desde el Sur, v. 11, n. 2, p. 305-315, 2019.).

Nos museus do Peru e nos discursos arqueológicos, a visibilidade feminina ocorre geralmente apenas através de personagens de elite encontradas em contextos de enterramentos suntuosos, como o caso da Señora de Cao, uma governante da sociedade Moche. Para Nuñez (2018NUÑEZ, Claudia. “¡H(ay) mujeres en la arqueología: Dinámica de género en la praxis arqueológica peruana!”. In: SIMPOSIO: MUJERES EN LA ARQUEOLOGÍA: PASADO, PRESENTE Y FUTURO CONTRIBUCIONES A LA PRAXIS ARQUEOLÓGICA EN EL PERÚ. Museo Nacional de Antropología, Arqueología e Historia del Perú, Conferencia, 2018.), a arqueologia peruana ainda não incorporou as mulheres nas interpretações do passado, visto que visibilizar mulheres de elite para invisibilizar outras é não reconhecer as mulheres como agentes sociais de forma geral. Ruan Zevallos e Barbara Lapi (2014ZEVALLOS, Juan C. T.; LAPI, Barbara. “¿Dónde están las Mujeres?: Reflexiones desde la arqueología peruana”. Revista de Investigaciones del Centro de Estudiantes de Arqueología UNMSM, n. 8, 2014.) também advogam que estudar somente mulheres de elite não é fazer Arqueologia e História das mulheres.

Uma das arqueólogas peruanas atuais que vem apontando para a necessidade de um enfoque feminista e decolonial nas interpretações do passado pré-hispânico é Sofia Chacaltana Cortez. Para a arqueóloga, as narrativas feministas e queer tradicionais são insuficientes para a compreensão da diversidade sexual das comunidades indígenas. Nessa perspectiva, as sexualidades indígenas devem ser pensadas por novas epistemologias não ocidentais, vendo as relações sexuais para além do pênis e vagina. Além das questões de sexualidade, para entender os povos originários, o tempo linear também deve ser repensado.16 16 Conferência de Sofia Chacaltana Cortez no XXI Congresso da SAB (Sociedade Brasileira de Arqueologia), intitulada “Arqueología, género y feminismo en América Latina (una perspectiva decolonial)”. On-line, 08/11/2021.

Com uma perspectiva semelhante à de Chacaltana, Martín (2014MARTÍN, Oscar E. “Pasados que importan: arqueología del género en los Andes”. Revista de Investigaciones del Centro de Estudiantes de Arqueología, 2014.) aponta que corpos dissonantes da cisheteronorma acabam sendo excluídos dos discursos arqueológicos sobre o passado andino, ainda que haja fontes etno-históricas e representações iconográficas que indiquem a presença de pessoas LGBTQIA+ nas comunidades ancestrais andinas. Ele também crê que a diversidade sexual e de gênero fez parte das experiências rituais e cotidianas das sociedades pré-coloniais no Peru, porém, esse fato é ofuscado pelas interpretações machistas e cisheterossexistas (Oscar MARTÍN, 2014MARTÍN, Oscar E. “Pasados que importan: arqueología del género en los Andes”. Revista de Investigaciones del Centro de Estudiantes de Arqueología, 2014.).

Considerações finais

Ao observar as realidades da arqueologia e a situação das arqueólogas no Peru e no Brasil, é possível enxergar semelhanças. Uma delas é o surgimento tardio das áreas de feminismo e gênero no interior da disciplina. Em ambos os países, esse processo se deu apenas após os anos 2000, com pelo menos 20 anos de atraso em relação aos contextos norte-americanos. Outras similaridades são os abusos e assédios sofridos pelas mulheres dentro da profissão, bem como a sub-representação nas publicações acadêmicas. Ao perceber esse cenário, é possível afirmar que, em ambos os países, ainda há um longo caminho a ser percorrido para alcançar a igualdade de gênero no campo da arqueologia.

As lutas feministas iniciadas no começo do século XX no Peru abriram caminhos para a entrada das mulheres na arqueologia. As trajetórias das arqueólogas peruanas colaboraram e colaboram para que as mulheres tenham representatividade na disciplina, trabalhando ou não com temáticas feministas ou de gênero. A situação das mulheres na arqueologia ainda é precária, com o enfrentamento de diversos tipos de desigualdades. Por esse motivo, a arqueologia feminista e de gênero vem questionando os cânones da arqueologia tradicional e propondo novos enfoques e interpretações dos contextos arqueológicos. Deste modo, as arqueologias feministas, de gênero e queer ainda possuem um vasto terreno a ser explorado no Peru, com potencial para questionamento de muitas interpretações dadas como prontas.

Referências

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  • 1
    Para maiores discussões teóricas sobre essa temática, consultar publicações prévias da autora (PAGNOSSI, Nádia C. “Construindo uma arqueologia de gênero”. Revista Arqueologia Pública, v. 11, n. 1, p. 50-66, 2017 e PAGNOSSI, Nádia C. A arqueologia de gênero e suas aproximações com a história. 2013. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História) - Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, MG, Brasil).
  • 2
    Julio César Tello, conhecido como “pai da arqueologia peruana”, desenvolveu seus trabalhos entre 1919 a 1940, nas regiões de Ancash, Ica, rio Marañón e rio Urubamba. A perspectiva teórica adotada por ele foi o histórico-culturalismo, com a crença em uma origem amazônica da civilização andina ([xref ref-type="bibr" rid="r30"]RAMOS, 2013[/xref]). O principal trabalho do arqueólogo foi em Chavín de Huantar, que ele acreditava ser a cultura matriz das sociedades andinas posteriores, o que foi refutado posteriormente por análises cronológicas aprofundadas. Tello será um militante ativo do indigenismo, encarnando os valores nacionalistas e de enaltecimento do passado indígena pré-hispânico (SHIMADA, Izumi; CENTENO, Rafael V. Arqueología peruana: crecimiento, características, práctica y desafíos. Peruvian Archaeology: Its Growth, Characteristics, Practice, and Challenge. In: LOZNY, Ludomir R. (Ed.). Comparative Arqueologies: A Sociological View of the Science of the Past. New York: Springer, 2011).
  • 3
    PUC-P. “Josefina Ramos de Cox”. PUC. Disponível em http://100.pucp.edu.pe/personajes/josefina-ramos-de-cox/. Acesso em 05/10/2021.
  • 4
    RIDEI. “Falleció María Rostworowski, la gran etnohistoriadora del Perú”. RIDEI, s.d. Disponível em https://red.pucp.edu.pe/ridei/noticias/fallecio-maria-rostworowski-la-gran-etnohistoriadora-del-peru/. Acesso em 05/10/2021.
  • 5
    GOB-PE. Unidad ejecutora 003 - Zona Arqueológica Caral. Ruth Martha Shady Solís. Disponível em https://www.gob.pe/institucion/caral/funcionarios/18087-ruth-martha-shady-solis. Acesso em 10/11/2021.
  • 6
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  • 7
    LAMULA. “Bienvenidas las voces disonantes en la ciencia: la arqueologa Rosa Fung cuestiona datos inexactos sobre Caral”. Lamula, 2012. Disponível em https://lamula.pe/2012/06/20/bienvenidas-las-voces-disonantes-en-la-ciencia-la-arqueologa-rosa-fung-cuestiona-datos-inexactos-sobre-caral/arqueomula/. Acesso em 05/10/2021.
  • 8
    PLANAS, Enrique. “Sonia Guillén: La tarea de reanimar un ministério”. El Comercio, 2019. Disponível em https://elcomercio.pe/luces/arte/sonia-guillen-la-tarea-de-reanimar-un-ministerio-debate-noticia/. Acesso em 05/10/2021.
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    UNMSM. Biografía de Rebeca Carrión Cachot. Disponível em https://www.unmsm.edu.pe/la-universidad/sanmarquino/carrion-cachot-rebeca. Acesso em 05/10/2021.
  • 10
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  • 11
    UCR. UNIVERSIDAD DE COSTA RICA. “Arqueóloga peruana visitou a UCR para oferecer uma conferência sobre gestão do patrimônio arqueológico”. UCR, 2021. Disponível em https://www.ucr.ac.cr/noticias/2021/07/29/arqueologa-peruana-visito-la-ucr-para-ofrecer-conferencia-sobre-la-gestion-del-patrimonio-arqueologico.html. Acesso em 05/10/2021.
  • 12
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  • 13
    COMISIÓN Especial Multipartidaria Conmemorativa del Bicentenario de la Independencia del Perú. Rumbo al Bicentenario, 2021. Disponível em https://www.congreso.gob.pe/Docs/comisionbicentenario/libro/16/index.html. Acesso em 11/11/2021.
  • 14
    Ramo da arqueologia profissional, não vinculado às pesquisas acadêmicas. Geralmente ocorre em conjunto com avaliações de impacto ambiental antes ou durante a realização de uma grande obra.
  • 15
    Uso de métodos interdisciplinares, especialmente vindos da física, química e ciências biológicas, para a análise de registros materiais. Exemplos: Datações radiocarbônicas, microscopias e espectometrias.
  • 16
    Conferência de Sofia Chacaltana Cortez no XXI Congresso da SAB (Sociedade Brasileira de Arqueologia), intitulada “Arqueología, género y feminismo en América Latina (una perspectiva decolonial)”. On-line, 08/11/2021.
  • Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista:

    PAGNOSSI, Nádia Carrasco. “Feminismo e arqueologia no Peru: caminhos e desafios das arqueólogas peruanas”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 32, n. 2, e90035, 2024.
  • Financiamento:

    FAPESP: Nº do processo: 2019/02085-0
  • Consentimento de uso de imagem:

    Não se aplica
  • Aprovação de comitê de ética em pesquisa:

    Não se aplica

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    06 Jul 2022
  • Revisado
    02 Fev 2024
  • Aceito
    28 Mar 2024
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