Resumo:
No presente artigo, tenho como objetivo apresentar a organização do trabalho em cozinhas de restaurantes e explorar algumas formas que o assédio moral e sexual assume neste ambiente de trabalho. Para tal, parto de uma descrição dos processos de trabalho e da hierarquia que o organiza, centrada na figura do/a chef, e apresento os elementos que compõem o ethos do trabalho culinário. A partir desta contextualização, utilizando elementos narrados em entrevistas por profissionais da cozinha, proponho uma reflexão sobre o assédio moral e sexual nesse espaço.
Palavras-chave: cozinhas; assédio sexual; assédio moral
Abstract:
This article aims to present the organization of the work in restaurants kitchens and explore some forms that moral and sexual harassment takes in this work environment. To achieve this, it starts with a description of the working processes and the hierarchy that organizes them, centered on the chef’s figure, and presents the elements that make up culinary work ethos. From this contextualization, using elements narrated in interviews by kitchen professionals, we propose a reflection on moral and sexual harassment in this space.
Keywords: Kitchens; Sexual haressement; Moral haressement
Resumen:
Este artículo tiene como objetivo presentar la organización del trabajo en cocinas de restaurantes y explorar algunas formas que asume el acoso moral y sexual en este ambiente laboral. Para logra-lo, parte-se de una descripción de los procesos de trabajo y la jerarquía que los organiza, centrada en la figura del chef, y presenta los elementos que configuran el ethos del trabajo culinario. A partir de esta contextualización, usando elementos narrados en entrevistas por profesionales de la cocina, se propone una reflexión sobre el acoso moral y sexual en este espacio.
Palabras clave: cocinas; acoso sexual; acoso moral
Introdução
O objetivo deste artigo é apresentar a organização da produção em cozinhas de restaurantes e a hierarquia que a orienta, observando os contornos da divisão sexual do trabalho (Helena HIRATA; Danièle KERGOAT, 2007; KERGOAT, 2009), para analisar de que maneira esse ambiente possibilita comportamentos de assédio moral e sexual.
Este artigo tem como base a pesquisa que realizei entre 2015 e 2019, na qual entrevistei 12 homens e 15 mulheres que trabalhavam em cozinhas de restaurantes e outros estabelecimentos de alimentação na cidade de São Paulo, e dois homens e três mulheres em Paris (França), todos brasileiros. O critério de seleção para participar da pesquisa consistiu apenas em trabalhar ou ter trabalhado em cozinha. Há pessoas que, no momento da entrevista, trabalhavam em restaurantes de grande e pequeno porte, sob o comando de chefs mulheres e homens. A identidade de todas as pessoas entrevistadas foi preservada por meio de pseudônimos.
Segundo Danièle Kergoat (2009, p. 67):
A divisão sexual do trabalho é a forma da divisão social do trabalho decorrente das relações sociais de sexo (...). Tem por características a destinação prioritária dos homens à esfera produtiva e das mulheres à esfera reprodutiva e, simultaneamente, a ocupação pelos homens das funções de forte valor social agregado.
No trabalho culinário, é possível observar como a divisão sexual do trabalho se expressa, a princípio, pela associação da cozinha doméstica como feminina, uma responsabilidade quase exclusiva das mulheres, embutida no trabalho doméstico cotidiano, enquanto a cozinha profissional é um domínio masculino, dotado de valor e prestígio social, mas também, como veremos, no próprio processo de trabalho nas cozinhas de restaurantes, nas quais as mulheres tendem a ser alocadas em determinadas tarefas.
São comuns e muito difundidas expressões como “cozinhar é um ato de amor”, “cozinhar não é um serviço, é um modo de amar os outros”, que associam o preparo de alimentos ao amor. A cozinha doméstica, realizada em casa e voltada para a família, é muito relacionada aos sentimentos positivos de afeto, principalmente quando associados à memória, à lembrança da comida “da vovó” ou “da mamãe”, aquela refeição que era pensada e preparada especialmente. Associar o ato de cozinhar ao sentimento que se nutre por quem vai comer se liga à complexidade que esta atividade contém, assim como a atenção e tempo que ela demanda.
A comida pronta demanda tempo, trabalho e planejamento. Cozinhar é uma ação que entra em uma cadeia de tarefas na qual consiste o preparo de alimentos. É preciso planejar o que se vai cozinhar, obter insumos e ingredientes, higienizá-los, ter instrumentos como facas e panelas e saber usá-los, conhecer as propriedades dos alimentos para cozinhar, assar, fritar, manejá-los simultaneamente, administrar as bocas do fogão, o forno, a geladeira, observar tempos de cozimento, entre muitos outros gestos e ações que resultam no prato.
No caso da cozinha profissional, todas essas atividades se complexificam. Afinal, na cozinha de um restaurante não se prepara uma refeição para o ser amado, mas entre 80 e 150 para desconhecidos esfomeados que, muitas vezes, vão a um restaurante para buscar uma experiência gastronômica, pagam caro e exigem excelência. Ainda que o discurso do amor esteja presente, ele adquire novas dimensões quando se volta para outro público e se realiza em outro ambiente.
Na cozinha profissional, a organização do trabalho se baseia em forte hierarquia, controle de tempos e movimentos, capacidade de trabalhar em equipe e suportar a pressão. Este trabalho baseia-se em um ethos profissional que valoriza habilidades como rapidez, força, resistência física, lealdade e orgulho, na ideia de que a cozinha é um ambiente em que apenas os fortes sobrevivem.
Este artigo é composto de três partes. Na primeira, apresento a organização do trabalho nas cozinhas profissionais: a divisão em praças, as brigadas culinárias e a importância da hierarquia nesse conjunto, explorando a figura do/a chef e sua centralidade nesse modelo. Em seguida, discuto brevemente o ethos profissional que norteia os comportamentos e atitudes esperados nas cozinhas, e trato da forma como esse ethos articula a criação de um sentimento coletivo de pertencimento. Finalmente, a terceira parte abordará o assédio na cozinha, baseado, sobretudo, na hierarquia e na adesão ao coletivo, tendo as mulheres como alvos preferenciais.
A organização do trabalho culinário em cozinhas profissionais
A cozinha dos restaurantes é caracterizada como um espaço que mistura ordem e caos, que é orquestrado a partir de disciplinas e hierarquias militares. O trabalho é classificado como árduo, fisicamente e emocionalmente extenuante, com frequência e jornadas intensas e não convencionais, sendo realizado sob muita pressão. Para se sair bem, os cozinheiros precisam adquirir resistência física e emocional e incorporar o gesto, o movimento e o tempo adequados à lógica de organização deste espaço (Clarissa GALVÃO, 2015, p. 46).
Credita-se a Auguste Escoffier a racionalização e organização do trabalho em cozinhas profissionais como o conhecemos hoje (Ariovaldo FRANCO, 2010), dividido em praças ou brigadas. Por volta de 1889, quando foi chef no Hotel Savoy, na França, Escoffier organizou o trabalho culinário a partir de sua experiência no exército e padronizou o trabalho em praças e a hierarquia da cozinha. “Não mais os chefs individuais construíam os pratos do começo ao fim. Em seu lugar, as cozinhas eram tripuladas por um número de cozinheiros o qual cada um contribuía para um elemento diferente do prato” (Deborah HARRIS; Patti GIUFFRE, 2015, p. 24).
O trabalho culinário é dividido em praças dedicadas a um tipo de preparo, como a praça das massas ou de carnes. De acordo com a descrição de um cozinheiro: “A cozinha funciona separada em praças, cada praça com sua especialidade e daí a gente trabalha com um fluxograma. Ou seja, tudo começa numa ponta, finaliza na outra e volta” (Matias, 25 anos, cozinheiro1).
É preciso entender que um prato é composto de vários elementos, e que cada profissional vai ser responsável por um (ou mais) deles. A equipe de trabalho é chamada de brigada, cada uma responsável por uma praça. Por exemplo, há uma brigada que cuida das carnes (que os/as cozinheiros/as gostam de chamar “a proteína”). Todas as carnes de todos os pratos serão preparadas e servidas na praça das carnes. Os outros elementos que acompanham a carne serão preparados nas outras praças (molho, salada, massa, legumes etc.). O prato, portanto, vai passar por todas as praças, cada uma contribuindo com o elemento que lhe compete, até que o prato esteja completo. Cabe ao chef verificar se o prato está completo e se todos os elementos estão corretos, para então servir.
Há uma separação importante entre a cozinha quente e a fria. A cozinha quente é composta pelas praças que se caracterizam pelo uso do fogo, como a praça dos molhos, das carnes, das guarnições e das massas. A cozinha quente costuma ter mais prestígio e visibilidade, porque é nela que se preparam os pratos principais. Na cozinha fria estão as praças do garde-manger2 e sobremesas. A ocupação de garde-manger é mais comum e, geralmente, engloba as entradas, responsável pelas saladas, entradas frias, patês e tira-gostos. Finalmente, a praça de sobremesas e doces, comandada por um/a confeiteiro/a ou chef pâtissier, também é considerada cozinha fria, apesar de não prescindir do forno e fogão. Existe uma tendência, tanto no Brasil quanto na França (e também nos Estados Unidos, conforme observaram Harris e Giuffre (2015)), de que as mulheres se concentrem ou passem mais tempo trabalhando na cozinha fria.
Para cada uma das praças e das ocupações, há os/as assistentes, pessoas que auxiliam os/as cozinheiros/as. Alguns/algumas assistentes estão no início da carreira e aprendendo o trabalho (como é o caso dos/as estagiários/as) e há os/as que têm menos qualificação e, portanto, recebem salários menores. Uma das principais ocupações na base do trabalho, que não chega a ser de assistente, é chamada “pia”,3 porque se refere à pessoa responsável por lavar toda a louça da cozinha.
Os cargos de auxiliar e “pia” costumam ser cargos de entrada, com os salários mais baixos. Em algumas cozinhas, há estagiários/as. Eles/as estão presentes em cozinhas de restaurantes mais sofisticados, onde podem ter uma experiência valorizada em seus currículos, e não nos mais simples.
A função de chef
A hierarquia na cozinha não se dá entre as praças, mas entre as posições de comando. Acima de todos os/as cozinheiros/as está o/a chef. E abaixo dos/as cozinheiros/as estão os/as assistentes ou auxiliares. Assim, em sua forma mais simples, a hierarquia na cozinha se apoia em três figuras: chef, cozinheiro/a e auxiliar.
Ao Chefe, cabem as atividades de criação, elaboração, atuação direta ou indireta na preparação do alimento, e o planejamento, gerenciamento e capacitação de pessoal, ou seja, trata-se do estrategista e administrador da cozinha. Ao cozinheiro, cabe organizar e supervisionar os serviços a serem realizados e participar ativamente no pré-preparo, preparo e finalização do alimento, sempre observando os métodos de cocção e a qualidade dos alimentos. Aos trabalhadores auxiliares, cabem funções de suporte nas atividades, sob a responsabilidade tanto do cozinheiro quanto do Chefe (Sérgio FONSECA, 2013, p. 57).
O/A chef geralmente é responsável pela elaboração do cardápio, pela comunicação com o/a(s) proprietário/a(s) do restaurante, fornecedores, em alguns casos, com os clientes, gestão dos estoques e coordenação do trabalho da equipe. O cargo de chef de cozinha é, sobretudo, o trabalho de quem conhece muito bem o funcionamento da cozinha, de quem coordena a produção, controla o que é comprado e o que está sendo pedido nas mesas, e tem/têm dimensão do trabalho, porque chefia/chefiam e supervisiona/supervisionam todos os outros.
Segundo Rudolph Chelminski (2007, p. 104), “há um óbvio paralelo entre a hierarquia e a disciplina de um exército e de uma cozinha profissional séria - chef, lembre-se, não significa cozinheiro, mas chefe, patrão”. Tal hierarquia militar se expressa na autoridade do/a chef, especialmente na hora do serviço (o momento em que os clientes estão no restaurante e a cozinha funciona a todo vapor): as ordens do/a chef não são questionadas. O que o/a chef fala é obedecido. De acordo com Martine Bourelly (2010), a cozinha profissional remete, em sua origem, à história dos exércitos e soldados, o que fez dela um verdadeiro bastião masculino. Ainda hoje, muitas expressões e palavras utilizadas nas cozinhas se referem a um vocabulário militar, como o próprio termo “brigada” e a expressão “marchar”.4
Segundo Harris e Giuffre (2015, p. 9), para os chefs e cozinheiros, essa atividade profissional masculina está sempre em risco de ser comparada e equiparada ao trabalho não remunerado e não profissional que as mulheres fazem em casa. “A ameaça da feminização leva a uma sensação de masculinidade insegura e instável entre os homens em trabalhos que requerem que eles realizem tarefas codificadas como femininas - um termo ao qual nos referimos como masculinidade precária”. Nesse sentido, as autoras chamam atenção para uma estratégia que pode neutralizar a feminilidade, que consiste em enfatizar a natureza masculina do trabalho, por exemplo, dirigindo o enfoque para o passado militar da ocupação, assim como para o uso da força e resistência física.
Enquanto a cozinha doméstica é tradicionalmente um espaço de poder feminino, onde as mulheres preparam alimentos para a família, onde elaboram suas receitas e segredos culinários, a cozinha profissional se constitui a partir da negação da feminilidade desse espaço, o que se expressa por um exercício de autoridade que se apoia na construção social do gênero masculino. Assim, a voz de comando masculina se realiza por meio de gritos, ameaças, atitudes agressivas e, não raro, violentas, que teriam como objetivo exercer pressão sobre os/as cozinheiros/as para manter o ritmo da produção.
Voltarei a esse ponto adiante, para demonstrar quão tênue é a linha que separa o assédio moral dos comportamentos de muitos/as chefs. Por ora, ressalto apenas que há uma performance de masculinidade associada a esse exercício e que isso cria obstáculos para as mulheres que pretendem chegar aos cargos de maior responsabilidade e chefia dentro da cozinha. Estereótipos de gênero, que associam determinadas características supostamente “naturais” ou “inatas” a homens e mulheres, relegam às mulheres a cozinha fria, os trabalhos de limpeza e higienização, e as afastam do trabalho que tem mais prestígio, como a chefia. Ainda que, do ponto de vista teórico, tal separação pareça simplista e já tenha sido desconstruída, principalmente considerando que “diferenças são efeitos da mútua imbricação das várias categorias de identidade social (raça, classe, etnicidade, nação, etc.), as quais não podem ser agrupadas sob a égide da diferença sexual ou unicamente de gênero” (Cláudia de Lima COSTA, 1994, p. 168), ainda é possível observar essa associação no nível das práticas sociais e do senso comum, como foi o caso em algumas cozinhas.
Quando as mulheres conseguem chegar ao topo da hierarquia, acirram-se tensões. Ter voz de comando e se fazer respeitar na cozinha podem representar grande desafio para uma chef mulher, principalmente diante de uma equipe de subordinados totalmente masculina.
... é fácil de ser contratada, a priori, mas é difícil de você se manter lá dentro. Você vai ser substituída em algum momento, porque não tem uma voz de comando feminina que seja ouvida. Não tem. É muito difícil. Tem... Eu passei por situações... um pouco complicadas. Pensando mais nos turnos da noite mesmo, porque nos turnos da manhã... como era uma mescla de cozinheiros e cozinheiras não... não tinha esse problema. À noite eram essencialmente homens, não tem... eles não ouvem. Eles não ouvem. Eles passam por cima. Se a decisão de hoje, eu viro pra eles e falo “gente, vocês têm produção hoje? Então tá, têm meia hora pra lavar a coifa?” “Ah mas amanhã cedo não vão lavar a coifa, porque...” “Gente, lava a coifa pra mim”. Aí você tem que ser delicada no jeito de falar, você tem que ser sutil etc. Enquanto se você grita, eles não aceitam mesmo, eles se rebelam. É muito difícil. Pra mulher dar voz de comando na cozinha é muito difícil. Não existe. Não existe (Lenice, 30 anos, chef de cozinha5).
Outras entrevistadas também comentaram sobre a dificuldade em se fazer ouvir e obedecer, tanto no Brasil quanto na França. Uma chef brasileira que trabalhava em Paris comentou “Hoje em dia eu não jogo mais coisa. Gritar eu grito quando tem que gritar. Mas só quando é situação extrema” (Ana Paula, 32 anos, chef de cozinha6).
Considerando uma organização do trabalho muito bem definida e com separações claras, que se dá em torno de uma hierarquia vertical, as mulheres precisam adotar comportamentos para ocuparem a chefia da cozinha que neutralizem sua “feminilidade”. Em algumas cozinhas, é vedado o uso de bijuteria, maquiagem, esmalte de unha etc., como se fosse necessário que elas se despojassem dos objetos que denotam feminilidade neste espaço. Muito embora homens também possam usar estes objetos, trata-se de aproximar as mulheres de um suposto “neutro”, sem caracterização de gênero, que passa por um jogo no qual, em alguns momentos, convém evocar as características que o senso comum entende como “naturalmente” femininas, como a paciência e a destreza; em outros, é mais adequado mimetizar os comportamentos “masculinos”, como para exercer voz de comando.
Jornada de trabalho
Os trabalhadores e trabalhadoras descrevem sua jornada de trabalho nas cozinhas como horas seguidas em pé, em ambiente quente e abafado (geralmente em função das várias bocas de fogão e fornos acesos ao mesmo tempo). Em muitos locais, a cozinha não possui janelas, para evitar vento, poeira e o resfriamento da comida. Entretanto, essas condições não são homogêneas. Ao longo da pesquisa, encontrei cozinhas de diversos tamanhos, que correspondem ao número de funcionários, assim como à quantidade de clientes atendidos.
Idealmente, a jornada do restaurante se dá em dois turnos: o almoço e o jantar. O primeiro começa pela manhã, a partir de 7h ou 8h, dependendo do movimento (quantidade de pratos servidos), com o recebimento de mercadorias, conferência e a produção - mise-en-place. Geralmente, antes do serviço do almoço, é oferecida a alimentação dos funcionários e, depois do serviço, a cozinha é limpa. Esse turno terminaria por volta das 15h.
O turno do jantar começa a partir das 17h, com a produção e o mise-en-place, aproveitando algumas coisas do serviço do almoço. Depois que o restaurante fecha, é feita uma limpeza mais pesada para o dia seguinte. Esse serviço vai até meia-noite ou uma hora da manhã, mais ou menos, mas houve relatos de trabalhadores saírem do restaurante 2h ou 3h da manhã - principalmente na confeitaria, já que a sobremesa é o último prato servido.
O certo seria que cada turno fosse realizado por uma equipe diferente, mas isso não é comum. Geralmente, a mesma equipe faz todo o serviço do almoço e do jantar. Isso significa jornadas que começam às 7h da manhã e vão até a meia-noite.
... porque quando você tem duas equipes, você tem dois padrões. É muito difícil você manter um padrão quando você tem duas equipes. Quando você tem uma só, é sempre aquela pessoa que faz aquilo, então você consegue manter um padrão. Normalmente, um restaurante de alta gastronomia não tem duas equipes. Quando tem, são duas equipes de estagiários. Mas tem que ter alguém que está ali o tempo todo, alguém pra supervisionar o padrão (Mariana, 31 anos, cozinheira7).
Em alguns casos, há estabelecimentos que oferecem um “descanso” para os funcionários entre o almoço e o jantar, de uma ou duas horas. A chamada “jornada flexível” ou “móvel” corresponde ao trabalho nos dois turnos, com um intervalo de uma a três horas no meio do dia. Entretanto, em uma cidade grande como São Paulo, em que o tempo de deslocamento é alto, principalmente considerando que as pessoas não necessariamente trabalham perto de onde moram, esse tempo de “descanso” no meio do dia não representa um descanso, realmente.
Não, você pausa lá no restaurante mesmo, você estica a perna, olha seu celular, tira um cochilo, come alguma coisa e é isso. E muitas vezes eu nem conseguia tirar essa pausa, porque me davam tanta coisa pra fazer que eu não tinha habilidade de fazer rápido, porque eu estava aprendendo ainda, que eu nem tirava pausa (Mariana, 31 anos, cozinheira).
Jornadas que se iniciam de manhã cedo e adentram madrugadas, de trabalho contínuo, intenso e em pé, com uma pausa mais longa (duas ou três horas) no meio do dia, que não permite que os trabalhadores voltem para casa, sequer descansem em condições decentes, podem explicar, em parte, a alta rotatividade no setor e alguns tipos de adoecimento psíquico e fadiga. Também são comuns as práticas ilegais, como “bater o ponto”, ou seja, encerrar o expediente, e continuar trabalhando, sem ter as horas contabilizadas, nem sequer para o banco de horas, no caso do Brasil, onde existe essa possibilidade.
Tinha essa questão, eles faziam a gente bater ponto no intervalo da gente, no almoço, e voltar. A gente almoçava em pé, nas docas. Tinha uma questão que me deixava irritada, era... eu trabalhava à noite, e depois de você ter feito um serviço genial, ter servido 700 a mil pessoas por dia, aí você tinha que lavar forno e coifa. E você só era liberado se uma das sous-chefs passasse na sua praça, olhasse, que nem hotel, olhasse, passava o dedo, tá limpo, pode ir. Pode ir. O cartão de ponto não contava não, não tem essa. Só saía depois que elas liberassem. Eu achava o cúmulo. Nisso a gente ia até 3h da manhã, todo dia. Eu entrava umas 16h (Manuela, 32 anos, confeiteira8).
É fundamental considerar o ritmo e a intensidade do trabalho, relacionados à quantidade de trabalhadores no mesmo turno. Uma equipe composta de três pessoas, que serve 80 refeições em um período, trabalha intensamente e sob muito mais pressão do que se fosse uma equipe de cinco ou seis. Os profissionais precisam estar muito bem articulados e dispostos a trabalhar sem parar, isto é, em condições físicas para tal.
Por isso que eu falei pra você desse negócio de trabalhar em equipe, é se ajudar. Às vezes a pessoa tá supertranquila lá, ela fez tudo que precisava, mas a pessoa do seu lado tá se matando pra fazer, você pode descascar uma batata pra ela, sabe? Não é parar e eu fiz o que eu tinha que fazer, fiz o meu trabalho, isso aqui. Porque meu trabalho nunca acaba. (...) Não para o trabalho aqui, não tem essa de acabou, não tenho trabalho. Você pode arrumar outra coisa pra fazer. Nem que seja ajudar o próximo. Você pode ir lá arrumar o congelador, etiquetar coisa nova (Carina, 18 anos, estagiária9).
Em um contexto em que o trabalho precisa ser planejado e executado em equipe, não há espaço para tempo ocioso, nem para descanso não programado. A questão do trabalho em equipe é muito importante para o trabalho nos restaurantes, pois é necessária uma certa harmonia entre todos, para que os pratos saiam juntos, para que todos os passos da execução sejam realizados conforme as prescrições das “fichas técnicas” (receitas) ou conforme a orientação do chef.
O ethos culinário
Jonas Arnoldsson (2015), em sua pesquisa com homens e mulheres chefs em Estocolmo (Suécia), observou cinco elementos que eram comuns nos depoimentos de seus/suas entrevistados/as, e que eu considero que constituem um ethos profissional dos/as cozinheiros/as. São eles paixão, lealdade, orgulho, resistência física e ambição.
A paixão está intimamente relacionada ao amor, citado no início desse artigo. A ideia de que cozinhar é um ato de amor se ajusta à cozinha profissional por meio desse amor mais intenso, mais forte, a paixão.
A cozinha dá muito trabalho. Eu acho, eu acho não, eu tenho certeza que a cozinha hoje, a gente pode repartir, a gente pode selecionar muitos cozinheiros apaixonados de cozinheiros por falta de opção. Tem os cozinheiros verdadeiramente que têm paixão, que vão muito longe, e os que estão lá só como uma opção de trabalho. Então, isso aí a gente já vê diretamente quando você tá em ação, você já vê o chef que é o chef que vai fazer tudo, que vai dar 100%, que não vai deixar o taco cair, do chef que tá lá pelo dinheiro e que não tá nem aí (André, 41 anos, chef de cozinha10).
Esse chef revela um paralelo entre a paixão e o engajamento, afirmando que é a paixão que faz com que o chef “vai fazer tudo, que vai dar 100%”. A paixão é um ingrediente importante desse ethos porque é ela, em última instância, que vai justificar as longas jornadas em pé, as curtas pausas e o pouco tempo de descanso, o trabalho à noite e aos finais de semana, a distância da família e a falta de vida pessoal, que foi relatada por quase todos/as os/as cozinheiros/as entrevistados/as.
Para além do trabalho planejado e programado no dia, há uma dinâmica de ajuda mútua: quando alguém está “nadando”11 na cozinha, os colegas se mobilizam para ajudar. Principalmente no momento do serviço, todos se mobilizam para auxiliar os colegas mais sobrecarregados. Esse sentimento de ajuda e cooperação, essencial para o trabalho em equipe, é a lealdade. Ela se refere a um sentimento forte de pertencimento ao grupo, de interdependência com os colegas e outros trabalhadores da cozinha. Quando uma pessoa está doente ou se sentindo mal, ela não falta ao trabalho por consideração aos colegas, e não por consideração ao patrão, ao dono do restaurante ou aos clientes - e essa é uma diferença importante. Sua lealdade está com aqueles/as que trabalham a seu lado, que terão que trabalhar mais, que terão que fazer mais trabalho.
Gary Alan Fine (1996) observou que, dentro da organização do trabalho, as pessoas se ajudam e fazem os trabalhos umas das outras, na expectativa de que tal prática seja comum e recíproca. Ele também observou que a constituição do coletivo de cozinheiros como uma comunidade baseia-se em uma aproximação que se constrói fora do trabalho: ir a um bar no fim do expediente, servir um bife para o lavador de louça ou dar sobremesas requintadas para os garçons (FINE, 1996, p. 38). Fine pontua que tal solidariedade pode significar - e constantemente significa - trabalhar horas extras não remuneradas, seja para terminar um serviço que não foi concluído no horário de trabalho, seja para limpar alguma coisa, para adiantar uma tarefa, para ajudar um colega.
O orgulho é um elemento muito importante do ethos do/a chef e do/a cozinheiro/a, porque o bom trabalho é reconhecido na hora. O valor do trabalho, nesse sentido, depende da satisfação de quem come, se o prato ficou bom ou não, se a pessoa que comeu gostou, se ela elogiou, se vai voltar ao restaurante, ou não. O ego dos/as cozinheiros/as é muito afeito aos elogios e a essa relação com os clientes, que é quase imediata, o que leva muitos/as deles/as a uma certa vaidade.
A resistência física (endurance) está intimamente ligada ao sentimento de orgulho. “Entrevistados testemunharam que uma boa ética de trabalho e resistência são algo que eles acreditam que o trabalho ensina, senão demanda, do chef”, afirma Arnoldsson (2015, p. 25). É comum que os chefs se gabem, e considerem motivo de reconhecimento e orgulho, terem passado por maus bocados na cozinha. Para ser um/a bom/a chef - e, por extensão, um/a bom/a cozinheiro/a -, é preciso ter resistido às duras condições, é preciso ter trabalhado muito, ter se cansado, adoecido e resistido. É preciso ter sobrevivido.
Reclamar ou chorar por causa das condições de trabalho depõe contra o/a profissional, porque pode ser um indicativo de que ele/a não tem essa característica considerada fundamental, a resistência. Dentro da dinâmica do grupo, apoiando-se no sentimento de lealdade que funda o coletivo da cozinha, quem reclama ou denuncia pode ser visto como “traidor”, um “outsider”, alguém que não é bom o suficiente para fazer o trabalho, alguém em quem não se pode confiar.
A ambição também é fundamental para um grande chef. Entre os entrevistados de Arnoldsson (2015, p. 26), a ambição é associada a uma obsessão, algo para o qual é preciso dedicar-se a vida inteira. Nesse sentido, o reconhecimento que pode vir pela mídia, pelos críticos gastronômicos, ou mesmo uma estrela Michelin, coroa o esforço de uma vida voltada ao trabalho e ao aprendizado na cozinha, representa o reconhecimento da dedicação total ao ofício. E por isso é tão importante para os/as chefs.
Como o trabalho culinário resulta em uma produção material, concreta, que vai ser consumida naquele momento, a distância entre quem produz e quem consome se reduz. O fato de que quem produziu a comida vê o resultado do seu trabalho instantaneamente cria um sentimento de orgulho que, como vimos, também é fundamental para a autoestima e o sentimento de pertencimento desses profissionais.
Os elementos que compõem o ethos profissional dos/as cozinheiros/as, apresentados aqui de forma rápida, contribuem para o fortalecimento dos laços entre o conjunto de trabalhadores/as numa mesma cozinha e adesão ao coletivo. Isso é muito importante para a dinâmica das relações na cozinha, para a realização do trabalho em equipe nos momentos em que a pressão aumenta e o ritmo do trabalho acelera, assim como para a criação de uma rede de contatos que é fundamental no mercado de trabalho dos/as cozinheiros/as.
Entretanto, o estabelecimento de um coletivo de trabalho coeso pode ter efeitos indesejados quando passa a operar numa dinâmica de estabelecidos e outsiders (Norbert ELIAS, 2000). Em um ambiente onde todos se ajudam e se apoiam, onde saem juntos depois do trabalho para espairecer, onde brincam e se divertem, uma pessoa que não comungue dessa “coletividade” passa a ser vista como um outsider, alguém que não pertence, que não comunga dos mesmos valores, alguém que não merece confiança. E, neste sentido, não ser confiável pode representar o risco de ser considerada traidor/a, e, portanto, objeto do desprezo e até do ódio dos/as colegas. Tratarei essa questão a seguir, ao discutir o assédio moral.
Assédio moral
Roberto Heloani (2005, p. 104) afirma que “o assédio moral caracteriza-se pela intencionalidade; consiste na constante e deliberada desqualificação da vítima, seguida de sua consequente fragilização, com o intuito de neutralizá-la em termos de poder”. No entendimento desse pesquisador, o assédio moral cumpre uma função dentro das organizações, ao mesmo tempo que responde a traços de psicopatia ou maldade daquele/a que perpetra o assédio. Ainda segundo ele, “sem dúvida, trata-se de um processo disciplinador em que se procura anular a vontade daquele que, para o agressor, se apresenta como ameaça” (Idem).
O assédio é tolerado nas cozinhas e considerado um comportamento aceitável na medida em que se relaciona ao ethos dos cozinheiros e corrobora a ideia de que apenas os fortes sobrevivem a esse trabalho. Assim, admitir ter sofrido algum tipo de assédio ou violência, narrar acontecimentos em que a pessoa precisa se colocar como vítima e que se viu impotente para reagir é muito difícil para esses profissionais. De fato, foi um assunto delicado, mas que apareceu algumas vezes por iniciativa do/a entrevistado/a, até em tom de vantagem, de heroísmo ou de anedota. Também foram muitos os casos em que o/a entrevistado/a falava de algo que aconteceu com um conhecido ou um colega, com outra pessoa, “mas não comigo”.
Nas cozinhas, predomina um sentimento de pertencimento que se baseia em uma cultura profissional do “mais forte”, no qual o assédio moral e o abuso são legitimados por uma naturalização do exercício de autoridade. Wendy Bloisi e Helge Hoel (2008, p. 649) afirmam que os abusos têm sido até glamourizados, em anos recentes, nos reality shows culinários: “Tal abuso tem sido frequentemente retratado como uma parte necessária do trabalho e tem sido glamourizado em programas de televisão como Hell’s Kitchen”.
A natureza física do trabalho, carregar caixas e panelas pesadas, as longas jornadas de pé constituem um ethos profissional “somente para os fortes”, em que é preciso ter “paixão”, “amar muito o que faz”. Nesse sentido, a agressividade, as brincadeiras sexistas, as práticas discriminatórias e o assédio, em última instância, são entendidos por alguns profissionais como uma forma de garantir que apenas “sobrevivem” aqueles que realmente querem permanecer na cozinha.
Eu tenho colegas, eu não (graças a deus), mas eu tenho colegas que quase apanharam ou apanharam, fora ofensas mesmo, tipo xingamento. (...) Aqui [França] era xingamento, era grito. Se você faz alguma coisa errada, você era um merda, não serve pra nada, você deveria desistir dessa profissão. Isso que eu fico muito chocada, que as pessoas aqui, que fazem estágio, elas têm o quê? 15, 16. A maioria tá no liceu profissionalizante. São muito novos. Eu que já era mais velha fiquei muito abalada, imagino uma pessoa mais nova. Aí eles dizem que cozinha é pros fortes, mas eu não acredito nesse método de seleção (Mariana, 31 anos, cozinheira).
Isso é legal, mas em relação ao tratamento dos chef[s] com os cozinheiros, com os estagiários, era aquele tratamento à base de grito, de assédio mesmo. Teve um dia que eu presenciei, não comigo, mas com uma menina, uma estagiária do Rio, uma carioca. Ela tinha... já faz tempo que ela tava estagiando lá e ela chegou meio que atrasada assim, a única vez que ela chegou atrasada, tipo 20 minutos de atraso, alguma coisa assim. E eu vi o chef de cozinha, não me lembro o nome dele, esculachar ela. Falar um monte, humilhar, gritar, como se... só faltou bater, sabe? (Manuela, 31 anos, confeiteira).
Considerando o ethos dos/as cozinheiros/as e as características que são valorizadas nesse ambiente profissional, há uma zona cinzenta quando o assunto é assédio e violência. Ainda segundo Bloisi e Hoel (2008, p. 649), “vários chefs também reivindicaram que dar e receber abuso é parte do processo de socialização que cria a ‘dureza’ necessária para operar em uma cozinha comercial ou restaurante”.
Quem reclama e se incomoda, quem não entra na brincadeira, é excluído/a do grupo, passa a não fazer parte. É visto/a com desconfiança pelos colegas, e qualquer atitude no sentido de denunciar ou até de reagir pode ser interpretada como uma ação contra o grupo, tornando essa pessoa alguém em quem não se pode confiar, um/a traidor/a. Uma das entrevistadas, que era chef confeiteira em um restaurante tradicional na capital paulista, relatou ter sofrido represálias por falar demais: “Eu reclamava. Ninguém reclamava, mas eu reclamava. (...) E eu fui demitida de lá. Eu fiquei sem chão. Eu fiquei pensando por que isso. Depois eu descobri que foi porque eu falava muito, reclamava demais” (Manuela, 31 anos, confeiteira).
Em uma cultura profissional que valoriza a resistência física, a capacidade de suportar a pressão e condições adversas, determinadas situações são difíceis de serem caracterizadas como assédio ou um comportamento não aceito pelo grupo. Mais do que isso, viver uma situação de violência ou assédio e, mesmo assim, continuar, torna-se um valor. Os entrevistados de Arnoldsson (2015, p. 4), que trabalhavam em restaurantes sofisticados, referiam-se ao “mito” de que ser capaz de suportar o assédio e o que o autor chama de bullying12 é parte da profissão, e que para aprender as coisas boas é preciso aguentar todas as ruins que vêm junto. Assim, ter muita experiência na cozinha significa ter aturado muitas situações difíceis, ter conquistado respeito, um certo lugar, e isso, de alguma maneira, credencia essa pessoa a reproduzir os mesmos comportamentos que sofreu quando estava em outra posição. Em nome de ter uma experiência no currículo ou em troca de aprender com um/a chef famoso/a, muitos/as cozinheiros/as ou “chefs em treinamento” estão dispostos a suportar abusos.
O autor observou que principalmente na hora do serviço (quando o restaurante está cheio e os trabalhadores tendem a estar mais estressados), em função desse forte elo de pertencimento profissional, muito do que se diz chocaria outsiders. Segundo seus entrevistados, coisas que não seriam aceitas em outros grupos ou ambientes profissionais são aceitas na cozinha, como também observaram Bloisi e Hoel (2008), porque todos que estão lá sabem que a pessoa que diz coisas racistas ou machistas, que usa linguagem chula e baixa, não quer dizer essas coisas, na verdade. Um de seus entrevistados diz que pessoas que não são racistas acabam falando coisas racistas no calor do momento. “E tem muita conversa degradante para as mulheres, especialmente quando não tem mulheres por perto” (ARNOLDSSON, 2015, p. 27).
No coletivo de trabalhadores, é entendido que esses comentários pessoais e inadequados são inofensivos, são brincadeiras que servem para divertir e descontrair na cozinha. O autor também observa que o bullying pode funcionar como um mecanismo de controle do grupo para normalizar comportamentos desviantes. São as brincadeiras e piadas internas que criam um tipo de coesão e reforçam o sentimento de pertencimento, mas que podem sair dessa esfera e ofender/agredir algumas pessoas.
Assim, a gente brinca, né? Aquele mesmo que eu falei aquele dia, a gente brinca muito, né, mas com respeito. (...) Assim, ele não brinca muito comigo, né, ele não brinca muito comigo porque também eu não dou muita liberdade, entendeu? Aquela outra que tava sentada que gosta de brincar e dá muita liberdade, eu não dou muita liberdade. Porque na hora que eu quiser cortar, eu corto (Helena, 49 anos, cozinheira13).
Eu sou uma pessoa que não gosto de falar da minha vida particular dentro do meu setor de trabalho, eu não gosto muito, não procuro saber também deles, procuro manter um foco só no profissional. Então não gosto muito de brincadeira, de muito agarra-agarra, evito esse tipo de coisa. Então vai muito da pessoa, tem pessoas que dá [sic] liberdade (Joana, 38 anos, chef14).
Não raro, as mulheres sentem que é seu dever “cortar” ou colocar limites na brincadeira, o que penaliza aquelas que não conseguem fazê-lo. Elas associam seus comportamentos e atitudes às práticas dos colegas: para ser respeitada na cozinha, é preciso não dar “muita liberdade”, ter um tipo de atitude mais fechada e séria, sob pena de não conseguir “cortar”.
Bloisi e Hoel (2008, p. 651), ao recuperarem a discussão teórica sobre o assunto do bullying entre chefs e em cozinhas, afirmam que, embora comportamentos de assédio possam ser conscientes e premeditados, existem casos em que o/a próprio/a autor/a não está consciente ou não tinha a intenção de prejudicar o/a outro/a; pelo contrário, esse tipo de comportamento pode ser interpretado como um meio de alcançar metas relacionadas ao trabalho, como uma forma de motivar.
No momento do serviço, o pico de estresse do trabalho, os/as cozinheiros/as são unânimes em afirmar que a cozinha não é um lugar tranquilo. As pessoas não conversam direito, não se falam com calma, e a comunicação é fundamental. Nesse momento, a conversa tem que ser muito direta e objetiva, não há tempo para corrigir erros ou retomar procedimentos. Os/as cozinheiros/as dizem que não há tempo de pedir as coisas educadamente. Gritos são comuns.
Quem vem de qualquer outra profissão não acha isso normal. A gente tá ali... Tem coisas que a gente entende, na correria de uma cozinha, no horário de serviço, nem sempre você tem tempo de ser educado com a pessoa, você não vai pedir “por favor, você poderia me dar aquela panela”, porque você perde tempo, então é “panela”. A gente sabe disso, a gente se entende. Pra você não se bater com a pessoa que tá atrás de você, você grita “queima”, “costas”, é meio bruto, o meio é bruto. Mas tem coisas que não precisam ser do jeito que são, e são (Mariana, 31 anos, chef de cozinha).
Hoje em dia eu não jogo mais coisa. Gritar eu grito quando tem que gritar. Mas só quando é situação extrema. E é porque é muita pressão, então uma hora tem que sair. Mas assim, nunca grito em cima de alguém, nunca vou jogar nada em cima de alguém. Tem que ser assim, mesmo que você esteja gritando porque alguém fez um erro, mas não vai, não vou agredir ninguém por causa disso. Não tem a menor condição, não tenho o menor interesse de fazer isso (Ana Paula, 32 anos, chef).
Como observa Marie-France Hirigoyen (2017), o assédio pode ser comum em algumas situações que demandam trabalho em equipe e sintonia entre as pessoas. Portanto, há uma influência muito grande do tipo de ambiente de trabalho que se estabelece e uma cultura profissional que, por sua vez, também é influenciada por uma série de fatores, que determinam se alguns comportamentos são assédio ou se são parte de uma espécie de relação entre colegas que não têm como objetivo agredir ou excluir alguém.
A alta rotatividade nesse setor também é um fator que colabora para que práticas de bullying e assédio sigam sem serem identificadas ou repreendidas, já que uma pessoa que se sente assediada e impotente diante disso pode encontrar outro trabalho. O fato de, no segmento de restaurantes, haver alguma mobilidade que possibilite pessoas a mudarem de trabalho rapidamente e com relativa facilidade contribui para que o problema seja individualizado, para que a pessoa que sofre assédio procure resolver seu problema em outra cozinha, e o/a assediador/a continue com as mesmas práticas.
Mas é que eu, assim, todas as vezes que eu sentia que tava impossível, eu saía. Eu já tava, entrei com uma maturidade que eu não ia me submeter. Por exemplo, o estágio daqui era pra fazer 6 meses, o mínimo era 3, eu fiz 3 e saí. O chef ficou muito puto, ligou pro meu professor, fez o maior escândalo, disse que eu era uma pessoa horrível, mas é isso. É um direito meu sair com 3 meses, eu cumpri os 3 meses e saí. Eu aguentei os 3 meses porque eu sabia que eu precisava daquele diploma (Mariana, 31 anos, cozinheira).
Há que se diferenciar, então, o que é oriundo de um coletivo de trabalhadores, de um grupo de pessoas que realizam o mesmo trabalho, da violência hierárquica que pode partir do chef ou do superior. Esse tipo de assédio, infelizmente, bem comum nas cozinhas, tem como objetivo reforçar a hierarquia, exaltar a figura do/a chef como autoridade e reiterar que esse local de trabalho é para “os fortes” e não para qualquer pessoa. Nesse sentido, o assédio reforça esse aspecto masculinizante do ambiente das cozinhas profissionais, a dimensão masculina, bruta, violenta.
Sabe que uma curiosidade aconteceu comigo. Quando eu comecei a trabalhar aqui no __, alguns meses que eu tava lá, eu peguei o elevador de serviço com o maître, o chefe do salão. Ele, no elevador, falou assim pra mim “eu posso fazer uma pergunta, chef?”, falei “pode, você pode me fazer todas as perguntas”. Eu percebi já há um tempo ele me olhando diferente, sabe? Ele disse “você é viado?”, eu falei “não”, ele falou “você não é homossexual?”, eu falei “não”. Ele falou “eu nunca vi um chef de cozinha tratar os funcionários que nem você trata”. Eu falei “eu entendo sua pergunta. Eu entendo mesmo, eu não sou homossexual, mas não vou tratar ninguém da forma como você viu até hoje. Vai acostumando” (Décio, 48 anos, professor).
O fato de que um chef adotava outra postura no comando da cozinha levantava dúvidas sobre sua sexualidade no restaurante, porque ele não adotava uma performance “masculina” o bastante com os seus subordinados. Se ele não desempenhava sua função com violência e agressividade, sua masculinidade estava sob suspeita. Isso também é verdade para as mulheres, como afirmou Ana Paula, chef brasileira que trabalhava em Paris: “Cozinha é muito machista, é um universo muito machista. Mas nunca tive nenhum problema. (...) Eu acho também que eu não sou a menininha pequenininha. Pra me encher o saco, tem que... eu tenho uma postura que é muito dura”.
Permanecer na cozinha, ou seja, sobreviver ao assédio, é considerado um valor. De acordo com Arnoldsson (2015, p. 28), “normas que celebram o chef forte, macho, capaz de aguentar e suportar o que for preciso (…) ajudam a fazer exatamente isso, resistir e oferecer alguma consolação e até motivação para continuar”.
A questão da resistência como um valor no ethos do cozinheiro também contribui para que os casos de abuso e assédio sejam narrados como “anedotas”, como casos, e muitas vezes como uma forma de o/a cozinheiro/a ou chef, na verdade, se gabar, se autovalorizar, reforçando essa autoimagem de força e resistência às piores condições. É um argumento de poder proclamar para os outros que também suportou violência na sua trajetória, o que legitima seu próprio comportamento. É um atestado de força e de poder.
Na contrapartida, admitir um lugar de “vítima” de algum tipo de violência, física ou psicológica, implica uma vergonha para quem sofre. E em um espaço em que a agressividade é vista como um valor positivo, entender que há um problema e se colocar como “vítima” pode ser interpretado como uma fraqueza. Isso contribui para que sejam poucos os casos que são denunciados, poucos os casos em que o/a agressor/a é identificado/a como tal, e muitos os casos em que esse tipo de comportamento é naturalizado como uma consequência do estresse implicado na própria profissão.
Assédio sexual
As mulheres que conseguem chegar aos cargos de chefia também reproduzem alguns comportamentos com os quais sofreram ao longo da carreira como uma forma de provar seu valor e legitimidade, provar suas capacidades, equiparando-se aos homens. Como observou Thaís Lapa (2020) com relação às mulheres na indústria metalúrgica, muitas vezes, as mulheres que ascendem na carreira temem ter seu sucesso tributado a favores sexuais, o que também é uma forma de diminuir seu mérito.
A capacidade técnica ou profissional dos homens nunca é questionada no sentido de terem obtido vantagens em troca de relações afetivas ou sexuais com colegas ou chef, mas isso parece relativamente frequente no caso das mulheres. Principalmente quando elas estão subordinadas aos homens.
Na época que eu fui dar aula no curso internacional, aí eu via... as meninas que não saía com eles, porque aí já tinha alojamento pra elas, aí não queria sair com eles, fazia elas limpar exaustor. Tudo isso eu já vi, minha filha. (…) Coifa, exaustor. Tem isso. Porque umas não queria. Aí eles colocava pro açougue, colocava pra limpar exaustor, lavar panela (Beatriz, 73 anos, chef e professora).
Utilizando o poder que eles têm dentro da hierarquia da cozinha, e o exemplo citado acima deixa isso claro, muitos homens pressionam mulheres para terem uma relação fora do ambiente de trabalho, uma relação pessoal, sexual, sob pena de “castigo” no trabalho, caso elas recusem. Os chefs, portanto, sabem quais são os trabalhos mais penosos, mais difíceis, e dispunham do seu poder sobre a organização do trabalho para penalizar as mulheres que “não queria [sic] sair com eles”.
Quando eu trabalhava lá em Natal, geralmente o chef ele é muito machista. Sempre foi muito machista. Sempre gostou de mulher na cozinha e sempre deu problema isso, porque ele era... sempre tratava as mulheres com jeito sexuado, totalmente sexuado. “Meu benzinho, vem aqui. Ah, meu amorzinho, vem aqui. Fica aqui do meu lado, vou te mostrar como faz”. Aí chegava um homem, falava “vai lá, faz outra coisa”. Então ele sempre... só que nunca que ele dá um cargo pra uma mulher. Entendeu como que é a jogada dele? “Eu trato ela bem pra ela ficar do meu lado, mas nunca que ela vai ser a minha subchef” (Matias, 25 anos, cozinheiro).
A experiência de Matias em um restaurante grande na cidade de Natal (RN) revela um lado do sexismo em que, aparentemente, o chef aceitava as mulheres na cozinha e chegava, inclusive, a adotar uma postura de ensiná-las, quando realmente tinha um interesse por trás. Esses comportamentos de excessiva intimidade, como chamar as funcionárias (e até colegas, pois esse tipo de atitude nem sempre está embasado na hierarquia) de “benzinho”, “meu anjo”, “amorzinho” são também formas de diminuir as mulheres e infantilizá-las. Conforme o próprio Matias observou, o chef não admitia colocar uma mulher como sous-chef, como sua subordinada direta e com responsabilidade efetiva na cozinha.
Mariana (31 anos, cozinheira) sofreu assédio sexual no trabalho e, sentindo que não tinha amparo sequer para fazer uma denúncia, pediu demissão. Ela descreve sua experiência:
No hotel que eu trabalhei lá em São Paulo, me trancavam na câmara fria... a câmara fria era uma sala. Aí trancavam a porta da câmara fria comigo e um garçom lá dentro, por exemplo, ficava tudo escuro, aí quando abria, eles gritavam “eeee”. Era a cultura deles assim, mas eu achava ridículo eles fazerem isso. Era a terceira série esse hotel. O chef deu em cima de mim horrores, foi quando eu tive a tendinite. Eu fiquei 15 dias afastada. Quando eu voltei, ele tinha falado pra todo mundo que ele tinha ido na minha casa, que a gente tava namorando. Assim. Quando eu fui tirar satisfação com ele, eu fiquei bem com raiva, a chef nunca tava lá, ela era chef executiva, trabalhava no turno da noite. Quando eu fui tirar satisfação, ele simplesmente foi cortando meu horário de jantar. A gente ia jantar em horários escalonados, e ele ia passando todo mundo pra ir jantar na frente e eu ficava por último, quando não tinha mais comida ou quando já tava muito tarde, quase na hora de ir embora, e eu não tirava minha hora de jantar.
O relato de Mariana explicita dois tipos de assédio sexual na mesma cozinha. De um lado, os colegas que agiam de forma que ela avaliou como infantil, “era a terceira série”, que a colocavam numa situação constrangedora com um garçom, enclausurados numa câmara fria, esperando que alguma coisa acontecesse entre eles. Ela ainda justifica o comportamento como “era a cultura deles assim”. Até esse momento, ela parece tratar esses incidentes como imaturidade dos colegas.
Heloani (2005, p. 105) afirma como o grupo pode ser levado a endossar o assédio moral, e nesse caso, sexual, uma vez que:
No caso de um agressor que atue dentro de uma empresa, este pode aliciar colegas que, por receio ou interesse, aliem-se a ele em sua “perseguição” a um determinado funcionário, considerando que, agindo dessa forma, demonstram uma certa cumplicidade, na esperança da recompensa de uma não agressão futura em relação a si próprios. É o “esprit d´équipe” que, particularmente nessa situação, traduz a falsa ideia de que a “solidariedade” ao chefe pode conduzir à segurança e mesmo à ascensão dentro da empresa.
O que, de fato, deixou-a “bem com raiva” foi o chef que disse para esses colegas que eles estavam namorando quando ela teve que se ausentar por motivo de saúde. A chef executiva, ou seja, a chefe do seu chefe, “nunca tava lá”, de maneira que ela não tinha a quem recorrer. O fato de que os colegas aderiram ao assédio perpetrado contra Mariana, ainda que oculto pela pecha de “brincadeira”, reforça seu sentimento de isolamento. Tendo sido desmentido e rejeitado, o chef começou a puni-la de forma quase imperceptível para os outros, usando seu poder de organizar a escala do jantar dos funcionários para impedi-la de tirar sua hora de descanso no período da noite, deixando-a sem jantar.
A solução que ela encontrou foi sair do restaurante. Segundo ela, “a coisa boa da cozinha é que você consegue emprego muito rápido, tem uma rotatividade muito grande. Toda vez que eu percebia que não tava bom, eu caía fora”. Uma solução individual que permite que o chef assediador permaneça no trabalho, sem nenhum tipo de responsabilização ou consequência pelos seus atos.
Segundo Elizabeth Roscoe (2012, p. 2), as habilidades mais respeitadas na cozinha são a capacidade de trabalhar por longas horas, sacrificar o tempo pessoal, suportar dor física e competir “com os outros meninos”, características muito associadas à masculinidade. Às mulheres que pretendem sobreviver nesse espaço só lhes resta se tornarem mais fortes, em alguma medida, se masculinizarem. As mulheres precisam abrir mão do que as diferencia como mulheres para poderem ocupar o lugar do “universal neutro” inexistente, ou seja, se aproximarem dos comportamentos masculinos. Por outro lado, as mulheres precisam suportar condições mais duras, além das brincadeiras e assédio, como se tivessem que provar, constantemente, que são tão boas quanto os homens, tão merecedoras quanto eles de estarem ali.
Se as mulheres querem trabalhar nas cozinhas profissionais, elas têm que suportar não apenas todas as dificuldades do lugar, mas elas também têm que aguentar as piadas, humilhação e assédio sexual. Elas enfrentam uma grande quantidade de pressão que pavimenta o caminho para o assédio moral (Alper KURNAZ; Sila SELÇUK KURTULUS; Burhan KILIÇ, 2018, p. 121).
Com relação ao preconceito e discriminação, os pesquisadores também apontam que as mulheres precisam suportar piadas, rebaixamento e assédio, muito mais que os homens. A conclusão dos pesquisadores é que é necessário que as mulheres chefs trabalhem mais e mais duro que os homens. “Mesmo que elas consigam obter sucesso em um campo dominado pelos homens, elas ainda sentem a obrigação de serem aceitas pelos homens” (KURNAZ; SELÇUK KURTULUS; KILIÇ, 2018, p. 128).
Na verdade os homens quando olha pra uma mulher que tem um cargo assim, eles querem um pouco, se você deixar, eles tentam... não sei como usar a palavra... eles são danado[s]. Mas a gente tem que ter cuidado. Tem que dizer “eu vim aqui pra isso e acabou”, entendeu? Tem, mas não muita. (...). Às vezes eles só te olham estranho pelo fato de você ser uma mulher. Mas acho que todo lugar é assim, principalmente na cozinha, porque 80% das cozinhas hoje, o chef é homem. As mulheres que estão invadindo agora. Eles fica [sic] meio estranho, mas eles aceitam depois (Joana, 38 anos, chef de cozinha).
Essa separação de homens e mulheres que coloca os homens em vantagem quando se trata de chefiar e assumir o comando, que por um lado naturaliza relações sociais, e por outro revela seu caráter de conflito, que Kergoat (2002; 2009) postula como as relações sociais em torno do enjeu, propicia e normaliza situações de assédio e assédio sexual. Nas palavras de alguns entrevistados, existem coisas que acontecem na cozinha que pessoas de fora considerariam absurdas, mas que os insiders tomam como ordinárias. Em um ambiente que valoriza características masculinas e que valoriza um comportamento de coesão grupal, o assédio assume diversas formas e penaliza sobretudo as mulheres. Brincadeiras de cunho sexual e homofóbico, muitas vezes entre o próprio grupo de funcionários, podem servir para fortalecer vínculos de amizade e união, mas também podem excluir e discriminar quem não se sente à vontade para participar.
O assédio pode ter diversas consequências sobre a saúde mental dos/as trabalhadores/as, como depressão, insônia e até síndrome do pânico. Durante as entrevistas, algumas mulheres falaram sobre terem “ficado mal” ou “muito infeliz” por causa do estresse e da tensão no trabalho, determinadas a abandonarem o serviço. Muitas das entrevistadas que viveram situações de assédio relataram que, nesse caso, a rotatividade do setor é uma vantagem, pois é possível conseguir outro trabalho na área, e portanto basta mudar de emprego. Entretanto, ainda que isso funcione do ponto de vista individual, o assédio não é discutido e nem tratado como problema nesse ambiente de trabalho. Neste grupo de profissionais que participaram da pesquisa, não foram apresentadas outras estratégias para lidar com o problema. O(s) assediador(es) segue(m) agindo da mesma maneira, e a vítima é que muda de trabalho. Isso reforça a ideia de que o problema não é o assédio em si, mas a pessoa que “não sabe brincar”, “não aguenta brincadeira”, “é mal-humorada” etc.
Conclusões
Conforme alguns autores apontam (HELOANI, 2005; HIRIGOYEN, 2017), o assédio moral pode ser uma ferramenta sistemática e cotidiana de controle e disciplinamento do grupo de trabalhadores/as. O assédio funciona como uma espécie de punição para aquele/a que não aceita as regras do jogo, que não adere aos princípios do coletivo: ser um/a outsider pode significar ser tratado/a como traidor/a, indigno/a de confiança, e, portanto, alvo preferencial do deboche, escárnio e agressividade do/s chefes, assim como dos/as colegas.
Esse parece ser o caso nas cozinhas. Inicialmente, para separar a cozinha profissional da doméstica, e assim garantir valor social à primeira, foi negado qualquer traço de feminilidade que remeta à cozinha do lar. Isso torna o gênero feminino um alvo preferencial de ataques: não apenas as mulheres, mas quaisquer comportamentos que remetam à construção social do feminino. Também por isso as mulheres são preferencialmente alocadas na parte da cozinha que tem menos prestígio, a cozinha fria.
A organização do trabalho na cozinha, vertical e rígida, centrada na figura do/a chef autoritário/a que manda e desmanda, que dita ritmos, prescreve comportamentos e supervisiona todos os trabalhos, e também contribui para determinados comportamentos agressivos e até violentos. A pressão, a urgência do serviço, os ritmos acelerados e a necessidade de que tudo saia de uma determinada maneira parecem autorizar o/a chef a adotar comportamentos que, como alguns entrevistados e entrevistadas pontuaram, causariam muita estranheza em alguém “de fora”. Jogar pratos, jogar panelas, ameaçar, chamar atenção na frente de todo mundo, infligir castigos e obrigar a realizar os trabalhos mais penosos são algumas das ações que o/a chef pode adotar com alguma naturalidade.
Fazer parte do coletivo de cozinheiros/as e suportar as duras jornadas, não raro em turnos duplos que praticamente não deixam tempo livre o suficiente para qualquer lazer, família ou vida pessoal, significa aderir ao que chamei de ethos dessa profissão, que tem a lealdade como um elemento fundamental. A lealdade aos colegas e o compromisso com o trabalho, ainda que sejam importantes para o bom andamento da cozinha e para a coesão do grupo, podem adquirir caráter perverso quando se identifica alguém que não está disposto/a a fazer todos os sacrifícios que, aparentemente, todos/as os/as outros/as estão fazendo.
As maiores dificuldades enfrentadas por aqueles/as que pretendem denunciar esse tipo de abuso e para que os/as assediadores/as sejam responsabilizados/as por essas atitudes, assim como punidos/as, não diferem muito de outras organizações. A dificuldade de comprovar o assédio, a relutância dos/as colegas em testemunhar, a naturalização dos comportamentos agressivos, o medo de retaliações futuras, a opção de sair e arrumar outro emprego, entre outros, competem para a individualização do problema e silenciamento de quem sofre assédio.
Uma saída possível seria aproveitar esse sentimento forte de pertencimento e a lealdade que os/as cozinheiros/as sentem uns pelos outros para que se pensasse em estratégias de autodefesa e autopreservação coletivas, que se banalizasse os comportamentos de defender o/a colega que sofre esse tipo de agressão, e não de silenciar ou aderir à violência. Seria o caso de criar novas formas de organização e laços de solidariedade que tenham o mesmo cuidado com a saúde dos profissionais de cozinha que se tem com a qualidade da comida que é servida
Referências
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1
Entrevista realizada em São Paulo, em 18/02/2016.
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2
Do francês, “guardar alimento”. Refere-se à praça das entradas e porções frias.
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3
Hoje, algumas cozinhas têm equipamentos e máquinas que lavam a louça, mas ainda é preciso que haja um/a funcionário/a que cuide da limpeza dos pratos, panelas, talheres, copos etc., assim como da operação das máquinas de lavar.
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4
Nas cozinhas, quando um prato está sendo preparado, diz-se que ele “marcha” e, ao ser servido, “marcha e sai”.
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5
Entrevista realizada em São Paulo, em 07/04/2015.
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6
Entrevista realizada em Paris, em 13/02/2019.
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7
Entrevista realizada em Paris, em 31/01/2019.
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8
Entrevista realizada em São Paulo, em 16/05/2018.
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9
Entrevista realizada em São Paulo, em 18/02/2016 e 30/06/2016.
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10
Entrevista realizada em Paris, em 21/12/2018.
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11
“Nadar” é uma expressão muito utilizada pelos cozinheiros para se referir ao momento em que a cozinha precisa trabalhar sob ritmo mais intenso e mais rapidamente que o normal, geralmente quando há muitos pedidos.
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12
Arnoldsson utiliza o termo bullying para se referir ao assédio no trabalho.
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13
Entrevista realizada em São Paulo, em 27/07/2016.
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14
Entrevista realizada em São Paulo, em 04/07/2016.
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Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista:
BRIGUGLIO, Bianca. “Trabalho, gênero e assédio em cozinhas profissionais”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 31, n. 1, e82140, 2023.
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Financiamento:
As entrevistas e dados qualitativos que compõem este artigo foram obtidos durante realização de pesquisa de Doutorado financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), entre 2015 e 2019, através de bolsa de Doutorado (código de financiamento 001)
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Consentimento de uso de imagem:
Não se aplica
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Aprovação de comitê de ética em pesquisa:
Não se aplica
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
01 Maio 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
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Recebido
08 Jun 2021 -
Revisado
23 Maio 2022 -
Aceito
20 Jun 2022