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Feminismo Negro na Literatura Angolana

Black Feminism in Angolan Literature

Feminismo negro en la literatura angoleña

Resumo:

No presente artigo, nos propomos a uma análise interseccional do Diário de um exílio sem regresso (publicado em 2003) escrito entre 1956 e 1967 pela ativista e combatente angolana Deolinda Rodrigues. Procuramos apresentar como a vida e a obra de Deolinda Rodrigues podem contribuir para os estudos interseccionais de gênero, evidenciando que as ideias da autora no período das lutas anticoloniais eram confluentes com as do feminismo negro; para isso, partimos das análises bibliográficas e documental da obra citada. Os principais resultados encontrados nessa investigação apontam que as contribuições de Deolinda Rodrigues nos permitem repensar as genealogias do feminismo negro. Pontuamos a importância de contar com mais pesquisas sobre autoras negras que ajudaram a construir a história de países africanos através da literatura, do ativismo e da experiência.

Palavras-chave:
Deolinda Rodrigues; feminismo negro; literatura angolana

Abstract:

This article discusses the confluence of black feminism in Angolan literature: an intersectional analysis in Deolinda Rodrigues “Diary of An Unreturned Exile” (published in 2003, written between 1956-1967). It explores how Deolinda’s life and writings can contribute to intersectional gender studies, showing her ideas during the anti-colonial struggles period were already coincident with that of the black feminism; analysing specifically the diary of the author. The main results of this investigation suggest that it is possible to reframe back feminism genealogies of ideas and actions, including black African women. We underline the importance of developing more academic research on black women authors who helped build the history of African countries through their literature, activism and experiences.

Keywords:
Angolan Literature; Black feminism; Deolinda Rodrigues

Resumen:

Este artículo propone un analisis interseccional del Diário de um exílio sem regresso (publicado en 2003) escrito entre 1956 y 1967 por la activista y combatiente angolana Deolinda Rodrigues. Buscamos evidenciar cómo la vida y obra de Deolinda Rodrigues puede contribuir a los estudios interseccionales de género, y mostrar que sus ideas durante la lucha anti-colonial eran confluyentes con las del feminismo negro. Para eso, partimos del análisis bibliográfico y documental de la obra de la autora Diário de um exílio sem regresso. Los principales resultados de esta investigación indican que es posible repensar las genealogías de los feminismos negros incluyendo el pensamiento-acción de autoras africanas. Enfatizamos la relevancia de contar con más investigaciones sobre autoras negras que contribuyeron a construir las histórias de sus países a través de la literatura, el activismo y experiencia.

Palabras clave:
Deolinda Rodrigues; feminismo negro; literatura angolana

Introdução

O presente artigo tem como foco investigar como a obra Diário de um exílio sem regresso, de Deolinda Rodrigues, pode contribuir para os estudos interseccionais de gênero.1 1 O presente artigo tem como antecedente o trabalho de conclusão de curso de Lindiana da Silva Oliveira na Especialização Interdisciplinar em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa da UNILAB, orientada por Natalia Cabanillas. Com base nessa experiência, aprofundamos o debate, o trabalho com as fontes para a construção do presente artigo. O diário foi organizado e publicado em 2003 pelo irmão de Deolinda - Roberto de Almeida -, integrante do partido que atualmente governa Angola, o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), com escritos datados de 1956 a 1968. Conforme o relato do próprio Roberto de Almeida no documentário Langidila (José RODRIGUEZ NGUXI DOS SANTOS, 2014RODRIGUEZ NGUXI DOS SANTOS, José (realizador). Langidila, diário de um exílio sem regresso. Documentário, 120 min. MPLA Sede Nacional, 11/04/2014. Disponível em Disponível em https://youtube/wZt2OwQJE1U . Acesso em 12/01/2022.
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), ele encontra o diário da irmã em 1974, durante uma visita às bases guerrilheiras do MPLA, na República Popular do Congo. Usualmente, as genealogias do pensamento e a ação interseccional não contemplam autoras/ativistas africanas, principalmente porque uma parte delas não se autodefiniram como feministas.2 2 Nos contextos africanos, o feminismo ainda é amplamente estigmatizado como um movimento branco eurocêntrico, distante das realidades do continente. Isso não significa que África não tenha sido cenário de todo tipo de lutas antissexistas e, inclusive, feministas. Isto, contudo, não significa que não tenham práticas e ideias que contribuem de forma substancial aos debates feministas (Ângela FIGUEIREDO; Patrícia G. GOMES, 2016FIGUEIREDO, Ângela; GOMES, Patrícia Godinho. “Para além dos feminismos: uma experiência comparada entre Guiné-Bissau e Brasil”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 24, n. 3, p. 909-927, 2016. Disponível em Disponível em http://dx.doi.org/ 10.1590/1806-9584-2016v24n3p909 . Acesso em 02/03/2022.
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; Obioma NNAEMEKA, 1998NNAEMEKA, Obioma. “Introduction: Reading the Rainbow” In: NNAEMEKA, Obioma (Ed.). Sisterhood, Feminisms, and Power: From Africa to the Diaspora. Trenton, N.J.: Africa World Press, 1998. p. 1-35.). Este trabalho procura mostrar as confluências das ideias de Deolinda com as dos feminismos negros da diáspora, e seu olhar interseccional.

Essas confluências existiram nos itinerários da autora: no seu exílio, e fugindo da perseguição política da PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado), Deolinda morou no Brasil por mais de um ano, com bolsa de estudos da Igreja Metodista, e mudou-se para os Estados Unidos em 1960, quando Brasil e Portugal assinaram um tratado de extradição que a colocaria em risco de ser detida (Limbania JIMÉNEZ, 2004JIMÉNEZ, Limbania. “Biografia de Deolinda Rodrigues”. In: RODRIGUES, Deolinda. Cartas de Langidila e outros documentos. Luanda: Nzila, 2004. p. 19-37., p. 26). Desde novembro de 1959, intercambia cartas com Martin Luther King, a quem pede conselhos perante a possibilidade de ser presa pela PIDE e, inclusive, nesses intercâmbios, também recebe um dos livros de King, conforme a carta que King (1959KING, Martin Luther. Carta a Deolinda Rodrigues, 21 de dezembro de 1959. Documento transcrito no Kings Papers, website do “Martin Luther King Jr Research and Education Institute” da Universidade de Standford, EUA. 1959 Disponível em https://kinginstitute.stanford.edu/king-papers/documents/deolinda-rodrigues.
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) encaminha a Deolinda no dia 21 de dezembro de 1959. Assim, como sinaliza Margarida Paredes, “... no ano de 1959, se correspondeu com Martin Luther King, o que indica que tinha conhecimentos da luta do movimento pelos direitos civis nos EUA e provavelmente do movimento das mulheres negras” (PAREDES, 2015PAREDES, Margarida. Combater duas vezes. Mulheres na luta armada em Angola. Portugal: Versos da História, 2015., p. 123).

Para nós, pesquisadoras compromissadas com a luta antirracista, torna-se importante trazer à tona as contribuições que o feminismo negro propõe para essa análise, considerando que algumas autoras africanas da atualidade se autodeclaram feministas e, inclusive, muitas delas dialogam de fato com o corpus bibliográfico dos feminismos negros. Nesse sentido, temos como exemplo a escritora Chimamanda Ngozi Adichie (Nigéria); a escritora, poeta e professora Abena Busia (Gana); a advogada e ativista Osai Ojigbo (Nigéria); a diretora executiva do Instituto Dada, Akili Purity Kagwiria (Quênia); Zethu Matebeni e Pumla Gqola (África do Sul); Fatow Sou (Senegal); Amina Mama (Inglaterra-Nigéria); Stella Nyanzy (Uganda), entre muitas outras. Por isso, apontamos o que Sueli Carneiro reflete sobre as contribuições do feminismo negro:

Pensar a contribuição do feminismo negro na luta antirracista é trazer à tona as implicações do racismo e do sexismo que condenaram as mulheres negras a uma situação perversa e cruel de exclusão e marginalização sociais. Tal situação, por seu turno, engendrou formas de resistência e superação tão ou mais contundentes. O esforço pela afirmação de identidade e de reconhecimento social representou, para o conjunto das mulheres negras, destituído de capital social, uma luta histórica que possibilitou que as ações dessas mulheres do passado e do presente (especialmente as primeiras) pudessem ecoar de tal forma a ultrapassarem as barreiras da exclusão (CARNEIRO, 2003CARNEIRO, Sueli. “Mulheres em movimento”. Estudos Avançados, v. 17, n. 49, p. 117-133, 2003. Disponível em Disponível em https://www.revistas.usp.br/eav/article/view/9948 . Acesso em 10/01/2022.
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, p. 129).

Retomando os dados biográficos apontados por Jiménez (2004JIMÉNEZ, Limbania. “Biografia de Deolinda Rodrigues”. In: RODRIGUES, Deolinda. Cartas de Langidila e outros documentos. Luanda: Nzila, 2004. p. 19-37.), Deolinda Rodrigues Francisco de Almeida era prima de Agostinho Neto, o primeiro presidente de Angola independente. Teve acesso à educação primária em escola missionária, recebeu bolsa de estudos da Igreja Metodista (1959) para estudar sociologia em São Paulo, no Brasil. Ainda quando era estudante do Liceu Salvador Correia, em Luanda, Deolinda Rodrigues Francisco de Almeida já se empenhava, clandestinamente, na luta política anticolonial. Devido à perseguição da PIDE, ela se exila no Brasil, onde também não estaria segura, razão pela qual teve que se mudar para aos Estados Unidos. Após uma breve passagem por Guiné Conacry, se instala na capital de Zaire (hoje Kinshasa, em RDC) desde 1962 até 1963, de onde o movimento seria expulso (pelo alinhamento conservador do Zaire); finalmente, as estruturas do MPLA se fixaram em Brazzaville, Congo, nas quais Deolinda trabalhou, seja no centro de refugiados, seja como locutora do programa do MPLA “A voz do combatente”, seja ajudando na fundação da Organização da Mulher Angolana (OMA).

Em 1966, ela foi selecionada para integrar o esquadrão militar Kamy (JIMÉNEZ, 2004JIMÉNEZ, Limbania. “Biografia de Deolinda Rodrigues”. In: RODRIGUES, Deolinda. Cartas de Langidila e outros documentos. Luanda: Nzila, 2004. p. 19-37., p. 36-37). “A porta de entrada na guerrilha deu-se através da instrução militar realizada no CIR (Centro de Instrução Revolucionária) em Dolisie, na fronteira com Cabinda e Congo Brazzaville, tendo sido preparada por instrutores cubanos, após o que integrou a Coluna Camy que a conduziu à morte prematura” (PAREDES, 2015PAREDES, Margarida. Combater duas vezes. Mulheres na luta armada em Angola. Portugal: Versos da História, 2015., p. 191). Margarida Paredes afirma que Deolinda foi a impulsora para que as mulheres pudessem receber instrução militar e combater como guerrilheiras na luta de libertação. Tais práticas eram negadas às mulheres de sua época e reservadas apenas aos homens, mas Deolinda (mulher negra) teve a coragem de divergir da grande maioria. O fato de as mulheres iniciarem no treinamento militar é comemorado por Deolinda, que escreve a alegria de “Manejar PM 44” (RODRIGUES, 2003RODRIGUES, Deolinda. Diário de um exílio sem regresso. Luanda: Nzila, 2003., p. 161).

Jiménez (2010) foi treinadora militar de Deolinda Rodrigues (PAREDES, 2015PAREDES, Margarida. Combater duas vezes. Mulheres na luta armada em Angola. Portugal: Versos da História, 2015., p. 270) e, posteriormente, aborda a vida de Deolinda em seu livro Heroínas de Angola; escreve uma breve biografia de Deolinda (citada neste artigo), que assina “como escritora e historiadora cubana” para o livro Cartas de Langidila e outros documentos (JIMÉNEZ, 2004JIMÉNEZ, Limbania. “Biografia de Deolinda Rodrigues”. In: RODRIGUES, Deolinda. Cartas de Langidila e outros documentos. Luanda: Nzila, 2004. p. 19-37.), também organizado pelo irmão da Deolinda, Roberto de Almeida, que a ela se refere da seguinte forma:

Nasceu em Catete aos 10 de fevereiro de 1939. Filha de um casal de professores primários, era a terceira de cinco irmãos. O pai repartia os trabalhos docentes com os de pastor evangélico. A sua região natal foi cenário de revoltas populares pela cruel exploração que as companhias algodoeiras exerciam sobre os trabalhadores, cujas justas reivindicações eram reprimidas com a maior violência, a deportação e a morte eram o que esperava aqueles que lutavam contra tal situação. Desde criança, DEOLINDA se revoltou contra esta vida de humilhação, miséria e opressão, e isto criou no seu coração um profundo sentimento patriótico. Em criança, viveu indistintamente em Ndalatando, Kaxicane, Catete, Dondo, lugares onde o seu pai foi destinado a prestar serviços religiosos. Com os seus pais, realizou os primeiros estudos e já tinha alguma preparação quando iniciou a escola primária em Luanda, para onde se havia transferido mais tarde com sua mãe e irmãos (JIMÉNEZ, 2004JIMÉNEZ, Limbania. “Biografia de Deolinda Rodrigues”. In: RODRIGUES, Deolinda. Cartas de Langidila e outros documentos. Luanda: Nzila, 2004. p. 19-37., p. 21).

Deolinda e sua família, embora contando com o status jurídico de assimilados3 3 Assimilado é uma categoria jurídica prevista em vários documentos do Império Português, em particular no “Estatuto Político, Civil e Criminal dos Indígenas de Angola e Moçambique”, aprovado através do Decreto nº 12.533, de 23 de outubro de 1926 (Boletim Oficial nº 48), e derrogado em 1961. O império português reconhecia apenas a cidadania dos e das portuguesas (brancos), enquanto a população indígena (sinônimo de africano) era considerada súdita, portanto poderia ser obrigada a trabalhar para o Estado. Já uma porcentagem ínfima de pessoas africanas poderia acessar certos direitos como estudo, não ser chamada para o trabalho forçado, trabalhar nos órgãos da administração colonial, ter certa autonomia para deslocar-se dentro da colônia, solicitar carteira de motorista, direito a voto etc., possibilitando assim alguma ascensão econômica e social. Entre os requisitos para demonstrar ser uma pessoa “civilizada” estavam: o domínio do português escrito, possuir propriedades, professar a religião católica ou cristã, e manifestar aversão pela cultura africana (PORTUGAL. Estatuto Político, Civil e Criminal dos Indígenas de Angola e Moçambique. Decreto nº 12.533. Lisboa: Boletim Oficial nº 48, de 23 de outubro de 1926). (Washington Santos NASCIMENTO, 2016NASCIMENTO, Washington Santos. “Políticas coloniais e sociedade angolana nas memórias e discursos do escritor Raul David”. Anos 90, Porto Alegre, v. 23, n. 44, p. 265-289, 2016., p. 265), também sofriam as explorações do sistema colonial. Deolinda fazia parte de uma pequena elite angolana instruída, era multilíngue, assim como erudita da política internacional. Mesmo que não compartilhasse a realidade da maioria da população preta angolana, era com “o povo” que ela se identificava, e não com as elites intelectuais. Nesse sentido, é de importância para os estudos literários e de gênero, sobretudo, abordar as obras de uma autora negra, sua história de vida, e fazer emergir a questão da memória social e cultural das mulheres negras.

Deolinda cresceu alimentando o sentimento militante de retirar seu povo da condição deplorável e desumana a que estava exposto. Sendo assim, ativista, poetisa, mártir da luta pela liberdade, teve um papel crucial na história e na literatura do país. Encontramos na sua escrita um percurso de luta, resistência e identidade, pois remetem à vivência de uma mulher negra, africana, que foi atravessada pelo sexismo e racismo em meio à luta pela libertação de Angola. Lélia González, em seu texto “Racismo e sexismo na cultura brasileira”, destaca a importância do lugar de fala: “o lugar em que nos situamos determinará nossa interpretação sobre o duplo fenômeno do racismo e do sexismo” (GONZÁLEZ, 1983GONZÁLEZ, Lélia. “Racismo e sexismo na cultura brasileira”. Revista Ciências Sociais Hoje, Brasília, Anpocs, p. 223-244, 1983. Disponível em Disponível em https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4584956/mod_resource/content/1/06%20-%20GONZALES%2C%20Lélia%20-%20Racismo_e_Sexismo_na_Cultura_Brasileira%20%281%29.pdf . Acesso em 12/01/2022.
https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.p...
, p. 224).

O pensamento expresso no diário de Deolinda faz parte tanto da sua individualidade quanto da coletividade de saberes sobre como funciona a opressão colonial racista e sexista. Patricia Hill Collins (2019COLLINS, Patricia Hill. Pensamento feminista negro. São Paulo: Boitempo, 2019.) aponta que o pensamento feminista negro no contexto estadunidense emerge da experiência das opressões interseccionais e também do desenvolvimento de saberes independentes de resistência. Apesar de estar falando de um contexto muito diferente, pensamos que estes apontamentos são relevantes para entender as ideias de Deolinda Rodrigues como parte das tradições intelectuais negras. Sueli Carneiro aponta a importância dos protagonismos e das redescobertas dessas mulheres:

O efervescente protagonismo das mulheres negras, orientado num primeiro momento pelo desejo de liberdade, pelo resgate de humanidade negada pela escravidão e, num segundo momento, pontuado pelas emergências das organizações de mulheres negras e articulações nacionais de mulheres negras, vem desenhando novos cenários e perspectivas para as mulheres negras e recobrindo as perdas históricas (CARNEIRO, 2003CARNEIRO, Sueli. “Mulheres em movimento”. Estudos Avançados, v. 17, n. 49, p. 117-133, 2003. Disponível em Disponível em https://www.revistas.usp.br/eav/article/view/9948 . Acesso em 10/01/2022.
https://www.revistas.usp.br/eav/article/...
, p. 129).

Pensamos que a contribuição das mulheres africanas às lutas pelas independências dos seus países, seja através da política seja da guerra anticolonial, faz parte desse contínuo de resistências e, como tal, precisa ser estudado, visibilizado, pesquisado.

Consideramos relevante tensionar produtivamente as genealogias do pensamento interseccional, ampliando o campo para abranger as lutas pelas independências dos países africanos, suas protagonistas e lideranças: que olhares interseccionais desenvolveram no decorrer das suas vidas em combate? Este caminho nos permitiria entender a participação das mulheres nas lutas contra o colonialismo desde uma outra perspectiva e redimensionar o caráter colonial do nosso presente. A teoria interseccional foi e é relevante para identificar as experiências diversas, em função dos eixos de opressão que afetam cada sujeito, e para compreender as experiências situadas das mulheres negras (bell hooks, 2019hooks, bell. Erguer a Voz. Pensar como Feminista, Pensar como Negra. São Paulo: Elefante, 2019.). Quando o consideramos nas suas possibilidades descritivas, este conceito é um aporte dos feminismos negros a como entendemos as relações sociais (Natalia CABANILLAS, 2021CABANILLAS, Natalia. “Prácticas interseccionales: notas sobre el activismo sudafricano de mujeres”. In: OCHOA, Karina; CEJAS, Mónica Ines. Perspectivas Feministas de la interseccionalidad. Cidade do México: UAMX, 2021. p. 220-245.) e os agenciamentos.

Para este artigo, fizemos, no primeiro momento, uma análise crítica documental do livro Diário de um exílio sem regresso, observando as categorias de raça, gênero, classe social e as análises interseccionais que aparecem na obra. No segundo momento, atentou-se para o problema que desejávamos investigar: como a obra Diário de um exílio sem regresso, de Deolinda Rodrigues, pode contribuir para os estudos interseccionais de gênero? Foi utilizada, como recurso metodológico, a análise de conteúdo do diário a partir da narrativa da autora estudada em consonância com os textos teóricos bibliográficos das autoras Kimberlé Crenshaw (2002CRENSHAW, Kimberlé. “Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero”. Revista Estudos Feministas, v. 10, n. 1, p. 173, 2002. Disponível em Disponível em https://www.scielo.b r/pdf/ref/v10n1/11636.pdf . Acesso em 10/12/2021.
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) - que cunhou o conceito “interseccionalidade”, em 1989, - e Carla Akotirene (2019AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Pólen, 2019.) para compreendermos melhor as confluências entre as escrevivências (Conceição EVARISTO, 2011EVARISTO, Conceição. Insubmissas lágrimas de mulheres. Belo Horizonte: Nandyala, 2011.) de Deolinda e o feminismo negro na corrente interseccional. Em seguida, debatemos brevemente o uso da categoria interseccional neste trabalho. Por fim, serão apresentadas as análises do Diário e uma breve reflexão.

Algo mais que uma obra literária

A publicação do Diário (2003) e das cartas de Deolinda (RODRIGUES, 2004RODRIGUES, Deolinda. Cartas de Langidila e outros documentos. Luanda: Nzila, 2004.) disponibilizou corpus documental considerável e rico, portanto, abriu a possibilidade de pesquisar sobre esta autora e heroína nacional de Angola, desde diversos enfoques. Os lapsus temporais entre a escrita do diário e das cartas, até chegar na mão do seu irmão e até a publicação, assim como o itinerário dos documentos, nos obrigam a considerar que uma parte da sua escrita pode estar ausente ou editada pelos mais diversos motivos. A maioria das situações relatadas no diário se refere à vida no exílio e às interações com pessoas das mais diversas nacionalidades. Maria Nazareth Soares Fonseca descreve este percurso:

Deolinda Rodrigues, desde a juventude, integrava clandestinamente as lutas contra o colonialismo português, passando a ser vigiada pela PIDE, o que provocará a sua saída de Angola, valendo-se de uma bolsa de estudos a ser cursada em universidade metodista, em São Paulo, no Brasil. Do Brasil parte para os Estados Unidos e de lá parte para o Continente Africano, em 1962, para juntar-se ao MPLA, no Congo (FONSECA, 2017FONSECA, Maria Nazareth Soares. “Registros de uma guerra muito particular: Diários e cartas de Deolinda Rodrigues”. In: MATA, Inocência. Discursos memorialistas africanos e a construção da história. Lisboa: Colibri, 2017. p. 79-94., p. 82).

Muitos trechos e poesias da autora pesquisada aparecem citados e analisados em artigos e livros como os de Larissa Souza (2017SOUZA, Larissa. “Militância, escrita e vida: a poesia de Deolinda Rodrigues”. Cadernos Pagu, Campinas, n. 51, 2017. Disponível em Disponível em https://www.scielo.br/j/cpa/a/wnx56bs93NLRQkV4SRBfsHj/?lang=pt&format=pdf . Acesso em 19/01/2022.
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), Paredes (2010PAREDES, Margarida. “Deolinda Rodrigues, da Família Metodista à Família MPLA, o Papel da Cultura na Política”. Cadernos de Estudos Africanos, Lisboa, v. 10, p. 13-26, 2010. Disponível em https://doi.org/10.4000/cea.135.
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; 2015), Patrício Batsíkama (2020BATSÎKAMA, Patrício. “Poder no feminino. Caso da Deolinda Rodrigues ‘Langidila’”. Revista África(s), v. 7, n. 13, p. 13-29, 2020. Disponível em Disponível em https://revistas.uneb.br/index.php/africas/article/view/9403 . Acesso em 10/01/2022.
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), Fonseca (2017FONSECA, Maria Nazareth Soares. “Registros de uma guerra muito particular: Diários e cartas de Deolinda Rodrigues”. In: MATA, Inocência. Discursos memorialistas africanos e a construção da história. Lisboa: Colibri, 2017. p. 79-94.) e Noemi Alfieri (2021ALFIERI, Noemi. “Deolinda Rodrigues: entre a escrita da história e a escrita biográfica. Recepção de uma guerrilheira e intelectual angolana”. Abriu, v. 10, p. 39-57, 2021.).

O artigo de Souza (2017SOUZA, Larissa. “Militância, escrita e vida: a poesia de Deolinda Rodrigues”. Cadernos Pagu, Campinas, n. 51, 2017. Disponível em Disponível em https://www.scielo.br/j/cpa/a/wnx56bs93NLRQkV4SRBfsHj/?lang=pt&format=pdf . Acesso em 19/01/2022.
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) - baseado na pesquisa de doutorado da autora - reflete sobre a militância política e o protagonismo de Deolinda na luta pela independência de Angola, partindo dos poemas registrados no Diário de Deolinda. Paredes (2010PAREDES, Margarida. “Deolinda Rodrigues, da Família Metodista à Família MPLA, o Papel da Cultura na Política”. Cadernos de Estudos Africanos, Lisboa, v. 10, p. 13-26, 2010. Disponível em https://doi.org/10.4000/cea.135.
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) - ex-combatente do MPLA de origem portuguesa - faz uma análise voltada à religião à qual pertencia a combatente, estabelecendo uma relação entre a família metodista e a família MPLA e o modo como os dois mundos estavam interligados na vida de Deolinda. Também em 2015, Paredes, no seu livro Combater duas vezes, aborda a participação das mulheres na luta armada com uma pesquisa monumental, rica em entrevistas, documentos e revisão de bibliografia; aponta a luta das ex-combatentes pela emancipação e igualdade de gênero e aborda a figura de Deolinda Rodrigues. Comentando um artigo atribuído à Deolinda e publicado em 1965 pela OMA, Paredes pontua:

Este texto, ao enunciar uma dupla discriminação de género e racial, configura um feminismo negro que Deolinda deve ter bebido nos Estados Unidos. Na intimidade do diário, apesar de não falar em feminismo, as suas reflexões revelam uma consciência feminista e apontam para um feminismo africano avant la lettre (PAREDES, 2015PAREDES, Margarida. Combater duas vezes. Mulheres na luta armada em Angola. Portugal: Versos da História, 2015., p. 123).

Concordamos plenamente que as ideias de Deolinda Rodrigues estão dentro do universo intelectual que hoje chamamos de Feminismos Negros, porém, é importante mencionar que Deolinda tinha inúmeras interlocuções intelectuais, sendo a afro-norte-americana uma delas. Além das lutas pelos direitos civis nos Estados Unidos, Deolinda Rodrigues conheceu uma diversidade de ativistas mulheres: foi treinada por militares cubanas, com mulheres como Limbania Jiménez; participou em encontros de mulheres na URSS, e com ativistas pan-africanistas. Deolinda apresenta análises antirracistas, antissexistas e anticlassistas, que podemos relacionar com uma perspectiva interseccional, tal como Paredes (2015PAREDES, Margarida. Combater duas vezes. Mulheres na luta armada em Angola. Portugal: Versos da História, 2015.) sugere, ao colocar os escritos de Deolinda como precursores do feminismo africano e negro. Este caráter precursor também é apontado por Alfieri (2021ALFIERI, Noemi. “Deolinda Rodrigues: entre a escrita da história e a escrita biográfica. Recepção de uma guerrilheira e intelectual angolana”. Abriu, v. 10, p. 39-57, 2021.), ao analisar como as ideias de Deolinda Rodrigues são recebidas por organizações feministas atuais em Angola.

Em 2017, Inocência Mata inclui no seu livro (MATA, 2017MATA, Inocência. Discursos memorialistas africanos e a construção da história. Lisboa: Colibri, 2017.) um capítulo de Fonseca, que analisa a vida de Deolinda Rodrigues através do Diário e das cartas. Fonseca destaca o caráter testemunhal e as reflexões intimistas na escrita do diário de Deolinda, uma escrita-memória de época, sem a intermediação de um entrevistador. O capítulo considera dita reflexividade como um exercício de revinculação com sua terra, Angola; como uma forma de lidar com as saudades e com a necessidade de uma interlocução almejada que nem sempre era possível. Interessante mencionar que, embora o diário não apresente emotividade na escrita - sinalizado por Paredes como parte da masculinização de Deolinda -, esta autora reinterpreta as preocupações de Deolinda com a higiene, com a distribuição democrática de comida e medicinas como “vivência dos afetos” (FONSECA, 2017FONSECA, Maria Nazareth Soares. “Registros de uma guerra muito particular: Diários e cartas de Deolinda Rodrigues”. In: MATA, Inocência. Discursos memorialistas africanos e a construção da história. Lisboa: Colibri, 2017. p. 79-94., p. 91).

A escrita de Deolinda também tem sido analisada a partir de outras perguntas: Batsîkama (2020BATSÎKAMA, Patrício. “Poder no feminino. Caso da Deolinda Rodrigues ‘Langidila’”. Revista África(s), v. 7, n. 13, p. 13-29, 2020. Disponível em Disponível em https://revistas.uneb.br/index.php/africas/article/view/9403 . Acesso em 10/01/2022.
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) analisa o poder do feminino em relação ao poder hegemônico masculino e coloca Deolinda como heroína do povo angolano. Mateus Pedro Pimpão António (2023ANTÓNIO, Mateus Pedro Pimpão. “Deolinda Rodrigues: a intelectual combativa”. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 54, n. 1, p. 43-66, 2023.) analisa a figura de Deolinda Rodrigues como intelectual pública e analisa as ideias em torno da questão racial dentro do MPLA e do racismo no próprio sistema colonial.

Neste artigo, colocamos em foco as análises do Diário de um exílio sem regresso, de autoria de Rodrigues, porém partimos de uma pergunta de pesquisa diferente aos trabalhos antes mencionados. Abordar questões do feminismo negro na perspectiva interseccional é o que fará sentido para análise do diário de Deolinda Rodrigues. Embora esta possibilidade analítica já estivesse nomeada nos trabalhos de Paredes e de Alfieri, as indagações centrais de ambas as autoras têm outros focos. Nesse sentido, resulta pertinente salientar alguns elementos sobre o conceito de interseccionalidade.

Interseccionalidade

Segundo Akotirene (2019AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Pólen, 2019., p. 15), “indo ao encontro da reflexão epistemológica de Collins, feminista negra estadunidense, considero a interseccionalidade como um ‘sistema de opressão interligado’”. Com efeito, a interseccionalidade é uma categoria descritiva que permite abordar como operam, em situações específicas, os eixos de hierarquia e opressão de raça, classe, gênero etc., e entender como atua a matriz de dominação em cada caso (COLLINS, 2019COLLINS, Patricia Hill. Pensamento feminista negro. São Paulo: Boitempo, 2019.). Desde esse ponto de vista, interseccionalidade evidencia os sistemas de opressão que afetam negativamente a vida das mulheres negras tanto quanto permite visibilizar os privilégios garantidos à população branca, masculina, cis-hétero em uma sociedade racista, machista e patriarcal, que não valoriza as mulheres; quando falamos em mulheres negras, a desvalorização é ainda maior, pois elas estão na base da pirâmide social.

O conceito de interseccionalidade foi posto pela primeira vez pela feminista estadunidense Kimberlé Crenshaw em um artigo publicado em 1989 e traduzido no Brasil em 2002.

A interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras. Além disso, a interseccionalidade trata da forma como ações e políticas específicas geram opressões que fluem ao longo de tais eixos, constituindo aspectos dinâmicos ou ativos do desempoderamento (CRENSHAW, 2002CRENSHAW, Kimberlé. “Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero”. Revista Estudos Feministas, v. 10, n. 1, p. 173, 2002. Disponível em Disponível em https://www.scielo.b r/pdf/ref/v10n1/11636.pdf . Acesso em 10/12/2021.
https://www.scielo.b r/pdf/ref/v10n1/116...
, p. 177).

Por isso, a corrente do feminismo negro é histórica e politicamente tão relevante: veio dar nome às várias opressões em que vivem as mulheres negras, denunciar os privilégios da branquitude e das mulheres brancas, inclusive aqueles que estão assentados diretamente na exploração do trabalho das mulheres negras, e, definitivamente, prover um marco conceitual para entender o funcionamento da sociedade. Embora possamos “datar” o conceito, encontramos análises interseccionais muito antes de 1989 (Mara VIVEROS VIGOYA, 2021VIVEROS VIGOYA, Mara. “Conversación con. De los estereotipos racistas y sexistas a la interseccionalidad que siempre da cuenta de la complejidad”. In: CEJAS, Mónica Inés; OCHOA, Karina. Perspectivas feministas sobre la interseccionalidad. Cidade do México: UAMX, 2021. p. 24-42.).

Segundo Bairros (1995BAIRROS, Luiza. “Nossos feminismos revisitados”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 3, n. 2, p. 458-463, 1995., p. 459), “para definir opressão, o feminismo lança mão do conceito de experiência segundo o qual opressão seria qualquer situação que a mulher define como tal, independentemente de tempo, região, raça ou de classe social”. É à vista disso que pontuamos sobre Deolinda Rodrigues, pois, nos anos em que ela viveu, experimentou as opressões de raça e gênero, e sobre elas se debruçou no diário.

Ângela Figueiredo reflete sobre a interseccionalidade, introduzindo uma leitura intertextual com a espiritualidade das religiões de matriz africana no Brasil:

Do ponto de vista da visualização do conceito, a imagem do entrecruzamento de avenidas, proposta por Crenshaw (2002CRENSHAW, Kimberlé. “Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero”. Revista Estudos Feministas, v. 10, n. 1, p. 173, 2002. Disponível em Disponível em https://www.scielo.b r/pdf/ref/v10n1/11636.pdf . Acesso em 10/12/2021.
https://www.scielo.b r/pdf/ref/v10n1/116...
), é muito mais próxima do nosso referencial, pois uma intersecção é também uma encruzilhada - espaço de referência significativa para as religiões afro-brasileiras. A encruzilhada é um lugar de encontro, mas é também um espaço de múltiplas saídas, lugares, caminhos, ruas e estradas. A encruzilhada é um dos importantes locais onde se coloca oferenda para Exú, o mensageiro entre os diferentes mundos no candomblé (FIGUEIREDO, 2020FIGUEIREDO, Ângela. “Epistemologia insubmissa feminista negra decolonial”. Revista Tempo e Argumento, Salvador, v. 12, n. 29, p. 01-24, 2020. Disponível em Disponível em https://revistas.udesc.br/index.php/tempo/article/view/2175180312292020e0102 . Acesso em 12/01/2022.
https://revistas.udesc.br/index.php/temp...
, p. 912).

O conceito de “Escrevivências” é importante neste estudo, pois parte de uma experiência partilhada entre viver e escrever. Considera a vivência de cada pessoa e como cada uma enfrenta e lida com as situações do cotidiano. Este termo foi utilizado pela primeira vez pela escritora Conceição Evaristo (2011EVARISTO, Conceição. Insubmissas lágrimas de mulheres. Belo Horizonte: Nandyala, 2011.) em Insubmissas lágrimas de mulheres, no qual ela descreve o que seria escrevivências:

O real vivido fica comprometido. E, quando se escreve, o comprometimento (ou não comprometimento) entre o vivido e o escrito aprofunda ainda mais o fosso. Entretanto, afirmo que, ao registrar estas histórias, continuo no premeditado ato de traçar uma ESCREVIVÊNCIA (EVARISTO, 2011EVARISTO, Conceição. Insubmissas lágrimas de mulheres. Belo Horizonte: Nandyala, 2011., p. 9).

Seguindo essa premissa, trouxemos também para esta pesquisa o conceito de gênero pontuado por Joan Scott (1988SCOTT, Joan. Gender on the Politics of History. New York: Columbia University Press, 1988., p. 34) como categoria de análise: “gênero tanto é um elemento constitutivo das relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos, quanto uma maneira primária de significar relações de poder”. Ao refletirmos sobre a sociedade colonial angolana onde viveu Deolinda Rodrigues, observamos que o império português e sua cultura já eram formados por um sistema que colocava as mulheres em situação de subordinação, ocupando o homem branco uma posição superior às mulheres, principalmente as mulheres negras. Perante esta ordem de gênero hierárquico, Paredes (2015PAREDES, Margarida. Combater duas vezes. Mulheres na luta armada em Angola. Portugal: Versos da História, 2015., p. 109) escreve sobre Deolinda “fora da ordem de gênero”, exercendo uma “masculinidade feminina como estratégia de resistência e subversão”. Retomando esta linha de análises, a proposta política de Deolinda não se esgota na sua palavra escrita, se não que apela a uma política dos corpos: tanto na ocupação de espaços tipicamente masculinos, como pode ser o Comité Central do MPLA, a luta armada e o combate; quanto na performance corporal, preferindo o uniforme militar e a cabeça raspada às vestes femininas (PAREDES, 2015PAREDES, Margarida. Combater duas vezes. Mulheres na luta armada em Angola. Portugal: Versos da História, 2015., p. 125-126).

Cabe abrir um parêntese para enfatizar que, desde a modernidade colonial, não poderíamos considerar a existência das relações de gênero sem marcadores étnico-raciais e de classe. María Lugones (2020LUGONES, María. “Colonialidade e gênero”. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Pensamento Feminista hoje: Perspectivas decoloniais. São Paulo: Bazar do Tempo, 2020. p. 51-81.) considera que a modernidade colonial de gênero (iniciada nos séculos XV-XVI) está marcada pelo processo de racialização da divisão mundial do trabalho e pela “generização” binária dos corpos. Baseado nesta conceitualização teórico-histórica, o gênero não pode ser compreendido por fora das relações raciais, sendo, assim, racializadas as categorias de mulher e homem, assim como as categorias de branco e negro são historicamente generizadas. Essa configuração colonial/escravocrata na sociedade brasileira foi abordada amplamente por feministas afro-brasileiras. Em palavras de Carneiro:

O que poderia ser considerado como história ou reminiscências do período colonial permanece, entretanto, vivo no imaginário social e adquire novos contornos e funções em uma ordem social supostamente democrática, que mantém intactas as relações de gênero segundo a cor ou a raça instituída no período da escravidão (CARNEIRO, 2019CARNEIRO, Sueli. “Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero”. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de (Org.). Pensamento feminista - conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019., p. 1).

Importante frisar que o lugar estrutural que a sociedade relega às mulheres não diz respeito apenas à vitimização, mas também a formas de lutas, saberes e resistências de longa duração. Nesse sentido, autoras como Luiza Bairros (1995BAIRROS, Luiza. “Nossos feminismos revisitados”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 3, n. 2, p. 458-463, 1995.) mostram que o lugar da mulher negra na estrutura social permite um ponto de vista diferenciado que lhe permite enxergar - desde as margens - as contradições sociais da elite e entender o funcionamento da sociedade racista.

Langidila e suas escrevivências

Langidila/Kama-K Angola era o nome de guerra de Deolinda Rodrigues, usado nas ações clandestinas. Os relatos do livro Diário de um exílio sem regresso (RODRIGUES, 2003RODRIGUES, Deolinda. Diário de um exílio sem regresso. Luanda: Nzila, 2003.) foram registros interessantes e observações profundas do dia a dia em que ela misturou poesia, análises do seu entorno durante a guerra de libertação e apontou críticas ao sexismo, ao racismo e ao imperialismo. O Diário analisado emerge como um espaço de reflexividade sobre eventos e sobre suas próprias atitudes, através do diálogo imaginário com a sua mãe, uma interlocutora recorrente. Desse modo, Fonseca (2017FONSECA, Maria Nazareth Soares. “Registros de uma guerra muito particular: Diários e cartas de Deolinda Rodrigues”. In: MATA, Inocência. Discursos memorialistas africanos e a construção da história. Lisboa: Colibri, 2017. p. 79-94.) reflete:

Vale reiterar que o diário, ao se construir na intimidade do espaço da luta e da clandestinidade, legitima a visão feminina de uma guerra que, por sua especialidade, é também uma luta pela qual os oprimidos procuraram legitimar a sua voz. Inserindo-se no gênero testemunho, pelo que expressa em forma de depoimentos, o diário está, ao mesmo tempo, próximo e distante dos gêneros textuais autobiografia, memória e depoimento, se se considera o modo como são nele registradas as percepções e vivências de um sujeito feminino inserido no ideal de gestação da nação angolana em devir (FONSECA, 2017FONSECA, Maria Nazareth Soares. “Registros de uma guerra muito particular: Diários e cartas de Deolinda Rodrigues”. In: MATA, Inocência. Discursos memorialistas africanos e a construção da história. Lisboa: Colibri, 2017. p. 79-94., p. 93).

Assim, Deolinda lamenta reiteradamente ser frontal nas suas falas, tanto que ela escreve: “Já tenho uma fama desgraçada de mandona e b-a-s-t-a-n-e!” (RODRIGUES, 2003RODRIGUES, Deolinda. Diário de um exílio sem regresso. Luanda: Nzila, 2003., p. 81). Na estrutura patriarcal, o poder de mando não pertence à figura feminina, e nesta passagem evidencia-se quanto Deolinda estava fora da ordem de gênero, também pela sua atitude, não apenas por ter sido a única mulher do Comité Diretor do MPLA na década dos 1960s (PAREDES, 2015PAREDES, Margarida. Combater duas vezes. Mulheres na luta armada em Angola. Portugal: Versos da História, 2015., p. 120-121). Ela escreve que sua forma de ser lhe trazia inúmeras confusões e inimizades com as pessoas do MPLA com as quais convive, por isso dizia a si mesma para redobrar esforços para evitar “falar demais” e, “quando precisar desabafar, fazer exatamente isto: assentar tudo num papel" (RODRIGUES, 2003, p. 61). Inclusive, menciona, um ano depois, em 1965 (RODRIGUES, 2003, p. 107), que “me faz tão bem reler este diário e assentar pensamentos (decisões, dúvidas)”, evidenciando, assim, que o exercício ia para além do registro. Ela tinha consciência de que não era uma boa decisão confidenciar suas angústias com o grupo, exatamente para evitar confusões. “Estou com vontade de desaparecer para sempre. É que num ambiente destes, a gente não pode desabafar com ninguém para evitar milonga” (RODRIGUES, 2003, p. 79). De fato, Deolinda registra conflitos dentro do próprio grupo por ideias e decisões divergentes, em particular em torno da questão racial.

O diário é iniciado no ano de 1956, apenas com duas entradas nas quais relata seu ingresso no MPLA. No ano de 1957, há apenas 3 entradas, e duas delas mencionam a sua participação em eventos internacionais: um encontro Pan-africanista e a Reunião da Comissão Econômica da ONU. Entre os anos de 1958 e 1959, o registro é ainda escasso: apresentam-se alguns relatos em Angola, descrevendo diversas situações de confronto do dia a dia colonial:

Quanta humilhação, caramba! Desde a infância passamos de humilhação em humilhação, nem temos a dignidade de viver à nossa própria custa, livre desta merda de favores. TENHO DE VIVER PRA MUDAR TAL SITUAÇÃO. Temos de ser SERES HUMANOS de verdade (RODRIGUES, 2003RODRIGUES, Deolinda. Diário de um exílio sem regresso. Luanda: Nzila, 2003., p. 55).

Relata estar sendo vigiada pela PIDE e sentindo-se triste por ter que deixar Angola. A partir desse momento, todos os registros são dos percursos do exílio em Portugal, Brasil, Estados Unidos, Mali, Gana, República Popular do Congo, Zaire, entre outros. Em 1964, a escrita começa a ser mais volumosa e consistente. Escreve, inclusive, durante a tentativa de ingresso em Angola através do corredor controlado pela União dos Povos de Angola - UPA/FNLA em 1967, onde é feita prisioneira junto com as combatentes da OMA.

Neste contexto, torna-se importante pontuar os alinhamentos dos movimentos e países no contexto da Guerra Fria. Paredes (2015PAREDES, Margarida. Combater duas vezes. Mulheres na luta armada em Angola. Portugal: Versos da História, 2015.) traz esta importante explicação:

A luta armada contra a ocupação colonial em Angola teve seu início em 1961 e foi dirigida por duas formações político-militares antagônicas. Uma delas era a UPA, União das Populações de Angola (em 1962 muda de nome para FNLA, Frente Nacional de Libertação de Angola), situada no Norte do país, o que reduziu a sua área de circulação no território e limitou a sua base de apoio à elite e [aos] camponeses da etnia bakongo. No auge da guerra Fria, com o mundo dividido em dois blocos antagônicos, o capitalista e o socialista, a UPA contava com o apoio dos EUA e da república do Congo (mais tarde RDC-República Democrática do Congo) [...]. A outra formação era o MPLA, Movimento Popular de Libertação de Angola, um movimento que nasceu na elite africana das cidades, influenciado por uma ideologia socializante e que do ponto de vista ético e racial era heterogêneo. Apoiado pela URSS, o MPLA enfrentou grandes dificuldades para implementar a guerrilha em Angola devido ao antagonismo da UPA/FNLA e das autoridades congolesas, que lhe barravam o acesso às fronteiras (PAREDES, 2015PAREDES, Margarida. Combater duas vezes. Mulheres na luta armada em Angola. Portugal: Versos da História, 2015., p. 55-56).

Posteriormente, em 1966, seria criada a UNITA, movimento que entrou em guerra civil contra o MPLA entre 1975 e 2002.

A última entrada do diário está datada em 1º de março de 1967, enquanto os poemas apresentam datas posteriores - em 1967 e 1968. Conforme Fonseca (2017FONSECA, Maria Nazareth Soares. “Registros de uma guerra muito particular: Diários e cartas de Deolinda Rodrigues”. In: MATA, Inocência. Discursos memorialistas africanos e a construção da história. Lisboa: Colibri, 2017. p. 79-94., p. 92), “Nada se sabe de concreto sobre a data de sua morte e da de suas companheiras”. Desde esse momento até junho de 1974, não sabemos por quais mãos passou o Diário. O irmão de Deolinda relata, na introdução, ter recebido o manuscrito na sua primeira visita à República Popular do Congo, em junho de 1974, e desde então o documento permanece com ele. Apenas em 2003 ele publica o diário, um ano após o cessar fogo acordado em 2002, entre o MPLA e a UNITA.

Ao lermos o diário de Langidila, podemos observar que história de vida, literatura e história de um país são contadas e entrelaçadas em cada página do texto, através dos olhos de uma mulher que experimentou o racismo e o sexismo nos seus percursos como ativista e guerrilheira. No dia 22 de fevereiro de 1964, quando já não estava mais nos EUA, ela escreve sobre a iancada (de ianques/yanquees): “A iancada está a deixar cair a máscara da face e mostrar todo o seu imperialismo, racismo e exploração” (RODRIGUES, 2003RODRIGUES, Deolinda. Diário de um exílio sem regresso. Luanda: Nzila, 2003., p. 49). Conforme descrição feita por ela a alguns colegas de luta quando ocorreu a crise dentro do MPLA, ela define a iancada como agentes estatais e assassinos da personalidade humana do africano. A geopolítica da Guerra Fria fazia parte das suas reflexões cotidianas durante a luta pela Independência de Angola.

Em suas anotações do dia 28 de dezembro de 1962, Deolinda expressa seu incômodo perante as atitudes machistas do Reverendo Domingos da Silva (pastor metodista que foi o 2º vice-presidente do MPLA). Ela diz: “Agravou-se a chatice do passaporte. Vou dar o fora. Oxalá o Mário d’Andrade consiga tirar-me daqui. Passei as férias a atender os telefonemas dele no hotel e a atender o Reverendo Silva, chato e atrevido, quase abusador” (RODRIGUES, 2003RODRIGUES, Deolinda. Diário de um exílio sem regresso. Luanda: Nzila, 2003., p. 40). Mário Pinto de Andrade foi o primeiro presidente do MPLA. Embora Deolinda estivesse comprometida com o MPLA, não deixava de fazer duras críticas às situações negativas vivenciadas dentro do movimento, observando como os homens brancos, mestiços4 4 No diário de Deolinda, a população mestiça é referida com a categoria racial “mulato”, a qual evitamos neste texto pelas conotações racistas que assume no Brasil. As reflexões sobre a questão racial, em particular sobre a participação de mestiços/as e brancos/as portugueses/as no MPLA emergem como uma grande preocupação em diversos momentos do diário. ou negros a tratavam. Nesse sentido, se relaciona com o que Akotirene reflete sobre as condições estruturais, o racismo e o sexismo que discriminam as mulheres negras:

Desde então, o termo demarca o paradigma teórico e metodológico da tradição feminista negra, promovendo intervenções políticas e letramentos jurídicos sobre quais condições estruturais o racismo, sexismo e violências correlatas se sobrepõem, discriminam e criam encargos singulares às mulheres negras (AKOTIRENE, 2019AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Pólen, 2019., p. 35).

Ser uma mulher negra conferiu à Deolinda o primeiro lugar na discriminação, pois os homens companheiros de luta a discriminavam pelo seu sexo. Os colonizadores a discriminavam pelo seu sexo e cor. Langidila conviveu com o desafio dessas violências e escreveu suas impressões enquanto continuou a luta pela independência de Angola. Dessa maneira, Akotirene pontua mais uma vez sobre o pensamento interseccional: “O pensamento interseccional nos leva a reconhecer a possibilidade de sermos oprimidas e de corroborarmos as violências” (2019, p. 28). O fato de verbalizar as violências nos indica que Deolinda não naturalizava a discriminação, o que diz muito sobre os possíveis debates da época. Desse modo, Maria Paula Meneses escreve:

Os múltiplos episódios de violência e várias formas de opressão e exploração a que as mulheres estavam submetidas destacam-se com nitidez: exploradas e oprimidas pelos homens, quer os seus contemporâneos, quer os colonizadores, e depois pelos companheiros de luta (MENESES, 2015MENESES, Maria Paula. “Prefácio”. In: PAREDES, Margarida. Combater duas vezes. Mulheres na luta armada em Angola. Portugal: Versos da História, 2015. p. 15-21., p. 20).

Deolinda refletia nos termos do feminismo negro já naquele período, em que essas discussões não estavam na agenda pública prioritária dos movimentos de libertação. Por isso, retomamos a ideia que “o feminismo negro dialoga concomitantemente entre/com as encruzilhadas, digo, avenidas identitárias do racismo, cisheteropatriarcado e capitalismo” (AKOTIRENE, 2019AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Pólen, 2019., p. 16).

Em convergência com esta observação, no dia 04 de abril de 1964, Rodrigues expõe, em seu diário, sobre o modo como homens brancos veem uma mulher preta: “Pra eles, eu como toda preta, somos simples prostitutas, caídas pelos brancos (…)” (RODRIGUES, 2003RODRIGUES, Deolinda. Diário de um exílio sem regresso. Luanda: Nzila, 2003., p. 52). Percebe-se que o “eles” a quem ela se refere no texto fala especificamente dos “olhares bestiais dos canadenses”, porém ela conecta essa visão, que impera entre os colonialistas portugueses. Dando continuidade a seu pensamento em chave “generizada” e racializada, adiciona: “Pra elas [as mulheres brancas], todo preto morre pela pele clara e pernas boas delas” (RODRIGUES, 2003, p. 52). Se Frantz Fanon (2008FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: Editora da Universidade Federal da Bahia, 2008.), em Pele negra, máscaras brancas, analisou a formação do desejo racial-sexual e o modo como este está atravessado pelo racismo, Deolinda Rodrigues defende seu direito a não encarnar esse desejo e abre uma rachadura na homogeneidade na qual o colonialismo conseguiria formar a subjetividade do/a colonizado/a. Em palavras de Deolinda, essas seriam apenas as ideias brancas sobre os desejos da população negra, desejos com os quais ela não se identifica e rejeita abertamente.

Por mais que Deolinda estivesse combatendo com seus companheiros de luta, os homens nunca a viam como igual por ser mulher. Ela relata um momento no qual perde a paciência com um ativista do MPLA: [ele diz que] “Durante estes dois anos fingi que sabia muita coisa, mas quando vier quem sabe mais, vou ser descoberta de que não sei nada. Que sou mulher e não valho nada fisicamente etc. Farta disto chamei-lhe de estúpido, mas logo descobri que cheirava a álcool” (RODRIGUES, 2003RODRIGUES, Deolinda. Diário de um exílio sem regresso. Luanda: Nzila, 2003., p. 65). Ou seja, nesse meio hostil, Deolinda precisava demonstrar suas habilidades em relação às estratégias de luta, pois sabia que tinha poucas possibilidades em meio a um grupo de homens combatentes que valorizavam a força física - atributo presumidamente masculino. O esquadrão Camy ao qual Deolinda pertenceu tinha 200 homens e 5 mulheres.

Ela construiu seu lugar no MPLA e colocou seus conhecimentos de várias línguas, visão internacionalista e habilidades a serviço do movimento, porém, mesmo assim, a autora relata uma pressão social considerável para casar e ter filhos. Ela exprime isso em seu diário, pois sentia que ela estava atada às amarras do patriarcado, que a queria ver se dedicando à vida doméstica. Ela cita Charlie Edwin, um de seus companheiros de luta, quem estaria particularmente insistente em ver ela casada, mas ela responde “Kum bolo iami”, frase em kimbundu que - traduzida no glossário do próprio diário - significa “Isso é assunto meu”. Deolinda estabelece um limite nítido com as expectativas que pesam sobre ela. Assim,

Charlie Edwin só fala em planos de mariage. Mas se estou velha, kum bolo iami. Ninguém pode obrigar-me a casar. Ao diabo com os favores e jeitos casamenteiros deles! É estranho que enquanto há aí tanta mulher que faz o que quer com a sua vida, a mim querem fazer crer que ficar solteira é penoso, vergonhoso ou diabo. Pra mim é excelente e não há razões para enforcamento (RODRIGUES, 2003RODRIGUES, Deolinda. Diário de um exílio sem regresso. Luanda: Nzila, 2003., p. 52).

Ao observarmos a palavra “enforcamento”, verificamos que sugere que tem uma visão bastante aguda sobre a situação das mulheres casadas em um contexto patriarcal que associava o ser mulher à submissão. Contestatária, agrega que, para ela, ser solteira é uma opção excelente. Tempo depois, ela cita em seu diário: “Ainda bem que a vida para uma mulher não depende do casamento e este não é só carinhos e beijos. A vida, o casamento é uma luta constante com momentos de fogo e de repouso” (RODRIGUES, 2003RODRIGUES, Deolinda. Diário de um exílio sem regresso. Luanda: Nzila, 2003., p. 65).

Percebe-se a pressão social de parte dos próprios camaradas, no intuito de “domesticar” uma mulher dedicada à vida pública como combatente, ativista, quadro político e dirigente; segundo, por ser negra, os colonialistas e os adversários políticos a desvalorizavam ou a hipersexualizavam, já que sua atuação política era codificada como prostituição.

Outro relato bastante eloquente foi o do dia 30 de junho de 1964: “Disseram-me que não vou já para Gana porque sou mulher e o Barden5 5 Barden - Doutor Conselheiro Privado Kwame Nkrumah (Nkroful, 21 de setembro de 1909 - Bucareste, 27 de abril de 1972). Este último foi um líder político africano, um dos fundadores do Pan-Africanismo. Foi primeiro-ministro entre 1957 e 1960 e presidente de Gana de 1960 a 1966. não respeita as senhoras. Esta discriminação só por causa do meu sexo revolta-me” (RODRIGUES, 2003RODRIGUES, Deolinda. Diário de um exílio sem regresso. Luanda: Nzila, 2003., p. 57). Embora o diário não proporcione informações específicas sobre para que tipo de missão política o MPLA devia enviar um representante em Gana, podemos presumir que seria relevante: Gana foi o primeiro país da África subsaariana a se independizar, em 1957, e um grande polo pan-africanista, liderado pelo então presidente Kwame Nkrumah. Desde 1961, o MPLA e Gana possuíam vínculos políticos estreitos, tendo inclusive treinamento militar em Gana para combatentes do MPLA e apoio em fóruns internacionais. Ressaltamos o que Crenshaw descreve, em seu texto “A interseccionalidade na discriminação de raça e gênero” (2012CRENSHAW, Kimberlé. “A interseccionalidade na discriminação de raça e gênero”. Painel 1: Cruzamento Raça e Gênero, p. 7-16, 2012. Disponível em https://static.tumblr.com/7symefv/V6vmj45f5/kimberle-crenshaw.pdf.
https://static.tumblr.com/7symefv/V6vmj4...
), sobre o momento em que foi discriminada na entrada de uma instituição de ensino:

Chegou o dia, caminhamos até a porta da frente da agremiação e tocamos a campainha. Nosso colega negro abriu a porta e saiu muito envergonhado, muito sem jeito. Então ele disse: “Estou muito constrangido, pois esqueci de dizer que vocês não podem entrar pela porta da frente”. Meu colega imediatamente retrucou: “Bem, se não pudermos entrar pela porta da frente, não vamos entrar. Não vamos aceitar qualquer discriminação racial”. O colega anfitrião esclareceu: “Não é uma questão de discriminação racial. Você pode entrar pela porta da frente. A Kimberlé é que não pode, porque ela é mulher” (CRENSHAW, 2012CRENSHAW, Kimberlé. “A interseccionalidade na discriminação de raça e gênero”. Painel 1: Cruzamento Raça e Gênero, p. 7-16, 2012. Disponível em https://static.tumblr.com/7symefv/V6vmj45f5/kimberle-crenshaw.pdf.
https://static.tumblr.com/7symefv/V6vmj4...
, p. 1).

As obras de Deolinda Rodrigues evidenciam um entendimento interseccional das opressões, incluindo a questão de gênero, embora o MPLA se centrasse em priorizar a luta nacionalista contra o colonialismo. Como afirma Akotirene (2019AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Pólen, 2019.), há muito tempo as mulheres negras invocam a interseccionalidade: “Há mais de 150 anos, mulheres negras invocam a interseccionalidade e a solidariedade política entre os Outros” (AKOTIRENE, 2019AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Pólen, 2019., p. 18).

Assim como Deolinda ficava revoltada por sofrer este tipo de injustiça, também expressava revolta frente a situações de violência vivenciadas por outras mulheres e meninas. No dia 30 dezembro de 1964, estando já num campo guerrilheiro na República Popular do Congo, além de lamentar a situação de fome e escassez entre os guerrilheiros, anota: “O que me desgosta e revolta é a atitude deles sexual demais para com as mocinhas do povo: começam logo a apalpá-las. Parece que assim estão a mobilizar o povo ao contrário” (RODRIGUES, 2003RODRIGUES, Deolinda. Diário de um exílio sem regresso. Luanda: Nzila, 2003., p. 85). A sua preocupação pelo abuso de poder dos guerrilheiros está atravessada também pela preocupação política de obter o apoio da população local. Ao contrário do desprezo que mostrava frente ao racismo misógino dos brancos, chama seus próprios camaradas sexistas de “desajustados sociais” e se propõe o ativismo para modificar essas atitudes e crenças dentro do movimento: “Mas devo trabalhar dia e noite para ajudar os desajustados sociais [...] para quem a mulher é só sexo, é parlapateira, é criança que não amadurece nunca, uma criança eterna com sede de carinhos, de apalpadelas, de beijos e abraços” (RODRIGUES, 2003, p. 65).

Pelos escritos da autora, percebe-se que Deolinda foi muito à frente do seu tempo, pois questionava para si mesma aquela estrutura patriarcal e racista que condenava homens negros e condenava ainda mais mulheres negras. Distinguiu entre os estereótipos sobre as mulheres negras mobilizados pelos brancos (simples prostitutas) e os estereótipos entre os camaradas negros (a mulher como uma eterna menor de idade).

No dia 11 de setembro de 1964, ela questiona mais uma vez sobre o racismo e chega à conclusão de que ser branco é ter privilégios, vida confortável, enquanto ser negro é viver na subalternização, elaborando a relação entre raça e classe social. Deolinda Rodrigues acrescenta que: “O Belga Bossier tem razão: o que faz a diferença entre os pretos e não pretos não é a cor da pele. São as facilidades, o bem-estar, os privilégios, a vida confortável e fácil de burguês. É contra isto que devemos estar alerta” (RODRIGUES, 2003RODRIGUES, Deolinda. Diário de um exílio sem regresso. Luanda: Nzila, 2003., p. 63).

Assim como nesta passagem, em muitas outras remete à relação entre raça e classe. Numa ocasião, lamenta “não conhecer ninguém nesta zona de brancos! [...] Esta é a vida do pobre, do preto” (RODRIGUES, 2003RODRIGUES, Deolinda. Diário de um exílio sem regresso. Luanda: Nzila, 2003., p. 100). Na questão racial e de classe, Deolinda reiteradamente se debruça sobre a presença de ativistas brancos e mestiços no movimento de libertação, defendendo seu direito a ter raiva. Sobre os brancos, menciona:

Mas quer esteja casado com preto ou não, para mim, português é português, branco é branco, rico é rico, em certa medida, não tem nada a ver comigo quando aos alvos. O mesmo com os ianquis [...]. Boas relações sem violência e sem ódio, só quando estivermos em pé de igualdade (RODRIGUES, 2003RODRIGUES, Deolinda. Diário de um exílio sem regresso. Luanda: Nzila, 2003., p. 51).

Estas reflexões emergem após ter uma grande briga com ativistas mestiços e mestiças, pela qual ela teria sido acusada de racismo contra brancos e mestiços. Neste ponto, ela se distancia da posição oficial do MPLA sobre a questão racial e desnuda as tensões existentes dentro do movimento, seja a desconfiança estrutural contra os brancos - “como podemos logo admiti-los na intimidade angolana enquanto estamos em luta se [...] eles são portugueses acima de tudo [...]” - seja a dificuldade cotidiana no trato com os e as mestiças: “irrita-me constatar que os mulatos sempre quiseram um tratamento especial” (RODRIGUES, 2003RODRIGUES, Deolinda. Diário de um exílio sem regresso. Luanda: Nzila, 2003., p. 98). Descreve amargamente sobre a continuidade das atitudes racistas dentro do movimento por parte dos e das ativistas e aliados brancos ou de pele mais clara, sob a forma de: paternalismo, indiferença, queixas de suposto “racismo reverso” ante qualquer debate etc.

No dia 12 de setembro de 1964, ela escreveu em seu diário sobre o sistema social e econômico daquele período. Deolinda era uma mulher ciente do seu papel no mundo, e pôde observar como a estrutura da sociedade estava formada. Percebeu que essa estrutura excluía pessoas negras. Disse ela: “O erro não está na cor na pele. O mal está nesta podridão social e econômica, no bem-estar, no conforto burguês” (RODRIGUES, 2003RODRIGUES, Deolinda. Diário de um exílio sem regresso. Luanda: Nzila, 2003., p. 63).

Durante a leitura e releitura do diário, percebemos que a autora se culpabiliza por sua forma de ser. Esta culpabilização é produto do sistema patriarcal em que a mulher não deve ser indisciplinada, firme ou marcar limites aos outros, pois o que se espera é que ela seja submissa, disciplinada. Deolinda não aceitava ser calada e, quando era reprimida pelo seu grupo, sentia-se acuada e se culpabilizava por suas ações frente ao MPLA. “Enfim, o mal está feito: Agora falta-me sofrer as sanções. Vou esforçar-me por não querer mal a ninguém: a culpa é toda minha porque fui impaciente e indisciplinada” (RODRIGUES, 2003RODRIGUES, Deolinda. Diário de um exílio sem regresso. Luanda: Nzila, 2003., p. 102).

Na composição do diário, há quatro poemas políticos e combatentes, escritos por Deolinda Rodrigues enquanto era prisioneira da UPA/FNLA. Segundo Paredes, a data de 2 de março de 1967 representa o momento em que Deolinda foi feita prisioneira em Kinkuzu, Congo, enquanto, nos primeiros meses de 1968, podemos presumir que ela ainda estava viva (PAREDES, 2015PAREDES, Margarida. Combater duas vezes. Mulheres na luta armada em Angola. Portugal: Versos da História, 2015., p. 189). No poema “Inquirindo” - datado de março de 1968, quando ela já tinha um ano em cativeiro -, há um tom de tristeza e melancolia. Retrata a difícil situação do MPLA no norte de Angola e no Congo; menciona sobre a possibilidade de os camaradas do MPLA desistirem do movimento e se unirem ao FNLA. “Inquirindo” poderia ser o verbo para denotar o interrogatório e torturas a que estava submetida, mas a autora o utiliza em primeira pessoa: ela inquire. Nesse poema, ela se pergunta quando será o fim desse pesadelo.

Carrascos de upistas,6 6 UPA (upistas) - União dos Povos de Angola, organização que, depois, muda de nome para FNLA. Em 1962, é o grupo que a aprisiona e mata em Kamuna, no Congo.
espia de tugas
prostituta
mulher metida em política
aqui estou etiquetada disso
inquirindo o fim deste pesadelo
inquirindo […] (RODRIGUES, 2003RODRIGUES, Deolinda. Diário de um exílio sem regresso. Luanda: Nzila, 2003., p. 243).

Durante os interrogatórios realizados pelo FNLA, ela seria acusada de ser espiã, de colocar em risco a UPA/FNLA. Dá a entender que, durante os interrogatórios, a tortura psicológica estava presente, pois ela era desmerecida em seu caráter de combatente: sua presença na guerra e sua falta de domesticidade são enquadradas como prostituição.

Assim, apesar de Deolinda Rodrigues integrar o panteão de heroínas da nação, a data em que ela é feita prisioneira, sua figura e sua trajetória não representam uma figura de unidade nacional. Não apenas pelo fato de ela ter sido parte do MPLA, atual partido no poder, senão, também, por ter sido feita prisioneira e assassinada pela UPA/FNLA, outro movimento pela independência de Angola e rival do MPLA.

Deolinda Rodrigues, juntamente com o seu grupo MPLA, passou por inúmeras dificuldades. Uma delas é a dificuldade de o grupo entrar em Angola saindo do Congo, pois esta parte do território era comandada pela UPA/FNLA. Por este motivo, houve um retorno forçado para Brazzaville e, com isso, o final trágico para Deolinda e suas companheiras no momento de ingressar em Angola. Cabe lembrar que a independência de Angola no contexto da Guerra Fria se dá ao meio de alinhamentos dos países africanos vizinhos, cujas alianças políticas incluíam albergar bases guerrilheiras de um ou outro movimento armado, e também pelo alinhamento dos movimentos armados e políticos com os países capitalistas, com o bloco comunista, ou, em outras ocasiões, com países não alinhados. Poderíamos afirmar que as independências africanas tiveram dimensões nacionais, limítrofes, regionais, transnacionais e internacionais, simultaneamente. Embora não tenhamos como objetivo neste texto abordar esta complexa geopolítica das décadas dos 1960s e 1970s, a mesma fazia parte do cenário no qual Deolinda transitou dentro e fora de Angola.

Segundo Fonseca (2017FONSECA, Maria Nazareth Soares. “Registros de uma guerra muito particular: Diários e cartas de Deolinda Rodrigues”. In: MATA, Inocência. Discursos memorialistas africanos e a construção da história. Lisboa: Colibri, 2017. p. 79-94., p. 97), Deolinda torce o pé, encontra-se com muitas dificuldades de locomoção e precisa de ajuda de seus companheiros de luta para continuar a missão de chegar em Angola. Além da fome, das dificuldades da selva e do calor. Por precisar retornar a Brazzaville diante da impossibilidade de atravessar o rio MBridge [ou Mebridege] por causa das fortes correntezas, seu grupo é preso pela UPA/FNLA. Conforme Fonseca (2017, p. 92), “A região era dominada pelos upistas, comandados por Holden Roberto (fundador do UPA/FNLA), que lutavam pela independência de Angola, com métodos violentos contra o próprio povo angolano”. Neste contexto, a autora do diário é feita prisioneira e é assassinada pela UPA/FNLA em algum momento indeterminado.

Por fim, o poema “Inquirindo” confirma que, no período colonial, a escritora foi atravessada por muitos momentos desafiadores, no seio do movimento MPLA, junto com os seus companheiros de luta, na disputa com movimentos rivais pela independência, na geopolítica da Guerra Fria, além do/no próprio combate ao regime de supremacia branca. Deolinda resistiu pelas armas, pela política, pela escrita. Lutou e morreu com esperanças de dias melhores para si e para seu país, Angola.

Uma breve reflexão final

No contexto atual, principalmente, na academia, há várias discussões acerca do estudo de gênero e interseccionalidade. Importa a este debate incluir a agência intelectual de mulheres negras diversas; propomos, ainda, que as combatentes e ativistas pelas independências dos países africanos, em muitos casos, poderiam ser parte dessa genealogia de pensamento-ação feminino negro insubmisso e decolonial, como Figueiredo (2020FIGUEIREDO, Ângela. “Epistemologia insubmissa feminista negra decolonial”. Revista Tempo e Argumento, Salvador, v. 12, n. 29, p. 01-24, 2020. Disponível em Disponível em https://revistas.udesc.br/index.php/tempo/article/view/2175180312292020e0102 . Acesso em 12/01/2022.
https://revistas.udesc.br/index.php/temp...
) o conceitualizou, e que emerge como significativa; quando colocamos em diálogo a vida e a obra de uma autora africana, procuramos também provocar o diálogo com teóricas afro-diaspóricas.

A questão de partida, que foi investigar como a obra Diário de um exílio sem regresso, de Deolinda Rodrigues, pode contribuir para os estudos interseccionais de gênero, foi respondida através dos relatos produzidos no cotidiano de uma poetisa-combatente que pontuou suas vivências e às críticas a cada situação de discriminação de raça, gênero e classe social.

Para nós, é de suma importância centralizar os conceitos e as análises de autoras que, por muito tempo, foram silenciadas/subjugadas pelos conhecimentos ocidentais. Não é suficiente criticar os cânones da ciência - precisamos reescrever e debater as genealogias de pensamento e ação de um tipo de antissexismo que foi, desde seu início, antirracista, e reivindicar essas autoras dentro de nossos feminismos. Nessa perspectiva, Figueiredo escreve:

Nesse sentido, uma epistemologia insubmissa feminista negra decolonial é aquela que se rebela frente às normas previamente estabelecidas, rompendo fronteiras e colocando os sujeitos que historicamente estiveram à margem no centro da produção do conhecimento, no nosso caso em especial, colocando as mulheres negras no centro da produção. Essa proposta está em perfeita consonância com outras levadas a cabo pela perspectiva teórica decolonial e epistemologias outras. Quero dizer que é em diálogo com essas teorias que a produção de mulheres negras tem se articulado e formulado algo em direção ao que definimos como uma epistemologia insubmissa feminista negra decolonial (FIGUEIREDO, 2020FIGUEIREDO, Ângela. “Epistemologia insubmissa feminista negra decolonial”. Revista Tempo e Argumento, Salvador, v. 12, n. 29, p. 01-24, 2020. Disponível em Disponível em https://revistas.udesc.br/index.php/tempo/article/view/2175180312292020e0102 . Acesso em 12/01/2022.
https://revistas.udesc.br/index.php/temp...
, p. 20).

Este estudo breve se centra no Diário de Deolinda Rodrigues, quem, com sua singularidade, coragem e inteligência como quadro político, nos convida a pluralizar as genealogias de pensamento e ação feministas. Como muito bem demostra Dayane Augusta Santos da Silva na sua tese de doutorado, as cinco heroínas do MPLA integrantes do esquadrão Kamy não foram as únicas mulheres a combater pela libertação de Angola, assim como a participação feminina na luta pela independência não se limitou à luta armada e assumiu diversas formas e funções (SILVA, 2021SILVA, Dayane Augusta Santos da. Na Cobertura da Retaguarda. Mulheres Angolanas na luta anticolonial (1961-1974). 2021. Doutorado em História - Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2021., p. 55). A publicação do Diário e das Cartas de Deolinda Rodrigues nos anos 2003 e 2004 abre novas possibilidades de pesquisa histórica, mostrando um pensamento analítico para além das posições oficiais do MPLA e da OMA. Deolinda é uma entre muitas lideranças africanas do século XX cujo pensamento e práxis podemos trazer para nosso presente: procuramos reconhecer genealogias que incluam as de Deolinda, Lilian Ngoyi, sindicalista e ativista do ANC, sul-africana e fundadora da Federação Nacional de Mulheres Sul-africanas nos anos 1950; a sindicalista, ativista pela independência e pelos direitos das mulheres Aoua Keita, de Mali, a quem Deolinda chegou a conhecer em junho de 1965 no Seminário de Mulheres Africanas; os quase 100 anos de debates feministas em Egito e Tunísia; as 70.000 mulheres moçambicanas que, em 1970, fizeram a greve nas plantações de algodão, reclamando pelos direitos laborais de mulheres grávidas e com crianças de colo; ou a insurreição das mulheres na Nigéria colonial de 1929, além de muitas outras ativistas ou autoras que alimentam a epistemologia insubmissa de mulheres negras a que Figueiredo (2020FIGUEIREDO, Ângela. “Epistemologia insubmissa feminista negra decolonial”. Revista Tempo e Argumento, Salvador, v. 12, n. 29, p. 01-24, 2020. Disponível em Disponível em https://revistas.udesc.br/index.php/tempo/article/view/2175180312292020e0102 . Acesso em 12/01/2022.
https://revistas.udesc.br/index.php/temp...
) se refere.

Referências

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  • 1
    O presente artigo tem como antecedente o trabalho de conclusão de curso de Lindiana da Silva Oliveira na Especialização Interdisciplinar em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa da UNILAB, orientada por Natalia Cabanillas. Com base nessa experiência, aprofundamos o debate, o trabalho com as fontes para a construção do presente artigo.
  • 2
    Nos contextos africanos, o feminismo ainda é amplamente estigmatizado como um movimento branco eurocêntrico, distante das realidades do continente. Isso não significa que África não tenha sido cenário de todo tipo de lutas antissexistas e, inclusive, feministas.
  • 3
    Assimilado é uma categoria jurídica prevista em vários documentos do Império Português, em particular no “Estatuto Político, Civil e Criminal dos Indígenas de Angola e Moçambique”, aprovado através do Decreto nº 12.533, de 23 de outubro de 1926 (Boletim Oficial nº 48), e derrogado em 1961. O império português reconhecia apenas a cidadania dos e das portuguesas (brancos), enquanto a população indígena (sinônimo de africano) era considerada súdita, portanto poderia ser obrigada a trabalhar para o Estado. Já uma porcentagem ínfima de pessoas africanas poderia acessar certos direitos como estudo, não ser chamada para o trabalho forçado, trabalhar nos órgãos da administração colonial, ter certa autonomia para deslocar-se dentro da colônia, solicitar carteira de motorista, direito a voto etc., possibilitando assim alguma ascensão econômica e social. Entre os requisitos para demonstrar ser uma pessoa “civilizada” estavam: o domínio do português escrito, possuir propriedades, professar a religião católica ou cristã, e manifestar aversão pela cultura africana (PORTUGAL. Estatuto Político, Civil e Criminal dos Indígenas de Angola e Moçambique. Decreto nº 12.533. Lisboa: Boletim Oficial nº 48, de 23 de outubro de 1926).
  • 4
    No diário de Deolinda, a população mestiça é referida com a categoria racial “mulato”, a qual evitamos neste texto pelas conotações racistas que assume no Brasil. As reflexões sobre a questão racial, em particular sobre a participação de mestiços/as e brancos/as portugueses/as no MPLA emergem como uma grande preocupação em diversos momentos do diário.
  • 5
    Barden - Doutor Conselheiro Privado Kwame Nkrumah (Nkroful, 21 de setembro de 1909 - Bucareste, 27 de abril de 1972). Este último foi um líder político africano, um dos fundadores do Pan-Africanismo. Foi primeiro-ministro entre 1957 e 1960 e presidente de Gana de 1960 a 1966.
  • 6
    UPA (upistas) - União dos Povos de Angola, organização que, depois, muda de nome para FNLA. Em 1962, é o grupo que a aprisiona e mata em Kamuna, no Congo.
  • Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista:

    CABANILLAS, Natalia; OLIVEIRA, Lindiana da Silva. “Feminismo negro na literatura angolana”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 32, n. 2, e87455, 2024
  • Financiamento: Agência de Fomento à Pesquisa do Ceará - FUNCAP/BPI
  • Consentimento de uso de imagem:

    Não se aplica
  • Aprovação de comitê de ética em pesquisa:

    Não se aplica

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    11 Maio 2022
  • Revisado
    03 Abr 2023
  • Aceito
    04 Abr 2024
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