Este é o primeiro número da Revista Estudos Feministas que publicamos na Universidade Federal de Santa Catarina sem a participação de nossa saudosa amiga Zahidé Muzart. Os números 1 e 2, publicados de forma agrupada no volume 7 de 1999, que fez a transição da REF do Rio de Janeiro para Florianópolis, tiveram a coordenação editorial realizada por sua Editora Mulheres e, desde aí, Zahidé esteve implicada com a publicação da revista, sua composição gráfica, impressão, a escolha das capas - que continuaram a distingui-la entre os periódicos acadêmicos brasileiros. Com a reestruturação editorial da revista (2002) e a participação do coletivo de pesquisadoras em gênero da UFSC nas diferentes editorias da REF, Zahidé passou a compor a editoria de resenhas (2004) e, mais tarde, em 2008, a editoria de artigos, funções que continuou a exercer até novembro de 2015, quando nos deixou apenas com as lembranças de nosso convívio. Não é a única referência dolorosa que nos toma no presente.
Na dimensão política, os acontecimentos que se sucedem no país desde 2015 têm provocado imenso sofrimento e apreensão, principalmente a perspectiva de perda de direitos para as mulheres com o deslocamento da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República para o Ministério da Cidadania, e a proposição de leis variadas que restringem os direitos das mulheres por uma bancada conservadora muito influente no Brasil, capaz de fazer aprovar uma isenção fiscal para as igrejas, mesmo aquelas que funcionam como verdadeiras empresas com controle de televisões, rádios, serviços.
Nos cinemas, em tempos de globalização de disputas por premiações e realizações cinematográficas atuais, nas últimas semanas de fevereiro tivemos acesso a filmes como As sufragistas, mostrando a importância da primeira onda dos movimentos feministas, referentes aos episódios de luta de mulheres da Inglaterra1 1 O filme Anjos Rebeldes (Iron Jawed Angels, no original), de 2004, protagonizado por Hilary Swank, relata as mesmas lutas de mulheres americanas e, inexplicavelmente, sumiu das telas, dos canais de televisão e das locadoras de vídeo remanescentes no Brasil. pelo voto, direitos civis e legais, ainda nas primeiras décadas do século XX, em suas diferentes situações de classe, níveis de instrução, condições de vida e trabalho, posições subordinadas nas relações familiares. O filme desdobra à percepção das/os espectadoras/es o processo de conscientização da protagonista à medida em que é levada à prática política e tem que enfrentar as consequências de sua participação no movimento das mulheres. Por sua vez, o filme A garota dinamarquesa narra com extrema sensibilidade as injunções psíquicas e relacionais que levam a/o protagonista a buscar adequar seu corpo à imagem subjetiva que tem de si, no processo de transexualização.
São filmes que nos remetem à história dessas questões que ainda são nossas na contemporaneidade: se, nos países ocidentais, não estamos lutando pelo voto para as mulheres (direito civil obtido tardiamente), persistem as relações desiguais no mundo do trabalho, nas representações políticas, nas relações familiares, na questão da violência de gênero, como nos mostra o documento da ONU Progress of the World's Women 2015-2016, objeto das reflexões das/os articulista/s do Dossiê "Economia, direitos humanos e igualdade de gênero: uma nova agenda?", publicado neste número da Revista Estudos Feministas.
No Brasil atual, além da crise financeira, que não é só nossa, lidamos com o ataque a conquistas muito batalhadas pelos movimentos sociais em relação aos direitos humanos referentes à sexualidade de mulheres, homossexuais, homens, lésbicas, transexuais, travestis, que culminaram com a retirada da palavra gênero do Plano Nacional de Educação (e dos planos estaduais e municipais em muitas regiões do Brasil). Conquistas de respeito às diversidades sejam de raça, etnia, classe, sexualidade, geracionais e outras, ameaçadas de retrocesso por fundamentalismos religiosos, por ódio de classe, por intolerância ao diferente, pela manutenção de privilégios, questões que perpassam a sociedade toda e se organizam nos poderes da República, num Estado que se proclama laico e justo.
O filme premiado nos Estados Unidos, Spotlight, trata da pedofilia de religiosos encoberta pelas hierarquias eclesiais, pondo a nu a fraqueza e a falibilidade humanas e, paradoxalmente, a extrema capacidade de o sujeito humano causar danos e infringir sofrimentos em relações de poder que envolvem gerações mais novas e pessoas dependentes. Questões que reforçam os argumentos em favor da laicidade do Estado, nunca completamente obtida, e sempre ameaçada no Brasil, como nos mostraram os episódios recentes sobre os estudos de gênero nos níveis fundamentais e médios de ensino, e os virulentos ataques a conquistas de direitos humanos referentes à sexualidade.
Alguns artigos publicados nesse número da Revista Estudos Feministas denunciam as dificuldades que os periódicos acadêmicos têm encontrado para conseguir pareceristas que se disponham a avaliar as produções e o façam em tempos delimitados. Mostram, também, a dilatação dos períodos de retorno dos artigos reapresentados pelas/os autores com a incorporação das sugestões das/os pareceristas. Enfim, falam das agruras da produção de revistas científicas, que dependem do trabalho voluntário de muitas pessoas sempre envolvidas com inúmeras atividades e pressionadas pelas exigências de produtividade acadêmica.
No primeiro artigo desse segundo número do volume 24 da REF, "Participação Política de Mulheres na América Latina: o impacto de cotas e de lista fechada", produção coletiva de Alexandre Piffero Spohr, Cristiana Maglia, Gabriel Machado e Joana Oliveira de Oliveira, temos um estudo da participação das mulheres nos espaços legislativos na América Latina, a partir de fontes institucionais. O estudo toma como variáveis para análise a existência de políticas de cotas e a prática da lista fechada, mas chega à conclusão de que não são somente essas as variáveis que influenciam a maior participação das mulheres. São apresentados dados quantitativos muito úteis para formar um panorama da presença pública das mulheres no espaço político.
No artigo "Usos de substâncias psicoativas por mulheres: a importância de uma perspectiva de gênero", Tahiana Meneses Alves e Lúcia Cristina dos Santos Rosa chamam a atenção para os aspectos de gênero envolvidos nos estudos e na compreensão sobre o uso de substâncias psicoativas e seus efeitos físicos e, principalmente, sociais. Os usuários de substâncias psicoativas são geralmente tomados como uma maioria formada por homens, o que tira o foco de estudos e políticas voltadas para as mulheres. As autoras atentam justamente para as particularidades das situações sociais das mulheres, inclusive apontando para a grande diversidade entre as próprias mulheres nesse campo.
Lívia de Rezende Cardoso, em seu artigo "Relações de gênero, ciência e tecnologia no currículo de filmes de animação", demonstra que invenções, tecnologias, experimentos, livros e ferramentas são elementos que fazem parte das tramas nos filmes Tá chovendo hambúrguer I e Tá Chovendo Hambúrguer II e busca analisar as relações de gênero nessas produções destinadas ao público infantil. Segundo a sua análise de elementos narrativos e estruturais e os que ela denomina de artefatos culturais, nos filmes analisados são produzidas posições de sujeito diferenciadas para homens e mulheres através do discurso científico-tecnológico, tendo como pano de fundo invenções e verdades científicas e tecnológicas permeadas por demandas generificadas. Conclui que alguns sujeitos são próprios do fazer científico, do racional, da inventividade tecnológica e, por sua vez, outros sujeitos possuem papel secundário, coadjuvante e de assistência.
A partir de estudos que se referem à maternidade, Elixabete Imaz contempla, em seu artigo "Las madres bricoleurs. Estrategias, prácticas y modelos maternales contemporáneos", uma análise da evolução da família e as estratégias reprodutivas. A pesquisadora tem como horizonte geográfico a Espanha e reflete sobre a decisão das mulheres pela maternidade e como daí tem se moldado um novo modelo de parentalidades, do como ser pai e mãe na contemporaneidade. São esses mesmos modelos que se projetam como motivadores na hora de as mulheres decidirem pela maternidade e de onde emergem novos paradigmas na sua vida cotidiana. Foram feitas entrevistas com 60 mulheres e 42 homens entre 16 e 35 anos, todos de classe média em seus diferentes estratos, para apreender como eles tinham a percepção de temas como feminismo, educação, amor, sexualidade, amizade, família, maternidade e paternidade.
O artigo "Professoras de Antropologia em Minas Gerais: notas sobre a condição da margem", de Candice Vidal e Souza, analisa condições da atividade docente nas margens, nesses lugares a que nos referimos assim por estarem fora do circuito Rio-São Paulo (e se Minas Gerais também pertence à Região Sudeste do país como os estados de São Paulo e Rio de Janeiro, pode-se imaginar como se sentem as/os habitantes de outros estados, em outras regiões do Brasil em relação a esta questão de margem e centro). A autora se detém na trajetória profissional de professoras de Antropologia na UFMG nos anos 1960, argumentando que o ambiente intelectual do ensino superior em direção à especialização produziu a exclusão e/ou marginalização dessas mulheres no cenário acadêmico local e nacional. Assim, a autora propõe que a história da disciplina, fundada no caso de Minas, deva incluir as carreiras outsiders considerando aspectos de gênero, classe social e formação profissional.
O artigo seguinte, "Violência doméstica e a Lei Maria da Penha: perfil das agressões sofridas por mulheres abrigadas em unidade social de proteção", da autoria de Luana Bandeira de Mello Amaral, Thiago Brasileiro de Vasconcelos, Fabiane Elpídio de Sá, Andrea Soares Rocha da Silva e Raimunda Hermelinda Maia Macena, analisa cerca de duas centenas de prontuários em uma Unidade de Proteção Especial à Mulher no estado do Ceará, para conhecer as diferenças ocorridas nas agressões sofridas por mulheres ali atendidas, antes da promulgação da Lei Maria da Penha e após a vigência da mesma. A pesquisa apresenta procedimentos e resultados de um estudo interseccional, que atenta para marcadores sociais como classe, raça, gênero, escolaridade, inserção no mercado de trabalho formal/informal de sujeitos envolvidos nas situações de violência doméstica e familiar. Ressaltando que a promulgação da LMP, pela análise dos prontuários, repercutiu no modo de denunciar das mulheres que viveram situações de violência, as/o autoras/or apontam a necessidade de políticas sociais e educacionais no sentido de promover maior equidade de gênero, como ações de prevenção à violência contra mulheres.
Verónica Mafalda Nunes de Melo Policarpo, no artigo "Para lá da heteronorma: subjetivação e construção da identidade sexual", teve por objetivo explorar a construção de identidades sexuais que não se enquadram nas injunções da heteronormatividade a partir de um quadro teórico que articula diferentes dimensões da experiência sexual. Argumentando que a formação dessas identidades pode ser melhor apreendida através do eixo da subjetivação, a autora defende que, entre os indivíduos que vivem para além dos limites convencionais da heteronorma, a experiência sexual se constrói em confronto com a mesma, provocando um distanciamento do sujeito em relação a valores convencionais e impulsionando-o em direção a modelos alternativos.
Considerando que os Programas de Transferência Condicionada de Renda têm um papel prioritário na América Latina desde a década de 1990, Mónica Martins Bermudéz realiza, no artigo "Programas de Transferencia de Renta: apostando a la família tradicional", uma análise da relação entre essas políticas redistributivas e os conceitos de família e gênero. Acentuando - como outras/os autoras/es que se debruçaram sobre os PTCs - que esses programas colocam nas famílias a responsabilidade pela ruptura do ciclo intergeracional da pobreza, a autora analisa as atribuições de gênero que as políticas familiares e assistenciais dos mesmos produzem, na medida em que não problematizam e reforçam as assimetrias geracionais e de gênero nas famílias atendidas.
Destaque, nesse número, para a entrevista feita com a cientista política e liderança feminista Caroline Andrews, professora da Universidade de Otawa. Cíntia Lima Crescêncio e Maurício Pereira Gomes realizaram a entrevista no intervalo de um almoço em Hyderabad, na Índia, em 2014, durante a realização do Women's Worlds Congress (WWC), evento que acontecerá em 2017, no Brasil, em Florianópolis, Santa Catarina. Gilles Deleuze e Claire Parnet, no livro Diálogos, publicado pela Editora Escuta, de São Paulo, em 1998, lançaram a pergunta: "Uma conversa, o que é, para que serve?". Mais do que uma entrevista, encontra-se, aqui, uma conversa sobre a história intelectual de Caroline Andrews, sua formação na área de Ciência Política, sua inserção nos estudos feministas, sobre o evento WWC, Women's Worlds Congress, a relação da academia com o movimento feminista, a experiência do evento no Canadá e na Índia, os estudos LGBT no Congresso e a expectativa do evento no Brasil tanto na organização de plenárias, palestrantes e mesas, bem como a garantia e a motivação para que pessoas de países com menos suporte para igualdade de gênero participem do próximo encontro na UFSC.
Sobre o Dossiê "Economia, direitos humanos e igualdade de gênero: uma nova agenda?", temos alguns aspectos a destacar: primeiro, a importante contribuição que traz aos estudos feministas e de gênero a divulgação do relatório da ONU sobre a situação das mulheres no mundo com extensa disponibilização de dados e informações, junto ao fato de o documento ter incorporado as contribuições de destacadas acadêmicas feministas, conforme destaca Bila Sorj em sua apresentação. E, especialmente importante para nós foi o dossiê ter sido proposto e organizado por Bila Sorj, destacada socióloga brasileira que, tendo aderido ao comitê de criação da REF precocemente, assumiu sua coordenação entre 1998-1999, tendo sido responsável pelo processo de transição da revista para Florianópolis, como relata Albertina Costa (2004COSTA, Albertina. "Revista Estudos Feministas: primeira fase, locação Rio de Janeiro". Revista Estudos Feministas, v. 12, n. Especial. Florianópolis, p. 17 -22, setembro-dezembro, 2004.). Além do texto de Sorj e de outras/os importantes cientistas sociais, como Nádya Araújo Guimarães, Miriam Nobre e José Eustáquio Diniz, o dossiê traz, também, artigo da economista Lena Lavinas, a primeira editora da REF, envolvida com o projeto da revista desde o início e também integrante da comissão responsável pela proposta editorial apresentada à Fundação Ford. "O surgimento e a existência da Revista foram o resultado de um empenho coletivo mas, sobretudo é fruto da determinação de Lena Lavinas que assumiu primeiro o projeto e depois a Revista, durante boa parte da fase carioca'' (COSTA, 2004COSTA, Albertina. "Revista Estudos Feministas: primeira fase, locação Rio de Janeiro". Revista Estudos Feministas, v. 12, n. Especial. Florianópolis, p. 17 -22, setembro-dezembro, 2004., p. 208). Bila Sorj e Lena Lavinas continuam participando da REF, agora na composição de seu Conselho Editorial. Suas contribuições, junto a do/as demais articulistas do dossiê, certamente qualificam este volume da Revista.
A editoria de resenhas da REF, incorporando o trabalho voluntário de Jair Zandoná, selecionou sete resenhas que disponibiliza às/aos leitores desse número, convidando-as/os à leitura e procurando contribuir para que se mantenham atualizadas/os com a produção recente no campo dos estudos feministas e de gênero.
Referências
- COSTA, Albertina. "Revista Estudos Feministas: primeira fase, locação Rio de Janeiro". Revista Estudos Feministas, v. 12, n. Especial. Florianópolis, p. 17 -22, setembro-dezembro, 2004.
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O filme Anjos Rebeldes (Iron Jawed Angels, no original), de 2004, protagonizado por Hilary Swank, relata as mesmas lutas de mulheres americanas e, inexplicavelmente, sumiu das telas, dos canais de televisão e das locadoras de vídeo remanescentes no Brasil.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
May-Aug 2016