Resumos
Apresentação da seção temática, articulando a prática e a política da tradução com a noção de um cosmopolitismo feminista horizontal e (verdadeiramente) translocal
translocalidade; tradução; cosmofeminismo
Introduction to this special section, articulating the practice and politics of translation with the concept of a (truly) translocal and horizontal feminist cosmopolitism
Translocalities; Translation; Cosmofeminism
SEÇÃO TEMÁTICA
Translocalidades: por uma política feminista da tradução
Translocalities: Towards a Feminist Politics of Translation
Claudia de Lima CostaI; Sonia E. AlvarezII
IUniversidade Federal de Santa Catarina
IIUniversity of Massachusetts, Amherst
RESUMO
Apresentação da seção temática, articulando a prática e a política da tradução com a noção de um cosmopolitismo feminista horizontal e (verdadeiramente) translocal.
Palavras-chave: translocalidade; tradução; cosmofeminismo.
ABSTRACT
Introduction to this special section, articulating the practice and politics of translation with the concept of a (truly) translocal and horizontal feminist cosmopolitism.
Key Words: Translocalities; Translation; Cosmofeminism.
O conceito de tradução - em sua acepção ampla, calcada em um paradigma ontológico, não apenas linguístico - se tornou central para a teoria cultural. A virada tradutória, por assim dizer, mostra que a tradução excede o processo linguístico de transferências de significados de uma linguagem para outra e busca abarcar o próprio ato de enunciação - quando falamos estamos sempre já engajadas na tradução, tanto para nós mesmas/os quanto para a/o outra/o. Nas palavras de Domenico Jervolino,
Falar é já traduzir (mesmo quando falamos na nossa própria língua ou quando falamos para nós mesmos); mais ainda, precisamos considerar a pluralidade de línguas, o que torna o encontro com a diferença do outro ainda mais exigente. Há a tentação de dizer que existe uma pluralidade de línguas porque somos originalmente plurais. O encontro com o outro não pode ser evitado. Se aceitarmos a natureza necessária do encontro, o pluralismo lingüístico não pode ser mais visto como maldição - como versa nas interpretações reconhecidas do mito de Babel -, mas como condição que nos demanda abrir mão de qualquer sonho abrangente de uma linguagem perfeita (e de uma tradução global, por assim dizer, sem resíduos). A parcialidade e finitude das linguagens individuais são então vistas não como um obstáculo insuperável, mas como a própria condição prévia para comunicação entre indivíduos.1 1 JERVOLINO, apud Richard KEARNEY, 2006, p. xv (tradução de Claudia de Lima Costa).
Se falar já implica traduzir e se a tradução é um processo de abertura à/ao outra/o, podemos dizer que seu contexto é de hospitalidade. Nele, a identidade e a alteridade se misturam (segundo Paul Ricoeur,2 2 RICOEUR, 2006. a tradução faz com que nos expropriemos enquanto apropriamos a/o outra/ o, já que o caminho do eu é sempre através da/o outra/o), tornando o ato tradutório um processo de des-locamento. Na tradução, há a obrigação moral de nos desenraizarmos, de vivermos, mesmo que temporariamente, sem teto para que a/o outra/o possa habitar, também provisoriamente, nossos lugares. Traduzir significa ir e vir ('world'-traveling para Maria Lugones),3 3 LUGONES, 1997. estar no entrelugar, enfim, existir sempre des-locada/o. Traduzir nos torna, portanto, cosmopolitas. Porém, longe de ser o cosmopolitismo do "Frequent Flyer" ou do "One World", ou seja, esse cosmopolitismo banal do privilégio,4 4 Eduardo MENDIETA, 2009, p. 241. a tradução no sentido moral de abertura à/ao outra/ o, nos aproxima do cosmopolitismo horizontal (cosmofeminismo) sempre atento a sua localização material, seu lugar de enunciação - o cosmopolitismo do subalterno (Boaventuva de Souza Santos), do descolonizado (Walter Mignolo), do pobre (Silviano Santiago) e das Translocas (nesta seção). Cosmopolitismo, nos lembra Eduardo Mendieta,
é o jogo dialético entre singularidade e universalidade, localização e deslocamento, enraizamento e desenraizamento, estar em casa e sem casa, imobilidade e mobilidade. Jamais se pode ser cosmopolita sem partir de algum lugar, seja ele espacial ou temporal. Jamais se está simplesmente enraizado, localizado, sem que este indicador seja decifrado com referência a alguma percepção do mapa global. Estar situado significa estar em algum tipo de mapa, um mapa que visa propiciar um olhar para o todo. Uma localidade é uma trajetória de uma distância para um lugar, e desse lugar de volta para o horizonte da distância.5 5 MENDIETA, 2009, p. 242 (tradução de Claudia de Lima Costa).
Esta seção temática propõe pensarmos a tradução como uma práxis do cosmopolitismo horizontal transloca(l) que caracteriza o projeto feminista nas Latin/a Américas.6 6 Para uma exploração da questão da tradução cultural dentro dos feminismos latino-americanos, veja COSTA, 2004. Mais que isso, como argumenta Sonia E. Alvarez (nesta seção), trata-se da construção de uma política feminista translocal da tradução, a qual se apoia na noção que usamos (jocosamente) de Translocas para representar "um projeto político e uma episteme para apreender e negociar as Américas globalizadas".
As Translocas - vistas então como episteme e projeto político (cosmo/feminismo horizontal) - tiveram seu momento fundador em 2000, a partir de uma mesa-redonda organizada por Sonia E. Alvarez e Claudia de Lima Costa no Congresso da Associação dos Estudos Latino-Americanos (LASA), em Miami. Desde então, encontros para discussão das respectivas pesquisas dos membros do grupo aconteceram periodicamente ao longo dos anos e cujos resultados foram apresentados em mesas-redondas organizadas pelas Translocas nos sucessivos congressos da LASA (2001, 2003, 2004, 2006 e 2007). O ponto culminante desse processo dialógico de quase uma década será a publicação, pela Duke University Press (no prelo, 2011), de antologia intitulada Translocalities/Translocalidades: Feminist Politics of Translations in the Latin/a Américas, que, além de transgredir sem pudor fronteiras disciplinares e geopolíticas, reflete um trabalho verdadeiramente colaborativo e amadurecido de um grupo de acadêmicas feministas latinas e latino-americanas, situadas no norte e sul das Américas. Esta seção temática publica, de forma inédita, uma versão de alguns dos capítulos contidos na antologia, incluindo a introdução por Sonia E. Alvarez.
No espírito do trabalho feminista, a antologia, com cerca de 700 páginas, conta com um número amplo de organizadoras (Sonia E. Alvarez, Claudia de Lima Costa, Verónica Feliu, Rebecca Hester, Norma Klahn e Millie Thayer, com Cruz C. Bueno) e colaboradoras que, nos primeiros anos do projeto, faziam parte de um grupo de pesquisadoras do Greater San Francisco Bay Area, o qual se reuniu periodicamente na Universidade da Califórnia, em Santa Cruz, sob os auspícios do Chicano/Latino Research Center até 2004. Os resultados das discussões feitas nesses encontros foram apresentados em várias arenas além da LASA, incluindo conferências na Universidade da Califórnia, bem como em alguns seminários Fazendo Gênero, na Universidade Federal de Santa Catarina, em Florianópolis. Em maio de 2006, as Translocas, com financiamento do Center for Latin American, Caribbean and Latino Studies - University of Massachusetts, organizaram uma conferência final do projeto na Universidade de Massachusetts, em Amherst, oportunidade na qual suas respectivas contribuições para a antologia foram lidas e debatidas pelo público em geral e por mesas de trabalho específicas.
Depois de quase uma década de reflexões, que culminaram nessa antologia, podemos também dizer que elaboramos, além de uma episteme, uma metodologia transloca(l) de trabalho acadêmico colaborativo. O processo foi longo, muitas vezes desafiador, outras desanimador, mas, sem dúvida, recompensador. Cada uma das participantes, por meio das leituras e críticas, elaborou revisões inúmeras de seus textos, visando buscar um eixo comum nas discussões que interligasse temas e áreas tão distintos: a centralidade do conceito de tradução cultural e da materialidade do lugar de enunciação.
Finalizado o processo de organização da coletânea, como diz Norma Klahn, acreditamos ter conseguido conectar os pontos entre as mulheres no norte e sul das Américas em seus contextos compartilhados de lutas contra as estruturas coloniais do patriarcado. A antologia fica como exemplo epistemológico, ético e político de um cosmopolitismo feminista transloca(l). As organizadoras da antologia e desta seção temática agradecem o apoio recebido para o projeto por parte da Universidade da Califórnia - Santa Cruz, da Universidade Federal de Santa Catarina, do CNPq e da Universidade de Massachusetts - Amherst, além, é claro, da Revista Estudos Feministas, que agora veicula algumas dessas conversas.
- COSTA, Claudia de Lima. "Feminismo, tradução, transnacionalismo". In: COSTA, Claudia de Lima; PEREIRA, Simone Schmidt (Orgs.). Poéticas e políticas feministas Florianópolis: Editora Mulheres, 2004. p. 187-196.
- KEARNEY, Richard. "Introduction: Ricoeur's Philosophy of Translation." In: RICOEUR, Paul. On Translation (transl. Eileen Brennan). New York: Routledge, 2006. p. vii-xx.
- LUGONES, Maria. "Playfulness, 'World'-Travelling, and Loving Perception." In: MEYERS, Diana T. (ed.). Feminist Social Thought: A Reader New York: Routledge, 1997. p. 148-159.
- MENDIETA, Eduardo. "From Imperial to Dialogic Cosmopolitanism." Ethics and Global Politics, v. 2, n. 3, 2009. p. 241-258.
- RICOEUR, Paul. On Translation (transl. Eileen Brennan). New York: Routledge, 2006.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
05 Fev 2010 -
Data do Fascículo
Dez 2009