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Na conta das mulheres

On women’s account

Para que las mujeres paguen

BOHOSLAVSKY, Juan Pablo; RULLI, Mariana. (Coords.). Deuda feminista: ¿Utopia u oxímoron? Buenos Aires: Editorial de La Universidad Nacional de La Plata, 2023

Considerar a dívida pública uma questão feminista é apenas a ilusão de uma civilização ideal ou uma verdade que só aparentemente contraria a lógica? Eis a questão lançada a partir do título do livro Deuda feminista:¿Utopía u oxímoron? e cuja resposta é defendida da primeira à última página: por mais paradoxal que possa parecer, a ideia é que as dívidas financeiras equivalem às não financeiras. Por esse viés, não se pode negar que o capital financeiro deve muito às mulheres e à natureza dos serviços não remunerados que sustentam suas atividades.

Coordenada por Juan Pablo Bohoslavsky e Mariana Rulli (2023 BOHOSLAVSKY, Juan Pablo; RULLI, Mariana (Coords.) Deuda feminsta: ¿Utopia u oxímoron? Buenos Aires: Editorial de La Universidad Nacional de La Plata, 2023.) e editada pela Universidad Nacional de La Plata (EDULP), a obra aborda, em seis partes e diferentes enfoques interdisciplinares sistematizados em vinte capítulos, como as medidas de austeridade do Fundo Monetário Internacional (FMI) conduzem a um aumento das dívidas dos lares, sobretudo das mulheres mais pobres, contribuindo para a desigualdade de gênero. Todos os capítulos, partindo da premissa de que a dívida pública é uma questão feminista, dão a ver aspectos que ficam ocultos na análise econômica convencional, que adota um silêncio estratégico acerca de como a economia de cuidados mantém o sistema financeiro. Para além de uma extensa argumentação, apresentam-se propostas a fim de se viabilizar a subordinação dos direitos dos credores às obrigações em matéria de direitos humanos.

No contexto do avanço das conquistas feministas, a economia é o mais hermético campo e é para essa lacuna que a obra se apresenta: a leitura da macroeconomia por uma lente feminista enriquece o debate crítico sobre as contas públicas e os direitos sociais. Ante o acelerado processo de financeirização dos países de médios e baixos rendimentos (Lena LAVINAS, 2017LAVINAS, Lena. The Takeover of Social Policy by Financialization. The Brazilian paradox. New York: Palgrave Macmillan, 2017.), a dívida pública tornou-se o vínculo entre a política pública/social e os interesses do capital.

A perversa conexão que se estabelece entre a dívida pública, o mercado financeiro e a política fiscal é supervisionada pelo FMI e organismos multilaterais internacionais representativos do capital financeiro. Em tal aspecto, Deuda feminista destaca como essa ligação tem sido altamente deletéria para as pautas feministas e os direitos das mulheres. A argumentação da obra começa por nivelar os conceitos da dívida pública e destacar como essa tem sido importante ferramenta para erodir as bases do estado de bem-estar social e ampliar a financeirização das políticas e direitos sociais.

Com base nessas reflexões e conceituações, que permeiam a primeira parte da obra, as autoras traçam um panorama abrangente de como os organismos multilaterais, com destaque para o FMI e o Banco Mundial, se tornaram elementos pivotais na conexão entre dívida pública e a captura da ação estatal (política fiscal) pelo capital financeiro.

A política de empréstimos com condicionalidades conduzida pelo FMI e a negociação da dívida pública em mercados financeiros, por meio de títulos da dívida, ensejam um duplo controle sobre os Estados devedores: em primeiro lugar, pelo próprio FMI; em segundo, pelo mercado financeiro, que classifica e ordena países de acordo com a sustentabilidade de suas dívidas - agências internacionais de risco. Diante desse cenário, a Economia Mainstream (Ortodoxa) tornou-se base teórica que respalda as políticas de austeridade e tem sido incorporada à dinâmica de funcionamento dos Estados de baixo e médio rendimentos. O ajuste de contas públicas e a geração de superávits primários têm sido o principal aval para o pagamento da dívida.

Deuda feminista destaca que a adoção de uma agenda regressiva lastreada por políticas de austeridade é elemento central para a acumulação do capital em detrimento dos direitos sociais e que essa conta tem sido paga sobretudo pelas mulheres pobres, rurais, não brancas e LGBTQIA+. A ausência de ação do Estado, em diversas áreas, causada pela transferência de riqueza aos circuitos de acumulação e valorização do capital, torna o peso sobre as mulheres desproporcional, pois elas não são compensadas pelo seu trabalho de cuidado. Por conseguinte, a insuficiência da ação estatal é suprida pelo encargo que recai sobre as mulheres. Esse trabalho invisível de cuidado converteu-se em mecanismo da drenagem de recursos públicos para a valorização do capital, sobretudo especulativo.

O livro ainda destaca que a chamada economia do cuidado guarda íntima relação com a insuficiência dos serviços públicos e que, onde falham direitos, crescem as dívidas. Apresenta haver forte correlação entre dívida pública e dívidas privadas, sendo que parcela significativa das mulheres se endivida como consequência da necessidade de recursos para suprir carências decorrentes de lacunas da ação estatal, a chamada dívida para o cuidado.

O impacto desse processo nas pautas e na trajetória dos movimentos feministas é multifacetado e complexo. O completo apagamento da perspectiva de direitos humanos da avaliação de sustentabilidade da dívida pública afeta as mulheres em seus direitos básicos à educação, à saúde e ao bem-estar e também torna mais distante uma perspectiva ampla de igualdade de gênero nos países endividados. Em suma, as políticas neoliberais não são neutras em termos de gênero e não são uma exclusividade de governos com alinhamento à direita. A solução apresentada pelas autoras é uma abordagem a partir de bases de uma economia feminista, que não somente avalia e mensura sintomas e efeitos superficiais das desigualdades de gênero, mas, sobretudo, trabalha em bases mais profundas das relações sociais envolvendo as mulheres.

Se, de um lado, a obra revisita uma literatura que tem sido construída desde meados da década de 1990 acerca da dívida pública e os direitos das mulheres, de outro, ela é original ao traçar uma agenda e algumas preocupantes conclusões para as tendências mais atuais de algumas vertentes do movimento feminista.

O FMI apropria-se do discurso de gênero e o modera aos objetivos da política neoliberal, forjando inclusive tendências para correntes do movimento feminista, que incorporam aos seus discursos evidentes elementos neoliberais. A luta das mulheres tem sido utilizada, por meio dos chamados Títulos de Gênero, para precificar e lucrar sobre pautas históricas do feminismo e, com isso, criar mais riqueza financeira. Os títulos rotulados com gênero atraem investidores com preocupações com causas nobres, sem qualquer reflexão sobre a questão ou ação transformadora; pelo contrário, fragilizam e capturam o debate de forma mesquinha.

A contribuição da obra é indiscutível e o diálogo entre diferentes perspectivas acerca da “dívida feminista” é elemento necessário à reflexão. Fica aberta, para estudos futuros, uma análise mais completa à luz da interseccionalidade (Angela DAVIS, 2016DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. Trad. de Heci Regina Candiane. São Paulo: Boitempo, 2016.), a fim de mensurar os efeitos mencionados e discutidos no livro e como esses se manifestam quando diferentes marcadores sociais se sobrepõem. A abordagem em termos de mulheres racializadas, de povos tradicionais e LGBTQIA+ também contemplam campos a serem explorados.

O livro dá um passo adiante na necessidade de se repensar o modelo atual de crescimento induzido pela dívida, pois este fragiliza ainda mais os países em desenvolvimento ante impactos externos e agrava a desigualdade de gênero, fazendo com que as mulheres paguem um preço muito alto. São imprescindíveis, portanto, metas sociais e econômicas nas quais os direitos humanos sejam o centro do debate, ao contrário da visão do FMI, que não aceita sua vinculação a eles.

A conclusão a que se chega é a de que a questão feminista é uma senda contra a dominação, a desumanização, a subordinação e a colonização, sustentando todos os aspectos da vida pública e privada e oferecendo, enfim, esperança para o futuro. É um caminho árduo ante a estrutura patriarcal imposta; a conscientização, entretanto, é irreversível.

Referências

  • BOHOSLAVSKY, Juan Pablo; RULLI, Mariana (Coords.) Deuda feminsta: ¿Utopia u oxímoron? Buenos Aires: Editorial de La Universidad Nacional de La Plata, 2023.
  • DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe Trad. de Heci Regina Candiane. São Paulo: Boitempo, 2016.
  • LAVINAS, Lena. The Takeover of Social Policy by Financialization. The Brazilian paradox New York: Palgrave Macmillan, 2017.
  • Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista:

    CALDARELLI, Carlos Eduardo. “Na conta das mulheres”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 32, n. 2, e98890, 2024.
  • Financiamento:

    Não se aplica
  • Consentimento de uso de imagem:

    Não se aplica.
  • Aprovação de comitê de ética em pesquisa:

    Não se aplica.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    05 Mar 2024
  • Aceito
    20 Abr 2024
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