RESUMO
Diante da baixa representatividade de mulheres como treinadoras esportivas no Brasil, este estudo buscou identificar as vias de acesso e estratégias utilizadas por treinadoras brasileiras para a sua inserção, ascensão e permanência no cargo. A amostra foi composta por treze técnicas de oito modalidades esportivas. A coleta de dados foi realizada por meio de entrevista semiestruturada. Os resultados indicaram que as principais formas de acesso à profissão foram a condução e o convite. Verificou-se que as mulheres atribuem sua permanência no cargo principalmente à credibilidade adquirida com as conquistas em competições. Conclui-se que, por se tratar de uma profissão de domínio masculino, a grande barreira para as mulheres é a falta de oportunidades de inserção.
Palavras-chave Mulheres; Esportes; Treinamento
ABSTRACT
Given the low representation of women as sports coaches in Brazil, this study aimed to identify the access routes and strategies used by Brazilian coaches for their access, rising and staying in office. The sample consisted of thirteen coaches of eight sports. Data collection was conducted through a semi-structured interview. Results indicated that the main ways to enter the job were guiding and invitation. It was found that the permanence of the coaches is guaranteed primarily by the credibility gained from the winnings. It was concluded that lack of access opportunities is the major barrier to women's retention in coaching, as it is a male-dominated profession.
Keywords Women; Sports; Coaching
INTRODUÇÃO
O ambiente esportivo consiste em um lugar de afirmação da identidade masculina e continua a ser um dos espaços sociais em que é visível a preservação de uma clara fronteira entre os gêneros (COELHO, 2009).
O envolvimento das mulheres com os esportes se deu de forma lenta e conflituosa. Por meio de concessões e negociações, elas foram se inserindo nesse espaço predominantemente masculino. Em um primeiro momento, só era permitido à mulher atuar como expectadora do espetáculo masculino de exibição de sua força e vigor em competições. Ao longo do tempo, as mulheres passaram a participar como atletas de grandes eventos, como os Jogos Olímpicos Modernos (DEVIDE, 2002; MIRAGAYA, 2002).
Atualmente, a representação das mulheres como competidoras em Jogos Olímpicos se equipara à dos homens. Nos Jogos Olímpicos de Londres, em 2012, competiram 4.676 mulheres e 5.892 homens, portanto a participação feminina correspondeu a 44% do total de atletas (COMITÊ OLÍMPICO INTERNACIONAL, 2012). Na delegação brasileira observou-se também essa tendência à equiparação, uma vez que, de um total de 259 atletas, 123 (47%) eram mulheres (COMITÊ OLÍMPICO BRASILEIRO, 2012).
Entretanto, em cargos de comando esportivo, elas representam uma minoria. A atuação de mulheres como treinadoras esportivas, auxiliares técnicas, árbitras, coordenadoras, diretoras, chefes e presidentes de órgãos da administração esportiva tem se mantido baixa. O Comitê Olímpico Internacional (COI) estabeleceu que uma meta de 20% de participação feminina em cargos de liderança e administração fosse alcançada até o ano de 2005 pelos comitês nacionais e federações; contudo, esse objetivo não foi atingido. O COI reconhece que a equidade de gênero é um componente crítico da administração esportiva e apoia a promoção de mulheres no esporte em todos os níveis e estruturas (COMITÊ OLÍMPICO INTERNACIONAL, 2014).
No Brasil, apenas 14% do efetivo dos principais órgãos esportivos é formado por mulheres, e somente 7% das federações esportivas têm uma mulher na presidência (MOURÃO; GOMES, 2004). Nos Jogos Pan-americanos de 2011, a proporção de mulheres integrantes da comissão técnica brasileira foi de apenas 13% (COMITÊ OLÍMPICO BRASILEIRO, 2011). Levantamento feito por Ferreira et al. (2013) com 259 federações esportivas de 22 modalidades no Brasil apontou que apenas 7% dos técnicos esportivos são mulheres. Do total de federações pesquisadas, 71,4% não possuem mulheres cadastradas como técnicas.
Partindo do pressuposto de que há oportunidades desiguais para a mulher em relação ao homem para atuar como técnica esportiva, estudo de Souza de Oliveira (2002) apresentou que algumas treinadoras identificam as influências de gênero em seu cotidiano profissional, o reconhecimento da reserva masculina no treinamento esportivo, a resistência dos dirigentes na contratação de mulheres, a utilização dos estereótipos como meio de permanecerem atuantes e o seu exemplo para incentivar outras mulheres a ingressarem nessa carreira.
Poucos estudos têm abordado essa temática na produção acadêmica brasileira em Educação Física. Diante da relevância em ampliar esse foco de discussão, este trabalho teve como objetivo identificar as vias de acesso e estratégias utilizadas por treinadoras brasileiras para a sua inserção, ascensão e permanência no cargo.
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
Este estudo foi realizado com abordagem qualitativa, caracterizando-se como do tipo descritivo. Os dados foram coletados por meio de entrevista semiestruturada. Essa opção se justifica por se tratar de uma técnica eficaz em identificar o ponto de vista dos atores e em expor a experiência do entrevistado (POUPART, 2008). A entrevista abordou temas como a trajetória na vida esportiva, o acesso ao cargo de treinadora, a atuação e permanência na carreira, as dificuldades encontradas e a opinião das participantes quanto à ausência de outras mulheres na profissão.
Adicionalmente, foi aplicado um formulário, visando obter informações para caracterizar o perfil de cada informante em termos de dados gerais, formação esportiva e acadêmica, e atuação profissional. As respostas foram analisadas e interpretadas tendo como referência a técnica de análise categórica proposta por Bardin (2008). As falas das informantes foram agrupadas em duas categorias: acesso ao cargo e permanência na carreira. A primeira foi dividida em quatro subcategorias: transição de carreira, formas de acesso, requisitos da profissão e domínio masculino. A segunda categoria foi subdividida em outras cinco - experiência como ex-atleta, estratégias de liderança, credibilidade, apoio de terceiros e motivação.
Os sujeitos da pesquisa foram treze treinadoras brasileiras dentre as modalidades de natação, saltos ornamentais, ginástica aeróbica, judô, futsal, futebol, handebol e basquetebol, atuantes em âmbito estadual, nacional e internacional. A seleção das informantes se deu de forma intencional, em função da acessibilidade e conveniência dos pesquisadores. A participação delas foi voluntária, mediante assinaturas do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e de termo específico para autorização de identificação de seus nomes. Entretanto, na apresentação dos resultados deste estudo, garantimos o anonimato das treinadoras, identificando-as com números de um a treze. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Viçosa, através do parecer 048/2011.
APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
Os resultados serão apresentados e discutidos em três tópicos: (1) perfil das informantes; (2) inserção e ascensão de mulheres como treinadoras; e (3) permanência na carreira.
Perfil das informantes
O Quadro 1 apresenta dados sobre o perfil das treinadoras entrevistadas. Verificou-se entre as participantes do estudo uma predominância de mulheres solteiras, sem filhos, que tiveram uma trajetória esportiva como atletas e que possuem experiência na área de atuação.
Dentre as doze que foram atletas, nove tiveram uma trajetória de destaque no esporte de alto rendimento e, ao encerrarem sua carreira, deram continuidade à vida esportiva tornando-se treinadoras.
Segundo Marques (2001), sem fazer distinção entre homens e mulheres, o estatuto de treinador está ainda muito dependente da sua antiga prática como atleta. Nesse sentido, o treinador é, na maioria das vezes, um desportista experimentado, e o exercício da sua atividade profissional ainda depende mais da sua competência corporal como ex-atleta do que da sua formação teórica.
A inserção e ascensão de mulheres como treinadoras
Na carreira esportiva, o ato de tornar-se treinador representa, para muitos atletas, uma possibilidade de prolongamento e continuidade no esporte. Segundo Brandão et al. (2000), continuar ligado ao meio esportivo é uma forma de o atleta lidar melhor com um possível período de transição. De acordo com esses autores, a transição de carreira esportiva é proveniente de uma combinação de fatores individuais e sociais, por exemplo, a idade, novos interesses emergentes, fadiga psicológica, dificuldades com a equipe técnica, resultados esportivos em declínio, problemas de contusão e saúde, e a não convocação para competições.
As falas das entrevistadas demonstram que essa transição de carreira foi um processo bastante natural. À medida que elas sinalizaram o fim da vida atlética, foram se envolvendo com o trabalho de seus técnicos e com atividades em escolinhas de esportes voltadas para o público infantil. Dentre as doze mulheres que foram atletas, oito já estavam inseridas em um clube esportivo e já tinham uma longa vivência na modalidade. Tendo passado o seu auge em performance de rendimento esportivo, elas se aproximaram de seus técnicos para desempenhar funções de auxílio. Concomitantemente, assumiram o comando de equipes de base no clube em que atuavam. Por já estarem inseridas nesse processo e encaminhadas para serem treinadoras, elas iniciaram o curso de Educação Física para legitimar a atuação na área esportiva.
Diferentemente, outras três tiveram bem demarcados os momentos de encerramento da vida de atleta e início da carreira de técnica. Elas já tinham a priori a intenção de se tornarem treinadoras. Dessa forma, elas buscaram a formação profissional no curso de Educação Física especificamente para a realização desse objetivo.
Nas respostas dadas à pergunta "Como você se tornou técnica?", que interpretamos como a via de acesso ao posto de treinadora esportiva, foram encontradas diferentes formas de inserção na carreira: condução (n=5), entendido como o processo por meio do qual as mulheres foram previamente preparadas e formadas para assumir a posição do técnico anterior; convite (n=3); oportunidade pela falta de profissional (n=2); iniciativa própria (n=2); e processo seletivo (n=1).
Independentemente da via de acesso ao posto, todas as treinadoras iniciaram suas ações em categorias de base. À medida que foram conquistando e apresentando resultados em competições, novas oportunidades surgiram e elas assumiram o comando das equipes principais de suas modalidades.
As formas de acesso de condução e convite ao posto de treinadora parecem estar condicionadas à existência de uma pessoa que atua como uma espécie de "tutor" (KILTY, 2006). O "tutor" é alguém que tem poder para tomar decisões, fazer indicações e contratações ou apenas facilitar o acesso a cargos dentro de uma organização esportiva. Nesse tipo de ambiente, em muitos casos, o papel de tutor é exercido por um ex-técnico ou um membro de federação ou confederação da modalidade.
Das treze entrevistadas, cinco foram conduzidas e três convidadas a assumirem o cargo de técnica.
Quando eu terminei de jogar, aí eles me convidaram... Eu mesmo, eu tinha muita amizade com meu técnico. [...] Aí fui começando a trabalhar na base, alguns títulos vieram [...] E aquilo, se eu não tivesse tido o apoio do meu técnico, talvez eu não tivesse conseguido. (Treinadora 1, basquetebol).
A experiência como atleta com uma trajetória de destaque no alto rendimento parece ser um fator importante para que mulheres sejam convidadas a ocuparem o posto de técnica.
[...] eu liguei para a Confederação Brasileira e falei que estava parando como seleção e imediatamente eles me convidaram para eu ir para as olimpíadas para usar a minha experiência. (Treinadora 2, judô).
Romariz (2008) também verificou que as oportunidades de dirigir uma equipe de voleibol surgiram, basicamente, pela interação dos treinadores com profissionais já engajados na área. As mulheres, assim como os homens que possuem um "tutor", têm mais facilidade de acesso ao cargo. Mas, se ambos precisam de tutoria, por que apenas uma minoria feminina a consegue?
Em conferências internacionais sobre mulheres no treinamento esportivo, a falta de "tutor" foi apontada como uma barreira externa para a inserção de mulheres no comando de equipes (KILTY, 2006). É possível que a resposta esteja na baixa qualidade e extensão da rede de contatos e de sociabilidade da/s mulher/es. Norman (2010) aponta que a dificuldade de acesso das mulheres ao comando esportivo se fundamenta no capital social e humano delas. Segundo o autor, o capital social é medido pela rede de contatos que elas possuem; já o capital humano refere-se ao treinamento, educação e experiências que a pessoa acumula para sua qualificação profissional. Kamphoff, Armentrout e Driska (2010) realizaram um estudo com treinadoras canadenses de equipes masculinas e observaram a importância de se estabelecer uma rede de contatos para mulheres com a presença de mais tutores como uma das estratégias necessárias para aumentar a atuação feminina na área. Elas afirmaram que uma treinadora jovem, quer queira ou não, necessita de um tutor para ascender na carreira.
No Brasil, a baixa presença de mulheres na administração esportiva só vem a contribuir para a restrição dessa rede de tutores e para o predomínio de homens nesse campo profissional. Mourão e Gomes (2004) alertam que, além de pequena, a participação feminina se dá principalmente nos cargos intermediários da administração do esporte, subordinados aos homens.
Kanter (1993) ressalta que no momento de contratação existe uma tendência para a aplicação do princípio de similaridade denominado "reprodução homóloga". Dirigentes e técnicos perpetuam a profissão como masculina ao contratarem apenas similares a eles mesmos; ou seja: homens tendem a optar por homens. Como a maioria dos cargos de poder de decisão e de contratação é ocupada por homens, a profissão de treinador esportivo se constituiu como um reduto masculino.
Esses determinantes de oportunidade e proporção interagem em forma de retroalimentação, o que significa que a falta de oportunidades limita a proporção do grupo feminino, e consequentemente elas não adquirem poder de influência para facilitar a criação de oportunidades para outras mulheres. Essa inter-relação produz um ciclo de vantagens para o grupo dominante e um ciclo de desvantagens para o grupo minoritário (KANTER, 1993).
Diante de poucas oportunidades, as treinadoras tendem a limitar suas aspirações, a valorizar sua competência menos do que o ideal e a não buscar mudanças nesse quadro de predominância de homens, ficando comprometida a presença de mulheres nessa profissão. Conforme Kanter (1993), quando um grupo é sub-representado numa ocupação com proporção inferior a 15% do efetivo, ele é encarado como de status simbólico. Esses grupos minoritários vivenciam um isolamento das redes de contatos em relação ao grupo dominante. Além disso, tendem a ser rotulados com estereótipos e a encontrar mais dificuldade em obter credibilidade e receber suporte de outras pessoas.
Uma das informantes do estudo acredita que, pelo fato de serem mulheres, para atuarem como treinadoras, elas precisam de maior preparação para serem capazes de enfrentar e resistir a todos os tipos de situações. As mulheres se deparam com a desconfiança de sua competência e a todo o tempo necessitam provar que são merecedoras de ocupar tal posição. Estudo realizado com treinadoras de esportes de alto rendimento nos Estados Unidos apontou que mulheres não são levadas a sério e são consideradas pelos demais técnicos como fracas e com nível inferior de conhecimento (NORMAN, 2010). Assim, elas sentem a necessidade de demonstrar seus conhecimentos e habilidades como técnicas para liderar. Para se firmarem na carreira, elas carregam o pesado fardo da dúvida e suspeita dos homens. Segundo o autor do estudo supracitado, essa necessidade de as mulheres comprovarem que têm capacidade para serem treinadoras também pode ser explicada pela associação cultural da autoridade com a masculinidade.
A profissão de técnico é geralmente atribuída ao público masculino. De acordo com Jaeger et al. (2010), a representação do esporte como um território em que os homens produzem e demonstram a sua masculinidade favorece a percepção de que treinadores geralmente são homens, o que acaba por produzir questionamentos a respeito da competência das mulheres nessa posição. Staurowsky (1990) corrobora que a pouca representatividade de mulheres como técnicas reflete a força do elo entre esporte e gênero. Para a autora, ainda é resistente a noção patriarcal de que a masculinidade é pré-requisito para o treinamento e está intimamente ligada à liderança esportiva, desenvolvendo a ideia de que treinar atletas é tarefa para homens e não para mulheres. Assim, a associação do treinamento esportivo com a figura masculina é uma imensa e poderosa barreira para a aceitação das mulheres como treinadoras (NORMAN, 2010).
O esporte foi criado para os homens, assim, ele se tornou um instrumento para reforçar o domínio masculino nos séculos XIX e XX (MESSNER; SABO, 1990). Críticas feministas apontam que o esporte é uma instituição masculina, não apenas pelo balanço numérico, mas principalmente pelos valores e normas de comportamento que promovem e naturalizam a ideia de superioridade dos homens, tanto nos campos e quadras como nas hierarquias organizacionais (WHITSON, 1990). Alegam ainda que, por meio do esporte, reafirmam-se os padrões de privilégio dos homens e a subordinação das mulheres que existe fora da realidade esportiva. Dunning (1992) argumenta que o esporte tem sido um espaço importante para a construção de uma solidariedade masculina, através da qual os homens se identificam com outros homens. Essa dinâmica aponta para um poderoso papel do esporte na reprodução da hegemonia masculina.
A permanência no cargo de treinadora
A profissão de treinador requer um conjunto vasto de recursos em conhecimentos e competências em vários níveis: na perspectiva da sua experiência prática; relativa aos conhecimentos científicos; aos domínios da organização, da administração, da pedagogia e da gestão de recursos e estratégias. As exigências e as responsabilidades são muitas, e a pressão é constante. O treinador é o primeiro a ser responsabilizado pelos resultados (MARQUES, 2001).
As treinadoras participantes acreditam que algumas qualidades são fundamentais para que elas se mantenham no comando de equipes, como a capacidade de liderança, carisma, conhecimento, comprometimento, persistência e sensibilidade para lidar com os atletas.
A maioria delas (n=12) considera a vivência como atleta como fator de grande importância na profissão. Algumas (n=2), em função da posição em que jogavam, eram privilegiadas com uma melhor visão de jogo. Ao fazerem a transição para o lado de fora das quadras, houve uma transferência positiva para a capacidade de análise tática. Ter sido atleta trata-se de um diferencial que, somado à formação acadêmica, faz com que uma treinadora seja completa em termos de conhecimentos e proporciona maior sensibilidade, uma vez que a técnica consegue identificar e entender facilmente as situações que o atleta experimenta.
Eu, com quinze anos, já era atleta da seleção brasileira e já estava fazendo a minha primeira viagem internacional. [...] Nesse período eu fui para duas olimpíadas. [...] Eu tenho uma grande vantagem porque tudo o que elas passam, eu já passei na pele. Eu já vivi isso na pele. Eu fui atleta olímpica, então eu falo para elas: eu já treinei com fome perdendo peso, eu já enrolei no treino porque eu não queria treinar, eu já treinei com dor, já treinei com lesão [...] nada que elas passem, nada, simplesmente nada que eu não tenha passado. Eu passei por tudo porque eu vivenciei. [...] Então, para mim fica muito fácil lidar com tudo isso. (Treinadora 2, judô).
De acordo com a Treinadora 4 de uma equipe de futebol masculino, quando se trata de comandar atletas homens e ainda jogadores de futebol, o saber fazer não é somente um facilitador, mas é pré-requisito para se adquirir credibilidade.
Para as técnicas participantes do estudo de Souza de Oliveira (2002), ser ex-atleta é fundamental para que elas atuem no treinamento; do contrário, não há respeito.
A vivência como atleta pode inserir a mulher em uma rede de contatos no meio esportivo, facilitando o acesso dela a um possível cargo de treinadora no futuro. Adicionalmente, possibilita que ela tenha um maior nível de conhecimento prático, o que favorece a aquisição de credibilidade junto a uma equipe.
No que diz respeito ao relacionamento entre treinadora e atletas, a figura da família se repetiu nas falas de algumas mulheres (n=5). Elas se utilizam da imagem de "time família" juntamente com a figura da "mãezona", fazendo uma alusão à união e ao bom relacionamento de uma família, bem como aos cuidados e ao amor incondicional da mãe com seus filhos. Souza de Oliveira (2004) destacou que as mulheres se utilizam do estereótipo da maternidade como um contrapoder e agem nas brechas da própria cultura patriarcal como estratégia para diferenciar seu trabalho. Elas empregam a seu próprio favor a imagem construída sobre elas como instrumento de dominação (SOUZA DE OLIVEIRA, 2004).
Se, por um lado, elas utilizam e reforçam os próprios estereótipos femininos, por outro, elas também fazem uso de comportamentos ditos masculinos para impor autoridade junto aos atletas. Verifica-se uma mudança de atitude para afirmação frente ao grupo.
Eu sou muito mais chata do que eu realmente sou. Eu tenho que ser muito mais chata com eles porque é aquela coisa assim, se é mulher, eles montam, sabe? Relaxam. Eu tenho que ser mais exigente... Às vezes eu tenho que gritar, eu tenho que xingar, coisas que para mim são desnecessárias. (Treinadora 3, natação).
Portanto, para garantir uma boa liderança, elas se aproveitam tanto dos estereótipos femininos, reforçando a imagem tradicional da mulher sensível e maternal em seu próprio favor, como também buscam se aproximar de aspectos da masculinidade. Assim, como há uma percepção de que a função de treinador deve ser exercida por um homem, essas mulheres alteram seu padrão comportamental, adotando até mesmo atitudes mais agressivas para cumprir essa expectativa.
Além dos já citados, foram identificados outros dois fatores fundamentais para a permanência das treinadoras na profissão. Para elas (n=7), a credibilidade adquirida ao longo da trajetória é o principal deles. Foi por meio das vitórias em competições que elas conquistaram espaço e respeito no meio esportivo. Essa necessidade de apresentar resultados existe para todos que estão no comando esportivo, independentemente se homem ou mulher, se ex-atleta ou não.
E graças a Deus, esse caminho de vitórias do judô feminino acabou consolidando o meu estado de técnica. [...] O que deu credibilidade ao meu trabalho, quando eu falo meu é do posto de técnica, foram exatamente os resultados (Treinadora 2, judô).
As vitórias e títulos representam a prova da competência no treinamento esportivo e, à medida que vão surgindo, eles vão suprimindo a dúvida que as pessoas têm em relação ao trabalho das treinadoras.
Mas a primeira vez que eu fui campeã brasileira, com o atleta meu que ganhou o Campeonato brasileiro, de repente todo mundo começou a me cumprimentar. Todo mundo não, a maioria dos técnicos (Treinadora 3, natação).
Outro fator identificado foi a motivação dessas mulheres como treinadoras. O que as impulsiona na profissão são os sonhos de conquistar títulos, a satisfação em formar pessoas e atletas, e o amor pelo esporte. Para aquelas (n=5) que desenvolveram e ainda desenvolvem trabalhos junto às seleções brasileiras, o sonho olímpico constitui uma das maiores fontes de motivação.
Destaca-se que, mesmo para mulheres atuantes em equipes de alto rendimento, a remuneração não se apresentou como um fator motivacional. Isso só vem a evidenciar a realidade esportiva brasileira, a qual, principalmente em nível municipal e estadual, ainda depende da dedicação de algumas pessoas em razão de não dispor de estrutura física e financeira adequada.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Uma vez identificadas as vias de acesso e estratégias de permanência de mulheres como treinadoras esportivas, foi possível concluir que as relações de gênero são determinantes para o surgimento de oportunidades desiguais para homens e mulheres de inserção na carreira de treinador. O domínio masculino em cargos de poder e liderança esportiva garante esse reduto.
Para abrir caminhos ao posto de comando esportivo, o suporte de tutores estabelecido em uma rede de contatos profissionais se configura como uma importante forma de inclusão feminina nesse espaço. A dinâmica dessa tutoria pode ser confirmada através da condução por ex-treinadores no processo de preparação das mulheres para serem treinadoras, quando ainda eram atletas; e, pelos convites feitos diretamente por dirigentes, ex-treinadores e entidades esportivas para o exercício da atividade.
Em relação à permanência no cargo, evidenciou-se um conjunto de qualidades e competências como requisitos para suprir as exigências da profissão; o uso de estereótipos como estratégia de relacionamento e imposição de autoridade junto à equipe; a conquista de resultados como fator fundamental para a aquisição de credibilidade; e a motivação pessoal para se dedicar a essa carreira instável e difícil. Percebe-se que, diferentemente do processo de inserção, para permanecer como treinadora, a lógica de valores baseada no sucesso e na vitória torna-se preponderante sobre as relações de gênero, embora estas ainda se façam presentes por meio da dúvida da competência feminina. Contudo, independentemente de ser homem ou mulher, o treinador é responsabilizado e cobrado pelos resultados dos atletas.
Reafirma-se a necessidade de seguir as recomendações do COI de aumento da participação feminina em todos os níveis de atuação para garantir a voz das mulheres nas decisões sobre os esportes, inclusive sobre suas próprias práticas. Sugere-se, como ações fundamentais, a criação de programas de incentivo à prática esportiva de meninas e mulheres para formação de atletas, a divulgação e compartilhamento das experiências de mulheres em postos de liderança e, principalmente, a criação de uma de rede de contatos entre treinadoras, dirigentes e gestoras do esporte, com a finalidade de gerar oportunidades para a inserção e ascensão de mais mulheres nesse campo profissional.
A preocupação com essa temática no século XXI, no nosso entender, é essencial para que mulheres e homens cada vez mais superem as barreiras existentes em busca da equidade na carreira de treinador esportivo no Brasil.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Mar 2015
Histórico
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Recebido
05 Fev 2014 -
Revisado
08 Abr 2014 -
Aceito
15 Dez 2014