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Falas com sotaque, falas migrantes: A língua como espaço da colonialidade

Accented Speech, Migrant Voices: Language as a Space of Coloniality

Resumo

O artigo discute as tensões que surgem no processo da migração e da imersão linguística, através de uma autoetnografia. A partir da experiência da autora, migrante latino-americana no Brasil, discute-se o quanto uma certa ideia de “domínio da língua” que rejeita certos sotaques e formas de expressividade, pode ser um instrumento de poder e espaço da colonialidade sobre sujeito migrante e sua identidade híbrida. Como a identidade migrante e sua “fala com sotaque” nos interpela? Qual o estranhamento que gera e por quê? São algumas das perguntas-incitações que orientam as reflexões.

Como parte da discussão analisa-se a necessidade de reivindicar a língua como um lugar diverso, que pode acolher ou (des)acolher, bem como propor novas formas de pensar e politizar a diversidade cultural, viabilizando uma ideia de interculturalidade. Estabelecendo-se como uma política cultural crítica aos modelos de Estado, Democracia e Nação que pretendem apagar a diversidade dos povos e nacionalidades.

Palavras chaves:
língua; colonialidade; migração; interculturalidade; autoetnografia

Abstract

The article discusses the tensions that arise in the process of migration and linguistic immersion, through an autoethnography. From the author's experience as a Latin American migrant in Brazil, it explores how a certain notion of "language mastery" that rejects specific accents and forms of expressiveness can be an instrument of power and a space of coloniality over the migrant subject and their hybrid identity. How does the migrant identity and its "accented speech" challenge us? What estrangement does it generate and why? These are some of the provocative questions that guide the reflections.

As part of the discussion, the need to reclaim language as a diverse space that can either welcome or exclude is analyzed, as well as proposing new ways of thinking and politicizing cultural diversity, facilitating an idea of interculturality. It establishes itself as a critical cultural policy against the models of State, Democracy, and Nation that aim to erase the diversity of peoples and nationalities.

Keywords:
language; coloniality; migration; interculturality; autoethnography

Introdução

Eu sou uma mulher migrante no Brasil, latino-americana, caribenha. Escrevo este artigo, nove anos após minha chegada no Brasil, para fazer o doutorado dentro de uma Universidade Federal. Ao longo desses nove anos uma frase em particular tem-me feito refletir. Uma frase dita em diferentes contextos, acredito que com diferentes intenções e não apenas a mim direcionada, mas muito frequente: “você fala bem, mas tem um sotaque forte, talvez com os anos você vai perder esse sotaque”.

Confesso que não é só a frequência com que tenho escutado a frase, mas esse desejo em si, que tem me feito pensar sobre ela e me questionar: por que é esperado ou desejado que isso aconteça? Por que perder o sotaque parece se consagrar como o último ato ritualístico de integração social e de assimilação? Qual a história desse estranhamento, dessa meta que os outros tentam me (nos) impor o tempo todo? Será que uma certa ideia de “falar bem” é o que deveria ser mudado?

Eu sou um sujeito híbrido, e esse poderia - e deveria - ser um lugar mais confortável, se não fosse pela ideia de ilegítimo e/ou errado à qual parece se associar. No senso comum, o “sotaque”, através da enunciação exposta anteriormente, é a evidência ou a concreção do sujeito que “não é daqui”1 1 Do Brasil, no caso do artigo. A expressão “você não é daqui” como afirmação e, mais frequentemente em forma de pergunta, é uma frase que faz parte do cotidiano de muitos migrantes que são (somos) intimados a confirmar constantemente a origem nacional não-brasileira. , do estrangeiro. Esse sotaque, para nós, latino-americanos no Brasil, é também a evidência do “portunhol”, ou seja, da mistura entre o espanhol e o português. Esse sotaque ou portunhol se traduz em uma musicalidade diferente ao falar, na emergência no discurso em português de palavras do espanhol, ou em uma forma de pronunciação da palavra (que também pode existir no português) que lembra mais a palavra em espanhol; seja pela ausência da “nasalidade” na pronunciação, porque a força de pronunciação é colocada em uma sílaba diferente, ou seja, na sílaba em que levaria a força de pronunciação conforme regras gramaticais do espanhol, ou ainda, porque alguns sons como o [ó] ou [ô] não são adequadamente pronunciados, só por citar alguns exemplos. Refiro-me assim às regras gramaticais não apenas como o conjunto de regras que indicam o uso aceito da língua quanto à escrita e à leitura, mas também em relação à organização dos sons da fala.

Vale sublinhar que a emissão nasal para as vogais, como explicitado acima, é uma característica distintiva do português em relação às demais línguas românicas. Esse fenômeno, como apontado por Costa e Malta (2015COSTA, Consuelo de Paiva; MALTA, Cinthia. Nasalização em Português Brasileiro: uma (re)visão autossegmental. Signum: Estud. Ling., v. 18, n. 1, p. 132-156, 2015.), existe em outras línguas como o francês, mas em condições fonológicas diferentes. Conforme Crystal (1980CRYSTAL, David. Dicionário de Linguística e Fonética. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1980.), o som nasalizado refere-se ao

(...) som oral, consonântico ou vocálico, a que é adicionada uma ressonância, devido ao abaixamento do palato mole. Os sons tornam-se nasalizados, geralmente, por influência de segmentos nasais adjacentes. (p. 179)

Retornando ao tema dos efeitos no cotidiano das diferenças e da mistura entre línguas, temos que a rejeição do “portunhol” nessa função de fronteira, em que a língua falada não é o espanhol nem o português, opera como uma norma colonial de comunicação, que rejeita o sujeito híbrido, e a ideia de indefinição ou de trânsito que ele possa representar. A língua, assim como a fronteira, é usada aqui para definir um território, o território da norma colonial.

No contexto desse campo de significação, a estranheza do sujeito que “fala diferente” é um espaço de (des)acolhimento, é a língua funcionando como uma fronteira e delimitando o que é “adequado” ou “inadequado”, o que está “dentro da norma” e o que não. Na cotidianidade e pelos seus efeitos, fala e sujeito são a mesma coisa, ou seja, ao rejeitar a fala, rejeita-se o sujeito. Dito de outro modo, através da rejeição da fala, inibe-se a capacidade de acolhimento e integração do sujeito.

Assumo aqui a categoria fronteira no diálogo com autoras como Gloria Anzaldúa (1987ANZALDÚA, Glória. Borderlands/La Frontera: The New Mestiza. San Francisco: Aunt Lute Books, 1987.) como uma construção social, política e histórica que envolve a expressão de relações sociais e culturais de poder desiguais, impostas através da colonização e da exploração. Dita noção de fronteira, a qual configura uma ideia de limites, pode levar à exclusão e marginalização, a um lugar de conflito e de negociação de identidades e a uma zona de ambiguidade cultural e linguística onde as identidades se fundem e se misturam. A noção de fronteira de Anzaldúa (1987)ANZALDÚA, Glória. Borderlands/La Frontera: The New Mestiza. San Francisco: Aunt Lute Books, 1987. supõe, portanto, uma reflexão sobre a distinção entre o que é interior e o que é estrangeiro.

Interessante também para a discussão que empreendo, a ideia de fronteira cultural de Foio e Heras (2019FOIO, María del. Socorro; HERAS, Ana Inés. Frontera cultural: Límite y trasvasamiento. Análisis de los aportes de la noción de territorio para interrogar la interculturalidad. In: NARVÁES, Marianela (ed.). Justicia e interculturalidad: Análisis y pensamiento plural en América y Europa. Perú: Centro de Estudios Constitucionales - Tribunal Constitucional del Perú, 2019, p. 583-608.). Para as autoras,

Cuando nos referimos a las fronteras culturales no pensamos en zonas establecidas conforme a hitos fronterizos legales y políticos, sino en procesos de construcción de representaciones sociales que van marcando relaciones de demanda, desconfianza y/o exigencia con respecto al afuera y, al mismo tiempo, una manera de inclusión en el adentro configurando significados que sellan certezas, normas, valores, conocimientos compartidos, formas de ver la realidad y actuar (…). (p. 589)2 2 Mantenho intencionalmente esta e todas as citações de artigos na língua original em que foram escritos, como parte do esforço teórico e prático em trazer para o texto a interculturalidade do contexto da pesquisa, que amparada numa perspectiva crítica latino-americana, significa positivamente a pluralidade cultural e linguística da região.

Como resultado deste processo de diferenciação, classificação social e produção de sentidos que redunda na “construção de um nós frente a um eles” (Foio, Heras, 2019FOIO, María del. Socorro; HERAS, Ana Inés. Frontera cultural: Límite y trasvasamiento. Análisis de los aportes de la noción de territorio para interrogar la interculturalidad. In: NARVÁES, Marianela (ed.). Justicia e interculturalidad: Análisis y pensamiento plural en América y Europa. Perú: Centro de Estudios Constitucionales - Tribunal Constitucional del Perú, 2019, p. 583-608., p. 589), a presença do sotaque e/ou do portunhol parece ser central na vivência do que Bhabha (2002)BHABHA, Homi. El lugar de la cultura. Buenos Aires: Manantial, 2002. define como um entre-lugar ou third space, um espaço de fronteira onde as diferenças culturais se encontram e se cruzam, e onde novas identidades e culturas podem emergir. Um espaço cultural híbrido e complexo, pois este espaço subjetivo é criado pelo cruzamento e pelo conflito que o cruzamento gera, ou seja, expressa ao mesmo tempo o choque dessas culturas que se cruzam e as diferenças e tensões entre elas. Bhabha (2002)BHABHA, Homi. El lugar de la cultura. Buenos Aires: Manantial, 2002. argumenta que o entre-lugar é um desafio para a identidade a partir do confronto com uma noção de pureza cultural, enraizada na cultura como resultado do processo de expansão colonial europeia. Essa ideia de pureza cultural dialoga e/ou serve de base, a meu ver, para as formas mais radicais dos nacionalismos, em que se estabelece uma relação intrínseca e interdependente entre “língua” e “nação”, usada para excluir grupos étnicos e/ou linguísticos da nacionalidade e, com isto, do campo dos direitos.

Para sustentar esta discussão sobre o desafio às fronteiras que limitam a expressão pessoal, não poderia deixar de fazer referência ao texto ‘Falando em Línguas” de Anzaldúa (2000______. Falando em línguas: Uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo. Revista de Estudos Feministas, v. 8, n. 1, p. 229-236, 2000.), pela sua importância para as discussões contemporâneas sobre multiculturalismo, inclusão e justiça social. No texto, a autora, ao refletir sobre as complexidades e os desafios enfrentados por pessoas que vivem em fronteiras culturais e linguísticas, assume uma ideia de língua não apenas como sistema de comunicação, mas, também, como portadora de significados culturais e históricos. Assim, parto do pressuposto de que as línguas são muito mais do que meros veículos de comunicação, elas são entrelaçadas com identidade, memória e resistência. A língua é essencial no processo de construção e expressão da identidade, não só individual, mas de grupos sociais e de Estados-Nação. Nesta perspectiva, a língua pode ser uma porta fechada, ou uma porta que se abre e permite o acesso do sujeito migrante a uma nova moradia geográfica, subjetiva e emocional. No final das contas, somos seres linguísticos e precisamos da língua para ser, uma vez que ela nos interpela, e seu poder vem dessa possibilidade de interpelação.

Com base na problematização apresentada e, a partir de uma autoetnografia, ou seja, a partir do relato da minha experiência enquanto migrante, discuto neste artigo o quanto a língua pode ser um instrumento de poder e espaço da colonialidade do sujeito migrante. Proponho-me igualmente refletir sobre a necessidade de reivindicar a língua como um lugar diverso, que pode acolher ou (des)acolher.

O artigo é dividido em várias seções, cada uma abordando um aspecto fundamental da questão da língua como espaço de colonialidade. Começo discorrendo sobre a autoetnografia e explicando como experiências pessoais são analisadas para entender a experiência cultural e as dinâmicas de poder. Posteriormente, trago o tema da experiência migratória e alguns dos seus impactos subjetivos, dialogando com relatos sobre minha experiência pessoal como migrante no Brasil e explorando as dificuldades e reflexões geradas pelo processo de imersão linguística. No tópico sobre a língua como aspecto da colonialidade, analiso a imposição da língua do colonizador no contexto histórico e contemporâneo, destacando a violência simbólica e as formas atuais de expressão e manutenção do projeto assimilacionista no Brasil. Finalmente, reflito sobre violência simbólica e identidade migrante, analisando como a identidade migrante é afetada pela compulsoriedade do domínio da língua e discutindo a noção de pertencimento e os impactos da colonialidade do ser.

Sobre a proposta metodológica

A autoetnografia, enquanto processo e resultado, é um acercamento à pesquisa e à escrita que procura descrever e analisar sistematicamente experiências pessoais e interpessoais para entender a experiência cultural (Calva, 2019CALVA, Silvia Bénard. Autoetnografía: Una metodología cualitativa (Selección de textos). México: Universidad Autónoma de Aguascalientes, 2019.). Parto da ideia, também, de que acessar as nossas vivências e observá-las de maneira analítica é ainda um importante ponto de partida, contra-hegemônico e decolonial, para teorizar e produzir conhecimento. Como afirma Jones (2005JONES, Stacy Holman. Autoethnography: Making the personal political. In: DENZIN, Norman; LINCOLN, Yvonna (eds.). The Sage Handbook of Qualitative Research. 3 ed. London: SAGE Publications Ltd, 2005, p. 763-792. ) no texto “Autoethnography: Making the Personal Political”, a ideia de que a autoetnografia pode “tornar o pessoal, político” é fundamental para compreender seu potencial transformador, tanto dentro da academia quanto na sociedade. A autora articula assim uma visão da autoetnografia a uma prática política e emancipatória. Essa abordagem sugere que, ao explorar, compartilhar e analisar as experiências pessoais, os autoetnógrafos podem contestar as estruturas de poder e as normas culturais que moldam essas experiências, contribuindo para a desestabilização de narrativas dominantes e na promoção de uma maior inclusão de vozes marginalizadas.

O processo começou com a seleção cuidadosa de experiências pessoais significativas relacionadas à migração e à imersão linguística, que ilustrassem claramente as interações entre língua, identidade e as dinâmicas de colonialidade, com um foco particular naqueles momentos que provocaram reflexão ou mudança. Logo procedi ao registro dessas memórias. O que foi feito através de um relato, onde cada experiência foi descrita incluindo emoções, pensamentos e reações tanto internas quanto externas. Esse processo não só serviu como um ato de preservação, mas também como uma primeira etapa de análise, permitindo uma imersão nos significados e implicações dessas experiências.

Cada tema foi simultaneamente objeto de uma reflexão crítica, colocando as experiências pessoais em diálogo com alguns textos e autores que discorrem sobre o tema da colonialidade, interculturalidade, migração, pertencimento; transcendendo o puramente pessoal e situando as experiências dentro de contextos histórico-sociais e teóricos mais amplos. Esse passo implicou analisar, também, como as experiências pessoais ilustram, desafiam ou expandem conceitos teóricos existentes. O que reforça a validade da abordagem autoetnográfica.

Contudo, um dos principais desafios foi gerenciar a linha tênue entre a subjetividade inerente à autoetnografia e a necessidade de conectar essas experiências a questões mais amplas. Isso foi abordado através de uma constante reflexão crítica e pela ancoragem das análises em teorias e estudos relevantes. Por outra parte, o processo de escavar e compartilhar experiências pessoais pode ser emocionalmente desafiador e contribuir eventualmente para uma auto exposição indesejada, ou para expor algumas pessoas. Diante disto, precisei estabelecer limites claros sobre o que compartilhar. Somente incluí eventos que contribuíssem de forma significativa para a compreensão do tema relativo à colonialidade e linguagem. Qualquer detalhe que pudesse expor indevidamente terceiros foi omitido. Considerei o impacto emocional de revisitar e compartilhar certas experiências e decidi omitir algumas que causavam desconforto emocional excessivo para mim ou para outros envolvidos. Para manter a coesão e a clareza do artigo, também selecionei experiências que se encaixassem de maneira fluida na narrativa geral, evitando sobrecarregar o texto com detalhes excessivos que poderiam desviar do foco principal da análise.

Por que este tema? A (minha) experiência da migração e seus impactos subjetivos

Quando escrevo este artigo se passaram pouco mais de nove anos da minha chegada ao Brasil, para fazer Pós-Graduação em uma Universidade Federal. Como parte da minha preparação previa à vinda para o Brasil, eu procurei receber algumas aulas de português e pesquisei tudo que pude sobre a cultura do país e especificamente da cidade do sul do Brasil na qual iria morar nos seguintes quatro anos da minha vida.

No momento da minha chegada e do início dos meus estudos de doutorado, a minha compreensão escrita do português era bastante boa e a compreensão oral era aceitável - acredito eu -, considerando que, dentro da universidade e em contato com o linguajar da profissão e com a fala mais formal de alunos/as e professores/as em sala de aula, eu conseguia compreender muito bem e, no caso de algumas palavras ou frases isoladas, o google tradutor sempre foi um bom aliado. No entanto, na rua, no meio dos vínculos e falas informais e em contato com as gírias e sotaques regionais, a minha compreensão poderia ser mais restrita. Já no caso da escrita e fundamentalmente da expressão oral, as minhas habilidades eram muito menores, sobretudo em relação aos padrões da academia e se comparado com as pessoas com que me relacionava nesse ambiente.

Vale sublinhar que, sendo uma profissional da área das Ciências Sociais e Humanas, a fala, e com isto quero dizer a capacidade de articular um discurso coerente e embasado teoricamente, é central na prática profissional e na produção de status. De modo que, não conseguir verbalizar tudo o que por vezes eu pensava, ou pelo menos não com a fluidez com que eu teria conseguido na minha língua materna, já começava a me gerar bastante angústia. Contudo, preciso dizer que, naqueles primeiros tempos, foi sempre muito acolhedor o fato de meus colegas e professoras entenderem essa dificuldade e tentarem reduzir a minha angústia, valorizando a troca de saberes e as reflexões trazidas por nativos de outros contextos, relatando experiências cientificas e profissionais diversas, tão diversas quanto a musicalidade de suas falas, ao qual, tempo depois eu decidi chamar de “discursos com sotaques”. Discursos com o poder de desnaturalizar e de ressignificar teorias e práticas, profissionais e pessoais.

Os discursos com sotaques têm o poder do estranhamento do familiar, são aqueles que têm também a potência de trazer o diferente, de contestar saberes e práticas naturalizados e de nos desestabilizar no espaço do íntimo-pessoal, no confronto com os nossos preconceitos e com a nossa capacidade de acolher e valorizar a diferença. Desse confronto com os discursos com sotaques, emergem tanto a xenofobia, os atos de violência e de (des)acolhimento, quanto o esforço de um sujeito e/ou de uma sociedade para encontrar novos campos de possibilidade no intuito de ressignificar e valorizar a diferença. De modo que, esse confronto também pode ser a fonte de um novo processo de produção de sentidos, que desassocia o ser estrangeiro e o “falar diferente” da ideia de “problema” e o vincula a outras tramas de significação que comportam novas possibilidades de acolhimento e de valorização da pessoa migrante, sobretudo daquelas que não representam o norte global.

Ao falar aqui do norte global, o faço, no diálogo com Quijano (2000QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina (Vol. 13). Buenos Aires: CLACSO, 2000.), referindo-me a uma construção histórica, política e cultural que engloba relações de poder, desigualdade e dominação - e não apenas como referência geográfica. Esta perspectiva baseia-se numa visão eurocêntrica do mundo, na qual os países do Norte são vistos como superiores e os do Sul como inferiores, promovendo uma visão hierarquizada do mundo e das pessoas.

Finalmente, depois de vários anos no Brasil, de uma maior imersão linguística, e de trabalhar profissionalmente tendo que usar a língua portuguesa e especificamente a comunicação oral como ferramenta, entendo que ela tem, pelo menos, duas dimensões: uma, associada à estrutura da língua, que delimita uma organização gramatical e estabelece padrões de escrita e de fala; e outra, associada aos sons da fala, à fonética. A compreensão da primeira, para mim, tem sido mais fácil, uma aproximação mais “tranquila”. Já quando se trata da segunda, a relação é mais conflitante. A musicalidade da língua e a pronunciação de alguns sons, sua produção e combinação, envolvem, eu acredito, uma dimensão antropológica, que assinala a influência que a cultura e a língua de origem podem ter na capacidade de aprendizado e de comunicação em uma língua estrangeira.

Essa dimensão que chamo de antropológica, permite entender, também, as origens e características dos erros associados à interferência linguística. Como consequência, sons que não existem no espanhol podem ser difíceis de pronunciar porque os padrões fonéticos são moldados pela língua materna. Para citar um exemplo: o som fechado ou aberto da vogal “o”, seria o caso do [ô] e o [ó], são difíceis de reproduzir (para mim) porque não existem no espanhol e porque em geral não consigo ouvi-los, ou seja, é difícil identificá-los e diferenciá-los no contato cotidiano com a língua portuguesa.

Entre os alunos/as para os quais ministro aulas, eu sou a professora que “fala diferente”, alguns não sabem exatamente de onde que eu sou, mas com certeza sabem que não sou brasileira. O meu sotaque se estabelece assim, nesse contexto, como o elemento-chave do processo de diferenciação identitária, adquirindo uma certa centralidade em relação ao conjunto das coisas que eu sou, a outras caraterísticas, competências profissionais ou funções que desempenho. Acho isso interessante aos fins da análise que desenvolvo para mostrar como efetivamente é relevante essa questão dentro do projeto assimilacionista brasileiro.

Em uma ocasião, um colega, também hispanofalante e professor, em conversa sobre as implicações sociais e subjetivas da imersão linguística, contou-me que um aluno, que sempre reclamava do modo em que o colega pronunciava seu nome, disse-lhe que ele tinha “problemas de dicção”. Neste caso, soma-se mais um elemento interessante à análise. O sentido produzido em relação às diferenças fonéticas e de dicção, produzidas pela diferença cultural, foi associado pelo aluno a uma ideia de “problema”. A ideia de problema tem a sua origem, por sua vez, num referente único e colonial de pronunciação adequada, que nega as identidades linguísticas migrantes.

Porém, com o tempo e a imersão cultural, fui aprendendo também que a questão do sotaque é muito mais complexa do que parece e pode estar associada a outros estereótipos e preconceitos. O Brasil, por ser um país de dimensões continentais, é também extremamente diverso culturalmente. O contato com pessoas com sotaques diferentes é comum, assim como é comum seu uso com fins classificatórios e de hierarquização. Assim, quando uma pessoa é identificada como gaúcha, carioca, nordestina, baiana ou manezinha, não é apenas uma identificação que remete à procedência geográfica, mas a coisas tão diversas quanto o caráter, as qualidades morais, a dedicação ao trabalho, as preferências e tradições gastronômicas, o vínculo com a natureza, com os animais e com o mar. Assim mesmo, ser classificada como “gringa” e mais do que isso, como “não-brasileira latino-americana”, “com sotaque do espanhol”, entra num sem-fim de tramas de significação, sendo importante considerar, assim como assinala Mignolo (2003______. Histórias locais - projetos globais: Colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003., p. 346), que, na maioria das vezes, “não é apenas a gramática da língua que está em jogo, mas a geopolítica da língua”. Desse modo, o que gera o “problema” não é apenas o sotaque em si, mas tudo ao que ele remete, como, por exemplo, a qual região do país, ou a qual país do mundo ou continente, esse sotaque está associado.

É importante observar, no entanto, que obviamente a xenofobia não se reduz ao confronto com o sujeito falante, aquele que cuja estrangeiridade aparece apenas através da fala. Reconheço a complexidade do tema e o quanto para algumas pessoas migrantes sua procedência nacional e a rejeição xenofóbica vem antes delas “abrirem a boca”, vinculada a questões como a raça/etnia e a estética associada, chegando junto com o sujeito, em graus variáveis, conforme o tom da sua pele, a textura do seu cabelo ou as roupas tradicionais que esteja usando associadas à sua identidade nacional, racial, étnica ou religiosa. Assim, é impossível pensar sobre xenofobia sem vinculá-la a outras formas de discriminação, dentre elas o racismo.

Atravessado pelo viés não apenas da geopolítica da língua mas também da raça, observa-se que o grau de acolhimento, de reconhecimento ou de validação do sotaque de uma pessoa cuja língua materna é o francês, pode ser bem diferente se a pessoa vem da Europa ou de um país empobrecido do Caribe e, portanto, se a pessoa é branca ou racializada, se tem recursos financeiros ou se é migrante em situação de extrema vulnerabilidade, e em função disso, o que se sente que pode estar “aportando” ou “tirando” do país de “acolhida”. De tal modo, as diferenças se transformam em valores, valores estes que são a base de uma escala social hierárquica de classificação e assimilação.

A língua como aspecto da colonialidade e o projeto assimilacionista no Brasil

Como muitos autores/as já têm refletido, a imposição da língua do colonizador foi, no contexto da colonização espanhola e portuguesa das Américas, uma das armas desse processo. O processo de doutrinamento cultural, religioso, moral e, portanto, de entrada desses sujeitos à chamada “civilização” foi, em grande parte, através da imposição da língua, pois ao serem forçados a falar a língua dos colonos, os nativos de Abya-Yala foram forçados a dominar seus códigos e os saberes que esses códigos comportavam.

Vale sublinhar que as línguas e as culturas dos povos originários no período pré-colonial eram bem variadas e não há registro de um termo único usado para se referir ao continente inteiro. Abya-Yala, por exemplo, é uma expressão usada na língua do povo Kuna, que ocupa parte do território de Panamá e da Colômbia, para se referir ao continente hoje conhecido como “América”, e significa “terra em plena maturidade”. É um termo utilizado no contexto da Perspectiva Decolonial para resgatar histórias, culturas e saberes pré-coloniais dos povos originários em oposição ao conceito eurocêntrico de “América”, que nega as raízes indígenas e coloca a região como resultado do “descobrimento” europeu (Porto-Gonçalves, 2009PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. Entre América e Abya Yala - Tensões de territorialidades. Desenvolvimento e Meio Ambiente, v. 20, p. 25-30, 2009.).

Em relação à imposição da língua do colonizador e seu uso com fins de doutrinamento cultural, religioso e moral, no texto “Gramática de la Lengua Castellana” publicado por Antonio de Nebrija em 1492 e dedicado à rainha Isabel I de Castela, temos um exemplo do exposto, no contexto da colonização espanhola das Américas. No texto o autor explicita (fragmento com a grafia da época):

El tercero provecho deste mi trabajo puede ser aquel que, cuando en Salamanca di la muestra de aquesta obra a Vuestra Real Majestad, i me pregunto que para que podía aprovechar, el mui reverendo padre Obispo de Avila me arrebato la respuesta, i respondiendo por mi dixo: que, después que Vuestra Alteza metiesse debaxo de su iugo muchos pueblos barbaros i naciones de peregrinas lenguas, i con el vencimiento aquellos ternian necessidad de recebir las leies quel vencedor pone al vencido, i con ellas nuestra lengua, entonces por esta mi Arte podrían venir en el conocimiento della, como agora nos otros deprendemos el arte dela gramática latina para deprender el latín. (Nebrija, 1946NEBRIJA, Antonio de. Gramática Castellana. Texto establecido sobre la ed. «princeps» de 1492 por Pascual Galindo Romeo y Luis Ortiz Muñoz. Madrid: Edición de la Junta del Centenario, 1946., p. 10-11)

Já especificamente no Brasil, e no contexto da colonização portuguesa, a situação não foi diferente. No “Diretório dos Índios”, promulgado em 1757 e originalmente intitulado “Diretório que se deve observar nas povoações dos índios do Pará e Maranhão, enquanto sua Majestade não mandar o contrário”, o Marquês de Pombal, com a pretensão de legislar sobre a vida dos povos originários nas colônias portuguesas, escrevia (Almeida, 1997ALMEIDA, Rita Heloisa de. O Diretório dos índios: um projeto de civilização no Brasil do século XVIII. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1997., p. 3, fragmento com a grafia da época):

Sempre foi maxima inalteravelmente praticada em todas as Naçoens, que consquistaraõ novos Dominios, introduzir logo nos Póvos conquistados o seu proprio idiôma, por ser indisputavel, que este he hum dos meios mais efficazes para desterrar dos Póvos rusticos a barbaridade dos seus antigos costumes; e ter mostrado a experiencia, que ao mesmo passo, que se intoduz nelles o uso da Lingua do Principe, que os conquistou, se lhes radîca tambem o affecto, a veneraçaõ, e a obediencia ao mesmo Principe.

Pouco tempo depois, em 1758, um novo Alvará ordenou a extensão dos mandados deste Diretório a todos os indígenas que habitavam o Brasil. No documento, entre outros aspectos, decretava-se a obrigatoriedade do uso e ensino da língua portuguesa, a “língua do Príncipe” que contribuiria para a “civilização dos índios”. Ainda quando a política indigenista pombalina foi aplicada de formas diferentes dependendo do contexto, a lei determinava que deveriam ser criadas em todos os aldeamentos, escolas diferenciadas para meninos e para meninas, e onde apesar de algumas diferenças no conteúdo ensinado, havia em comum a constante vigilância para que as crianças não falassem sua língua nativa. O Regimento era taxativo quanto a isso e previa castigos para quem falasse sua língua originária e perdão para quem os delatasse (Oliveira, Mesquita, 2019OLIVEIRA, Valéria Maria Santana; MESQUITA, Ilka Miglio de. O projeto assimilacionista português: o diretório pombalino sob um olhar decolonial. Roteiro, v. 44, n. 1, p. 1-18, 2019.). As pesquisadoras Oliveira e Mesquita (2019OLIVEIRA, Valéria Maria Santana; MESQUITA, Ilka Miglio de. O projeto assimilacionista português: o diretório pombalino sob um olhar decolonial. Roteiro, v. 44, n. 1, p. 1-18, 2019.) analisam também que, apesar desse projeto assimilacionista e da imposição da língua portuguesa, as crianças, na prática, não abandonavam a sua língua, mas tornavam-se bilíngues. E isto respondia a dois fatos: por um lado, as crianças chegavam às escolas com aproximadamente seis anos de idade, quando já falavam e se comunicavam em seu idioma tribal; e, por outro, respondia ao fato delas continuarem tendo contato com suas famílias, que na sua maioria não falavam o português.

É importante frisar que isto não foi assumido sem que houvesse também movimentos explícitos de resistência. Karasch (1998KARASCH, Mary. Catequese e cativeiro: Política indigenista em Goiás, 1780-1889. In: DA CUNHA, Manuela Carneiro (org.). História dos índios no Brasil. 2a. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 397-412.) analisa, por exemplo, como no território de Goiás o Diretório encontrou aversão entre alguns indígenas, que fugiam e atacavam o gado nas fazendas e as cidades mineradoras. Diante do qual, o governo autorizou guerras de conquista para combater os “índios hostis” e “não assimilados”. Conforme a autora citada “a assimilação supõe a mudança cultural de um povo supostamente inferior no sentido de adotar a cultura alegadamente superior de um poder colonial” (Karasch, 1998KARASCH, Mary. Catequese e cativeiro: Política indigenista em Goiás, 1780-1889. In: DA CUNHA, Manuela Carneiro (org.). História dos índios no Brasil. 2a. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 397-412., p. 401). O projeto assimilacionista brasileiro se estabelece assim como um projeto colonial, em que a língua, costumes, religião e cultura do colonizador teriam que ser sobrepostas com a finalidade de assimilar os povos originários. O que supõe a perda da autonomia étnica dos núcleos engajados, sua dominação e transfiguração (Freyre, 1977FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 22. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1977.; Ribeiro, 1995RIBEIRO, Darcy. O enigma do homem brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.).

Darcy Ribeiro (1995RIBEIRO, Darcy. O enigma do homem brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.) reconhece e argumenta como o processo civilizatório se valeu de várias ferramentas. No plano ideológico, relativo às formas de comunicação, ao saber, às crenças e à autoimagem étnica, a cultura das comunidades neobrasileiras baseou-se, entre outros elementos, na imposição da língua portuguesa, “que se difunde lentamente, século após século, até converter‐se no veículo único de comunicação das comunidades brasileiras entre si e delas com a metrópole” (Ribeiro, 1995RIBEIRO, Darcy. O enigma do homem brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 1995., p. 75).

Conforme refere Oliveira (2009OLIVEIRA, Gilvan Müller de. Plurilinguismo no Brasil: Repressão e resistência linguística. Synergies Brésil, v. 7, p. 19-26, 2009.), há mais de 500 anos, no momento da chegada dos portugueses ao Brasil, falava-se no país cerca de 1.078 línguas indígenas (autóctones) e, desse total, sobreviveram apenas umas 180 até o ano 2000. O Estado Português e depois da independência, o Estado Brasileiro, mantiveram, de uma ou outra forma, a política de impor o português como a única língua legítima, considerando-a “companheira do Império”, assim como aponta Fernando de Oliveira (2000)OLIVEIRA, Fernando de. A Gramática da Linguagem Portuguesa. Edição crítica, semidiplomática e anastática de TORRES, Amadeu; ASSUNÇÃO, Carlos (orgs.). Lisboa: Academia de Ciências de Lisboa, 2000. na Primeira Gramática da Língua Portuguesa.

Isto poderia parecer apenas história antiga, mas, em épocas mais recentes da história do Brasil, durante o período conhecido como Estado Novo (1937-1945), o presidente Getúlio Vargas promulgou um conjunto de medidas que restringiam o uso das línguas estrangeiras no país (línguas de imigração ou alóctones), através do processo conhecido como “nacionalização do ensino”. Em um primeiro momento foi proibido o ensino de línguas estrangeiras nas escolas, a publicação de livros, jornais e revistas em idiomas diferentes do português, dentre outras medidas. Em 1939, incluiu-se a proibição de falar idiomas estrangeiros em público ou privado, o que teve impactos significativos nas comunidades migrantes que viviam no Brasil naquela época e que tiveram suas línguas e culturas reprimidas (Oliveira, 2009OLIVEIRA, Gilvan Müller de. Plurilinguismo no Brasil: Repressão e resistência linguística. Synergies Brésil, v. 7, p. 19-26, 2009.).

Nesse contexto surge o conceito jurídico de “crime idiomático”, inventado pelo Estado Novo e como resultado do qual, entre 1941 e 1945, foram presas e torturadas pessoas simplesmente por falarem suas línguas maternas em público ou mesmo dentro das suas casas. Vale sublinhar que a chamada “escola da nacionalização” chegou a estimular as crianças a denunciarem os familiares que falassem suas línguas maternas em casa, criando sequelas psicológicas irreparáveis para essas pessoas (Oliveira, 2009OLIVEIRA, Gilvan Müller de. Plurilinguismo no Brasil: Repressão e resistência linguística. Synergies Brésil, v. 7, p. 19-26, 2009.). Conforme reconhece Oliveira (2009OLIVEIRA, Gilvan Müller de. Plurilinguismo no Brasil: Repressão e resistência linguística. Synergies Brésil, v. 7, p. 19-26, 2009., p. 25), no artigo Plurilinguismo no Brasil: Repressão e resistência linguística, “conceber uma identidade entre a “língua portuguesa” e a “nação brasileira” sempre foi uma forma de excluir importantes grupos étnicos e linguísticos da nacionalidade”.

Como parte desse projeto político de construir um país monolíngue, o estado de Santa Catarina, por exemplo, na gestão do governador Nereu Ramos, criou campos de concentração que chamou “áreas de confinamento”, destinadas a descendentes de alemães que perseveravam em falar sua língua. Um desses campos funcionou dentro do atual campus da Universidade Federal de Santa Catarina. Em 1942 as prisões aumentaram, e no município de Blumenau, para citar um exemplo, de 282 pessoas presas em 1941, passou-se em questão de um ano para 861 reclusos, dos quais 271 (31,5%) tinham sido presos por terem falado uma língua estrangeira (Oliveira, 2009OLIVEIRA, Gilvan Müller de. Plurilinguismo no Brasil: Repressão e resistência linguística. Synergies Brésil, v. 7, p. 19-26, 2009.).

A análise mostra a relação entre colonialidade e linguagem, sendo que a transição à língua do colonizador foi usada para definir o nível de humanidade de uma pessoa. Com base nessa lógica, usou-se com fins de classificação de raças superiores e inferiores3 3 Raimundo Nina Rodrigues, por exemplo, considerado um dos fundadores da antropologia brasileira, defendeu este tipo de classificação no seu livro “Os Africanos no Brasil” (2010). O livro foi escrito entre 1890 e 1905, e publicado após seu falecimento, em 1932. , e, posteriormente, estabeleceu-se como um braço do projeto assimilacionista da nação brasileira. Dito projeto vale-se, até hoje, da normalização, ou seja, da escolha de uma identidade como parâmetro, em relação à qual as outras identidades são avaliadas e hierarquizadas. Como afirma Silva (2014SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidade e diferença: A perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Editora Vozes, 2014., p. 83), nesse contexto “normalizar significa atribuir a uma identidade todas as características positivas possíveis, em relação às quais as outras identidades só podem ser avaliadas de forma negativa”. A miscigenação, neste sentido, não diz respeito a uma integração e convivência harmoniosa - como por vezes apresentou Gilberto Freyre (1977FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 22. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1977.) -, mas a uma ideia de integração baseada na imposição colonial, que nega algumas formas de ser, pensar, falar e vestir, e/ou as subordina. Não se trata, portanto, de um processo natural de hibridização cultural, mas da formação intencional de uma identidade nacional única, um projeto segregacionista que nega algumas expressões culturais e línguas, enquanto privilegia a do colonizador europeu.

Como parte do desdobramento desse projeto colonizador e assimilacionista, ainda no século XXI parecem persistir as práticas pedagógicas assimilacionistas. Kohatsu, Braga e Felippe (2022KOHATSU, Lineu Norio; BRAGA, Adriana de Carvalho Alves; FELIPPE, Irene Monteiro. Estudantes secundaristas de origem boliviana: relatos de experiências sobre línguas, culturas e identidades. REMHU: Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana, v. 30, n. 65, p. 185-202, 2022. Disponível em: Disponível em: https://doi.org/10.1590/1980-85852503880006512 . Acesso em: 01. 07. 2024.
https://doi.org/10.1590/1980-85852503880...
), em uma pesquisa com estudantes bolivianos e filhos de bolivianos realizada em uma escola pública de São Paulo entre 2018 e 2019, revelam que, na escola, frequentemente se desencoraja o uso da língua materna e se orienta os pais a falarem português em casa, com o argumento de que o contrário poderia dificultar a aprendizagem do português e, consequentemente, a integração dos alunos.

Contudo, é importante frisar que os impactos da colonialidade na língua não são apenas de classificação de línguas em superiores e inferiores e, portanto, de hierarquia linguística, mas de formas de expressividade hierarquizadas, e de superioridade e inferioridade ontológica. Conforme continuo a analisar, a hegemonia cultural e a imposição de uma suposta superioridade linguística têm sido mecanismos clássicos e históricos do processo colonial, que expressam a colonialidade do ser.

Conforme explica Mignolo (1995MIGNOLO, Walter. Decires fuera de lugar: Sujetos dicentes, roles sociales y formas de inscripción. Revista de crítica literaria latinoamericana, v. 21, n. 41, p. 9-31, 1995., 2004)______. Os esplendores e as misérias da ciência: Colonialidade, geopolítica do conhecimento e pluri-versalidade epistémica. In: SANTOS, Boaventura de Souza (ed.). Conhecimento prudente para uma vida decente: Um discurso sobre as “ciências” revisitado. São Paulo: Cortez Editora, 2004, p. 667-709., o conceito de colonialidade do ser ilustra as formas da violência ontológica e a subalternização. Através do conceito, o autor analisa como as pessoas são ensinadas a enxergar a si mesmas e aos outros através de estruturas discursivas que têm suas raízes na colonialidade. Isso inclui a imposição de padrões culturais considerados normativos e, como consequência, a rejeição de outras identidades culturais e a implementação de formas de opressão contra elas.

A colonialidade do ser, como conceito, surge como consequência das reflexões sobre a colonialidade do poder e suas implicações nas diferentes áreas da sociedade. Se a colonialidade do poder se refere à interrelação entre formas modernas de exploração e dominação, a colonialidade do ser confronta a experiência vivida da colonização e o seu impacto na linguagem, introduzindo o desafio de conectar os níveis existencial e histórico. Já a colonialidade do saber tem a ver com a função da epistemologia e a produção do conhecimento dentro de esquemas de pensamento coloniais (Maldonado-Torres, 2007MALDONADO-TORRES, Nelson. Sobre la colonialidad del ser: contribuciones al desarrollo de un concepto. In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramon (eds.). El giro decolonial: Reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores, Universidad Central, Instituto de Estudios Sociales Contemporáneos y Pontificia Universidad Javeriana, Instituto Pensar, 2007, p. 127-168.). Como analisa o autor citado, nas concepções europeias sobre a escrita não alfabetizada dos indígenas das Américas poderíamos encontrar várias ideias que associam essa constatação a sua falta de humanidade, mostrando o valor outorgado à linguagem na constituição do ser (Maldonado-Torres, 2007MALDONADO-TORRES, Nelson. Sobre la colonialidad del ser: contribuciones al desarrollo de un concepto. In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramon (eds.). El giro decolonial: Reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores, Universidad Central, Instituto de Estudios Sociales Contemporáneos y Pontificia Universidad Javeriana, Instituto Pensar, 2007, p. 127-168.).

Ou seja, nesse contexto de colonialidade do ser, não se trata apenas da importância concedida à linguagem no processo de constituição e reconhecimento do outro, mas à linguagem dentro dos cânones do reconhecido e aceito como válido. Em outras palavras: na lógica colonial, não basta ter uma linguagem mesmo que diferente, é essencial dominar a do colonizador para alcançar o status e o reconhecimento. Assim, a linguagem do colonizador é tida como o referente e a diferença é subalternizada. Finalmente temos que: a diferença ontológica colonial revela a presença da colonialidade do ser.

Como afirma Maldonado-Torres (2007MALDONADO-TORRES, Nelson. Sobre la colonialidad del ser: contribuciones al desarrollo de un concepto. In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramon (eds.). El giro decolonial: Reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores, Universidad Central, Instituto de Estudios Sociales Contemporáneos y Pontificia Universidad Javeriana, Instituto Pensar, 2007, p. 127-168., p. 147)

(…) la diferencia sub-ontológica o diferencia ontológica colonial se refiere a la colonialidad del ser en una forma similar a como la diferencia epistémica colonial se relaciona con la colonialidad del saber. La diferencia colonial, de forma general, es, entonces, el producto de la colonialidad del poder, del saber y del ser. La diferencia ontológica colonial es, más específicamente, el producto de la colonialidad del ser.

Como analisado, a partir da colonização das Américas se consolida um modelo classificatório da palavra e da sua verdade, ou seja, das formas de conhecer e de comunicar, ou como assinala Garcés (2007GARCÉS, Fernando. Las políticas del conocimiento y la colonialidad lingüística y epistémica. In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramon (eds.). El giro decolonial: Reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores, Universidad Central, Instituto de Estudios Sociales Contemporáneos y Pontificia Universidad Javeriana, Instituto Pensar, 2007, p. 217-242., p. 221)

(…) del saber y del decir, del conocer y su expresión. Lengua y conocimiento, entonces, quedaron marcados, hasta hoy, por dos características ineludibles desde las tramas del poder: un saber y unos idiomas eurocéntricos, y un saber y unos idiomas maquetados en una matriz colonial de valoración.

Sublinho, no entanto, que há norte no sul e que o eurocentrismo não pode ser identificado apenas com os processos de subalternização - no caso linguística e epistêmica - que vem do norte geográfico. Como analiso ao longo deste artigo, o eurocentrismo se expressa, também, através dos padrões classificatórios apreendidos, naturalizados e reproduzidos ao interno dos povos colonizados, como um efeito dos processos colonizatórios que determinaram a existência de uma “matriz colonial de valoração”. Dita matriz, no caso da língua, funciona como um centro interpretativo e referencial que vai conduzir, por sua vez, à existência de um linguocentrismo. Finalmente temos que a imposição de poder, em relação à ideia compulsória de um “falar bem” que ignora e deslegitima a interculturalidade, não só afeta as relações entre o migrante e a nova sociedade, mas também perpetua a colonialidade.

O não-pertencimento e o (des)acolhimento da identidade migrante como violência simbólica. A interculturalidade como resistência.

Com a reflexão anteriormente desenvolvida e a exposição de uma seleção de relatos da Latinoamérica colonizada e do Brasil contemporâneo, não pretendo determinar a existência de uma origem única para o problema da xenofobia e das formas de violência exercidas sobre o sujeito migrante e a diferença que ele encarna. Pretendo apenas refletir o quanto os processos históricos e as relações de poder moldam e constituem as estruturas sociais, as instituições e as formas de conhecimento que caracterizam a modernidade. Com isto pretendo mostrar, ao mesmo tempo, que tanto as relações de poder quanto o conhecimento e as normas sociais que resultam delas são historicamente contingentes e podem ser contestadas e transformadas. Afinal, como afirma o Fanon (1968FANON, Franz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968., p. 26)

A descolonização, sabemo-lo, é um processo histórico, isto é, não pode ser compreendida, não encontra a sua inteligibilidade, não se torna transparente para si mesma senão na exata medida em que se faz discernível o movimento historicizante que lhe dá forma e conteúdo.

Quando, na atualidade, um sotaque diferente ou forâneo gera um estranhamento, ou quando se deseja que esse sujeito aprenda a “falar bem” e perca o sotaque que o delata estrangeiro, há formas da violência que se mantêm vivas. O sujeito migrante continua a ser preso, não fisicamente, mas subjetiva e emocionalmente, a um padrão que pretende apagar a sua identidade.

Bell Hooks no texto “Pertencimento: uma cultura do lugar” analisa as origens das sensações de não-pertencimento relacionadas à construção de “identidades negras”. A autora inicia o livro explicitando que “a ideia de lugar - ao qual pertencemos - é um assunto recorrente para muitos de nós. Queremos saber se é possível viver em paz em algum lugar do mundo” (Hooks, 2022HOOKS, Bell. Pertencimento: Uma cultura do lugar. São Paulo: Editora Elefante, 2022., p. 1).

No texto, várias ideias são essenciais para a discussão que aqui desenvolvo, uma delas refere-se ao quanto as mais variadas formas de discriminação que uma pessoa pode sofrer estão na base desse sentimento de não-pertencimento, que é afetado por questões de raça, classe, gênero e por outras formas de opressão como a xenofobia. Ou seja, pessoas são marginalizadas e privadas do sentimento de pertencimento devido a estruturas sociais e sistemas de poder desiguais. Outra ideia que emerge da leitura do texto é em relação aos efeitos do sentimento de pertencimento, pois uma certa noção de cura parece estar associada à possibilidade de restaurarmos nossas conexões interrompidas na dimensão social, cultural e individual.

No contexto de discussão sobre pertencimento e cultura do lugar, o que se debate é a importância de criar e cultivar espaços e comunidades que promovam a conexão, a identidade e o senso de pertencimento para além de uma certa ideia de homogeneização. Entendendo que a possibilidade de pertencimento é um elemento central no processo de integração social do sujeito migrante e de produção de saúde mental no nível individual.

Assim, por exemplo, a compulsoriedade pelo domínio da língua, dentro dos padrões discutidos no tópico anterior representa, a meu ver, a reconquista simbólica ou a recolonização de um território, no caso, do sujeito-migrante. Mais uma vez, a língua é a arma usada para colonizar esse espaço-corpo-subjetividade e transformá-lo em pessoa “apta para” ou “adaptada a”. É interessante o quanto isto torna-se uma intervenção não só cultural, mas também estética: é lindo “falar bem”, quanto menor o sotaque maior a “passabilidade”. É neste sentido que a violência simbólica emerge associada a certas dinâmicas de inclusão-exclusão e de processos comunicacionais ao serviço da ética da depredação, visto que uns vão “servir” mais do que outros enquanto entrarem ou não resistirem a esse processo de ortopedia linguística.

Refiro-me aqui à ortopedia linguística, como aquele processo compulsório e colonial que pretende “moldar”, “consertar”, “recompor,” os sons da fala do sujeito migrante, adequando-os a certos padrões, e que pretende homogeneizar ou padronizar o sujeito e sua fala, e não necessariamente aumentar a sua capacidade comunicativa ou contribuir para esse processo. Essa ortopedia linguística é um processo de imposição estética e cultural e não de diálogo, de troca intercultural ou de integração através da imersão linguística. Ela acaba sendo uma forma de violência simbólica que se articula à chamada diferença colonial (Mignolo, 2003______. Histórias locais - projetos globais: Colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.), e que se caracteriza por transformar as diferenças em valores, permeando os processos da valoração e validação do outro.

Uma forma de resistir às tendências homogeneizadoras da colonialidade e de reimaginar as relações entre diferentes grupos culturais e linguísticos pode ser encontrada na proposta intercultural de Walsh (2007WALSH, Catherine. Interculturalidad y colonialidad del poder: un pensamiento y posicionamiento "otro" desde la diferencia colonial. In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramon (eds.). El giro decolonial: Reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores, Universidad Central, Instituto de Estudios Sociales Contemporáneos y Pontificia Universidad Javeriana, Instituto Pensar, 2007, p. 47-62.), que reconhece o potencial transformador da interculturalidade como uma resposta à colonialidade linguística e identitária. Conforme assinala a autora, a noção de Interculturalidade tem uma significação que vai além da simples interrelação, dos diálogos e/ou da mistura de saberes e práticas culturalmente diversas.

(…) la interculturalidad señala y significa procesos de construcción de un conocimiento otro, de una práctica política otra, de un poder social (y estatal) otro y de una sociedad otra; una forma otra de pensamiento relacionada con y contra la modernidad/colonialidad, y un paradigma otro que es pensado a través de la praxis política. (Walsh, 2007WALSH, Catherine. Interculturalidad y colonialidad del poder: un pensamiento y posicionamiento "otro" desde la diferencia colonial. In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramon (eds.). El giro decolonial: Reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores, Universidad Central, Instituto de Estudios Sociales Contemporáneos y Pontificia Universidad Javeriana, Instituto Pensar, 2007, p. 47-62., p. 47)

(…) interculturalidad representa una lógica, no simplemente un discurso, construido desde la particularidad de la diferencia. Una diferencia, en la terminología de Mignolo, que es colonial, que es la consecuencia de la pasada y presente subalternización de pueblos, lenguajes y conocimientos. (Walsh, 2007WALSH, Catherine. Interculturalidad y colonialidad del poder: un pensamiento y posicionamiento "otro" desde la diferencia colonial. In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramon (eds.). El giro decolonial: Reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores, Universidad Central, Instituto de Estudios Sociales Contemporáneos y Pontificia Universidad Javeriana, Instituto Pensar, 2007, p. 47-62., p. 51)

A interculturalidade representa, nesta perspectiva, um projeto social, cultural, político, ético e epistêmico direcionado à descolonização e à transformação, que deveria ser transversal, portanto, a qualquer projeto de integração.

Dita configuração conceitual torna-se uma alternativa por várias razões. A noção de interculturalidade tem suas origens em movimentos étnico-sociais; não se origina na academia e, portanto, não está associada de forma primária aos centros geopolíticos de produção de conhecimento do norte global e; em terceiro lugar, o conceito condensa um pensamento que não se baseia em legados coloniais eurocêntricos, nem nas perspectivas da modernidade (Walsh, 2007WALSH, Catherine. Interculturalidad y colonialidad del poder: un pensamiento y posicionamiento "otro" desde la diferencia colonial. In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramon (eds.). El giro decolonial: Reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores, Universidad Central, Instituto de Estudios Sociales Contemporáneos y Pontificia Universidad Javeriana, Instituto Pensar, 2007, p. 47-62.).

Nesta proposta de interculturalidade a diferença é valorizada e desejada, porque mais do que uma prática cotidiana é vista como uma contra-resposta (ética, epistêmica, social e política) aos padrões hegemônicos. Interculturalidade não faz referência apenas ao contato com ou ao conflito entre, interculturalidade é a resposta a; é a alternativa, a prática emancipatória, a política cultural. Esta perspectiva representa uma posição crítica aos modelos de Estado, Democracia e Nação que pretendem apagar a diversidade dos povos e nacionalidades, ou que, no melhor dos casos, procuram a sua hibridização sem mexer na estrutura social e política que sustenta a rejeição ou subalternização do diferente.

Considerações finais

Ao longo do artigo busquei refletir sobre como a identidade migrante e sua “fala com sotaque” nos interpela, qual o estranhamento que gera e por quê, qual a história desse incomodo socialmente herdado na sociedade brasileira, refletindo sobre seus efeitos colonizadores de corpos e subjetividades. Através da análise desenvolvida, discorri sobre o monolinguismo como um código colonial que nega uma realidade social marcada pela diversidade identitária e por suas formas de expressividade. A imposição compulsória da aprendizagem da língua, que desrespeita e invalida a diversidade de sotaques e os graduais níveis na aprendizagem da nova língua, produz uma situação colonial em que a expressividade e o diálogo são colonizados. A "fala com sotaque", portanto, deve ser entendida não como uma falha a ser corrigida, mas como uma expressão da diversidade linguística e cultural, um testemunho da resiliência e da capacidade de navegar entre múltiplas identidades. A interculturalidade é apresentada desta forma como uma alternativa de resistência às tendências homogeneizadoras e colonizadoras que ainda persistem.

Confesso que sinto um certo desconforto ao pensar que com estas ponderações estou “concluindo”. Espero que as reflexões aqui realizadas sejam o início para muitas outras reflexões e transformações estruturais. Almejo que estas inquietações e análises gerem mais perguntas e pautas para continuarmos a pensar, e muitos outros desconfortos e elaborações.

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  • 1
    Do Brasil, no caso do artigo. A expressão “você não é daqui” como afirmação e, mais frequentemente em forma de pergunta, é uma frase que faz parte do cotidiano de muitos migrantes que são (somos) intimados a confirmar constantemente a origem nacional não-brasileira.
  • 2
    Mantenho intencionalmente esta e todas as citações de artigos na língua original em que foram escritos, como parte do esforço teórico e prático em trazer para o texto a interculturalidade do contexto da pesquisa, que amparada numa perspectiva crítica latino-americana, significa positivamente a pluralidade cultural e linguística da região.
  • 3
    Raimundo Nina Rodrigues, por exemplo, considerado um dos fundadores da antropologia brasileira, defendeu este tipo de classificação no seu livro “Os Africanos no Brasil” (2010RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil [online]. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2010.). O livro foi escrito entre 1890 e 1905, e publicado após seu falecimento, em 1932.

Editores de seção

Roberto Marinucci, Barbara Marciano Marques

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    31 Mar 2024
  • Aceito
    06 Ago 2024
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