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(Im)propriedades da moeda

Currency (im)properties

RESUMO

Keynes assumiu a inelasticidade da oferta (ou inelasticidade da produção) com relação à demanda como um atributo necessário do dinheiro. Mas a teoria pós-keynesiana da moeda sugere que a função de oferta de moeda deve ser vista como horizontal, a um nível de taxas de juros estabelecido pelo banco central na definição do preço de oferta das reservas. As taxas de juros, e não a oferta de moeda, são a verdadeira variável de controle exógena do banco central. A oferta monetária é endógena, orientada para o crédito e determinada pela demanda. Este artigo examina porque a teoria posterior supera a teoria do dinheiro de Keynes.

PALAVRAS-CHAVE:
Emissão de moeda; pós-keynesianismo

ABSTRACT

Keynes assumed inelasticity of supply (or inelasticity of production) with respect to demand as a necessary attribute of money. But the post-Keynesian theory of money suggests that the money supply function should be viewed as horizontal, at a level of interest rates established by the central bank in setting the supply price of reserves. Interest rates rather than the money supply are the central bank’s true exogenous control variable. The money supply is endogenous, credit-driven and demand-determined. This paper examines why the later theory surpass Keynes’s theory of money.

KEYWORDS:
Money supply; post-Keynesianism

“O desemprego aumenta porque as pessoas querem a lua; os homens não podem conseguir emprego quando o objeto de seus desejos (isto é, o dinheiro) é uma coisa que não se produz e cuja demanda não pode ser facilmente contida. O único remédio consiste em persuadir o público de que a lua e queijo verde são praticamente a mesma coisa, e a fazer funcionar uma fábrica de queijo verde (isto é, um banco central) sob o controle do poder público”1 1 Keynes, J. M. (1936). Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda. São Paulo: Abril Cultural, 1983: p.164.

I. INTRODUÇÃO

Economistas ex-marxistas, que assumiram a posição teórica pós-keynesiana, não devem estar dispostos - esperamos - a novo “culto de personalidade”. Pós-tudo, o melhor é ex-tudo ...

Parodiando Bobbio2 2 Bobbio, Norberto. (1979). “Existe uma doutrina marxista do Estado?”. O Marxismo e o Estado. Rio de Janeiro: Graal, 1979: 13-31. , existem diversos keynesianismos, o que não é um escândalo, mas sim sinal de vitalidade. O “pós” é um bom sinal: deve-se desconfiar das teorias que não renascem sob esse sinal. Há, no entanto, um abuso do princípio de autoridade: considera-se como primeiro dever de um pós-keynesiano verificar o que disse Keynes. O fato de se continuar a ler e reler Keynes habitua a crer que uma boa leitura, aliás, uma leitura melhor (sob qual critério?) livra do cansaço de ter de pensar. Hoje não se pode ser um bom pós-keynesiano sendo apenas keynesiano.

Uma primeira consequência do abuso do princípio da autoridade é o embotamento do espírito crítico. Se uma coisa foi dita por Keynes, ou é extraída do que disse Keynes ou um seu intérprete autorizado, é tomada como certa; não se vai ao ponto de julgá-la e colocá-la dentro da realidade atual. A segunda consequência é, contrariamente, o excesso de espírito crítico. Já que Keynes sempre tem razão, os adversários ou simplesmente aqueles que fizeram afirmações que não coincidem com as dele e de seus intérpretes autorizados estão sempre errados. É um julgamento preconcebido, fundado unicamente sobre a menor ou maior distância de Keynes. A terceira consequência é o fenômeno que Bobbio chama de a descoberta do óbvio. Quem lê e relê sempre os mesmos livros acaba por sofrer um certo retardamento em perceber as mudanças. Quando as percebe, crê ter feito uma descoberta. Mas é a descoberta do óbvio, ou seja, é uma redescoberta de coisas que o heterodoxo conhecia de há muito e se pasmava de que os ortodoxos não as soubessem.

A teoria monetária pós-keynesiana deve ser vista como uma superação de Keynes, no sentido de que resgata suas explicações de como as forças financeiras (monetário-creditícias) se interrelacionam com as decisões de gasto - que afetam o produto e o emprego - e as decisões de fixar preços, mas passa além do que há de estático e de institucionalidade historicamente superada, em sua referência teórica. Mais que a preocupação com os princípios teóricos originais, com a volta a Keynes - para a crítica ao paradigma da síntese neoclássica-, o interessante dessa corrente é a reconstrução teórica a partir desses princípios “revisitados”, ou seja, a extensão da teoria de Keynes, com a postura de proposição, inclusive, de linhas de política monetária.

O objetivo deste ensaio está dentro do programa pós-keynesiano de trabalho: o contínuo exame de quais postulados teóricos são essenciais para explicar a dinâmica econômica - os impulsos das decisões e a propagação resultante. Vamos levantar a hipótese de que o postulado das propriedades da moeda é “negligenciável” na teoria monetária pós-keynesiana.

Examinemos este postulado. “Keynes propõe, na Teoria Geral, que numa economia monetária a moeda tem elasticidades negligenciáveis de produção e de substituição. Isso significa que a disponibilidade de moeda deve ser relativamente insensível à demanda e que suas funções não podem ser exercidas por substitutos. Desse modo, se a incerteza leva os agentes a decidir reter riqueza em forma monetária em vez de ativos reprodutíveis, o emprego que é perdido na produção destes últimos não é recuperável na produção de dinheiro. Em resultado, uma economia monetária em que é racional demandar ativos monetários como defesa contra as incertezas do futuro está sujeita a deficiências de demanda efetiva. É por causa dessas propriedades que emerge a possibilidade de desemprego involuntário.3 3 Carvalho, Fernando C. “A não-neutralidade da moeda em economias monetárias de produção: a moeda nos modelos pós-keynesianos”. Estudos Econômicos 21(1): 11-40. ’’

Qualifiquemos com precisão nosso argumento. Não queremos “rasgar” o capítulo 17 da Teoria Geral, tão caro à argumentação pós-keynesiana. Está nele a moeda como uma alternativa para outros ativos, afetando assim o processo de acumulação de capital. “Com isso, a teoria quantitativa, que relacionava fluxos de renda com estoques de moeda, é substituída por uma teoria de escolha de ativos, relacionando estoque de moeda com estoques de outras formas de riqueza (inclusive ativos de capital real, isto é, bens de investimento)”4 4 Ibid.: 17. . Mas Keynes “ainda rende homenagens à teoria quantitativa”, a nosso ver, desnecessárias, quando trata das propriedades essenciais do dinheiro.

A manutenção do postulado de a moeda ter uma baixa elasticidade de produção deve ser somente no sentido de que é insignificante a resposta do volume de mão-de-obra dedicado a produzi-la diante de um aumento na quantidade de trabalho que se pode obter com uma unidade da mesma. Em outras palavras, os empresários não podem aplicar à vontade trabalho para produzir moeda em quantidades crescentes à medida que seu valor sobe. A moeda é um ativo não reprodutível via emprego direto; especificamente a moeda creditícia é um ativo que surge de uma relação contábil com um passivo, ou seja, depende da interação débito-crédito entre bancos e seus clientes (induzidos pela expectativa de lucros), sob supervisão do banco central.

Essa moeda bancária, que é criada endogenamente pelas “forças do mercado”, distingue-se, sem dúvida, da moeda mercadoria criada através de relação de produção. No entanto, é ainda essa concepção de moeda - além da adoção de um modelo estático, com oferta monetária “dada” - que está por trás quando se afirma, como Keynes, que sua quantidade é fixada pela autoridade monetária e, por hipótese, é perfeitamente inelástica.

A inelasticidade da oferta da moeda no padrão-ouro, transposta artificialmente para a moeda inconvertível, vem a ser justamente a característica que é o ponto focal do problema. A essencialidade das elasticidades nulas (ou insignificantes) de produção e de substituição da moeda significa, segundo uma interpretação convencional - quantitativista -, que o ativo monetário não estaria a salvo de excessos de oferta ou de demanda que afetam os preços, assim como em outros ativos. Estaria então, como os outros, submetido ao princípio da escassez, que inclusive justificaria seu prêmio de liquidez.

A implicação seria a proposta de uma política monetária conservadora, na tradição da teoria da quantidade da moeda, que diz que a abundância desta provoca sua desvalorização. “O preço da preservação do atributo de liquidez, e com ele do sistema contratual sobre o qual se erige a atividade capitalista, é a necessidade de limitação do meio circulante é o desemprego, quando a demanda se volta para ativos monetários”.5 5 Ibid.: 31.

Há adoção da causalidade quantitativista moeda-preço, quando se relaciona a destruição do sistema contratual à abundância da moeda e, daí, à inflação. Inversamente, a necessária convenção de estabilidade dos preços, para manutenção do sistema de contratos monetários, depende do combate à inflação não via política monetária, mas sim no âmbito da formação dos preços pelos produtores. Quando estes permanecem estáveis, há confiança dos agentes na moeda enquanto unidade de conta. Preços sensíveis a “excesso de liquidez” - pressão de demanda no mercado - é visão da tradição ortodoxa; preços sensíveis à alta de juros -como custo ou como patamar de remuneração -, pelo contrário, está na tradição keynesiana.

A teoria monetária pós-keynesiana supera justamente, a concepção da oferta de moeda exógena, submetida a decisões arbitrárias da autoridade monetária, herança da Currency School. Recupera a tradição da Banking School, que vê variações no estoque de moeda definidas por decisões dos agentes econômicos estabelecidas em contratos. Dessa forma, deve rejeitar na obra de Keynes o que está ainda dentro da teoria quantitativista, como “o excesso de oferta monetária”, ou seja, que oferta e demanda de moeda são independentes. Em suas palavras (CWJMK, VI, p.201), “um banco central possui o poder incontrastável sobre o volume total de dinheiro bancário criado pelos bancos membros de seu sistema monetário”.

Essa teoria pós-keynesiana, portanto, deve negligenciar as “propriedades da moeda” que significam que a disponibilidade de moeda é relativamente insensível à demanda e que suas funções não podem ser exercidas por substitutos. Pelo contrário, de acordo com uma “lei de Say invertida” (a demanda cria sua própria oferta), defende que a moeda creditícia - a moeda contemporânea por excelência - é sensível à demanda. Além disso, algumas funções de dinheiro - especialmente, de reserva de valor e de unidade de conta - são exercidas, numa economia inflacionária, por substitutos da moeda (“quase-moedas” com custo e tempo de conversão desprezíveis e/ou “indexadores”). Com as inovações financeiras, o conceito relevante é de “liquidez geral”.

Para mostrar a teoria monetária pás-keynesiana como superação da de Keynes, vamos inicialmente discutir quais as diferenças teóricas, quando trata de moeda mercadoria, fiduciária ou creditícia. Em seguida, distinguir seus elementos principais, segundo o “consenso” de seus autores, e mostrar o “dissenso” a respeito do significado da endogeneidade da moeda. Finalmente, recuperaremos o recente debate entre duas concepções da endogeneidade da oferta monetária: a acomodativa, em que a função de apoio ou suporte da autoridade monetária ao sistema financeiro sobrepuja a função de controle monetário; e a estrutural, em que as relações bancos-clientes ultrapassam as limitações colocadas pela política monetária contracionista, a curto prazo (com estrutura financeira dada), pela alteração da velocidade-rendada circulação da moeda, e a longo prazo (com novas relações institucionais), por inovações financeiras.

2. DA ESCOLA BANCÁRIA À PÓS-KEYNESIANA

Um tema recorrente na evolução da teoria monetária é o debate relativo à causalidade entre variações na oferta de moeda e nos valores da atividade econômica: o que é causa e o que é efeito. A polêmica surge em meados do século XVIII, percorre o século passado através do confronto da Banking School com a Currency School, e desemboca no choque entre pós-keynesianos e o paradigma standard entre os economistas. Estes operam, correntemente, com a noção de conexão causal direta da moeda com os preços. Tratam o banco central como determinante da base monetária e, via multiplicador (que controla através da exigência de reservas compulsórias), do estoque de moeda. Esses fatores monetários determinam o nível geral dos preços, explicado, portanto, no mainstream, pela teoria monetária.

A análise convencional do mecanismo de transmissão dos efeitos monetários o caracteriza como direto, via pressão de demanda, e não indireto, como na tradição keynesiana, via taxa de juros. Através do movimento desta, os pós-keynesianos observam a influência dos fatores monetários nos fenômenos tradicionalmente identificados como “reais”: nível de produção, renda e emprego, variações distributivas, preços relativos. Mais relevante para esses economistas é resgatar a tradição do “Princípio Bancário” e destacar a influência do setor real no monetário, através da discussão do problema da endogeneidade da oferta da moeda.

Alguns autores pós-keynesianos (como Kaldor e Moore), entretanto, são ainda condescendentes com a concepção de oferta monetária exógena. “Este paradigma pode ter sido relevante num mundo com moeda mercadoria ou fiduciária, mas não é aplicável no mundo atual de moeda creditícia.6 6 Moore, Basil (1988a). Horizontalists and verticalists: the macroeconomics of credit money. Cambridge, Cambridge University Press, 1988: 3.

Por coerência na argumentação, inclusive na vigência do padrão-ouro, aliás como demonstraram largamente os defensores da Banking School, entre os quais Marx, a moeda deve ser vista como endógena. Sua entrada na economia responde às necessidades desta, para sancionar contratos já negociados, com preços e quantidades estabelecidos. Não há aumento dos gastos causados pela pseudo existência de “moeda não desejada”. A diferença entre o estoque de ouro ou prata e a quantidade de moeda que efetivamente circula - em função de preços, quantidades de bens e velocidade de circulação - é entesourada, para desembolsos diante de futuras necessidades.

Os “herdeiros” da Currency School admitem que a moeda contemporânea é regida pelas mesmas leis da moeda metálica. Os da Banking School, coerentemente, embora distinguindo as formas da moeda, não devem conceder, mas sim manter o princípio de que a entrada em circulação de moeda, seja lastreada, fiduciária ou contábil, é efeito de gastos com aumentos das transações e/ou dos preços. É inconcebível, temporalmente, o efeito inverso: circulação de moeda não necessária às decisões tomadas.

As diferenças fundamentais entre moedas mercadoria, fiduciária e creditícia não se referem à endogeneidade e/ou à interdependência de suas ofertas e demandas. A oferta de todas elas - a entrada em circulação ativa - é determinada pela demanda. Vimos no caso da moeda metálica que o “resíduo” é entesourado. No caso do papel moeda emitido, descontando-se o montante no cofre-forte do banco central e no encaixe dos bancos comerciais, o que está em poder do público não bancário circula ativamente somente quando é demandado por motivo transacional. O governo faz parte desse “público”: a emissão primária não é “gratuita” (irracional), responde a cumprimento de contratos estabelecidos, via licitações, concursos públicos, dívidas aprovadas etc., enfim, decisões tomadas de fixar (ou aceitar) preços antes da entrada da moeda para sancioná-las. Finalmente, a noção de curva de oferta independente da de demanda não é aplicável a uma economia monetária creditícia. Para a criação dessa moeda bancária é necessária uma relação contábil entre bancos e clientes; se não há demanda de crédito, não há oferta efetiva. Um “excesso” de oferta de moeda bancária pode ser reduzido simplesmente através do reembolso ao banco credor.

Essa moeda creditícia é específica sob outros aspectos. Não é como as moedas mercadorias, produzidas com utilização de recursos reais sob relações de produção. Sua “produção” depende de relações contábeis. É criada quando o sistema bancário adquire ativos e registra seu próprio passivo monetário em troca. Esse processo contábil de multiplicação de “moeda invisível” (pelo fato de não ter existência física) é chamado de monetização do débito. É uma moeda escritural, por corresponder a débito e a crédito, registrados nas contas correntes dos bancos e nos balanços de seus clientes.

No caso dessa moeda integralmente desmaterializada, cuja oferta responde endogenamente a mudanças na demanda de crédito bancário, a condição de que não se pode produzi-la diretamente, empregando mão-de-obra, à medida que sua demanda se eleva - elasticidade de produção, nesse sentido, nula -, satisfaz-se estritamente. Mas Keynes salienta: “( ... ) no caso, porém, de uma moeda de padrão-ouro também ainda sucede, de maneira aproximada, no sentido de que o máximo da quantidade de trabalho suplementar suscetível de ser empregado dessa forma é proporcionalmente muito pequeno, salvo, naturalmente, num país em que a mineração de ouro seja a indústria principal7 7 Op. cit: 162. .

O que deve ser frisado é que, diferentemente de Keynes, uma corrente dos pós-keynesianos salienta que a oferta de moeda creditícia é endógena também no sentido de não estar submetida a controle direto - sem mediação da taxa de juros, que atinge sua demanda - por parte da autoridade monetária.

O SIGNIFICADO DA ENDOGENEIDADE NA TEORIA MONETÁRIA PÓS-KEYNESIANA

Arestis mostra que a moeda pode ser introduzida num sistema dinâmico de três maneiras.8 8 Arestis, Philip (1988). “Post-keynesian theory of money, credit and finance”. Post-Keynesian Monetary Economics. Inglaterra: Edward Elgar: 42-44. A primeira é devido ao processo de produção levar tempo para se expandir, necessitando empréstimo de capital de giro até que ocorra sua realização. Embora o crédito “produtivo” seja o caso normal, há possibilidade de os bancos alocarem crédito “não-produtivo”, por exemplo, para especulação. Isso, junto com a incapacidade das firmas de saldar os débitos, quando os bancos as incentivam a aventuras arriscadas sem sucesso na rentabilidade esperada, constitui base de crise financeira. A instabilidade financeira é inerente na livre operação de um sistema financeiro.

Um segundo caminho que possibilita a entrada de moeda no sistema é via operações de open market com títulos da dívida pública, iniciadas pela autoridade monetária. Nesse sentido, a moeda é tratada pela teoria de portfólio como um ativo dos agentes econômicos alternativo a outros ativos financeiros. Autoridades monetárias são capazes de elevar a oferta monetária somente de maneira indireta, através de política de juros - recomprando títulos a juros acima dos esperados-, quando os aplicadores aceitam moeda extra injetada no sistema, em troca do ganho de capital. Por outro lado, não são capazes de reduzir a oferta monetária de maneira direta, por sua própria iniciativa. Dependem de que, em períodos recessivos e/ou inflacionários, com elevadas taxas de juros, os agentes econômicos se coloquem favoráveis à “destruição” de moeda, buscando resgate de empréstimos ou aplicações em ativos financeiros não monetários. Em suma, o banco central apenas pode decidir - exogenamente - pagar acima ou abaixo da taxa de juros do mercado, independentemente do volume de moeda em circulação.

O terceiro meio de entrada de moeda na economia é através de fluxos externos, que podem ser responsáveis pela criação ou destruição de moeda numa economia aberta. Em termos gerais, um balanço de pagamentos superavitário aumenta a criação de moeda e um deficitário a destrói. Movimentos de capital também provocam efeitos similares. Mas nem todas as transações externas provocam um impacto monetário definitivo. O critério crucial é se o governo adquire ou oferece moeda nacional no processo. Depende do saldo líquido entre as compras de moedas estrangeiras de exportadores e/ou tomadores de empréstimos externos e as vendas de cambiais aos importadores e para resgate de dívida externa. Todo o estoque de moeda estrangeira necessita ser convertido, num primeiro momento, em moeda nacional. Inversamente, se o país perde reservas cambiais internacionais, a base monetária se contrai.

Para os que acham que a moeda é creditícia e endogenamente determinada, essas duas últimas formas de entrada de moeda na economia não têm efeito direto na criação monetária, à medida que podem ser facilmente compensadas por uma equivalente redução no crédito dos bancos comerciais, provocada por ações dos agentes econômicos privados. O que é claro é que o governo não é capaz de criar ou destruir moeda isolado e diretamente.

Moeda, na visão pós-keynesiana, é um produto do sistema que resultadas relações de comportamento endógeno caracterizadas por necessidades de financiamento das firmas, famílias e governo e por decisões de portfólio das instituições financeiras e dos investidores no mercado financeiro. O comportamento do sistema monetário-creditício é resultado da interação entre as instituições financeiras e o público não bancário, sob supervisão das autoridades monetárias.

Segundo Arestis, há quatro aspectos de “consenso” entre as visões do pensamento pós-keynesiano sobre moeda, crédito e financiamento.9 9 lbid.: 63-66. O primeiro aspecto refere-se à visão de que moeda é derivada do crédito e determinada pela demanda. Então a moeda não se expande como resultado de intervenção de autoridade monetária. Ela é criada como um produto dos empréstimos providenciados pelo sistema bancário. A moeda creditícia é um requerimento do sistema econômico, o que aponta para a endogeneidade de seu estoque.

O segundo aspecto do “consenso” consiste em que os bancos comerciais nunca podem ser constrangidos em termos de suas reservas. Eles decidem a que taxa de juros estão dispostos a emprestar determinado montante, tendo garantias patrimoniais e de diferencial (spread) em relação às taxas de captação, e preocupam-se depois com suas posições de liquidez. Em última instância, é inevitável para o banco central providenciar as reservas requeridas, mesmo que seja a uma taxa de redesconto “punitiva” (acima do mercado). O acréscimo do custo/empréstimo de liquidez para os bancos é repassado para os clientes desde que estes possuam expectativas de conseguir repassá-lo para seus preços. O processo se desenrola de acordo com o grau de fragilidade financeira (prudência no endividamento indicada pela relação juros/preços ou pelo custo do serviço da dívida/rendimento esperado) dos agentes, até a reversão. Então a oferta monetária é endógena ao nível da taxa de juros fixada pela autoridade monetária.

Os pós-keynesianos concordam que o banco central não pode controlar diretamente o estoque de moeda, que é determinado previamente por decisões tomadas de demanda de crédito, atendidas pelos bancos. Não tem muito sentido controlar um agregado que é mais consequência que causa. Da mesma forma, não tem sentido falar em “excesso de oferta de moeda”, na medida em que este tal “excesso” pode ser extinto como resultado de pagamento dos débitos bancários. O argumento explica por que, para os pós-keynesianos, os déficits governamentais ou os balanços de pagamentos favoráveis não têm efeitos diretos duradouros sobre a criação da moeda.

O terceiro elemento de “consenso” relaciona-se às inovações financeiras, especialmente ao aspecto de “administração de passivo”. Tais inovações afetam a endogeneidade da oferta monetária de duas maneiras: primeiro, os bancos tornam-se mais capazes de acomodar variações na demanda por crédito com uso menos frequente das reservas propiciadas pelo banco central, que os “pune” com o custo e a fiscalização. Segundo, o processo de inovações financeiras aumenta as dificuldades encontradas pelas autoridades monetárias para monitorar a criação endógena de “moedas” nos mercados financeiros, impondo controle de reservas sobre “quase-moedas” não submetidas a depósitos compulsórios.

O quarto “consenso” refere-se ao controle da taxa de juros. Os pós-keynesianos acreditam que a taxa de juros pode ser controlada pelo banco central, por meio de ajustamentos na taxa de redesconto ou da taxa de intervenção no mercado aberto. As taxas de juros internacionais e a taxa de câmbio, que afetam o nível de reservas em moeda estrangeira, são importantes referenciais a levar em consideração quando se decide ajustar a taxa de redesconto e/ou a taxa do open market para afetar as taxas de juros de mercado. A autoridade monetária pode decidir pagar (ou cobrar) acima ou abaixo do mercado, sendo essa decisão crucial à medida que, partindo do maior participante do mercado, muda o contexto macroeconômico de maneira irreversível.

Mesmo entre os pós-keynesianos, no entanto, não existe pleno “consenso” a respeito do significado da endogeneidade, no contexto de uma estrutura teórica e na própria investigação da realidade empírica. Como em muitas controvérsias teóricas, os termos são usados em diferentes sentidos pelos diversos participantes, baseados em suas referências teóricas. Dow preocupa-se em precisar o conceito de endogeneidade da moeda10 10 Dow, Sheila C. (1988). “Money supply endogeneity”. Économie Appliquée. Tome XLI, n.1, 1988: 19-39. .

É comum encontrar, dentro de uma estrutura teórica, a variável explicada pela teoria classificada como endógena e a não explicada como exógena. Daí se extrai um sentido de causalidade: variável exógena causa mudanças nas variáveis endógenas. A conclusão de Dow é de que, num determinado quadro teórico, endogeneidade e exogeneidade são objetos de definição. Assim, a discussão sobre endogeneidade é conduzida ao nível abstrato dos modos de construção teórica.

Uma mesma variável pode ser exógena por uma série de argumentos, mas endógena por outra, e não há como dirimir a questão, pois se trata, por exemplo, de confronto de análise formal determinística com método histórico institucional. E cada qual opta pelo seu.

Quando se define como exógeno o elemento que é determinado independentemente, e se analisa um sistema em que tudo está interconectado, é extremamente difícil pesquisar a causa fundamental. Passa a ser uma questão de julgamento subjetivo do analista onde se deve traçar a demarcação.

É o caso do seguinte argumento monetarista, sujeito à circularidade. Ao postular a oferta de moeda como variável exógena e confrontá-la com a estabilidade empírica da demanda por dinheiro em relação ao nível da renda nominal, conclui-se tautologicamente que oferta e demanda de dinheiro são independentes. A causalidade expansão monetária-inflação é então imposta (pelo “efeito saldo real”), a partir da premissa teórica, sobre dados que são correlacionados. O argumento a favor do postulado da oferta da moeda como variável exógena está sob premissa de que ela pode ser controlada diretamente por autoridade monetária: justamente o que se tem de comprovar teórica e empiricamente.

Para os pós-keynesianos, pelo contrário, a causa fundamental do crescimento monetário é a decisão do gasto (e de sancionamento dos preços), induzida pela perspectiva de lucro. Esse plano, para se efetivar, normalmente implica uma demanda de crédito que, em geral, é sancionada pelos bancos, seja pela capacidade de inovações financeiras, seja pelas facilidades encontradas de “empréstimos em última instância” do banco central. A endogeneidade da oferta monetária refere-se, nesta última versão, a uma atitude política das autoridades monetárias, para evitar o desemprego e/ou a quebra de empresas. Dow chama a esta “ uma endogeneidade determinada exogenamente”, se o comportamento do setor público é definido como exógeno. Um paradoxo emerge da externalidade do papel da autoridade monetária na provisão de crédito, isto é, do fato dessa exogeneidade - relacionada com a boa vontade (disposição) em tolerar a provisão do crédito - ser endógena, respondendo à demanda.

A capacidade da autoridade monetária de exercer influência sobre o mercado financeiro define a exogeneidade em função do grau de independência do setor público em relação ao privado. Sob a ótica quantitativista, o controle da base monetária é crucial. Supõe a possibilidade de controle sobre o papel-moeda emitido e as reservas bancárias. Para os anti-quantitativistas, o processo de oferta monetária é endógeno, no sentido de que é sensível à demanda. particularmente se a definição de oferta de moeda compreende a emergência de novos instrumentos financeiros. Através dessas “quase-moedas”, os bancos manipulam seus passivos de forma tal que diminuem os depósitos sujeitos à reserva compulsória, aumentando suas “reservas emprestáveis”.

A capacidade de controlar a oferta de moeda, em qualquer caso histórico, tem se mostrado limitada. Porque, entre outros motivos, a capacidade do governo de regular o funcionamento do sistema financeiro exige comportamento prudente e facilidades de emprestador em última instância, indo de encontro à escassez temporária de liquidez das instituições financeiras.

Na realidade, o banco central influencia o mercado financeiro, assim como qualquer outro grande participante, mas o elemento de exogeneidade reside em sua possibilidade de influenciar a taxa de juros. Em outras palavras, o essencial para definir exogeneidade é se existe taxa de juros suficientemente alta para desencorajar demanda de crédito.

Dow chama a atenção para o fato de que o aspecto exógeno da provisão de crédito, na realidade, é a experiência passada do comportamento das instituições financeiras: combinação do comportamento vigente no passado e percepções correntes sobre ele. Há, portanto, dificuldades em compatibilizar a endogeneidade com o tratamento de Keynes para a oferta de moeda como “dada”. Somente o passado irreversível pode contar para qualquer exogeneidade na realidade entendida em termos de tempo histórico (diferentemente de um modelo formal estático no qual o “passado” inclui variáveis predeterminadas que não são exógenas). Dow conclui que, se nenhum elemento do passado é endógeno no modelo de Keynes, então a endogeneidade como tal não pode ser equacionada senão como insignificância econômica.

Claramente se requer mais investigação para o tipo de endogeneidade envolvida. Dow exemplifica: “( ... ) quando se conclui que fornecedores de moeda externa inspiram confiança fazendo suas provisões endógenas, é um tipo particular de endogeneidade que se tem em mente: o crescimento da oferta monetária alinha-se com as necessidades das decisões de produção, de tal maneira que o uso de moeda com propósitos especulativos desestabilizantes é rejeitado. Oferta de moeda ilimitada, independente das condições econômicas, como uma noção de endogeneidade alternativa, claramente não inspiraria confiança; o ativo monetário não poderia ser por muito tempo uma reserva de valor aceitável. Parcialmente por essa razão Keynes assumiu inelasticidade de oferta com relação à demanda. (Foi inelasticidade da produção com relação à demanda que ele explicitamente especificou como um necessário atributo da moeda. V. Keynes, 1936, cap.17. Mas usou as duas noções intercambiavelmente)”.11 11 Ibid.: 31-2 (grifos meus).

Para que tal atributo de inelasticidade tenha sentido, num mundo com sofisticação financeira crescente, deve ser visto como um conceito relativo - relativo a outros ativos. Também Dow aponta que a forma da endogeneidade que a oferta de moeda toma, particularmente influenciada pelo setor privado, não é sempre tal a gerar elasticidade socialmente ótima.

4. CONTROVÉRSIA ENDÓGENA AO PÓS-KEYNESIANISMO

Pollin defende que há, atualmente, duas distintas teorias da endogeneidade da oferta da moeda na tradição pós-keynesiana12 12 Pollin, Robert (1991). “Two theories of money supply endogeneity: some empirical evidence”, Journal of Post Keynesian Economics 13(3), Primavera, 1991: 367. . Ambas as abordagens aceitam que, no mundo real, os bancos expandem o crédito, criando depósitos no processo, e posteriormente captam as reservas. A questão que as divide é: como e onde os bancos obtêm as reservas adicionais necessárias?

Uma perspectiva argumenta que, quando os bancos dispõem de reservas insuficientes, os bancos centrais devem necessariamente acomodar suas necessidades. Podem escolher os meios pelos quais acomodam: por aumento da disponibilidade de reservas não-emprestáveis, através de operações de open market expansionistas, ou forçando os bancos a obter reservas emprestáveis através do redesconto. Tal decisão afeta o custo dos bancos na obtenção de reservas necessárias. Mas, porque os bancos centrais são obrigados a acomodar a demanda de reservas na “assistência financeira de liquidez”, não existe nenhuma restrição quantitativa efetiva em relação às necessidades de reservas dos bancos. Pollin se refere a essa abordagem como uma teoria da endogeneidade da oferta monetária acomodativa. Seus principais proponentes são Nicholas Kaldor, Sidney Weintraub e Basil Moore13 13 Para uma resenha de suas posições, v. Costa, Fernando N. (1991). “Moeda endógena, taxa de juros exógena”. Ensaios de Economia Monetária. São Paulo: Bienal. .

De acordo com a outra perspectiva, o banco central esforça-se por controlar o crescimento das reservas não emprestáveis através do open market, de modo a exercer restrições quantitativas significativas sobre a disponibilidade das reservas. Empréstimos de liquidez, nessa visão, não são um substituto perfeito para operações de open market. Entretanto ela destaca que, quando os bancos centrais optam por restringir o crescimento das reservas compulsórias, então reservas adicionais, embora não necessariamente constituindo uma oferta plenamente adequada, são geradas pela própria estrutura financeira, por meio de práticas inovadoras de administração de passivos, como tomada de empréstimos no mercado interbancário, de eurodólares e captação via certificados de depósitos bancários, não sujeita a controle de reservas. Pollin refere-se à segunda abordagem pós-keynesiana como uma teoria da endogeneidade estrutural. Além de sua própria simpatia, esta corrente conta com a colaboração de Hyman Minsky e Stephen Rousseas.

Em busca de evidências empíricas, Pollin acha suporte mais consistente para os “estruturalistas” que para os “acomodacionistas”. A partir desse resultado, conclui que “a análise monetária pós-keynesiana se beneficiaria através do abandono das noções de que reservas emprestáveis e não emprestáveis são perfeitas substitutas; que restrições quantitativas são praticamente inexistentes; e que o banco central administra exogenamente taxas de juros. Tais posições conduzem a uma estrutura demasiadamente rígida para a análise monetária, que é inconsistente com a crescente complexidade do comportamento do mercado financeiro”.14 14 Pollin (1991: 393).

Comentando a posição de Pollin, Palley sumaria a posição acomodacionista.15 15 Palley, Thomas I. (1991). “The endogenous money: consensus and disagreement”. Journal of Post Keynesian Economics 13(3), Primavera, 1991: 398. O custo dos fundos de curto prazo é fixado pelo banco central. Os bancos então fixam os preços via markup, fazendo empréstimos que carregam um markup fixo sobre o custo dos fundos. A curva de oferta de crédito é horizontal, e o nível do empréstimo bancário é determinado pelo nível da demanda por crédito. Além dessa proposição, há uma suplementar de que o banco central deve acomodar as crescentes necessidades de reservas por aumento dos empréstimos de liquidez ou assumir o risco ameaçador de ruptura da integridade da estrutura financeira.

Por contraste, a posição estruturalista mantém que a curva de oferta agregada de crédito é positivamente inclinada e o volume e os termos do empréstimo bancário refletem considerações tanto sobre a oferta quanto sobre a demanda. A forma dessa curva de oferta é influenciada de modo importante por políticas do banco central. Entretanto, há um extraordinário elemento de interdependência entre demanda e oferta de crédito, no qual o empréstimo bancário é substancialmente autofinanciado no agregado. Isto é, os bancos fazem empréstimos que então retornam ao sistema bancário como depósitos e sob o ponto de vista do sistema bancário, a única necessidade de financiamento é de reservas necessárias para suportar os novos depósitos.

Em princípio, há três fontes de fundos: empréstimos de liquidez junto ao banco central, empréstimos no mercado interbancário, e atração de fundos adicionais do público não bancário. Para os estruturalistas, a hipótese crítica consiste em que o custo marginal para cada fonte de fundos é crescente. A implicação é que o sistema bancário deve pagar mais no fim para obter fundos adicionais, o que torna a curva de oferta agregada de crédito positivamente inclinada. Taxas de juros de mercado não são estritamente governadas por intervenção do banco central. São plurais e determinadas por uma complexa fixação através da interação entre o banco central e o mercado financeiro.

A posição própria de Palley é eclética. Em condições normais, onde as mudanças na demanda de crédito são diminutas, a proposição acomodacionista é patentemente falsa: o banco central pode e se recusa a acomodar plenamente acréscimos na demanda por reservas. Por outro lado, podem existir condições “anormais”, nas quais a escassez de liquidez é tão severa que o banco central deve acomodar ou se arrisca a pôr em perigo o sistema financeiro. Isso remete à questão a respeito do que define condições “anormais”. Na verdade, este autor tem dúvida a respeito de ser possível distinguir conclusivamente entre as duas posições numa observação rigorosa de problemas equivalentes.

Um observador casual da controvérsia, como diz Moore16 16 Moore, Basil (1991). “Money supply endogeneity: ‘reserve price setting’ or ‘reserve quantity setting’?”. Journal of Post Keynesian Economics 13(3), primavera, 1991: 405. , pode acreditar que seja realmente uma “tempestade em copo d’água”, uma disputa escolástica fratricida sobre pontos não substantivos de discordância. Há um elemento de verdade nessa inocente percepção. A discordância entre as duas visões não se dá num sentido profundo.

uma questão substantiva em jogo: refere-se à autonomia e à elasticidade dos juros da função de oferta da moeda creditícia. Se o banco central somente fixa o preço de oferta, mas não a oferta quantitativa de reservas, tanto a base monetária quanto a oferta de meios de pagamentos são endógenas. A função de oferta da moeda creditícia é então horizontal no período de mercado, isto é, perfeitamente elástica quanto aos juros, a uma taxa de juros exogenamente administrada pelo banco central. Mas se os bancos centrais podem e exercem controle quantitativo sobre as reservas, a função de oferta da moeda creditícia deve ser visualizada como inclinada para cima, no curto prazo, isto é, menos que perfeitamente elástica aos juros. As taxas de juros crescem, continuamente ou descontinuamente, em resposta a um aumento na demanda por crédito, e a “crowding out” pode ocorrer.

Segundo Moore, “fixação de preço de reserva” e “fixação de quantidade de reserva” são caracterizações mais acuradas das duas posições que “acomodativa” e “estrutural”, exceto no caso de alguns estruturalistas (por exemplo, Minsky), que argumentariam que os bancos centrais carecem do poder de fixar seja preços seja quantidades independentemente das forças de mercado.

A seguinte observação é fundamental para entender a posição de Moore. “Uma oferta de moeda endógena é algumas vezes interpretada como implicando que bancos centrais são passivos e não podem afetar o comportamento do crescimento monetário. Esta é claramente uma má percepção. Uma oferta de moeda endógena simplesmente destaca que a oferta monetária é determinada por forças de mercado. Bancos centrais são capazes de administrar o nível das taxas de juros de curto prazo exogenamente com uma substancial amplitude. Isso obviamente afeta a quantidade de crédito e moeda demandada, e então o comportamento do crescimento monetário”17 17 Moore, Basil (1988b). “The endogenous money supply”, Journal of Post Keynesian Economics. Primavera, 1988, vol.X, n2 3: 384 (grifo meu). .

A essência do argumento de Moore é simplesmente de que os efeitos na variação da disponibilidade de reservas são sentidos como uma mudança na taxa de juros básica, fixada pelo banco central. Isso então influencia o nível das taxas por atacado, taxas de empréstimos bancários, o comportamento do crédito bancário e a oferta monetária. O significado da endogeneidade monetária não é no sentido de que bancos centrais são impotentes ou passivos, ou devem necessariamente acomodar, mas, mais exatamente que simplesmente, seu instrumento de controle é o preço e não a quantidade.

5. CONCLUSÕES

A macroeconomia keynesiana peca pela (im)propriedade da moeda. Nenhuma exegese da obra de Keynes consegue convencer sobre a razão pela qual assume a simplificação de que o estoque da moeda é exogenamente determinado pela autoridade monetária. Seu argumento de que um dos atributos da moeda é a negligenciável elasticidade de produção é correto no que se refere ao fato de que o trabalho não pode ser diretamente empregado na produção do ativo monetário, em resposta ao crescimento de seu preço. Mas é incorreto daí derivar - como faz o próprio Keynes - a inelasticidade da oferta da moeda em relação à demanda. Igualmente, num mundo de inovações financeiras, com surgimento de substitutos próximos sob a forma de “quase-moeda”, é negligenciável a propriedade de inelasticidade de substituição da moeda.

Os pós-keynesianos ortodoxos argumentam que a oferta de moeda é “dada” porque: (i) a moeda não é reprodutível; (ii) o modelo de Keynes é estático; (iii) o passado histórico é irreversível na predeterminação dessa “variável”; (iv) a exogeneidade deriva da não-explicação da oferta monetária dentro do modelo teórico. Sua explicação passa a ser “política”: a capacidade de resistência das autoridades monetárias às pressões para “acomodar” o acréscimo da demanda de moeda.

Discordamos também dos pós-keynesianos que distinguem a teoria da endogeneidade da moeda de maneira excludente entre moeda mercadoria, fiduciária e creditícia. Moore, por exemplo, argumenta que “muito da teoria macroeconômica do mainstream é apropriada para um mundo de moeda mercadoria ou fiduciária mais que para um mundo de moeda creditícia.18 18 Moore (1988a: IX). De maneira mais radical (mas não sectária ou intolerante), achamos que, por coerência na argumentação, essa teoria da endogeneidade é válida também para a interpretação do período histórico do “padrão-ouro”.

Essa discussão dos economistas em relação à “quantidade de moeda” e seu papel na economia como causa ou efeito, como independente ou interdependente, enfim, como exógena ou endógena, resvala, muitas vezes, num problema de ordem semântica. Os debatedores frequentemente utilizam os mesmos termos para se referir a questões diferentes.

Davidson tenta colocar os conceitos numa ordem semântica. “Uma oferta de moeda exógena pode ser sempre identificada como um fator causal se é definida como uma oferta de moeda perfeitamente inelástica e quando varia independentemente da função demanda da moeda. Uma oferta de moeda pode ser identificada como endógena quando é efeito e está associada tanto a uma função oferta de moeda menos que perfeitamente inelástica à taxa de juros quanto à interdependência nas variações da função da demanda da moeda.19 19 Davidson, Paul. (1988). “Endogenous money, lhe production process, and inflation analysis”. Économie Appliquée XLl (l), 1988: 163.

A teoria monetária pós-keynesiana também padece de um certo desperdício de energia intelectual na controvérsia entre os vários caminhos abertos pelo pluralismo teórico.

A corrente da endogeneidade da moeda acomodativa sugere que a função oferta de moeda deve ser vista como horizontal, no nível da taxa de juros estabelecida pelo banco central, fixando o preço de oferta das reservas. Taxa de juros, mais do que oferta monetária, é a verdadeira variável controlada exogenamente pelo banco central. A oferta de moeda é endógena, derivada do crédito e determinada pela demanda.

Tal visão acomodacionista (ou de fixação do preço das reservas), a função oferta de moeda com base institucional é interdependente da demanda se o banco central permite, através da taxa de juros, que haja uma resposta endógena da oferta da moeda (uma curva menos que perfeitamente inelástica já é suficiente na visão estruturalista). Se os bancos centrais devem ser emprestadores em última instância, para evitar a quebra do sistema financeiro, tudo o que podem controlar é o custo dos banqueiros de obter reservas, ou seja, a taxa de juros. Há uma autonomia relativa na decisão da autoridade monetária em “pagar mais” (ou “cobrar menos”) que a taxa de mercado, independentemente do eventual “excesso” ou “escassez” (sic) de dinheiro. Como um grande participante do mercado, o banco central possui poder suficiente para influenciar decisivamente essa taxa.

Pela corrente da endogeneidade da moeda estrutural, à medida que as instituições financeiras evoluem da ênfase na seleção da carteira de ativos para dar relevância semelhante à administração de passivos, num jogo com “quase-moedas” - de “recebedoras de juros” a “transferíveis por cheques” -que permite fugir do controle de reservas por parte da autoridade monetária, multiplicam sua capacidade de empréstimos. Com as inovações financeiras, a oferta de moeda creditícia não pode ser nunca perfeitamente inelástica (curva vertical), num sistema de reservas compulsórias fracionárias.

A questão decisiva, portanto, reside no custo da taxa de juros para o sistema bancário, repassável para os demandantes de crédito, na tentativa de induzir a uma incorporação de ativos de reserva adicionais em seus balanços. À medida que o lucro bancário deriva do spread entre taxas de aplicação e de captação, os banqueiros têm incentivo para expandir seus empréstimos desde que consigam tomadores dispostos a pagar mais que a taxa de juros de mercado. Mantendo diferencial positivo, os bancos podem até pagar mais ao público para que este libere seus recursos mais líquidos e aceite em troca obrigações do banco menos líquidas.

“O banco central pode amenizar a elasticidade juros da oferta que resulta da administração de passivos se oferecer aos bancos fontes alternativas de reservas, comparadas com aquelas resultantes do pagamento ao público para alterar a liquidez de seu portfólio. É assim que num sistema bancário moderno, com administração de passivos, o banco central não pode evitar alguma endogenidade.20 20 Ibid.: 168.

Com a teoria da endogeneidade da moeda, os pós-keynesianos “heterodoxos” superam os “ortodoxos”, no sentido de abranger área de conhecimento referenciada à realidade institucional bancária, que ficou de fora da Teoria Geral de Keynes.

  • 1
    Keynes, J. M. (1936). Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda. São Paulo: Abril Cultural, 1983: p.164.
  • 2
    Bobbio, Norberto. (1979). “Existe uma doutrina marxista do Estado?”. O Marxismo e o Estado. Rio de Janeiro: Graal, 1979: 13-31.
  • 3
    Carvalho, Fernando C. “A não-neutralidade da moeda em economias monetárias de produção: a moeda nos modelos pós-keynesianos”. Estudos Econômicos 21(1): 11-40.
  • 4
    Ibid.: 17.
  • 5
    Ibid.: 31.
  • 6
    Moore, Basil (1988a). Horizontalists and verticalists: the macroeconomics of credit money. Cambridge, Cambridge University Press, 1988: 3.
  • 7
    Op. cit: 162.
  • 8
    Arestis, Philip (1988). “Post-keynesian theory of money, credit and finance”. Post-Keynesian Monetary Economics. Inglaterra: Edward Elgar: 42-44.
  • 9
    lbid.: 63-66.
  • 10
    Dow, Sheila C. (1988). “Money supply endogeneity”. Économie Appliquée. Tome XLI, n.1, 1988: 19-39.
  • 11
    Ibid.: 31-2 (grifos meus).
  • 12
    Pollin, Robert (1991). “Two theories of money supply endogeneity: some empirical evidence”, Journal of Post Keynesian Economics 13(3), Primavera, 1991: 367.
  • 13
    Para uma resenha de suas posições, v. Costa, Fernando N. (1991). “Moeda endógena, taxa de juros exógena”. Ensaios de Economia Monetária. São Paulo: Bienal.
  • 14
    Pollin (1991: 393).
  • 15
    Palley, Thomas I. (1991). “The endogenous money: consensus and disagreement”. Journal of Post Keynesian Economics 13(3), Primavera, 1991: 398.
  • 16
    Moore, Basil (1991). “Money supply endogeneity: ‘reserve price setting’ or ‘reserve quantity setting’?”. Journal of Post Keynesian Economics 13(3), primavera, 1991: 405.
  • 17
    Moore, Basil (1988b). “The endogenous money supply”, Journal of Post Keynesian Economics. Primavera, 1988, vol.X, n2 3: 384 (grifo meu).
  • 18
    Moore (1988a: IX).
  • 19
    Davidson, Paul. (1988). “Endogenous money, lhe production process, and inflation analysis”. Économie Appliquée XLl (l), 1988: 163.
  • 20
    Ibid.: 168.
  • 21
    JEL Classification: E52; E12.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 1993
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