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O Plano Verão e a crise estrutural da economia brasileira

The Summer Plan and the structural crisis of the Brazilian economy

RESUMO

Em 10 de maio de 1989 o professor Luiz Carlos Bresser-Pereira, Professor Titular de Economia da Fundação Getúlio Vargas e editor desta Revista, fez a seguinte exposição perante a reunião conjunta da Comissão de Finanças e da Comissão de Economia da Câmara dos Deputados.

PALAVRAS-CHAVE:
Política fiscal; inflação; estabilização; Plano Verão

ABSTRACT

On May 10, 1989, Luiz Carlos Bresser-Pereira, Full Professor of Economics at Fundação Getúlio Vargas and editor of this Journal, made the following presentation before the joint meeting of the Finance Committee and the Economy Committee of the Chamber of Deputies.

KEYWORDS:
Fiscal policy; inflation; stabilization; Plano Verão

O Brasil vive há dez anos uma crise econômica estrutural e está hoje ameaçado de uma nova crise financeira aguda, que, caso se materialize, se sobreporá e agravará a crise estrutural. Nesta exposição perante a Comissão de Finanças e a Comissão de Economia da Câmara dos Deputados, farei uma breve análise de ambas as crises, salientarei sua gravidade, e farei sugestões sobre o caminho a seguir para superar a crise estrutural e evitar a crise aguda.

A crise econômica estrutural é a crise da estagnação da renda por habitante dos últimos dez anos, das altas taxas de inflação, da redução da capacidade de poupança e investimento do país; é a crise fiscal do Estado brasileiro transformada em crise de toda a sociedade. A crise aguda é a crise que poderá sobrevir com o descongelamento do Plano Verão, eventual repetição e possível agravamento da crise aguda do primeiro semestre de 1987, desencadeada devido ao fracasso do Plano Cruzado. É a ameaça de hiperinflação.

Vivemos um momento dramático. As esperanças com o Plano Verão foram por terra. O déficit público aumentou ao invés de diminuir, devido à ortodoxia equivocada da política monetária. O crédito do Estado diminuiu e a credibilidade do governo está mais baixa do que nunca. A inflação está de volta; e a melhor perspectiva, agora, é que a retomada da inflação ocorra sem traumas. Um grande nervosismo instalou-se em toda a economia, reapareceu o medo da hiperinflação e o fantasma do deságio sobre a dívida interna passou a rondar o mercado financeiro, levando à intensificação da fuga de capitais e a uma elevação irreal da taxa de câmbio no mercado paralelo. O pessimismo tomou-se novamente dominante.

É preciso, entretanto, não perder a calma. Esta crise aguda pode ainda ser evitada se a sociedade brasileira se unir diante da gravidade da situação, se empresários, trabalhadores e políticos forem capazes de dar o necessário apoio e orientação a um governo politicamente débil, cuja política econômica foi praticamente imobilizada pela própria crise fiscal e pelos erros cometidos. Espero que esta minha exposição possa ser de alguma utilidade nesse sentido de unir a sociedade brasileira em torno de algumas ideias básicas, que evitem um mal maior.

A CRISE ESTRUTURAL

Começarei por uma visão global e muito sintética da crise estrutural. Estamos, sem dúvida, diante da mais grave crise econômica da história brasileira. Seus sintomas são basicamente os seguintes:

  1. A renda por habitante encontra-se estagnada desde 1980.

  2. A taxa de inflação alcançou níveis jamais verificados anteriormente. Em termos anualizados, superamos a marca dos mil por cento nos últimos meses de 1988.

  3. A concentração de renda, já tão alta no Brasil, vem se aprofundando nesta década.

  4. Os padrões de vida da população - da classe trabalhadora e da classe média assalariada - são declinantes.

Diagnóstico da crise estrutural

Vejamos agora o diagnóstico desta crise. Ele foi feito pela primeira vez de forma compreensiva no Plano de Controle Macroeconômico, de 1987. Há um encadeamento de causas. E naturalmente essas causas se influenciam mutuamente, de forma dialética. Mas é possível tentar também um resumo.

  1. As duas causas básicas da estagnação econômica são: (a) a redução da taxa de investimento, que baixou, em termos de moeda constante, de cerca de 23 para 17 por cento do PIB; (b) a redução da eficiência dos investimentos, medida em termos da queda da relação produto-capital.

  2. A redução dos investimentos é função: (a) do aumento da transferência real de recursos para o Exterior, provocada pela dívida externa; (b) da redução da capacidade de poupança do setor público, provocada (b.1) pela necessidade de pagamento dos juros - inicialmente, da dívida interna e, nos últimos anos, também da dívida externa; e (b.2) pelo aumento da despesa corrente do Estado, especialmente com funcionalismo, a partir da Nova República (populismo); (c) do aumento da taxa de juros interna, provocado pelo endividamento crescente do Estado, ou, o que dá na mesma, pela incapacidade do Estado de eliminar o déficit público; (d) do aumento da taxa de inflação que, inercializada em função de taxas muito altas desde o começo da década, se acelera (d.1) em função de choques exógenos, relacionados com a dívida externa e o déficit público, e (d.2) em função de um mecanismo endógeno de aceleração, na medida em que os agentes econômicos se tornam mais conscientes da própria inflação e vão trocando de indexadores.

A redução da relação produto-capital, ou seja, a redução da produtividade dos investimentos, foi causada: (a) pelo caráter especulativo e pouco produtivo de muitos investimentos em situação de alta inflação; (b) pela ineficiência generalizada causada pela necessidade que os agentes econômicos têm de preocupar-se em se defender contra as altas taxas de inflação, em vez de concentrarem sua atenção no aumento de sua competitividade.

Temos, portanto, que na base da crise econômica brasileira dos anos 80 estão: 1. o pagamento, pelo Estado, de juros elevados sobre a dívida externa; 2. altas taxas de juros (pagas pelo próprio Estado) em função da dívida pública e do déficit público e 3. altíssimas taxas de inflação diretamente relacionadas com seu caráter inercial e indiretamente com a dívida externa e o déficit público.

Ora, estes três fatores têm uma característica em comum: o déficit público e a decorrente dívida pública externa e interna, que se autoalimentam via juros. Esses três fatores podem, portanto, ser resumidos em uma expressão, que sintetiza o diagnóstico da crise econômica dos anos oitenta: crise fiscal do Estado.

A crise fiscal do Estado, é por sua vez, função de dois males básicos que têm assolado a política econômica brasileira desta década: 1. o populismo desenvolvimentista de direita e de esquerda e 2. a ortodoxia neoliberal equivocada, geralmente a serviço da especulação financeira. Tal análise, entretanto, escapa aos objetivos deste breve artigo. Vejamos agora, em função do diagnóstico, as soluções para a crise. Suporemos, ao resumir as propostas de superação da crise, que o novo presidente da República, a ser eleito no final deste ano, terá condições de superar o populismo e a ortodoxia, para tomar com coragem um conjunto de medidas duras e a curto prazo impopulares.

Três choques e reformas estruturais

A solução da crise econômica está, basicamente, no saneamento do Estado, na superação da crise fiscal. Para isto, a curto prazo, necessitamos de três choques, e, a médio prazo, de reformas estruturais.

Os três choques, que defendo desde o último trimestre de 1987, visam a estabilizar a economia brasileira, saneando o setor público. Partem do pressuposto de que o ajustamento fiscal, ou seja, a superação da crise fiscal do Estado, é condição para o controle da inflação, a baixa taxa de juros e a retomada do crescimento. Os três choques são: 1. a redução unilateral da dívida externa para cerca da metade e, em seguida, negociação com os governos credores e as agências multilaterais de crédito; 2. o choque fiscal - constituído de medidas de redução· de despesas, eliminação de subsídios e incentivos de todos os tipos e aumento de impostos - que, somado à redução unilateral da dívida externa, permitirá a imediata eliminação do déficit público; 3. um novo e definitivo choque de preços, já que, em 1990, a inflação inercial deverá estar em níveis muito altos para ser controlada apenas com medidas fiscais e monetárias.

As reformas estruturais não se confundem com as propostas pelo Banco Mundial, mas têm muito em comum. Todas dizem respeito à reestruturação do Estado. As principais são: 1. privatização de serviços públicos, acompanhada de tarifas públicas adequadas; 2. liberalização parcial do comércio externo de forma a basear a proteção à indústria no sistema aduaneiro, que pode ser previsto pelo mercado, e não nos controles quantitativos ou licenças de importação; 3. amplo apoio do Estado ao desenvolvimento da ciência e da tecnologia, voltada esta para a implantação de indústrias nacionais de alta tecnologia; 4. reforma tributária, visando distribuir melhor a renda; 5. descentralização da despesa pública social (educação e saúde), de forma a aumentar sua eficiência e também distribuir melhor a renda.

Os três choques lograrão, a curto prazo, o controle da inflação, a redução da taxa de juros e a retomada dos investimentos. As reformas estruturais garantirão o aumento da eficiência dos investimentos.

Para que essas soluções sejam adotadas, é preciso consenso na sociedade brasileira sobre a gravidade da crise e a necessidade de medidas enérgicas para resolvê-la. A mudança de atitude do Congresso em relação ao problema será essencial. Por outro lado, o novo presidente a ser eleito no final deste ano deverá ter as qualidades básicas dos estadistas - coragem e visão - e condições políticas para promover um grande acordo social ao mesmo tempo (não previamente) que leve adiante os choques e as reformas. O problema é saber se teremos condições de chegar a algum consenso, se o Congresso assumirá sua responsabilidade sobre a crise e se seremos capazes de eleger um presidente com as qualidades necessárias.

A DÍVIDA EXTERNA

Está hoje muito claro que uma causa básica para a crise estrutural da economia brasileira é a dívida externa - e o decorrente déficit público - contraída durante os anos 70. O erro mais grave de política econômica cometido pelo Brasil e relacionado com essa crise foi, sem dúvida, não seguir o exemplo da Coréia em 1979/1980, pondo em prática um forte processo de ajustamento da economia brasileira naquele momento. Quando se decidiu ajustar, no final de 1980, já era tarde demais: naqueles dois anos a dívida se tornara demasiado alta. O ajustamento tornou-se, então, perverso, self-defeating. Ainda que, graças a uma forte recessão entre 1981 e 1983, se lograsse a recuperação do equilíbrio em conta-corrente, teve-se, em contrapartida, a redução da capacidade de poupança e investimento do país e o agravamento da crise fiscal.

Diante da crise da dívida externa, a política do Brasil tem sido extremamente tímida, não se revelando de forma alguma em consonância com o interesse nacional. Em 1987, com a moratória de fevereiro e, depois, com a proposta de redução da dívida via securitização - ou seja, a conversão como condição para suspensão da moratória -, parecia que iniciávamos uma nova fase na qual o Brasil tomaria posição mais afirmativa. Estas esperanças, entretanto, se frustraram em 1988, com a suspensão da moratória e a celebração de um acordo com os bancos credores, o que representou enorme recuo do Brasil. Abandonamos nossas propostas de securitização e de desvinculação dos bancos com o FMI; aceitamos, inclusive, a vinculação adicional com o Banco Mundial; aceitamos condições de relending e de conversão da dívida em investimentos prejudiciais ao Brasil e nos conformamos com um financiamento de juros, para o biênio 1987-1988, inferior a 10 por cento, quando a solicitação original do Brasil - já demonstrada no Plano de Controle Macroeconômico de julho de 1987 e minimamente necessária para compatibilizar o pagamento dos juros com a retomada do desenvolvimento e a estabilidade de preços - era de 60 por cento.

O Plano Brady

No início de 1989 - já claro para todos que a suspensão da moratória e o acordo com os bancos em nada resolvera a crise da dívida externa brasileira-, o novo governo dos Estados Unidos anunciou o Plano Brady. Três meses depois do discurso do secretário do Tesouro Nickolas Brady, podemos avaliar melhor seu alcance e limites.

Na verdade, não se trata de um plano, mas de uma “iniciativa”, um conjunto de análises e sugestões através das quais o governo reformula sua política em relação à crise da dívida dos países do Terceiro Mundo. Representa, certamente, um avanço, na medida em que cria novas oportunidades para os países devedores. Mas, sem dúvida, trata-se de um plano insuficiente. Caso os países devedores se limitem aos parâmetros estabelecidos pelo secretário do Tesouro norte-americano, tão cedo não resolverão a crise da dívida externa. Autoridades do Tesouro dos Estados Unidos fizeram a previsão de que, em três anos, lograr-se-ia uma redução de 20 por cento na dívida dos países altamente endividados. Ora, esse prazo é longo demais, a percentagem de 20 por cento insuficiente e, mesmo assim, tudo indica, essa previsão é “otimista”, dado o caráter “voluntário” do Plano.

Com o Plano Brady a crise da dívida entra agora em sua quarta fase. A primeira fase, definida a partir do diagnóstico equivocado de que se tratava simplesmente de um problema de liquidez, foi a da proposta de austeridade, ou, mais precisamente, da solução convencional de combinar financiamento com ajustamento. A segunda fase, a partir de 1985, foi a do Plano Baker, que pretendia aumentar o financiamento (não o logrou) e propor, além das políticas de ajustamento de curto prazo, reformas estruturais de sentido liberalizante, que garantissem a retomada do desenvolvimento.

O retumbante fracasso do Plano Baker levou o governo dos Estados Unidos a uma terceira fase, que poderíamos chamar de “fase do menu de opções e da securitização voluntária”. Esta fase começa a se definir a partir do início de 1987, quando o Tesouro e os bancos começam a falar em um “menu de opções”. O prato principal desse menu era, naturalmente, a conversão da dívida em investimentos, mas já temos, no acordo com a Argentina do primeiro semestre desse ano, os exit-bonds, uma forma muito tímida de securitização.

A nova fase define-se plenamente quando as ideias de securitização negociada e ampla e a desvinculação entre as agências multilaterais (FMI e Banco Mundial) dos desembolsos dos bancos são lançadas pelo Brasil em setembro de 1987. Depois de recusar grosseiramente a proposta do Brasil, o Tesouro e em seguida os bancos cooptam a ideia de securitização da dívida, ou seja, a conversão da dívida em novos títulos capturando parte do desconto existente no mercado financeiro secundário, desde que essa securitização seja “voluntária”, isto é, que dela participem somente os bancos que assim o desejarem. A securitização voluntária é formalmente incluída no menu de opções no discurso do ministro Baker, na reunião do Comitê Interino do FMI, em setembro de 1987. Fica, porém, claro, desde logo, que esta seria uma opção para os pequenos bancos; os grandes continuariam a insistir em receber tudo ou a fazer conversões da dívida em investimentos. Exemplo dessa mudança de orientação foi o caso do fracassado projeto México-Morgan. Além de voluntária, a securitização deveria ser realizada sem qualquer garantia dos governos credores. Estes proibiram, então, de forma muito clara, que o Banco Mundial - que estava interessado em agir nessa área - desse qualquer tipo de garantia aos novos títulos, nos termos em que o Brasil e o México solicitavam. Os governos continuavam também contrários à desvinculação entre as agências multilaterais e os bancos.

A quarta fase da dívida começa agora com a administração Bush e o Plano Brady. As três fases anteriores, embora assinalassem avanços, foram etapas do muddling through approach, da estratégia do Tesouro e dos bancos de “empurrar com a barriga” a crise, de adiar qualquer solução definitiva enquanto os bancos credores se fortalecessem financeiramente. O Plano Brady é mais uma expressão do muddling through approach. É mais uma forma através da qual o Tesouro e os bancos se associam para definir uma estratégia para a dívida que possibilite um discurso aparentemente coerente, ao mesmo tempo que se evita que os bancos sejam obrigados a reconhecer a perda já de fato ocorrida e a conceder formalmente o necessário desconto sobre a dívida.

O Plano Brady abre uma quarta fase para a crise da dívida, apesar de sua indefinição e do fato de continuar a expressar basicamente a posição dos bancos norte-americanos (ver a posição do banco mais influente no mundo, o Morgan Guaranty, favorável à securitização voluntária da dívida com garantias oficiais, no número de dezembro de 1988 de World Financial Markets). São duas as novidades fundamentais do Plano Brady: em primeiro lugar, permite e estimula o Banco Mundial e o FMI a oferecerem garantias aos novos títulos com desconto, que seriam emitidos pelos países altamente endividados; em segundo lugar, autoriza a desvinculação em relação aos bancos, ao permitir que o Banco Mundial e o FMI façam empréstimos aos países devedores, sem que haja ainda acordo com os bancos comerciais que garantam a cobertura completa do déficit em sua conta-corrente. Em outras palavras, permite acordos com o FMI e o Banco Mundial enquanto o país está em moratória ou em “atraso” para com os bancos comerciais. Há uma terceira novidade, ligada à anterior: sugere a suspensão da sharing clause existente nos contratos de empréstimo, que formalmente impede que um banco aceite uma forma de redução de seus créditos sem que os demais concordem.

A grande limitação do Plano Brady está na insistência de que a securitização seja voluntária. Dessa forma, os grandes bancos - favoráveis à securitização, desde que seja para os outros - continuarão com sua estratégia de “ficar por último”, ou seja, com sua estratégia de permanecerem como livre-atiradores. Essa estratégia obviamente inviabiliza o Plano. O fato de não se permitir que o FMI e o Banco Mundial formem uma Agência Internacional da Dívida, que possibilitaria às suas instituições coordenar esforços, e a indefinição do volume de recursos adicionais, que essas instituições poderão utilizar para oferecer as garantias, são duas outras limitações muito sérias ao plano.

Redução unilateral da dívida

Apesar de suas limitações, apesar de sua insistência em esquemas “voluntários” de redução da dívida e da falta de uma Agência Internacional da Dívida que conduza o processo de securitização, temos um avanço importante com o Plano Brady. Securitização, garantia para os novos títulos e desvinculação deixaram de ser “inaceitáveis”, de se constituir em um non starter.

Este plano abre uma nova oportunidade aos países devedores para agir com firmeza e habilidade. Agora é possível para esses países propor planos de securitização global da dívida ao Banco Mundial e ao FMI, aceitar basicamente suas condicionalidades e depois exigir que todos os bancos que queiram receber seus créditos participem do plano. Desta forma, os países devedores estarão dando um passo no sentido da solução efetiva da crise da dívida externa. Entretanto, para que esta solução - que o Plano Brady tímida, mas claramente legitimou - se torne realidade, a disposição de os países altamente endividados decretarem moratória, reduzirem unilateralmente a dívida e dispensarem os “comitês assessores de bancos” é essencial. Sem essas medidas, o Brasil não terá poder de barganha para, em seguida a elas, negociar a dívida com os governos credores e as instituições multilaterais. Enquanto estivermos pagando juros, estaremos à mercê dos grandes bancos, que continuarão com sua política de livre-ativadores: favoráveis à redução da dívida, desde que não sejam eles que concedam o desconto.

Os países que aderirem ao Plano Brady deverão naturalmente concordar com as condicionalidades estabelecidas pelo FMI e o Banco Mundial. Estas condicionalidades terão que ser discutidas pelos países devedores; nelas há um vezo neoliberal incompatível com a realidade desses países, mas sem dúvida há também muito de razoável. É preciso, entretanto, salientar que o ajustamento interno, essencial para o controle da inflação e a retomada do desenvolvimento, desde que combinado com uma efetiva redução da dívida, deixará de se constituir em política de ajustamento self-defeating como é hoje e poderá transformar-se em realidade.

Não vejo possibilidades de o atual governo rever sua política global em relação à dívida externa, da mesma forma que perdeu qualquer possibilidade de promover internamente o verdadeiro ajuste fiscal de que esse país necessita - e do qual a redução da dívida externa é uma parte essencial. No próximo governo, entretanto, a “política dos três choques” deverá ser implementada nos seus primeiros cem dias, se o novo presidente tiver a dimensão de estadista de que o Brasil necessita tão urgentemente: um choque fiscal, que elimine o déficit público; um choque da dívida, que dispense o comitê assessor de bancos e reduza à metade a dívida de longo prazo do Brasil para com os bancos privados; e um novo e definitivo choque de preços, que controle de vez a inflação no Brasil.

No quadro da política dos três choques, seria extremamente interessante que o choque fiscal - o plano radical de ajustamento fiscal que levasse o país, ainda em 1990, a um pequeno superávit fiscal operacional - elaborado pelo novo governo, fosse apresentado e se possível aprovado pelo FMI. Precisamos deixar de preconceitos em relação ao FMI. É verdade que a política de austeridade da primeira fase da dívida foi teoricamente inspirada nessa instituição. É indiscutível que foi ela fonte de graves equívocos nesse período. Mas as modificações havidas no FMI, seja devido à evidência dos erros, seja devido à eleição de Michel Camdessus para seu diretor-gerente, foram importantes. Podemos ainda ter divergências, mas o objetivo fundamental do FMI em termos de política econômica - eliminar o déficit público - é também nosso.

Por isso, seria muito aconselhável ao Brasil, antes de dispensar o comitê assessor de bancos, decretar nova moratória e reduzir unilateralmente sua dívida externa, ter um acordo com o FMI aprovado - ou, pelo menos, que seu plano de ajustamento fiscal já tenha sido formalmente submetido ao FMI. O Plano Brady prevê claramente que o Banco Mundial e o FMI poderão fazer acordos com os países devedores independentemente de acordo com os bancos. O Brasil deverá aproveitar afirmativamente dessa possibilidade. Um plano de ajustamento fiscal interno aprovado pelo FMI dará mais credibilidade à política econômica do novo governo, legitimará mais claramente a redução unilateral da dívida e dará mais força às negociações posteriores com os governos credo­res. Com os bancos credores as negociações só poderão ser feitas individualmente, banco a banco. O comitê assessor de bancos é na verdade um pequeno cartel de cobradores. Não faz qualquer sentido para o Brasil negociar com esse comitê, muito menos pagar suas contas.

O PLANO VERÃO E OS RISCOS DA CRISE AGUDA

Existe hoje um quase consenso quanto à natureza da crise que atravessa a economia brasileira e dos riscos de ela desembocar em crise econômica e financeira aguda, inclusive sob a forma de hiperinflação. Durante o ano de 1988, ainda que prevalecesse durante algum tempo o discurso segundo o qual “novo congelamento, nunca mais”, foi-se formando o consenso de que um novo congelamento seria inevitável se se quisesse evitar a hiperinflação, já que se acelerava sem parar a taxa de inflação, havendo chegado próximo aos 30 por cento ao mês no final do ano. Sabe-se perfeitamente que é impossível· controlar a inflação autônoma ou inercial sem o recurso a alguma forma de congelamento de preços. Os outros dois tipos de inflação - a comum ou moderada e a hiperinflação - dispensam, para seu controle, uma política administrativa de rendas. No primeiro tipo podemos limitar-nos a políticas fiscais e monetárias convencionais; no segundo, além dessas políticas, recorre-se à fixação da taxa de câmbio. Para esta última medida é naturalmente necessário que os agentes econômicos percebam que o governo dispõe de reservas cambiais e o país já logrou a capacidade de realizar um superávit em conta-corrente que permita a sustentação do congelamento da taxa de câmbio. No caso intermediário das inflações autônomas ou inerciais - superiores a 5 por cento ao mês, mas que não atingiram o estágio da espiral hiperinflacionária - o congelamento é a única alternativa.

Na verdade, o congelamento de preços, o chamado “choque heterodoxo”, é uma forma de evitar que a inflação autônoma evolua no sentido da hiperinflação. Durante todo o ano de 1988 fui favorável a um novo choque, mas, sabendo das limitações do governo, de sua incapacidade de reduzir a dívida externa e eliminar o déficit fiscal, entendia que o novo congelamento deveria ser um “congelamento fraco”, ou um “congelamento realista”, que reduzisse a inflação, mas não pretendesse eliminá-la. Pensava em alguma coisa semelhante ao congelamento pelo qual fui responsável e que afinal ficou com o nome de Plano Bresser. O governo, no entanto, em 15 de janeiro deste ano, nos surpreendeu com um “congelamento forte”, com um novo Plano Cruzado, agora denominado Plano Verão.

Ao contrário do Plano Bresser e de forma semelhante ao Plano Cruzado, o Plano Verão realizou uma reforma monetária, desindexou a economia, paralisou as minidesvalorizações cambiais (só as retomou muito timidamente quase três meses depois), não previu uma fórmula de indexação de salários. Pretendia, entretanto, obter melhor sorte do que o Plano Cruzado graças a políticas fiscal e monetária muito mais rígidas. Graças, portanto, ao que seria uma “política ortodoxa”, em contraste com a “política heterodoxa” do Plano Cruzado.

Quase quatro meses depois pudemos verificar que a política ortodoxa do Plano Verão foi ineficaz. Vejamos, em primeiro lugar, o que ocorreu no plano financeiro. O déficit público não diminuiu; ao contrário, tudo indica que aumentou, devido à absurda política de juros reais pagos pelos títulos públicos nos primeiros três meses do plano. A política monetária rígida não se materializou, afinal, apesar dos juros reais elevados: a base monetária, já no final de fevereiro, estava 36,5 por cento maior do que em 31 de dezembro, quando tal período do ano é sempre um período de contração da base. A dívida pública interna cresceu enormemente, devendo ter dobrado, em termos nominais, em 30 de abril comparativamente a 31 de dezembro, enquanto a inflação nesse período, medida pelo IGP, deve ter ficado um pouco superior a 60 por cento. A taxa de inflação oficial mensal, por sua vez, apesar de o congelamento ter sido mantido praticamente intacto até 15 de abril (data do fechamento do levantamento de preços para o IPC-IBGE de abril), alcançou 7,31 por cento.

Mais graves do que esses resultados financeiros até agora alcançados pelo Plano Verão, foi o prejuízo em termos de perda de credibilidade do governo e de crédito do Estado. A incapacidade do governo de controlar o déficit público, apesar das insistentes manifestações de intenção, e os erros cometidos em relação principalmente à taxa de juros e à desindexação da economia levaram a um agravamento da perda de sua credibilidade. A esta somou-se a perda de crédito do Estado, evidenciada pela dificuldade de colocação das LFTs, não obstante os juros astronômicos.

Esta perda de crédito, ainda que consequência da perda de credibilidade do governo, foi mais diretamente o resultado de crescente convicção por parte dos agentes econômicos: 1. de que a inflação reprimida era muito grande e logo se manifestaria através do índice de preços e da desvalorização cambial, e 2. de que o governo seria cada vez mais tentado (ou obrigado) a promover um deságio parcial sobre sua dívida interna, dado o desequilíbrio a que chegaram as contas públicas em termos de fluxo (déficit público) e de estoque (dívida pública externa e interna) e a própria crescente perda de crédito do Estado. A perda de crédito do governo manifestou-se através de extraordinária elevação da taxa de câmbio no mercado paralelo. Entre as cotações médias de abril e dezembro, a desvalorização do cruzado no mercado paralelo foi de 95,6 por cento, contra uma desvalorização correspondente no mercado oficial de 51,3 por cento. É verdade que esse descolamento das duas taxas, refletido em um ágio do câmbio paralelo sobre o oficial que já alcançava um nível superior a 150 por cento, é também decorrência de um atraso cambial crescente, na medida em que o governo, para evitar a aceleração da inflação, fez até agora, desde a introdução do plano, apenas duas desvalorizações cambiais, somando 5,3 por cento.

Finalmente, no plano econômico real - e no plano social - os resultados não são menos preocupantes. Os salários médios reais estão em claro declínio e a produção industrial apresenta sinais de recessão. A redução dos salários reais está relacionada com a fórmula de conversão dos salários em novos cruzados por um nível inferior à média do ano passado e com a falta de uma regra de indexação salarial desde a introdução do Plano Verão. Os salários médios reais caíram 16,7 por cento entre dezembro e fevereiro. A produção industrial apresentou uma queda de 9,9 por cento em fevereiro em relação ao mesmo mês do ano passado. O nível de emprego vem se reduzindo nos últimos seis meses. Em março de 1989, segundo o índice da FIESP, foi 2,6 por cento inferior ao de março de 1988 e 6,4 por cento menor do que o de março de 1987. As taxas de desemprego ainda são baixas, mas apresentam clara tendência de aumento. As previsões do INPES (Instituto de Planejamento Econômico e Social do Ministério do Planejamento) são de que a recessão se aprofundará nos próximos meses. Apenas a safra agrícola volta a apresentar excelentes perspectivas. E as vendas a varejo, embora no último mês já tenham arrefecido, mantêm-se em um nível superior ao do ano passado devido, especialmente, à preocupação dos consumidores de antecipar as compras de bens duráveis para se proteger da inflação futura. Em função desse quadro recessivo, o saldo comercial continua elevado, e as previsões para este ano são de um superávit semelhante ao de 1988.

Este quadro real da economia não seria negativo - poderia até ser considerado positivo - se traduzisse um forte ajustamento fiscal que estivesse eliminando ou pelo menos reduzindo de forma considerável o déficit público. Já vimos, entretanto, que não é este o caso. Nada foi feito para reduzir a dívida e os juros externos. Não houve qualquer redução significativa de despesas ou aumento de receitas públicas, não obstante todos os efetivos esforços da equipe econômica, e as despesas com juros sobre a dívida interna aumentaram consideravelmente. Por outro lado, dado o aumento das taxas de juros internaciocionais, as despesas com juros sobre a dívida externa também deverão aumentar em 1989. Segundo informações não oficiais, mas fidedignas, as perspectivas mais otimistas para este ano são de um déficit público operacional de 7 por cento do PIB - e há projeções muito mais pessimistas.

Descongelamento

Diante desse quadro desalentador dos resultados do Plano Verão até o presente momento, surge o problema ou o fantasma do descongelamento. Da mesma forma que havia duas alternativas para o congelamento - um congelamento forte do tipo Plano Cruzado ou um congelamento de emergência e limitado como o Plano Bresser - há duas alternativas correspondentes para o descongelamento: ou adiá-lo o mais possível, como foi feito no Cruzado, ou fazê-lo o mais rápida e suavemente possível, como ocorreu no Plano Bresser. E as consequências podem ser também correspondentes, desde que não se consiga controlar definitivamente a inflação, como era a esperança do Plano Cruzado: a retomada traumática da inflação, em meio a uma grave crise financeira, como aconteceu com o Plano Cruzado e agora ocorre com o Plano Primavera na Argentina, ou a saída do congelamento e a volta da inflação de forma gradual, sem qualquer crise, como ocorreu com o Plano Bresser.

Hoje já está claro que o Plano Verão não terá qualquer possibilidade de controlar definitivamente a inflação. Não obstante, a estratégia de descongelamento do governo parece mais próxima da do Plano Cruzado do que da do Plano Bresser: adia-se o mais possível a plena indexação da economia e a correção dos preços. O novo cruzado continua a ser perigosamente valorizado em relação ao dólar. Em consequência desse adiamento, os desequilíbrios se aprofundam: 1. Sabemos muito bem que, se há uma coisa com a qual não se brinca é com a taxa de câmbio; e, no entanto, continuamos brincando. Apesar da máxi de 17 por cento no dia do congelamento, os cálculos do INPES apontam para uma valorização real do novo cruzado de 5,6 por cento no primeiro trimestre de 1989 em relação a dezembro. Se tomarmos como base o final de 1987, essa desvalorização é muito maior: cerca de 20 por cento. 2. A redução dos salários médios reais, a inexistência de uma lei de indexação de salários, o autoritarismo canhestro do governo federal e a insegurança de todos acirram o conflito social. 3. A manutenção do congelamento dos preços públicos agrava o déficit público e a do congelamento dos preços privados provoca desabastecimentos setoriais e, principalmente, um evidente processo de desobediência geral, que só não atingiu ainda os preços mais visíveis e mais facilmente controláveis da economia. Em consequência, aumentam os desequilíbrios dos preços relativos, aprofunda-se a inflação reprimida ou residual, que, ao invés de diminuir depois do congelamento, aumenta. Uma indicação impressionante dos desequilíbrios crescentes dos preços relativos está na evolução setorial do INPC-IBGE. Entre fevereiro e abril, enquanto a variação acumulada dos preços foi de apenas 11,3 por cento para alimentação, subiu para 31 por cento para artigos de residência e para 51,4 por cento para vestuário.

Todas essas distorções nos preços relativos em geral - taxa de câmbio, salários, tarifas públicas, preços das mercadorias, taxa de juros (que, embora já reduzida, continua altíssima) - apontam para um processo de descongelamento traumático.

Haverá ainda tempo para evitar a crise aguda que se prenuncia? Creio que sim. Para uma saída do congelamento semelhante à do Plano Bresser - que é a única alternativa que resta - é evidente que seria melhor que o Plano Verão, na sua concepção original, tivesse características semelhantes. É inútil, entretanto, chorar sobre o leite derramado. Hoje, há uma quase unanimidade entre os economistas de que, para evitar o pior, o governo terá que apressar as correções dos preços relativos, principalmente do câmbio, corrigir com mais rapidez os preços dos setores cipados, liberar os dos setores competitivos e aprovar rapidamente uma lei de indexação de salários.

O Poder Executivo tem acusado com insistência o Congresso de ser o culpado pelas dificuldades do Plano Verão. A acusação é certamente injusta. Mas não há dúvida de que não se observa nas duas casas do Congresso uma consciência clara da gravidade da crise. A aprovação da inclusão da ferrovia Norte-Sul no orçamento, a recriação de órgãos do governo extintos, os subsídios e incentivos (renúncias fiscais) que se continua a garantir a toda uma série de setores e regiões, a perspectiva imediata de dobrar o salário-mínimo são sinais de uma atitude populista, que não nos ajudarão a sair da crise.

O populismo fisiológico é, aliás, também um mal por excelência do Executivo, que, no entanto, o combina de forma contraditória com uma ortodoxia de direita equivocada, cujos exemplos mais recentes foram o acordo sobre a dívida externa, a desindexação da economia através da extinção da OTN, a taxa de juros do Plano Verão e a tentativa de arrocho salarial em curso.

A curto prazo, a melhor coisa que o Congresso pode fazer, para evitar a crise aguda que nos ameaça, é aprovar o projeto de lei sobre indexação de salários do deputado Osmundo Rebouças e estabelecer um sistema de aumento real do piso nacional de salários gradual, mas efetivo. O projeto Osmundo Rebouças assegura, nas atuais circunstâncias, ajustes mensais aos trabalhadores, garante razoavelmente a manutenção do salário médio real e ao mesmo tempo contém um pequeno freio à aceleração inflacionária. Este não é o caso da fórmula alternativa mais óbvia - a correção mensal plena dos salários.

A médio prazo, o Congresso Nacional deverá preocupar-se. primeiro, em dar respaldo ao novo governo que se instalará no próximo ano para que este possa, nos primeiros meses de 1990, resolver o problema da dívida externa e realizar o ajuste fiscal que produza um superávit fiscal; e, em seguida, promover as reformas estruturais que acelerem o processo de privatização das empresas públicas, que permitam maior liberalização do comércio internacional. que garantam um caráter mais progressivo para o sistema tributário, que promovam o aumento das despesas sociais e dos gastos com ciência e tecnologia.

Só assim o Brasil poderá retomar o desenvolvimento e começar efetivamente a corrigir as imensas injustiças sociais existentes neste país.

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    JEL Classification: E62; E31.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 1989
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