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Distribuição de renda no Brasil nos anos 80

Income distribution in Brazil in the 1980s

Resumo

Ao contrário do grande desenvolvimento da economia brasileira desde o pós-guerra até o final da década de 70, a década de 80 significou a ruptura desse ciclo e a combinação de um processo inflacionário crônico, a estagnação econômica e o agravamento da desigualdade de renda. Esses fatores em conjunto não se revelaram neutros quanto ao aspecto distributivo. Entre 1981 e 1989, a renda dos 10 por cento mais ricos aumentou 14,2 por cento, enquanto a renda dos 20 por cento mais pobres diminuiu 26 por cento. Este trabalho apresenta algumas comparações internacionais, tanto sobre a distribuição funcional como sobre a distribuição pessoal da renda, e conclui que essa distribuição se torna um aspecto fundamental para a estabilização e para a recuperação do desenvolvimento econômico-social.

Palavras-chave:
Desigualdade; distribuição de renda

Abstract

Contrary to the huge development of the Brazilian economy from the post-war to the end of the seventies, the eighties signified the rupture of this cycle and the combination of a chronic inflationary process, the economic stagnation and the worsening of income inequality. These factors together have not revealed to be neutral concerning the distributive aspect. Between 1981 and 1989, the income of the 10 per cent richer increased 14,2 per cent, while the income of the 20 per cent poorer decreased 26 per cent. This work presents some international comparisons, even on the functional as well as on the personal distribution of income and concludes that this distribution becomes a fundamental aspect to the stabilization and to the economic-social development recovering.

Keywords:
Inequality; income distribution

1. INTRODUÇÃO

A economia brasileira, no período que compreendeu o pós-guerra até o final dos anos 70, apresentou o expressivo desempenho em que o Produto Interno Bruto (PIB) cresceu à taxa média de 7% ao ano.

Na primeira fase desse período observou-se o fortalecimento da presença do Estado na economia, propiciando a formação de uma infraestrutura que se mostrou crucial para a consolidação da fase posterior, do processo de substituição de importações.

No entanto, da mesma forma que se criava uma base industrial diversificada e se observava a intensificação do fenômeno da urbanização, agravavam-se as disparidades de renda e as desigualdades regionais, decorrentes de um modelo de desenvolvimento concentrador por suas próprias caraterísticas.

Os anos 80 vieram não só interromper o ciclo de crescimento acelerado, como significaram a combinação de um processo inflacionário crônico com a estagnação econômica e com o agravamento das desigualdades de renda.

Esse período também se caracterizou pela série sucessiva de planos de estabilização, os quais se alternaram da ortodoxia para a heterodoxia, sem, no entanto, obter sucesso no combate ao processo inflacionário.

Entre 1980 e 1992, o PIB cresceu apenas 1,3% ao ano, enquanto a população crescia, em média, cerca de 2% ao ano. Em consequência, a renda per capita caiu em tomo de 9% no período.

O objetivo deste artigo é analisar a questão da distribuição da renda nessa fase da economia brasileira, fazer algumas comparações com outros países e discutir as implicações do problema para o processo de estabilização e para a retomada do desenvolvimento econômico no Brasil.

2. A QUESTÃO DA DISTRIBUIÇÃO DA RENDA NO BRASIL

A questão da distribuição de renda é sempre um aspecto de fundamental importância para a medição e análise do grau de desenvolvimento dos países. Particularmente no caso brasileiro, essa questão se torna imprescindível para a compreensão do nosso modelo de desenvolvimento, que se revelou, ao longo do tempo, concentrador sob a ótica da renda e excludente do ponto de vista social.

No Brasil, o debate acerca da questão da distribuição de renda intensificou-se a partir dos anos 70, com a divulgação do censo econômico, referente aos dados de 1960 a 1970, apontando o aumento da concentração de renda. Langoni (1972) foi o precursor nessa análise, usando o conceito de população economicamente ativa. Seu trabalho, longe de obter consenso sobre a sua conclusão, provocou o debate com outras correntes de pensamento.

Pelos dados disponíveis, entre 1960 e 1970, com exceção dos 10% mais ricos, todos os demais extratos perderam participação relativa na renda. Nesse período o índice de Gini aumentou 14%, de 0,4994 para 0,55684.

Na análise de Langoni, a escassez de mão-de-obra qualificada no período era o fator determinante do grau de desigualdade. Para definir a qualificação, o autor utilizou a variável educação. Esse diferencial de qualificação profissional estaria sendo o fator principal de ampliação do diferencial de salários, principalmente no meio urbano e na Região Sudeste do País.

No entanto, embora não se possa desconsiderar esse aspecto, o aumento das disparidades deveu-se também ao modelo de desenvolvimento, centrado em um processo de substituição de importações que, por si só, implicava uma concentração de renda.

O enfoque na produção de bens de consumo duráveis, como automóveis, por exemplo, exigia a formação de uma camada de renda que gerasse demanda para esse segmento.

Assim, o rápido crescimento da economia brasileira provocou um processo de concentração desigual entre estratos de renda e diferenciais entre regiões, entre área urbana e rural e entre ocupações qualificadas e não qualificadas.

No período 1970-1980, utilizando-se como critério a análise baseada na população economicamente ativa, observa-se que o movimento de concentração da renda prosseguiu, embora de forma menos intensa do que ocorreu na década anterior.

O índice de Gini, que entre 1960 e 1970 aumentou com mais intensidade na população urbana, entre 1970 e 1980 centrou-se no setor primário como consequência da modernização da agricultura.

Mais tarde, os anos 80 nos reservaram o pior dos mundos, com a estagnação econômica, com o aumento da inflação, da intervenção estatal - através dos sucessivos planos de estabilização - e com a concentração de renda. Embora ainda não se disponha de um conjunto de indicadores sociais que permita uma análise mais pormenorizada, os dados conhecidos nos revelam um agravamento da concentração de renda no período.

3. ANÁLISE DOS ANOS RECENTES

3.1 A distribuição pessoal da renda

Utilizando-se os dados da Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios, a PNAD, do IBGE, identificamos uma tendência para a situação da distribuição pessoal da renda nos anos 80.

Apesar de o rendimento médio real das pessoas ocupadas ter crescido em todas as faixas, comparando-se 1989 com 1988, a concentração de renda aumentou.

Analisando-se o período de nove anos compreendidos entre 1981 e 1989, a renda dos 10% mais ricos da população brasileira, que representava 46,6% da renda total em 1981 - um porcentual já extremamente elevado em comparação ao de outros países, como veremos adiante, elevou-se para 53,2%, ou seja, aumentou em 14,2 % (Tabela 1).

Tabela1: Distribuição
do rendimento mensal~ Brasil (*)

No estrato dos 1% mais ricos, o aumento da concentração foi ainda maior. Estes, que em 1981 detinham 13% da renda total, aumentaram sua participação no bolo para 17,3%, o que representa um incremento de 33,1%.

Em contrapartida, o rendimento dos mais pobres diminuiu. Os 20% mais pobres que já detinham a pequena parcela de 2,7% da renda total em 1981, passaram a deter 2% da renda total em 1989, o que representa uma queda de 25,9%. Da mesma forma, caiu 22,4% a renda do estrato dos 50% mais pobres, que teve reduzida a sua participação de 13,4% da renda total, em 1981, para 10,4%, em 1989.

Observa-se ainda na tabela, que o processo de concentração se agravou principalmente a partir da segunda metade da década.

O aumento da inflação no período, os sucessivos planos de ajuste e as políticas salariais nos permitem sugerir que estes foram os fatores fundamentais nesse processo de agravamento da concentração de renda.

O grau de concentração de renda observado na economia brasileira é o maior entre 41 países de diferentes graus de desenvolvimento, como Bangladesh, Índia, Bélgica e Alemanha. Nesses países, segundo a edição de 1990 do World Development Report, do Banco Mundial, a renda dos 10% mais ricos situa-se próxima dos 25% da renda total (Tabela 2).

Tabela 2:
Rendimentos dos 10% mais ricos países selecionados

3.2. A distribuição funcional da renda

Devido a uma série de dificuldades metodológicas, os dados atualizados sobre a distribuição funcional da renda ainda são muito precários. Da mesma forma, a comparação entre países também apresenta dificuldades, devido à diferenciação de critérios entre eles.

Apesar dessas diferenças de metodologia e da precariedade de dados atualizados sobre o Brasil, elaboramos uma comparação entre países selecionados para situar nossa posição, a exemplo do que realizamos com os dados da distribuição pessoal.

A comparação entre países quanto à renda funcional revela-nos que a parcela dos salários na renda nacional no Brasil é aproximadamente a inversa à observada nos países desenvolvidos. Nestes, como mostra a Tabela 3, a partir de dados do Institut der Deutschen Wirtschaft, de 1987, enquanto os salários representam cerca de dois terços da renda nacional, como é o caso da Alemanha, Estados Unidos, França e Japão, no Brasil a estimativa é de que eles se situam próximo de 38% da renda total.

Tabela 3:
Participação porcentual dos salários na renda nacional - países selecionados (1987)

Esse porcentual é baixo mesmo se comparado com o de países de grau de desenvolvimento médio, como é o caso de Portugal, da Espanha e da Grécia, todos com participação dos salários na renda nacional superior a 50%.

A baixa participação dos salários no Produto Interno Bruto no Brasil transforma-se em importante inibidor de uma política de distribuição de renda, à medida que restringe a fatia dos assalariados que compõem a maior parcela da população que se encontra nos estratos de menor renda.

De um modo mais amplo, o PIB per capita brasileiro, de cerca de US$ 2.900, também nos revela que a questão da retomada do crescimento econômico, se torna condição sine qua non, no longo prazo, para a melhora da renda da população, já que somente o crescimento da economia e a estabilização garantem um crescimento real dos salários.

4. CONCLUSÕES

Diante do conjunto de dados analisados, sugerimos, ainda que preliminarmente, algumas conclusões como pontos incentivadores do debate:

  1. o primeiro ponto é que o processo de concentração verificado nos anos 80 nos mostra que o processo inflacionário brasileiro, agravado com as sucessivas intervenções na política de estabilização, acabou transformando-se num processo de transferência de renda, que tendeu a privilegiar os mais ricos, em detrimento dos mais pobres. O fenômeno inflacionário brasileiro acaba intensificando o processo de concentração de renda, à medida que os processos formais ou informais de indexação fortemente presentes na economia e os elevados juros reais, mesmo em aplicações de curtíssimo prazo, tendem a favorecer os detentores de capital, que obtêm vantagens com a receita inflacionária e financiando a dívida do governo, através das aplicações financeiras lastreadas em títulos públicos. Do outro lado, o processo inflacionário é cruel com a população mais pobre, que tem seu rendimento real reduzido e, devido à falta de acesso, ou mesmo de conhecimento, tem menos mecanismos de defesa relativamente à população mais rica e esclarecida.

  2. o segundo ponto é que o grau de concentração de renda observado na sociedade brasileira, aliado à baixíssima participação dos salários na renda nacional, é um fator limitador de expansão do mercado interno e da própria estabilização da economia. A limitação de expansão do mercado se faz sentir principalmente no mercado de bens de consumo duráveis, que tende à estagnação, já que a parcela da população cuja renda permite o acesso a esse mercado é extremamente restrita. Esse fenômeno é claramente observado na demanda por bens duráveis, que se estagnou ou mesmo declinou nos anos 80. A demanda interna de automóveis, por exemplo, permaneceu constante no patamar médio de 750.000 veículos por ano, revelando que, ema a população tenha aumentado substancialmente no período, a parcela dos que possuem renda para ter acesso a esse bem permaneceu constante.

  3. No tocante às políticas de ajustamento, a concentração de renda tende a anular ou pelo menos diminuir a eficácia das políticas de estabilização, principalmente das ortodoxas, já que a parcela da população que concentra a maior parte da renda tende a ficar mais imune ao ajuste, ao contrário do que ocorre com a imensa maioria mais pobre, penalizada com a queda do salário real, com o desemprego e com a deficiência dos serviços públicos. Assim, o problema da concentração da renda, tanto para a obtenção das condições para a estabilização, como da retomada do desenvolvimento na economia brasileira, se coloca entre as grandes questões estruturais, como a crise do Estado, o ajuste externo, a melhora da competitividade no mercado e a inserção internacional.

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  • 1
    JEL Classification: O15.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 1994
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